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RESPONSABILIDADE CIVIL
LIBERDADE DE IMPRENSA
LIBERDADE DE INFORMAÇÃO
TELEVISÃO
FOTOGRAFIA
DIREITO À IMAGEM
Sumário
(art.º 663 n.º 7 do CPC) 1. A divulgação da fotografia de uma pessoa com a legenda de “suspeito ontem em tribunal”, feita por erro ou lapso, no âmbito de um programa televisivo que comenta a notícia de um crime alegadamente praticado por outras pessoas, não encontra justificação válida ao abrigo do exercício do direito de liberdade de imprensa e de informação, ainda que tal fotografia não seja falsa, tal como não o é a legenda da mesma, por ter sido colhida num local público, quando o A. foi presente a tribunal para ser ouvido enquanto suspeito da prática de um crime de roubo, tendo ficado em prisão preventiva, pelo qual mais tarde veio a ser condenando. 2. Corresponde à prática de um facto ilícito a exibição da fotografia de uma pessoa com a legenda de “suspeito ontem em tribunal”, em simultâneo com a divulgação e comentário de uma notícia que se reporta a outras pessoas suspeitas da prática de outro crime – nesta perspetiva pode afirmar-se que estamos perante uma falsidade, por não ser verdadeira a correspondência da imagem com a divulgação da notícia que se comenta. 3. O exercício do direito constitucional de liberdade de imprensa e informação, supõe uma correta divulgação da notícia, dos factos e das imagens, sendo a verdade também uma responsabilidade do jornalista. A seriedade da notícia impõe a observância de cautelas que, no caso, é manifesto que não foram observadas, ao ser associada a imagem do A., por equívoco injustificado, à divulgação de outra notícia. 4. No contexto do programa exibido, a divulgação da fotografia do A., que é uma pessoa de meia idade com pouco mais de 50 anos, na qual se encontra de perfil e de máscara, não é suscetível de permitir uma confusão, no sentido de lhe estar a ser imputada a qualidade de suspeito da prática do crime de roubo de reformas a idosos escolhidos na sopa dos pobres, notícia que estava a ser comentada com a indicação de que estes crimes eram alegadamente praticados por um casal de namorados de 20 e 24 anos. 5. Não obstante a prática de um facto ilícito e culposo, a inexistência de prova de danos sofridos e do nexo de causalidade entre os alegados danos e o facto ilícito, inviabiliza o direito indemnizatório pretendido pelo A. que não fez prova dos factos constitutivos de tal direito, nos termos previstos no art.º 342.º n.º do C.Civil.
Texto Integral
Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório
Vem “A” intentar a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra SIC – Sociedade Independente de Comunicação, S.A. e “B”, pedindo a sua condenação solidária no pagamento da quantia de €50.000,00 acrescida de juros à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Alegou, em síntese, que a 1ª R., e com o conhecimento do 2º R., publicou no seu site a 5 de maio de 2022 e relativo ao programa televisivo “Casa Feliz”, também transmitido no canal televisivo da 1ª R., no programa “Casa Feliz”, uma notícia relativa a “Casal de namorados rouba reformas e escolhe vítimas na “Sopa dos Pobres”. Foi ainda publicado pela 1ª R. que “Um casal de namorados, de 24 e 20 anos, não tinha problemas em ser violento quando atacava pessoas com fracos recursos económicos e problemas de locomoção. As vítimas eram escolhidas na ‘Sopa dos Pobres,’ em Lisboa, e eram abordadas de forma violenta.” A 1ª R. publicou uma fotografia referente ao “Suspeito ontem em tribunal”. Acontece que o “Suspeito” referido pela 1ª R. não é nenhum daqueles jovens, mas o A. que tem 51 anos e que esteve presente no Juízo de Instrução Criminal de Leiria, em diligência realizada no âmbito de outro processo. Foi uma surpresa para o A., quando a sua mulher, os seus filhos e amigos, o reconheceram na “SIC”, que lhe imputou ser o suspeito do “casal de namorados que rouba reformas e escolhe as vítimas na sopa dos pobres”. A a 1ª R., e com o conhecimento do 2º R., através do seu programa “Casa Feliz”, teve os seus comentadores a tecer comentários sobre o A., porquanto foi a sua imagem a que apareceu na televisão. O A. tem problemas cardíacos e quando se deparou com os factos que a 1ª R. lhe imputou sentiu-se, e sente-se, humilhado, envergonhado, triste e revoltado com a presente situação, na medida em que lhe imputaram factos que não correspondem à verdade, tendo deixado de sair à rua e tem dificuldades em dormir, atendendo à divulgação que a 1ª R., com o conhecimento do 2º R., fez da sua imagem, denegrindo o seu bom nome, sendo-lhe devida uma indemnização por tais danos não patrimoniais.
Os RR. foram citados e vieram contestar a ação. Alegam a responsabilidade, mormente mediante direito de regresso, da produtora do programa televisivo em questão, a Coral Vision, S.A., requerendo a sua intervenção principal ou subsidiariamente a intervenção acessória. Mais impugnam os factos alegados e concluem pela improcedência do pedido.
O A. veio responder, requerendo a alteração da causa de pedir o que, após observância do contraditório, veio a ser indeferido.
Foi admitida a intervenção principal provocada da Coral Vision, S.A.
Citada a interveniente, a mesma veio contestar pugnando pela improcedência do pedido.
Foi proferido despacho a dispensar a audiência prévia, tendo sido elaborado despacho saneador, que afirmou a validade e regularidade da lide, identificou o objeto do litígio e enunciou os temas de prova.
Apresentada reclamação a mesma foi decidida.
Procedeu-se à realização da audiência de julgamento, com observância do formalismo legal, conforme a respetiva ata.
Foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente, absolvendo os RR. do pedido contra elas formulado pelo A.
É com esta decisão que o A. não se conforma e dela vem interpor recurso pedindo a sua revogação e substituição por outra que julgue verificados os requisitos da responsabilidade civil, apresentando para o efeito as seguintes conclusões que se reproduzem:
I – De acordo com a douta sentença recorrida, não se verificaram todos os pressupostos da responsabilidade civil, porquanto ficou de apurar a ilicitude e o dano, e por maioria de razão, também o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
II – Não obstante, entendemos que do depoimento da testemunha “BP” aos 4:20, 5:00, 7:27, e 7:37; da testemunha “EJ” aos 5:45, 8:25, 8:38, 9:40 e 11:10; e da testemunha “HV” aos 5:27, 8:03, 08:11 e 8:50, será forçoso dar como provado a clara identificação do recorrente, no programa exibido pela recorrida SIC.
III – E porquanto, deverão os factos provados 10, 21 e 22 ser alterados para:
10. À medida em que se ia comentando no programa o caso do “casal de namorados”, a imagem identificada em 6., donde consta o Autor, ia aparecendo no ecrã – conforme documento vídeo junto com a Petição Inicial e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
21. A fotografia identificada em 6. retrata três indivíduos à entrada de um edifício, encontrando-se o Autor no meio dos dois – conforme documento vídeo junto com a Petição Inicial e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
22. Os três indivíduos retratados na fotografia um encontra-se virado de costas, não sendo possível visualizar o seu rosto, e os restantes dois – entre os quais o Autor, de casaco preto e calças cinzentas –, encontram-se de perfil e de máscara, sendo que um deles utiliza ainda óculos no rosto – conforme documento vídeo junto com a Petição Inicial e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
IV – Por outro lado, das declarações de parte do recorrente, nomeadamente aos 10:34, 10:47, 11:06, 11:07, 11:50, 11:52, 14:30, 14:36, 16:30, 17:43 e 19:47, entendemos resultar como provados os danos causados na esfera do recorrente.
V – E assim, devem os factos não provados a. e b. ser alterados, como provados, para:
33. A mulher do Autor, amigos e vizinhos, reconheceram-no na “SIC”, que lhe imputou ser o suspeito do “casal de namorados que rouba reformas e escolhe as vítimas na sopa dos pobres.
34. O Autor sentiu-se humilhado e envergonhado com a situação, por lhe imputarem factos não praticados por si.
VI – Neste sentido, tendo já entendido o douto tribunal de 1ª instância a existência do facto – a publicação da fotografia no âmbito do programa, e o comentário à mesma – e a culpa; entendemos que pelo presente se devem verificar os demais pressupostos da responsabilidade civil.
VII – Neste contexto, resultará da presente apelação a verificação da ilicitude, na identificação do recorrente na fotografia publicada pela recorrida SIC e consequente comentário da mesma através do facto provado 9.
VIII – Também o dano resultará verificado, após a alteração dos factos não provados que pelo presente se apela.
IX – O que até deveria resultar como instrumental, colocando-se o homem médio na situação do Autor, que vê publicada a sua imagem em artigo televisivo, imputando-se-lhe factos não praticados por si.
X – Por último, também nos resulta evidente que os danos provocados na esfera do recorrente, através da violação do seu direito geral de personalidade (cfr. artigo 70.º, n.º 1 do Código Civil) e do seu direito à imagem (cfr. artigo 79.º do Código Civil), são resultado da atuação dos recorridos.
XI – Ora, e conforme se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, com o nº de processo 3041/18.8T8OER.L1.S1, datado de 20.09.2023 e disponível online, “Os operadores de televisão (pessoas coletivas) são civilmente responsáveis pelos factos ilícitos e danosos praticados pelos seus comissários, agentes, representantes ou mandatários, no exercício da respetiva atividade televisiva, ainda que não se tenha apurado a identidade concreta do comissário, agente, representante ou mandatário.”
E ainda no mesmo acórdão, “O art.º 70.º, n.º 1, da Lei da Televisão remete para as regras gerais da responsabilidade civil. Conforme é entendimento assente na jurisprudência, essa remissão não contém qualquer restrição quanto à aplicação desse regime, que leve a concluir que o art.º 500.º do Código Civil não tem aplicação no domínio da responsabilidade civil dos operadores televisivos ou da atividade televisiva em geral (cfr., v.g., acórdão do STJ de 24.5.2022, processo 14570/16.8...). Nestes termos, a operadora responde objetivamente pelos factos ilícitos praticados pelo seu comissário, nada adiantando provar que o comitente não agiu com culpa. Por outro lado, sendo a operadora televisiva uma pessoa coletiva, responde perante terceiros, em regra, como responderia uma pessoa singular. Nos termos do art.º 165.º do Código Civil, “As pessoas colectivas respondem civilmente pelos actos ou omissões dos seus representantes, agentes ou mandatários nos mesmos termos em que os comitentes respondem pelos actos ou omissões dos seus comissários”. Solução idêntica está prevista para as sociedades civis (art.º 998.º do CC) e para as sociedades comerciais (art.º 6.º n.º 5 do CSC). Trata-se de preceitos que se decalcam sobre o regime da responsabilidade do art.º 500.º do Código Civil. Está em causa um princípio de justiça (afloramento do princípio “ubi commoda, ibi incommoda”) segundo o qual quem utiliza ou emprega determinadas pessoas para vantagem própria deve suportar os riscos dessa atividade. Conforme é jurisprudência assente, o facto de não ser possível apurar a identificação da pessoa (comissário, agente, representante, mandatário) que em concreto praticou o facto lesivo torna-se irrelevante na hipótese em que se procura aferir a responsabilidade do comitente. Aquele que encarrega outrem de prosseguir determinada atividade no seu interesse (comitente) pode responder por culpa própria (e não apenas por facto ilícito de comissário), nomeadamente pela escolha dessa pessoa (culpa in eligendo), ou pela omissão na fiscalização da sua atividade que veio a causar danos a terceiro (culpa in vigilando) – neste sentido, cfr., v.g. o citado acórdão do STJ de 24.5.2022, assim como o acórdão do STJ de 05.6.2018, processo n.º 517/09.1... e o acórdão do STJ de 23.10.2012, processo 2398/06.8... Conforme se expende no último acórdão citado, “…em toda e qualquer acção cível para ressarcimento de danos provocados por factos (acções ou omissões) cometidos através da comunicação social os responsáveis são para além dos autores das peças divulgadas a empresa proprietária do órgão ou estação difusora, desde que, obviamente, esteja provado que os factos danosos praticados pelos referidos autores (comissários) o tenham sido no exercício das funções confiadas ao comitente, acrescendo ser entendimento doutrinal dominante (por todos v. Prof. Mota Pinto, Teoria Geral) que em todas as situações em que há, legalmente, responsabilidade solidária entre a pessoa colectiva (comitente) e os seus agentes (comissários) apenas responderá a pessoa colectiva nas situações em que não tiver sido possível a concreta determinação do comissário culpado da prática dos factos que são fonte de responsabilidade civil extracontratual”.” – negrito nosso.
XII – E assim, entende o apelante, que da alteração da matéria factual, resultará a responsabilidade civil dos recorridos, em virtude da demonstração dos pressupostos da sua aplicabilidade, o que impõe a condenação dos mesmos à indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelo recorrente.
XIII – Porquanto, e da alteração da matéria factual que se advoga, resultará uma correta aplicação do disposto no artigo 70.º da Lei n.º 27/2007, de 30 de julho, com a última alteração atribuída pela Lei n.º 74/2020, de 19 de novembro e no artigo 500.º do Código Civil.
A interveniente Coral – Vision Europa, S.A., vem responder ao recurso, concluindo pela sua improcedência e manutenção da decisão proferida.
Também a R. vem responder ao recurso pugnando pela sua improcedência quer quanto à impugnação da matéria de facto quer de direito e, subsidiariamente, vêm ampliar o objeto do recurso, pugnando pela alteração da decisão proferida quanto ao pressuposto da culpa, devendo o mesmo dar-se por não verificado com respeito à R. SIC ou, caso assim não se entenda, sempre deverá o Tribunal ad quem, ao abrigo do disposto no artigo 665.º, n.º 2 do CPC, pronunciar-se quanto à exceção deduzida pelos RR., concluindo que é a Interveniente que responde diretamente perante o A. pelo pagamento da indemnização e subsidiariamente, que os RR. dispõem de direito de regresso contra a ela. Com referência à ampliação subsidiária do âmbito do recurso, apresenta as seguintes conclusões:
OO. A somar ao exposto, e por mera cautela de patrocínio, destaca-se que o único erro de julgamento de que possivelmente padece a Sentença em apreço reporta-se ao juízo de reprovabilidade emitido a respeito da Ré “responsável pelo programa”, pois, caso se entenda que tal juízo é imputado pelo Tribunal a quo à Ré SIC (o que não resulta claro da Sentença ) este sempre seria, nesse caso, desconforme com a prova produzida nos autos a qual demonstrou que quanto à Ré SIC tal juízo de reprovabilidade não existe.
PP. Por conseguinte, e por mera cautela e dever de patrocínio, requer-se a final a ampliação do objeto do presente recurso, por forma a englobar a impugnação da decisão proferida pelo Tribunal a quo quanto à verificação do requisito da culpa no âmbito dos pressupostos da responsabilidade civil, o que se faz ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 636.º do CPC.
QQ. Por fim, e para o caso de se assim não se entender, concluindo-se pela improcedência do recurso do Autor (o que não se concede e por mera cautela de patrocínio se equaciona), sempre deverá o Tribunal ad quem, ao abrigo do disposto no artigo 665.º, n.º 2 do CPC, pronunciar-se quanto à exceção deduzida pelos Réus SIC e “B” em sede de Contestação, concluindo no sentido de que é a Ré Coral (e não os Réus SIC e “B”) que responde diretamente perante o Autor pelo pagamento da indemnização peticionada, em respeito pelo acordado no Contrato celebrado entre a SIC e a Coral, em especial a Cláusula 9.º, n.º 2, e, subsidiariamente, que os Réus SIC e “B” dispõem de direito de regresso contra a Ré Coral em virtude da Cláusula 9.º, n.º 3 do Contrato – cfr. Contestação dos Réus SIC e “B”, §§ 9 a 32 e 33 a 35.
II. Questões a decidir
São as seguintes as questões a decidir, tendo em conta o objeto dos recursos principal e subordinado delimitados pelos Recorrentes nas suas conclusões- art.º 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do CPC- salvo questões de conhecimento oficioso- art.º 608.º n.º 2 in fine: Do recurso do A. Recorrente
- da impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
- da (in)existência de ilicitude, dano e nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano. Da ampliação do âmbito do recurso pelos RR.
- da (in)existência de culpa da R. SIC;
- da responsabilidade direta da interveniente perante o A.;
- (subsidiariamente) do direito de regresso dos RR. sobre a interveniente.
III. Fundamentos de Facto - da impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Vem o A. Recorrente impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, que considera errada, quanto aos pontos 10, 21 e 22 dos factos provados e al. a) e b) dos factos não provados, cuja alteração requer.
Por terem sido por ele observados os requisitos necessários para a impugnação da matéria de facto, nos termos previstos no art.º 640.º n.ºs 1, 2 e 3 e n.º 2 al. a) do CPC, procede-se à sua apreciação. - Quanto aos pontos 10, 21 e 22 dos factos provados é a seguinte a sua redação:
10. À medida em que se ia comentando no programa o caso do “casal de namorados”, a imagem identificada em 6. ia aparecendo no ecrã – conforme documento vídeo junto com a Petição Inicial e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido
21. A fotografia identificada em 6. retrata três indivíduos à entrada de um edifício, sem que o referido “Suspeito” esteja concretamente identificado – conforme documento vídeo junto com a Petição Inicial e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido
22. Os três indivíduos retratados na fotografia um encontra-se virado de costas, não sendo possível visualizar o seu rosto, e os restantes dois encontram-se de perfil e de máscara, sendo que um deles utiliza ainda óculos no rosto – conforme documento vídeo junto com a Petição Inicial e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
Pretende o Recorrente a alteração destes pontos de facto provados, no sentido de passarem a ter a seguinte redação:
10. À medida em que se ia comentando no programa o caso do “casal de namorados”, a imagem identificada em 6., donde consta o A., ia aparecendo no ecrã – conforme documento vídeo junto com a Petição Inicial e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido
21. A fotografia identificada em 6. retrata três indivíduos à entrada de um edifício, encontrando-se o A. no meio dos dois – conforme documento vídeo junto com a Petição Inicial e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido
22. Os três indivíduos retratados na fotografia um encontra-se virado de costas, não sendo possível visualizar o seu rosto, e os restantes dois – entre os quais o Autor, de casaco preto e calças cinzentas - encontram-se de perfil e de máscara, sendo que um deles utiliza ainda óculos no rosto – conforme documento vídeo junto com a Petição Inicial e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
Com a estas modificações visa o Recorrente que destes factos provados fique a constar que é o A. que está representado na imagem identificada no ponto 6 dos factos provados, no meio dos outros dois indivíduos, eliminando-se do ponto 21 a expressão “sem que o referido “Suspeito” esteja concretamente identificado”.
Para fundamentar a alteração pretendida o A. invoca o depoimento das testemunhas “BP”, “EJ” e “HV”, nos excertos da gravação que indica.
A Recorrida Coral, S.A., ao responder ao recurso nesta parte, defende a improcedência da impugnação, referindo que o depoimento das testemunhas em que o Recorrente fundamenta a alteração destes factos não merece credibilidade, fazendo menção àqueles depoimentos, mas sem observar o disposto no art.º 640.º n.º 2 al. a) do CPC, já que não indica as passagens da gravação dos mesmos que infirmam as alterações propostas.
Já os RR. SIC e “B”, pronunciando-se também no sentido da improcedência da impugnação apresentada pelo Recorrente, vêm invocar, para a infirmar, o depoimento das testemunhas “HV”, “FC”, “GA” e “BP”, nos excertos de gravação que indicam.
Procedeu-se à audição dos depoimentos de todas as testemunhas indicadas.
Impõe-se fazer uma clarificação quanto à alteração da matéria de facto que está em causa nestes pontos impugnados, tendo presente a redação que o Recorrente propõe.
O que é pretendido é que seja dado como provado que é o A. que aparece na imagem ou fotografia a que alude o ponto 6 dos factos provados, sendo apenas este elemento objetivo que a procedência da impugnação destes factos permite aditar à decisão, o que não se confunde nem com a questão de saber se as testemunhas reconheceram o A. quando a notícia passou na televisão, nem tão pouco com a questão de saber se o A. é ou não identificável na imagem em apreço ou se lhe está a ser imputada a qualidade de suspeito do roubo de reformas na sopa dos pobres.
Afigura-se, por um lado, que o teor dos factos tidos como provados nos pontos 4, 7, 8, 27, 28, 29 e 32 da decisão de facto que não foram impugnados, conjugados com os depoimentos das testemunhas ouvidas permitem dizer com segurança que o A. aparece retratado na fotografia identificada no ponto 6 dos factos provados, sendo o indivíduo que aí aparece no meio dos três ali representados.
Senão vejamos.
Retira-se destes factos provados que o A. foi fotografado no dia 4 de maio de 2022, data em que foi ouvido em 1º interrogatório judicial no âmbito de inquérito que correu termos, tendo ficado em prisão preventiva, tendo mais tarde sido condenado pela prática de um crime de roubo agravado; o jornal “Correio da manhã” noticiou no dia 5 de maio de 2022 que “PSP detém grupo de assaltantes violentos, tendo colocado a imagem em questão ao lado do texto que divulga esta notícia, sendo que na mesma página do jornal divulga uma outra notícia: que um casal de namorados de 24 e 20 anos alegadamente roubava reforma e escolhia vítimas na “sopa dos pobres”.
A notícia comentada e apresentada oralmente na rubrica “Análise Criminal” do programa “Casa Feliz” da SIC reportava-se à situação dos dois jovens que alegadamente roubavam reformas escolhendo as vítimas na sopa dos pobres, mas enquanto tal acontecia, era em simultâneo divulgada a imagem a que alude o ponto 6 dos factos provados, por confusão das fotografias que haviam sido publicadas no jornal Correio da Manhã, elementos de que o programa em questão se socorreu.
Essa confusão ou lapso com a fotografia é reconhecida desde logo pela testemunha “FC”, coordenadora do conteúdo de programas, no seu depoimento. Ela refere: “o que foi feito, erradamente, assumo, foi dar destaque àquela notícia que não correspondia”, admitindo a testemunha a confusão da imagem apresentada pelos colegas, que diz terem associado a fotografia errada à notícia que estava a ser comentada, salientando que se socorriam das notícias e fotografias publicadas no “Correio da Manhã”. Também a testemunha “RP”, coordenadora do programa, diz que “esta fotografia não era susposto ter entrado”.
No que respeita aos depoimentos das testemunhas “BP”, cunhada do A. e “EJ” e “HV”, antigos vizinhos do A., independentemente da questão de saber se viram o programa em causa e se nesse momento identificaram ou não o A., a verdade é que, em audiência de julgamento, ao ser-lhes exibida e confrontados com a imagem em questão, todos eles identificaram o A. como estando presente na mesma, correspondendo ao indivíduo do meio, reconhecimento que se afigura totalmente credível, não só pela circunstância das testemunhas o conhecerem bem, como por ser perfeitamente plausível que o A. esteja retratado na mesma, já que se tratou de uma fotografia que o jornal “Correio da Manhã” publicou, captada por referência a uma diligência processual em que o A. compareceu efetivamente, na qualidade de suspeito da prática de um crime de roubo, tendo ficado em prisão preventiva, e mais tarde sido condenado pela prática de um crime de roubo agravado.
É certo que as testemunhas “FC” e “RP” referem no seu depoimento que as pessoas na fotografia não são identificáveis, por estarem de máscara e de perfil, mas tal representa apenas a sua opinião, salientando-se que as mesmas não conhecem o A., que não é uma figura pública, sendo que a testemunha “RP” até o que diz é que teria dificuldade em reconhecer a pessoa se a conhecesse (não que é impossível). Neste âmbito as testemunhas revelam uma opinião e não o conhecimento de um facto, pelo que nesta parte o seu depoimento não apresenta relevância.
No que se refere à exclusão do ponto 21 dos factos provados da expressão “sem que o referido suspeito seja concretamente identificado”, defere-se a alteração requerida, uma vez que no ponto 6 dos factos provados já consta o teor da fotografia exibida, sem necessidade de outros acrescentos conclusivos, constando também do ponto 22 que uma das pessoas se encontra de costas e outras duas de perfil e de máscara. Sendo certo que embora na notícia não conste o nome dos “suspeitos”, importa ter em conta que a identificação de uma pessoa pode ser feita de outras formas, designadamente pela imagem.
Em conclusão, procede a alteração dos pontos 10 e 21 dos factos provados nos termos requeridos, improcedendo a alteração proposta para o ponto 22 por ser irrelevante identificar o que o A. tinha vestido, quando já está assente que ele é a pessoa retratada no meio das três que aparecem na imagem em questão.
Os pontos 10 e 21 dos factos provados passam a ter a seguinte redação:
10. À medida em que se ia comentando no programa o caso do “casal de namorados”, a imagem identificada em 6., onde consta o A., ia aparecendo no ecrã – conforme documento vídeo junto com a Petição Inicial e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido
21. A fotografia identificada em 6. retrata três indivíduos à entrada de um edifício, encontrando-se o A. no meio dos dois – conforme documento vídeo junto com a Petição Inicial e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido. - Quanto às al. a) e b) dos factos não provados, têm o seguinte teor:
a. Tal não foi a surpresa do A., quando não só a sua mulher, como os seus filhos e amigos, o reconheceram na “SIC”, que lhe imputou ser o suspeito do “casal de namorados que rouba reformas e escolhe as vítimas na sopa dos pobres”.
b. O A. sentiu-se, e sente-se, humilhado, envergonhado, triste e revoltado com a situação.
Requer o Recorrente que estes factos sejam tidos como provados, aditando-se dois novos pontos aos factos provados.
Invoca para fundamentar a sua pretensão os depoimentos das testemunhas “BP”, “EJ” e “HV”, bem como as suas declarações de parte, nos excertos de gravação que indica.
Os RR. pronunciam-se no sentido da improcedência da impugnação, invocando para o efeito os depoimentos das testemunhas “HV”, “FC”, “GA”, “BP”, com referência à al. a) e as declarações de parte do A., com referência à al. b) nos excertos de gravação que identificam.
Quanto à matéria da al. a) adianta-se desde já que os elementos probatórios invocados não admitem que a mesma seja tida como provada, integrando aliás matéria conclusiva quando ali se refere: “que lhe imputou ser o suspeito do “casal de namorados que rouba reformas e escolhe as vítimas na sopa dos pobres”.
Esta afirmação só pode ser retirada, ou não, de todo o contexto do noticiado no programa, sendo certo que os factos já dados como provados nos pontos 5 a 10, 21, 22, 28 e 29 é que permitirão dizer se ali se imputou ao A. ser o suspeito “que rouba reformas e escolhe vítimas na sopa dos pobres”.
Verifica-se aliás, que as testemunhas, indicadas pelo Recorrente para fundamentar a alteração deste facto, que depuseram no sentido de ter visto o programa e identificado o A. na fotografia que passou, nunca associam o mesmo ao suspeito da notícia que era comentada, o que é perfeitamente plausível, já que esta se reporta a dois suspeitos jovens, um casal de namorados, com 20 e 24 anos. As mesmas manifestaram a sua estranheza por verem a fotografia do A., mas não concluíram que tal crime lhe estava a ser imputado. A testemunha “BP” diz que a notícia e a fotografia juntas não faziam sentido, o que a testemunha “EJ” também referiu, afirmando que a notícia dizia respeito a jovens, tal como a testemunha “HV”.
Do depoimento destas testemunhas resulta que as mesmas percecionaram que a imagem que passava, onde afirmam ter reconhecido o A., não correspondia à notícia que era comentada em simultâneo, do roubo de reformas a vítimas escolhidas na sopa dos pobres, atribuído a um casal de namorados de 20 e 24 anos, porque tal não fazia sentido.
Sem necessidade de mais considerações, não pode por isso dizer-se sem mais e de forma conclusiva que no programa exibido foi imputado tal crime ao A., nem tão pouco que os seus familiares e amigos ficaram convencidos que o mesmo era suspeito da prática de um crime do roubo de reformas a vítimas escolhidas na sopa dos pobres.
No que se refere à matéria da al. b) dos factos não provados o Recorrente invoca apenas as suas próprias declarações como único elemento de prova suscetível de levar à afirmação de que se sentiu e sente humilhado, envergonhado, triste e revoltado com a situação.
O tribunal a quo refere o seguinte na motivação apresentada quanto aos factos não provados: “Aliás, das declarações de parte do Autor resultaram desde logo os factos não provados. Assim, referiu que soube apenas do caso um mês depois de ter ocorrido e só quando foi para casa (com pulseira electrónica). Não obstante, viu no Jornal CM, em data que não se recorda, mas durante o período que esteve no Estabelecimento Prisional, a sua fotografia. Quando chegou a casa, a cônjuge mostrou-lhe o vídeo. Sendo que não deu autorização para a imagem (Jornal e Televisão). Acrescentou que a questão (fotografia e o seu próprio processo crime) são para si e para o que o rodeiam “tabu”, simplesmente não falam sobre o assunto. Quanto a deixar de sair de casa, assim o foi, mas por força da pulseira eletrónica, bem como as dificuldades em dormir, mais tiveram a ver com o seu próprio processo. Referiu ainda que, ia à janela e que as pessoas lhe iam perguntando (mas não o processo crime, pois quanto a isso achava que não sabiam). Mais referiu que o filho comentou que na escola lhe disseram que o pai era “um gatuno”. Ora, salvo melhor opinião, o próprio Autor não soube discernir se os comentários a que aludiu se referiam à emissão televisiva ou se há notícia do jornal (sendo que o alegado desconhecimento dos demais quanto ao se processo crime não se mostrou minimamente coerente, considerando que a fotografia impressa o foi no jornal com maior tiragem nacional). Também não ficou qualquer dúvida que o não sair à rua e o não dormir se relacionou com o seu processo crime (e não tanto ou sequer com a imagem na televisão). O Tribunal não deu credibilidade à alegação de que os colegas do filho chamavam “gatuno” ao pai deste, tendo, novamente, em conta a clara concorrência da ocorrência do processo crime e bem ainda o depoimento da testemunha “EJ”.
O art.º 466.º do CPC refere-se às declarações de parte, enquanto meio probatório, estabelecendo no seu n.º 3 que “o tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão.”
Como nos diz, a respeito da valoração deste meio prova, o Acórdão do TRP de 18-05-2017, no proc. 3456/16.6T8VNG.P1: “A norma não fornece, contudo, qualquer pista sobre o modo como essa apreciação deverá ser feita, designadamente se as declarações da parte apenas devem ser aceites como prova complementar ou supletiva dos demais meios de prova, se devem ser aceites como mero princípio de prova ou se podem ser suficientes para permitir ao tribunal julgar provados factos favoráveis é apenas demonstrados através das suas declarações. Não tendo o legislador tomado posição sobre esse aspecto parece que o intérprete não deve assumir aí uma atitude dogmática, de puro princípio, seja ela qual for. Se não basta à parte alegar um facto para que o tribunal o tenha de aceitar e se o direito ao contraditório implica que tendo um facto sido impugnado pela parte contrária ele deve ser objecto de produção de prova que o demonstre, parece adequado entender que, em condições normais, para fazer a prova de um facto favorável a uma das partes não será suficiente que esse facto seja afirmado pela própria parte no decurso das suas declarações de parte.”
As declarações das partes, enquanto meio de prova, têm de ser ponderadas com toda a cautela pelo tribunal, não podendo olvidar-se que as partes estão diretamente interessadas no desfecho da ação e que, por isso, não raras vezes prestam declarações de forma não isenta e comprometida.
Na situação em presença, as declarações do A. apresentam-se nesta parte com muito escasso ou mesmo sem valor probatório sendo patente o seu comprometimento com a posição que assume nos autos.
Por um lado, nada indicia que o A. tenha sido considerado pelos seus amigos e familiares o suspeito do crime do roubo da reforma a idosos na sopa dos pobres; por outro lado, das suas declarações o que decorre é que o que mais o incomodou foi a existência do seu próprio processo crime, tendo a sua fotografia sido obtida quando compareceu em diligência processual em inquérito crime, tendo ficado em prisão preventiva, e mais tarde sido condenado por roubo. É ainda plausível que algum incómodo ou vergonha do A., a existir, tenha sido pelo facto das pessoas falarem da sua detenção e aplicação da medida de prisão preventiva e depois pulseira eletrónica, por indiciação de crime de roubo pelo qual veio efetivamente a ser condenado e não pela circunstância de o considerarem o suspeito do crime do roubo das reformas dos idosos da sopa dos pobres, situação que as suas declarações revelam não ser consistente.
As declarações de parte do A. não mostram o erro da decisão nesta parte, não havendo fundamento para alterar esta matéria tida como não provada.
Em conclusão, procede apenas em parte a impugnação da matéria de facto apresentada, alterando-se a redação dos pontos 10 e 21 nos termos que ficaram expostos e improcedendo no demais.
*
Resultaram provados os seguintes os factos com interesse para a decisão da causa:
1. A Ré “SIC – Sociedade Independente de Comunicação, SA”. tem como objeto social o exercício de atividade no âmbito da televisão, multimédia, audiovisual e produção cinematográfica, bem como qualquer outra atividade de comunicação, nomeadamente, Internet, vídeos em qualquer suporte e publicações de qualquer género – conforme certidão do registo comercial junta aos autos cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
2. A Ré publicou no seu site (https://sic.pt/programas/casafeliz/casal-de-namorados-rouba-reformas-e-escolhe-vitimas-na-sopa-dos-pobres/) a 5 de Maio de 2022 uma notícia com o titulo “Casal de namorados rouba reformas e escolhe vítimas na “Sopa dos Pobres” – conforme documento nº 1 junto com a Petição Inicial e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
3. Foi ainda publicado pela Ré SIC que “Um casal de namorados, de 24 e 20 anos, não tinha problemas em ser violento quando atacava pessoas com fracos recursos económicos e problemas de locomoção. As vítimas eram escolhidas na ‘Sopa dos Pobres,’ em Lisboa, e eram abordadas de forma violenta.” – conforme documento nº 1 junto com a Petição Inicial e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
4. No dia 5 de Maio de 2022 foi emitido no canal SIC, generalista, no programa denominada “Casa Feliz”, a rubrica “Analise Criminal”, entre as 12h e as 13h.
5. No âmbito do qual foi discutida uma notícia divulgada pelo jornal Correio da Manhã, relativa a um casal de namorados, de 24 e 20 anos, que, alegadamente, roubava reformas e escolhia as suas vítimas na “sopa dos pobres”.
6. Durante o episódio do Programa onde se abordava a referida notícia foi exibida uma fotografia, sob a legenda “Suspeito ontem em tribunal” – conforme documento vídeo junto com a Petição Inicial e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido
7. O Autor nasceu a (…)1971 – conforme documento nº 2 junto com a Petição Inicial e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
8. O Autor, no dia 4 de Maio de 2022, esteve presente no Juízo de Instrução Criminal de Leiria, em diligência realizada no âmbito do processo que corre os seus termos sob o nº 202/21.6PANZR.
9. Os comentadores teceram comentários sobre a notícia: a. Apresentadora “CD”: Jovens, ele de 24 e ela de 20, mas que tipo de jovens são estes?
b. Comentador “CH”: São pessoas com total indiferença ao sofrimento do outro, com uma carreira criminal já devidamente definida, prontinhos para se poder dizer que todo o sistema português falhou com eles, todo. O ensino, a correção, a segurança, (...)
c. Apresentadora “CD”: A família.
d. Comentador “CH”: A família, toda a gente falhou com eles. Agora, que são perigosos, porque estes indivíduos não furtavam as coisas, roubavam, isto é, tiravam as coisas aos outros com violência e não tiveram o pejo, segundo os relatos policiais, de mandar um inválido numa cadeira de rodas para o chão, só para lhe tirarem os €200,00 da reforma. Portanto, estes indivíduos deviam ser (...)
e. Apresentadora “CD”: Total ausência de empatia (…)
f. Comentador “CH”: Exatamente. Na minha opinião deviam ser exemplarmente punidos.
– conforme documento vídeo junto com a Petição Inicial e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido
10. À medida em que se ia comentando no programa o caso do “casal de namorados”, a imagem identificada em 6., onde consta o A., ia aparecendo no ecrã – conforme documento vídeo junto com a Petição Inicial e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido. (alterado)
11. O Autor tem problemas cardíacos (nomeadamente miocardia dilatada não isquémica) – conforme nº 3, datado de 2021, junto com a Petição Inicial e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido
12. A Ré SIC é titular de alvará e de licença para o exercício da atividade de televisão através do 3.º canal de sinal aberto, sendo também detentora, entre outros, de autorização para a exploração dos canais SIC Notícias, SIC Radical, SIC Internacional, SIC Mulher, SIC K e SIC Caras. – conforme documentos nº 2 e 3 juntos com a Contestação e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
13. A Coral-Vision Europa, S.A., dedica-se, entre outros, à produção, edição, publicação e comercialização de programas televisivos e radiofónicos – conforme documentos nº 3 e 4 juntos com a Contestação e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
14. A 30.11.2021, no âmbito das respetivas atividades, a Ré SIC celebrou com a Coral um acordo escrito que denominaram de “contrato de prestação de serviços de produção televisiva por encomenda” relativo a um programa diário denominado “Casa Feliz”, a vigorar entre 01.01.2022 e 31.12.2024. – conforme documento nº 5 junto com a Contestação e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
15. Através do referido Contrato, a Ré SIC encomendou à Coral, que concordou em produzir e entregar àquela, mediante o pagamento de uma contrapartida monetária, a pré-produção, produção, realização e execução integral do programa diário denominado “Casa Feliz”, com a duração de 135 (cento e trinta e cinco) minutos, para ser transmitido, nos dias úteis, de segunda a sexta-feira, em direto, de manhã (entre as 10h00 e as 13h00), sem prejuízo de episódios especiais com extensão para a tarde (entre as 14h00 e as 20h00), a partir de 01.01.2022 (cf. Cláusula 1.ª, n.º 1 do Contrato e Anexo 1 ao Contrato) – conforme documento nº 5 junto com a Contestação e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
16. Mais acordaram que a produção e realização do formato do Programa e a coordenação e supervisão dos respetivos conteúdos, sempre e a todo o tempo, é da responsabilidade da Coral (cfr. Cláusula 2.ª do Contrato) – conforme documento nº 5 junto com a Contestação e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
17. Nos termos do Contrato, a Coral constituiu-se na obrigação de “[n]ão introduzir no Programa quaisquer imagens ou afirmações verbais que sejam suscetíveis de violar princípios ou normas ético-jurídicas fundamentais ou que desrespeitem o Estatuto Editorial da SIC, obrigando-se, em particular, a não introduzir/e ou expurgar do Programa quaisquer imagens ou afirmações verbais que possam ser entendidas como violentas, racistas, xenófobas, pornográficas, obscenas, políticas, difamatórias ou discriminatórias” (cfr. Cláusula 2.ª, (i) do Contrato) – conforme documento nº 5 junto com a Contestação e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
18. Ficou acordado entre as Partes que compete à Coral “a assunção das responsabilidades que venham a ser determinadas, judicial ou extrajudicialmente e que resultem da produção do produto objeto do presente Contrato ou das suas obrigações nele consagradas, bem como as responsabilidades inerentes a infrações cometidas por empregados ou colaboradores seus neste quadro, designadamente, em termos de violação de confidencialidade, direitos de imagem e ofensa ao bom-nome.” (cfr. Cláusula 9.º, n.º 2 do Contrato) – conforme documento nº 5 junto com a Contestação e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
19. A produção e emissão do Programa, os seus respetivos conteúdos e sua consequente divulgação no site da SIC não foi realizada com o conhecimento do Réu “B”, porquanto não foi emitido sob a sua direção.
20. O Réu “B” é o Diretor de Informação da SIC.
21. A fotografia identificada em 6. retrata três indivíduos à entrada de um edifício, encontrando-se o A. no meio dos dois – conforme documento vídeo junto com a Petição Inicial e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido. (alterado)
22. Os três indivíduos retratados na fotografia um encontra-se virado de costas, não sendo possível visualizar o seu rosto, e os restantes dois encontram-se de perfil e de máscara, sendo que um deles utiliza ainda óculos no rosto – conforme documento vídeo junto com a Petição Inicial e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido
23. O programa “Casa Feliz” não tem por base conteúdos de caráter ficcional, muito embora também não constitua um serviço informativo, trata-se de um espaço onde são abordadas diversas temáticas, em regra amplamente relacionadas com questões do dia a dia e factos ocorridos no país e no estrangeiro, procurando conjugar a vertente do entretenimento com uma componente de informação do público em geral.
24. Com esse objetivo, contém assim diversas rubricas especificamente dirigidas a questões como a saúde, a educação, a cultura, entre outras, abordando frequentemente assuntos relacionados com a vivência de pessoas e histórias concretas.
25. Existe uma estrutura de seleção de conteúdos do programa em que, normalmente, são analisadas algumas notícias de histórias reais em cada programa, relacionadas com diversas temáticas.
26. Os colaboradores da Coral recolhem os elementos que demonstrem a factualidade que se propõe relatar (documentação, testemunhos, etc.), que posteriormente são analisados pela equipa de conteúdos também com o intuito de enquadramento nas temáticas efetivamente abordadas, levando em conta a relevância dos factos relatados e a averiguação, na medida do possível, do grau de consistência da história a narrar.
27. A notícia a que a equipa de conteúdos do programa teve acesso é um artigo publicado pelo jornal “Correio da Manhã”, datado de 05.05.2022 (https://www.cmjornal.pt/portugal/detalhe/casal-rouba-reformas-a-vitimasinvalidas-que-escolhiam-na-sopa-dos-pobres-nos-anjos) – conforme documento nº 1 junto com a Contestação e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
28. A fotografia identificada em 6. retrata um “Suspeito ontem em tribunal” pertence a uma outra peça noticiosa, cujo título refere que “PSP detém grupo de assaltantes violentos”.
29. A 4 de Maio de 2022 encontrava-se detido à ordem do processo (…)/21 (..)PANZR, tendo sido ouvido em primeiro interrogatório judicial de arguido detido, no Juizo de Instrução Criminal de Leiria – conforme certidão judicial junta a 10.11.2023 cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
30. O Autor foi conduzido ao Estabelecimento Prisional a fim de aguardar os ulteriores termos do processo em prisão preventiva, enquanto não estivessem reunidas as condições para a colocação do mesmo em obrigação de permanência na habitação sob fiscalização electrónica – conforme certidão judicial junta a 10.11.2023 cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
31. A medida foi revogada a 6 de Dezembro de 2022 – conforme certidão judicial junta a 10.11.2023 cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
32. O Autor foi condenado por sentença – sob recurso – na pena de cinco anos de prisão, suspensa na sua execução, por cinco anos, pela prática de um crime de roubo agravado – conforme certidão judicial junta a 10.11.2023 cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
IV. Razões de Direito - da (in)existência de ilicitude, dano e nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano
O Recorrente dedica à impugnação da matéria de direito apenas quatro parágrafos das suas alegações, meia página das mesmas, afirmando que a procedência da alteração da matéria de facto determina que se tenha como verificada a violação dos seus direitos de personalidade, ao terem sido proferidas expressões difamatórias e atentatórias da sua honra, tendo sofrido danos em resultado da conduta dos recorridos, limitando-se nesta parte, em bom rigor, a afirmar entendimento diferente da sentença recorrida, sem apontar qualquer erro da mesma do ponto de vista jurídico, estribando a sua conclusão apenas na alteração da decisão de facto pela qual também pugnou.
A sentença sob recurso, na apreciação do mérito jurídico da causa, discorreu de forma sintética sobre os direitos de personalidade, bem como sobre os direitos à liberdade de expressão e de informação, afirmando os critérios a ter a conta e a ponderar no caso de colisão destes direitos, em termos que não mereceram qualquer contestação, nem do Recorrente, nem tão pouco dos Recorridos, pelo que se justifica a ela fazemos apelo, transcrevendo-a na parte relevante: “Assim, o art.º 26º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa estabelece que “A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação” Prevê o art.º 70º, nº 1 do Cód. Civil uma cláusula geral de tutela da personalidade, nos seguintes termos: “A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral”. Acolhe, esta norma, um direito geral de personalidade, que protege a personalidade no seu todo, nas suas diversas manifestações, abrangendo “todos os atributos inerentes ao organismo psico-somático (personalidade física) e à componente ético-espiritual (personalidade moral) que individualizam cada ser humano” – Antunes Varela, in “Alterações legislativas do direito ao nome”, RLJ, Ano 116, p. 144. Daquele direito geral de personalidade, destaca-se, de acordo com a classificação proposta por Orlando de Carvalho e outros, in “Teoria Geral do Direito Civil”, Coimbra Editora, 2012, p. 265-266, notas 66-70 – e para o que aqui interessa -, o direito especial de personalidade à inviolabilidade pessoal, onde se distingue uma projecção física: direito à imagem e direito à palavra; uma projecção vital: direito ao carácter, direito à história pessoal, direito à intimidade da vida privada e direito à verdade profunda; e uma projecção moral: direito à honra. Quanto ao direito à imagem, dispõe o art.º 79º, nº 1 do Cód. Civil: “o retrato de uma pessoa não pode ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o consentimento dela”. Porém, pese embora o direito à imagem consubstancie um direito indisponível no plano constitucional, a lei, no nº 1 do art.º 79º do Cód. Civil, permite, dentro de determinados limites (cf. nº 1 do art.º 81º do Cód. Civil), a captação, reprodução e publicitação da imagem, desde que o titular do direito anua ou consinta essas actividades – cf. Ac. do STJ de 07/06/2011, Gabriel Catarino, acessível em www.dgsi.pt. No entanto, o nº 2 do citado art.º 79º do Cód. Civil consagrou a desnecessidade do consentimento da pessoa retratada quando assim o justifiquem: (i) a sua notoriedade ou o cargo que desempenhe; (ii) exigências e finalidades de polícia, de justiça, científicas, didácticas ou culturais; (iii) o enquadramento da imagem em lugares públicos ou em factos de interesse público, ou que hajam decorrido publicamente (o lugar ou facto público devem ser o foco central da imagem). Relativamente aos retratos tirados em lugares públicos, de factos de interesse geral ou que hajam decorrido publicamente, “tudo depende (…) das circunstâncias e do destino das imagens captadas: elas só podem visar documentar o sucedido: não, por exemplo, animar campanhas publicitárias, sem autorização do próprio” - Menezes Cordeiro, in “Tratado de Direito Civil Português”, I, Parte Geral, Tomo III, Almedina, 2ª ed., 2007, p. 241. Porém, nos termos do nº 3 do citado art.º 79º do Cód. Civil, a referida dispensa de consentimento não se aplica sempre que, da divulgação da imagem, resultem prejuízos para a honra, reputação ou simples decoro do retratado. Consubstanciando esta excepção legal “uma reafirmação da regra do consentimento” - David de Oliveira Festas, in “Do Conteúdo Patrimonial do direito à Imagem”, Coimbra Editora, 2009, p. 288. Nos termos constantes dos arts. 37º e 38º da C.R.P., todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações, sendo que tal exercício não pode ser impedido ou limitado por qualquer forma de censura, sendo garantida a liberdade de imprensa aos jornalistas (cf., o art.º 1º da Lei da Imprensa, aprovada pela Lei nº 2/99, de 13/01). Porém, pese embora os direitos de liberdade de expressão e de informação sejam direitos fundamentais, não são direitos absolutos, devendo ser exercidos com respeito por outros direitos igualmente fundamentais, designadamente a dignidade da pessoa humana (cfr. art.º 1º da C.R..P) e os direitos, liberdades e garantias pessoais previstos nos arts. 25º e 26º da C.R.P., entre os quais se incluem, como vimos, o direito à imagem e o direito à reserva da intimidade da vida privada, cuja violação está em apreciação nestes autos. A realização plena destes diversos direitos constitucionais e fundamentais pode determinar a existência de conflitos entre eles. Nos termos do art.º 18º da C.R.P., as restrições aos direitos, liberdades e garantias devem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, não sendo despiciendo referir que o art.º 335º, nº 1 do Cód. Civil determina que, em caso de “colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer deles”. A solução destes conflitos de direitos fundamentais tem sido feita pela doutrina e jurisprudência com recursos ao “critério da ponderação de bens”, ao “princípio da concordância prática ou da harmonização”, à análise do “âmbito material da norma”, ao “princípio da proporcionalidade”, à ideia do “abuso de direitos fundamentais” e ao “princípio da otimização de direitos e bens constitucionais com vista ao estabelecimento de limites aos direitos colidentes por forma a conseguir uma autêntica eficácia ótima de ambos os direitos” Figueiredo Dias, in “Direito de Informação e Tutela da Honra no Direito Penal da Imprensa Português”, R.L.J, Ano 115, p. 100 e ss, recorre ao princípio da proporcionalidade, de forma a obter a harmonização ou “concordância prática” dos bens jurídicos em colisão, o que implica uma mútua compressão dos direitos, por forma a atribuir a cada um a máxima eficácia possível. Quanto à veracidade dos factos relatados relativos à vida privada, o mesmo autor escreve, in ob. cit., p. 135: “é compreensível e aceitável que não se possam trazer à luz da publicidade factos ofensivos da honra, ainda que verdadeiros, relativos a “particulares” quando não exista qualquer interesse legítimo na divulgação ou quando esteja em causa a sua vida privada ou familiar”. Em suma, de acordo com o disposto no art.º 18º, nº 2 da C.R.P. e da regra geral de direito prevista no art.º 335º, nº 1 do Cód. Civil, quanto se verifica a colisão de direitos fundamentais, há que recorrer ao princípio da concordância prática ou da harmonização, segundo o qual não se pode optar por um dos direitos em conflito, impondo-se o delinear de uma solução de harmonia entre esses direitos, procedendo-se, se necessário, a uma ponderação dos bens jurídicos em causa e atendendo sempre à especificidade do caso concreto. Porém, se os direitos em conflito forem desiguais, ou de espécie diferente, deve, então, prevalecer o que deva considerar-se superior – cfr. nº 2 do citado art.º 335º do Cód. Civil.”
A responsabilidade civil por factos cometidos através da imprensa está sujeita ao regime geral da responsabilidade civil, como decorre do art.º 29.º n.º 1 da Lei 2/99, de 13 de janeiro, que aprova a Lei da Imprensa.
Vejamos então, de modo muito sintético, o regime da responsabilidade civil por factos ilícitos a que o A. direciona o seu pedido indemnizatório.
O art.º 483.º do C.Civil estipula que: “Aquele que com dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes dessa violação.”
Torna-se assim necessária a verificação cumulativa de cinco requisitos, para que haja responsabilidade civil: o facto; a ilicitude; um vínculo de imputação do facto ao lesante; o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano, vd. neste sentido, Antunes Varela, in. Das Obrigações em Geral, pág. 355 ss.
De forma impressiva, diz-nos Menezes Leitão, in. Direito das Obrigações, Vol. I, pág. 285, a respeito de tal norma, que nela se estabelece: “uma cláusula de responsabilidade civil subjectiva, fazendo depender a constituição da obrigação de indemnização da existência de uma conduta do agente (facto voluntário), a qual representa a violação de um dever imposto pela ordem jurídica (ilicitude), sendo o agente censurável (culpa), a qual tenha provocado danos (dano), que sejam consequência dessa conduta (nexo de causalidade entre o facto e o dano).”
É necessário, desde logo, que haja um facto voluntário ilícito do agente, sendo que este facto consiste em regra numa ação, ou seja, num facto positivo que importe a violação de um dever geral de abstenção, do dever de não ingerência na esfera de ação do titular do direito absoluto, mas pode também traduzir-se num facto negativo, numa abstenção, numa omissão, entendendo-se que a omissão é causa do dano, sempre que haja o dever jurídico de praticar um ato que, seguramente ou muito provavelmente, teria impedido a consumação desse dano. Facto voluntário significa apenas facto objetivamente controlável ou dominável pela vontade, sendo a ilicitude revelada pela violação do direito de outrem ou da lei que protege interesses alheios.
De realçar ainda que a violação de um direito só é ilícita quando reprovada pela ordem jurídica. De um modo geral, a ilicitude é afastada quando se atua no regular exercício de um direito ou no cumprimento de um dever jurídico.
A culpa exprime um juízo de reprovação pessoal da conduta do agente e pode revestir duas formas distintas, o dolo e a negligência ou mera culpa.
Tem também que haver dano, para haver obrigação de indemnizar. É condição essencial que o facto ilícito culposo tenha causado prejuízo a alguém, podendo os danos ser de natureza patrimonial ou não patrimonial.
O dano patrimonial é aquele que se repercute no património do lesado, seja a título de danos emergentes, seja de lucros cessantes. O dano não patrimonial reporta-se à ofensa de bens que não se integram no património da vítima, como é o caso da vida, saúde, liberdade ou beleza, com uma impossibilidade de reposição do lesado na situação anterior, sendo por isso apenas suscetível de uma compensação.
Quando se repercute diretamente na esfera patrimonial do lesado, o dano não patrimonial deve ser compensado, conforme dispõe o art.º 496.º do C.Civil, desde que tenha gravidade suficiente para merecer a tutela do direito, sendo que relativamente aos danos não patrimoniais, indemnizáveis de acordo com o art.º 496.º n.º 1 do C.Civil, a indemnização é fixada com recurso a critérios de equidade, conforme dispõe o n.º 3 do mesmo artigo, e atendendo às circunstâncias referidas no art.º 494.º C.Civil - o grau de culpa do responsável, a sua situação económica, bem como a do lesado, a gravidade dos danos e quaisquer outras circunstâncias que devam ser ponderadas, já que se trata mais de dar ao lesado uma compensação, uma vez que a reparação da situação anterior não é, na prática, possível, na medida em que o dano não é suscetível de equivalente.
Finalmente para existir obrigação de indemnizar tem de verificar-se um nexo causal entre o facto e o dano, ou seja, um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima, de modo a poder afirmar-se, à luz do direito, que o dano é resultante da violação.
Nos termos do art.º 483.º n.º 1 a obrigação de indemnizar reporta-se apenas aos danos que resultam do facto ilícito violador do direito, remetendo para os art.º 562.º ss. do C.Civil, que regem sobre a obrigação e indemnizar seja qual for a sua fonte.
Começa o art.º 562.º do C.Civil por estabelecer o princípio geral de que “Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existira, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.” Acrescenta o art.º 563.º que: “A obrigação de indemnizar só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.”.
Este art.º 563.º do C.Civil vem consagrar o princípio da causalidade adequada, ao estabelecer que a obrigação de indemnizar só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão. É assim necessário que o evento causador do dano, ação ou omissão do agente, tenha não só determinado a ocorrência do dano, mas também surja como causa provável ou adequada do mesmo.
Dizem-nos Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. I, pág. 400, em anotação a esta norma: “A fórmula usada no artigo 563.º deve, assim, interpretar-se no sentido de que não basta que o evento tenha produzido naturalística ou mecanicamente) certo efeito para que este, do ponto de vista jurídico, se possa considerar causado ou provocado por ele; para tanto é necessário ainda que o evento danoso seja uma causa provável , como quem diz adequada desse efeito. Cfr. M. Andrade, ob. cit. pág, 355 e ss.”
Retomando ao caso concreto, importa em primeiro lugar avaliar se a divulgação da imagem do A. no programa da R. SIC, nos termos em que foi feita, constituiu um facto ilícito, tendo sido com base na sua inexistência, a par da falta do dano e do nexo de causalidade, que a ação foi julgada improcedente na 1ª instância.
A situação em causa, como revelam os factos que resultaram provados, traduziu-se na exibição num programa televisivo de uma fotografia onde o A. está retratado, encontrando-se de perfil e de máscara, no meio de outras duas pessoas à entrada de um edifício, por baixo da qual se encontra a legenda “suspeito ontem em tribunal”, enquanto era noticiada e comentada a prática de crimes de roubo de reformas a idosos, sendo as vítimas escolhidas na sopa dos pobres, como sendo crimes alegadamente praticados por um casal de namorados, dois jovens de 20 e 24 anos.
A divulgação da fotografia em questão tratou-se de um erro ou de um lapso, como bem reconheceram as testemunhas coordenadoras do programa quando foram ouvidas em audiência de julgamento, por não se reportar à notícia que estava a ser comentada no programa.
Importa salientar, que tal fotografia não é falsa, tal como não o é a legenda da mesma, já que terá sido colhida no dia anterior, num local público, quando o A. foi presente a tribunal, para ser ouvido enquanto suspeito da prática de um crime de roubo, pelo qual veio mais tarde a ser condenando, tendo ficado em prisão preventiva, o que decorre dos factos provados.
Constata-se que, no programa exibido, o nome do A. não foi mencionado, sendo que aqueles outros crimes de roubo de reformas que estavam ser a noticiados e comentados oralmente não se reportavam à sua pessoa, como decorre dos factos provados; não obstante tal situação, a imagem na qual o A. está retratado passava na televisão, em simultâneo com aquela notícia que era comentada, não havendo justificação válida para o efeito.
Afigura-se, no entanto, que o contexto em que estes factos ocorreram não é suscetível de permitir uma confusão, no sentido de ligar o A. ao suspeito da prática do crime de roubo de reformas a idosos escolhidos na sopa dos pobres que estava a ser noticiada, não podendo dizer-se sem mais que naquele programa lhe está a ser imputada a prática de tal crime, identificando-o como suspeito.
É que em tal programa é evidenciado que tais roubos eram alegadamente praticados por um casal de namorados de 20 e 24 anos, quando o A. é uma pessoa de meia idade, com pouco mais de 50 anos, tendo nascido em 1971, pelo que quem assistisse ao programa, mesmo que conhecesse o A., facilmente ia perceber que não se estava a falar do A. Aliás, as testemunhas ouvidas em audiência que afirmaram ter reconhecido o A. foram unânimes em dizer que estranharam a situação, que não fazia sentido, por a notícia se referir a dois jovens.
Como se diz na sentença recorrida: “Se por um lado, a ilustrar (no programa, não nas publicações) o tema do casal, a fotografia em causa, é preciso de um grande exercício para identificar o Autor na mesma, sendo que, como supra se expôs, mesmo as testemunhas que o “identificaram”, a noticia e a foto não lhes fez qualquer sentido. Acresce que, conforme resultou, a fotografia usada foi alegadamente tirada à porta do Tribunal de Leiria antes de o Autor ser ouvido em primeiro interrogatório judicial de arguido detido, num âmbito de um outro processo crime (também pela prática de crime violento: roubo agravado).”
É forçoso reconhecer que há a prática de um facto ilícito quando é exibida a fotografia do A. no contexto em que o foi, sem justificação válida, afigurando-se que o A. ainda que de perfil e de máscara pode ser reconhecido como retratado na imagem por aquelas pessoas que lhe são mais próximas e que o conhecem melhor, embora possa não ser um reconhecimento fácil ou imediato. Aliás, se o A. não tivesse sido reconhecido por ninguém na imagem que passou no programa da SIC, esta ação não existia, já que o mesmo refere não ter assistido ao programa em direto (estava na cadeia) tendo só mais tarde visualizado o vídeo quando foi para casa.
A prática de facto ilícito verifica-se quando é exibida a fotografia de uma pessoa legendada como suspeita, associada a uma notícia e ao seu comentário, que se reporta a prática de outros crimes com outras pessoas suspeitas – nesta perspetiva pode afirmar-se que estamos perante uma falsidade, por não ser verdadeira a correspondência da imagem com a divulgação da notícia que se comenta.
Como se refere no Acórdão do TRL de de 24-11-2016 no proc. 12515/14.9T8LSB.L1-2 inwww.dgsi.pt : “Resulta do Estatuto dos Jornalistas (aprovado pela Lei nº 1/99, de 13/1, Rectificada pela Declaração de Rectificação n.º 9/99, publicada no DR, I-A, n.º 53, de 4 de Março de 1999 e alterada pela Lei n.º 64/2007, de 6 de Novembro, rectificada pela Declaração de Rectificação nº 114/2007, de 20 de Dezembro) que a liberdade de expressão não está sujeita a impedimentos ou discriminações, nem subordinada a qualquer forma de censura e que são deveres dos jornalistas exercer a actividade com respeito pela ética profissional, informando com rigor, sendo também garantida a liberdade de expressão e de criação (artigos 6º, 7º e 14º). Se é certo que a liberdade de imprensa tem como únicos limites os que decorrem da Constituição e da lei, a verdade é que ela tem de ser exercida de forma a salvaguardar o rigor e objectividade da informação e a garantir o direito ao bom nome e à reserva da intimidade privada. Acresce que o jornalista está vinculado ao dever de informar com verdade, com rigor, com objectividade e com isenção, conforme decorre do artigo 14º, alínea a) do Estatuto do Jornalista. E, o dever de respeito pela verdade significa, obviamente, que não se deve apresentar como real aquilo que o não é.”.
O exercício do direito constitucional de liberdade de imprensa e de informação, supõe uma correta divulgação dos factos e das imagens, sendo a verdade também uma responsabilidade do jornalista. A seriedade da notícia impõe a observância de cautelas que, no caso, é manifesto que não foram observadas ao ser associada a imagem do A., por equívoco injustificado, à divulgação de outra notícia.
A imagem do A. é verdadeira, não existindo falsidade quando nela se coloca a legenda “suspeito ontem em tribunal”, já que o mesmo enquanto suspeito da prática de um crime de roubo foi efetivamente ouvido em tribunal quando foi captada a fotografia. Também não é esse o facto que o mesmo invoca como sendo o causador dos danos que alega ter sofrido, que sempre reporta à circunstância de lhe estar a ser atribuída a alegada prática dos crimes de roubo das reformas dos idosos.
A notícia do casal de jovens suspeito de roubar reformas a idosos na sopa dos pobres é divulgada, manifestamente, no âmbito do exercício da liberdade de imprensa e do direito/dever de informação, atento o interesse público de que se reveste.
O facto ilícito traduz-se na divulgação das duas coisas em simultâneo, passando uma imagem onde o A. está retratado com a legenda de suspeito, ao mesmo tempo que se comenta a notícia de um crime ao qual o aquele era alheio, ainda que facilmente se perceba que está em causa um lapso, pela falta de correspondência evidente entre uma coisa e outra – tal circunstância, podendo relevar para efeitos da apreciação dos pressupostos da obrigação de indemnizar que são a existência de danos ou o nexo de causalidade, já não obstam à qualificação do facto como ilícito.
Sobre situação similar refere-se no citado Acórdão do TRL de 24-11-2016: “O jornalista está vinculado, nomeadamente por força do Estatuto do Jornalista, ao dever de informar com verdade, com rigor, com objectividade e com isenção, significando o dever de respeito pela verdade que não se deve apresentar como real aquilo que o não é. Basta a culpa leve do jornalista, ao difundir uma notícia sobre um comportamento alegadamente desonroso, acompanhada de uma fotografia da autora, pessoa diferente da visada na notícia, para alicerçar um juízo de censurabilidade da conduta daquele, pelo que, verificados os demais pressupostos da responsabilidade civil, nos termos dos artigos 483º e 484º do Código Civil, faz incorrer a ré na obrigação de indemnizar a autora pelos danos não patrimoniais por esta sofridos em consequência da errada divulgação da sua fotografia a acompanhar aquela notícia.”
No caso a imagem do A. não foi divulgada pelas RR. no exercício do seu direito à informação e à liberdade de imprensa, já que a mesmas, como reconhecem, não visaram e não pretendiam dar qualquer notícia relacionada com o A. que pudesse justificar o uso da sua fotografia no contexto em que foi exibida, que já se expôs. Assim, a questão que se impõe resolver não se coloca na superação do conflito entre os direitos de personalidade, designadamente o direito à imagem, honra ou bom nome e o direito à liberdade de informação e de expressão.
Como nos diz de forma clara o Acórdão do TRP de 11-10-218 no proc. 10038/16.0T8VNG.P1 inwww.dgsi.pt : “Como é sabido a liberdade de imprensa e o direito de liberdade de imprensa e opinião são tradicionais domínios de conflito. No entanto, é também pacífico que a liberdade de imprensa tem como limite, entre outros, o direito ao bom nome, à imagem e à honra de que todas as pessoas gozam, que tem tutela constitucional, em convenções internacionais e na lei ordinária. Ora, em situações com a presente em que é indiscutível que o facto noticiado ofensivo da honra e consideração de um cidadão é falso, deixa de se colocar a questão de saber se a o direito à liberdade de imprensa pode prevalecer sobre o direito à honra.”
Não obstante a existência de um facto ilícito, concretizado na exibição daquela fotografia do A. no programa televisivo, a verdade é que no contexto global em que tal ocorreu, e em razão da notícia que em concreto estava a ser comentada, para um cidadão comum não resulta a perceção de que ao A. está a ser imputada a qualidade de suspeito do crime que se comenta atribuído alegadamente a um casal de jovens namorados de 20 e 24 anos, nem tão pouco que tal lhe tenha causado danos.
A alegação do A. de que se sentiu humilhado, envergonhado, triste revoltado com a situação de lhe ser imputado o crime de roubar reformas e escolher as vítimas na sopa dos pobres carece de consistência e não veio a resultar apurada, não tendo o mesmo logrado fazer prova, como lhe competia, nos termos do art.º 342.º n.º 1 do C.Civil, nem da existência de tais danos, nem tão pouco do nexo de causalidade adequada entre a exibição da sua fotografia no programa da R. nos termos em que o foi e tais danos que invoca.
O Recorrente faz depender a verificação da existência de responsabilidade civil das RR. e respetivos pressupostos da obrigação de indemnizar, da procedência da impugnação da matéria de facto que apresentou e que, no que se refere à verificação dos danos e do nexo de causalidade entre o ilícito e os danos (al. a) e b) dos factos não provados), não se verificou, já que improcedeu a alteração da decisão de facto nesta parte, improcedendo por esta via o seu recurso.
Podendo afirmar-se a prática de um facto ilícito culposo com a divulgação da fotografia em que o A. está representado no âmbito do programa exibido na SIC, nos termos em que o foi, falta a verificação dos restantes requisitos da responsabilidade civil que são a existência de danos, bem como do nexo de causalidade entre o facto e os danos, por não ter ficado minimamente provada a existência de um dano real e efetivo sofrido pelo A. na sequência da divulgação da sua imagem no programa da SIC, o que inviabiliza o seu pretenso direito indemnizatório.
Resta concluir pela improcedência do recurso intentado pelo A., mantendo-se a decisão recorrida.
No que se refere à ampliação do âmbito do recurso apresentada pelas RR. fica prejudicada a sua apreciação, nos termos do art.º 608.º n.º 2 do CPC, o que só se justificaria na procedência da apelação do A., o que não veio a verificar-se.
V. Decisão:
Em face do exposto, julga-se totalmente improcedente o recurso interposto pelo A., mantendo-se a sentença recorrida, ficando prejudicada, por inútil a apreciação da ampliação do objeto do recurso apresentada pelos RR.
Custas do recurso principal e subordinado pelo Recorrente por ter ficado vencido – art.º 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC.
Notifique.
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Lisboa, 26 de setembro de 2024.
Inês Moura
António Moreira
Fernando Caetano Besteiro