DOAÇÃO
COISA MÓVEL
TRANSMISSÃO DE PROPRIEDADE
FORMA LEGAL
NULIDADE POR FALTA DE FORMA LEGAL
CONTA CORRENTE
TRADIÇÃO DA COISA
VALIDADE
Sumário


I - Na doação de bem móvel, a tradição pode consistir na entrega material do mesmo, assim como na sua entrega simbólica, designadamente através do título representativo.
II – A titularidade de vinhos generosos do Douro evidencia-se através da sua inscrição em conta corrente na Casa do Douro em nome do seu titular ou proprietário, verificando-se a doação dos mesmo com tradição quando tais vinhos passaram a estar inscritos naquela instituição em nome de outra pessoa, “por oferta”, sendo esta pessoa, donatária, que passa a ser a proprietária, com inscrição dos mesmos em conta-corrente própria.
III – Resultando apurado que se mostrava inscrito em documentação da Casa do Douro uma determinada quantidade de vinho generoso se encontrava inscrito em conta corrente de três irmãos em 1975, sendo estes então os proprietários, e que, em 09/09/1976 saíram dessa conta-corrente uma série de partidas de vinhos, tendo sido, aí inscrito que tal saída teve o seguinte fundamento: “Transferência por oferta para EE e irmãos”, e que, nessa sequência, na Casa do Douro, foram abertas quatro contas correntes de vinhos generosos, constando como titulares, em comum e partes iguais, quatro irmãos, EE, YY, XX… e ZZ, resultando ainda demonstrado que os referidos vinhos, pese embora se terem mantido armazenados no mesmo local, passaram a ter tratamento diferenciado dos demais ali armazenados, sobretudo no que respeita ao cumprimento de obrigações perante as autoridades reguladoras da produção de vinho na Região Demarcada do Douro, designadamente, anualmente, a declaração de existências em armazém e respeitante àquelas litragens sempre foi emitida em nome destes quatro (novos) comproprietários como seus titulares, e assim apresentadas perante aquelas autoridades, e, ao menos, desde 1996 encontram-se em vasilhames próprios e separados dos demais vinhos armazenados, tais actos consubstanciam a tradição material daqueles vinhos (a tradição não foi, assim, apenas simbólica).
Toda a realidade fáctica subsequente reforça, pois, a existência de uma efetiva entrega daqueles vinhos aos donatários, tanto que estes passaram a deles dispor efetiva e materialmente, assim como de forma exclusiva, designadamente através de uma venda que realizaram a uma empresa de vinhos, estando disso impedidos os primitivos proprietários dos vinhos, venda esta que não seria possível por parte dos donatários sem que tivesse havido tradição, com a correspondente posse.
Há que concluir, assim pela existência e validade do contrato de doação daqueles vinhos generosos, com a consequente transferência da respetiva propriedade para os donatários (cf. art. 954 º al. al) do CC).

Texto Integral


Revista 1159/18.6T8VRL.G1.S1



AA intentou ação declarativa, sob a forma de processo comum,

contra BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN, OO, PP, QQ, RR e SS,

pedindo que se reconheça a qualidade de herdeira da Autora nas heranças por óbito de TT, UU E VV, bem como o reconhecimento de que os vinhos identificados no item 1º da petição inicial pertencem a tais heranças e devem ser confiados ao respetivo cabeça de casal, para que os guarde e administre até à partilha dos mesmos, nos termos do artigo 2079º do Código Civil.

Para fundamentar a sua pretensão, alegou, em síntese, que existe um conjunto de vinhos generosos que se encontram inscritos no IVDP em nome de BB e outros, que se encontram depositados em 4 cubas seladas pelo IVDP, depositadas na Quinta da ...; o direito de propriedade sobre tais vinhos, ou sobre uma parte determinada de tais vinhos, já foi discutido em várias ações judiciais, sendo que em processo de inventário foram os interessados remetidos para os meios comuns quanto a saber se as quotas indivisas de vinho aí relacionadas/reclamadas faziam parte do património dos inventariados à data do seu decesso; são antecessores da Autora e de todos os Réus, TT, falecido em ........2000, UU, falecido em ........1976 e VV, falecido em ........1979, os quais eram irmãos, sendo os três os donos, em comum e em partes iguais, dos vinhos em causa; estes vinhos, em 1975, encontravam-se distribuídos por vasilhame existente na denominada Quinta da ..., situada no concelho de ..., dentro da região demarcada de Vinho do Porto, quinta que pertencia aos três referidos irmãos, que ainda eram vivos; TT faleceu intestado em ........2000, no estado de viúvo e sem filhos nem ascendentes sobrevivos; UU faleceu intestado em ........1976, no estado de solteiro e sem filhos nem ascendentes sobrevivos, e VV faleceu intestado, em ........1979, no estado de viúvo de WW e do seu casamento nasceram os filhos (seis) BB (1ª Ré), XX, YY, ZZ, RR (17ª Ré) e AAA; os vinhos identificados no item 1º da petição são o que resta atualmente dos vinhos que os mesmos possuíam em 1975, posto que o remanescente, ou foi alienado no decurso do tempo, ou foi alvo de evaporação natural; tais vinhos nunca foram partilhados pelos herdeiros dos três referidos irmãos TT, UU e VV, pelo que são pertença, em comum e sem determinação de parte ou direito, dos herdeiros dos mesmos, tendo permanecido ininterruptamente guardados na Quinta da ....

Citados todos os Réus, apenas a Ré EE apresentou contestação, impugnando a factualidade alegada pela Autora, e alegando, por sua vez, que o vinho em causa se mostra inscrito em conta corrente na Casa do Douro, sendo propriedade de quatro irmãos, filhos de VV, a saber, BBB (tia da A.), CCC (tia da A.), XX (pai da A.) e ZZ (tio da A.), por lhes ter sido doado pelos três primitivos donos, em comum e partes iguais; uma quarta parte da litragem do vinho em causa foi relacionada no inventário por óbito do pai da Autora, e adjudicada à contestante, mãe da Autora, e a três irmãos da Autora, tendo esta recebido as tornas respetivas.

Terminou deduzindo reconvenção, pedindo que a Autora seja condenada a reconhecer que da herança aberta por óbito de seu pai, XX, fez parte um quarto da litragem inscrita em quatro contas correntes de vinhos emitidas pela Casa do Douro e constantes do seu arquivo, todas tituladas, em comum e partes iguais, pelo referido seu Pai e por BBB, CCC e ZZ, no total de 49.795 litros de vinho generoso, sendo 24.302 litros de VV (vinho velho), 19.782 litros de vinho da colheita de 1970, 5.631 da colheita de 1972 e 80 litros da colheita de 1974, bem como que a Autora seja também condenada como litigante de má-fé a pagar multa e as despesas da Ré com os honorários que terá que pagar ao Advogado.

No prazo para a contestação, os Réus RR e SS constituíram Mandatário e apresentaram rol de testemunhas.

Na pendência da ação faleceram as Rés BB e RR e, tendo sido promovida a habilitação dos respetivos sucessores, foram habilitados como tal os seus filhos, já réus nesta ação.

1.2. A reconvenção não foi admitida, tendo-se proferido despacho saneador, definido o objeto do litígio e enunciado os temas da prova.

Realizada a audiência final, proferiu-se sentença com o seguinte dispositivo: «Por tudo o exposto, e na procedência da matéria excecional alegada:

Julgo a presente ação parcialmente procedente, por provada, e consequentemente:

a) Declaro reconhecida a qualidade de herdeira da autora nas heranças por óbito de TT, UU e VV.

b) Julgo improcedente o demais peticionado, absolvendo os réus dessa parte do pedido.2º Condeno a autora como litigante de má-fé, em multa que fixo em 5 (cinco) UC, e em indemnização a favor da contestante, que por equidade se fixa em 3.000,00 (três mil euros).»

APELAÇÃO

Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação da sentença, de facto e de direito, pugnando pela total procedência da acção.

Os Réus EE e FF apresentaram contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.

Foi proferido Acórdão com o seguinte dispositivo:

- Não admitir a junção do documento apresentado com a apelação, determinando-se o seu desentranhamento dos autos e ulterior entrega à apresentante, condenando-se a Recorrente pela indevida apresentação desse documento em 0,5 UC, a título de multa, nos termos dos artigos 443º nº 1 do CPC e 27º nº 1 do RCP;

- Julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, revogar a sentença na parte em que condenou a Autora como litigante de má-fé, confirmando-se em tudo o mais a sentença, sem prejuízo da modificação da matéria de facto ora operada.

Inconformada, veio a Autora interpor recurso de revista excepcional, ao abrigo do art. 672º nº 1 al. a) do CPC, oferecendo as respectivas alegações, que culminam com as seguintes conclusões:

A. QUESTÃO PRÉVIA–SOBRE A ADMISSIBILIDADE DO RECURSO

1) O presente recurso é interposto nos termos do preceituado nos artigos 671º, 674º nº 1 al. a) e c) e nº 3 2ª parte, todos do CPC, embora subsidiariamente se invoque ainda a admissibilidade do recurso com base no preceituado no art. 672º nº 1, al. a) do CPC.

2) Embora as duas decisões proferidas pelas instâncias tenham o mesmo decisório, no que concerne à circunstância de em ambas se julgar a pretensão formulada pela autora na lide como improcedente, não ocorre aqui dupla conforme, desde logo, porque a matéria de facto apreciada por ambas as instâncias é distinta, na medida em que a Relação alterou uma parte significativa da matéria de facto – significativa não tanto pela sua extensão, mas porque respeita ao núcleo essencial do thema decidendum.

3) Também quanto aos argumentos jurídicos ocorreu uma modificação substancial da fundamentação, porquanto a Mmª Juiz de 1ª instância considerou que não se provou a existência de uma doação, mas julgou a ação improcedente, por considerar que seria a Autora quem teria de o ónus provar a inexistência dessa doação, e outrossim considerou a existência de usucapião, por entender que seria a autora quem teria de provar a não ocorrência da tradição e da posse da contestante.

4) Diversamente, a Relação considerou que a prova da existência da doação, da tradição dos bens e da posse era matéria de exceção e, como tal, era matéria cuja prova incumbiria à ré, mas entendeu – ao contrário da 1ª instância – que essa prova fora feita.

5) Assim, as duas decisões são absolutamente distintas, e a sua fundamentação é necessariamente distinta, uma vez que assentou em factos diferentes e numa antagónica consideração das regras de repartição do ónus da prova, relativamente à 1ª instância, ou seja, decidiu no mesmo sentido, mas com fundamentação totalmente distinta.

6) O recurso é ainda admissível porque impugna uma deliberação da 2ª instância relativa à não admissão de um documento em sede de apelação, que a apelante alegou ser essencial para a boa decisão da causa (quer no plano da alteração da factualidade considerada provada, quer quanto à solução jurídica do pleito).

7) Esta decisão, ora impugnada, foi proferida em segunda instância e, como tal, tem de ser impugnável perante o Tribunal Superior, sob pena de preterição do direito ao recurso sobre uma decisão judicial, tanto mais que, ainda por cima, tem influência decisiva na fixação da matéria de facto.

8) Por outro lado, ainda, o recurso é admissível porque nele se invoca a violação de norma imperativa quanto à valoração da prova, alegando-se que o Tribunal da Relação não poderia ter considerado determinados factos como provados, uma vez que os mesmos, nos termos do artº 947º nº 2 do Código Civil, só podem ser provados por documento, in casu inexistente, invocando-se assim a violação do preceituado no artº 364º nº 1 do Código Civil, por parte do Tribunal da Relação.

9) Como tal, o recurso fundado no estabelecido no artº 674º nº 3 do CPC sempre terá de ser admitido.

10) Sem conceder, também o recurso seria sempre admissível ao abrigo da admissibilidade excecional consignada na alínea a) do artº 672º do CPC.

11) A questão da consideração da existência de uma doação de bens móveis sem tradição manual e sem que existe um título de doação, é uma decisão que vai não só ao arrepio da letra e do espírito da lei substantiva (artº 947º nº2 do CC), como é também uma decisão que vai contra toda a Doutrina existente sobre essa matéria, que é pacífica e uniforme, não se logrando encontrar em toda a nossa Jurisprudência outra decisão em sentido idêntico.

12) Torna-se assim necessária a admissão do recurso com o efeito reparador de evitar a criação de uma dúvida jurisprudencial sobre matéria que é pacífica na jurisprudência, desde pelo menos a publicação do Código Civil, ainda por cima sendo uma interpretação contra legem.

13) Aliás, a Jurisprudência não afasta a possibilidade de intervenção excecional do Supremo Tribunal em casos que envolvam a interpretação e aplicação de normas de direito adjetivo, uma vez que a melhor aplicação do direito também depende, em grande medida, da aplicação e do sentido conferido a normas de direito processual.

14) Nesta segunda ordem de ideias, também neste processo e neste recurso se suscita a questão da manifesta violação da norma do artº 364º nº 1 do Código Civil, sendo a decisão tomada manifestamente contra legem, quando admite a prova por declarações de parte de matéria de facto que só poderia ser provada por documento (documento este confessadamente inexistente, como o reconhecem ambas as instâncias).

15) Como tal, deve o recurso ser admitido.

B. QUANTO AO INDEFERIMENTO DA JUNÇÃO DE DOCUMENTO EM SEGUNDA INSTÂNCIA

16) A apelante requereu a junção aos autos, com as suas alegações de apelação, de uma certidão judicial de um outro processo judicial, destinada a provar factos relevantes para a boa decisão da lide, estribando a admissibilidade de junção desse documento, nessa fase processual, no preceituado no artº 651º nº 1 in fine do CPC, ou seja, por entender que a junção desse documento se tornava necessária em virtude do julgamento proferido em 1ª instância.

17) A Relação entendeu indeferir a junção desse documento, mas fê-lo erradamente, porque os fundamentos do normativo em causa (artº 651º nº 1 in fine do CPC), que bem identificou e enunciou, implicavam uma decisão em sentido contrário, ou seja, justificavam plenamente a admissão do documento.

18) A apelante alegou que a sentença de 1ª instância foi uma completa surpresa, na medida em que analisou o ónus da prova de forma completamente errada e ao arrepio de normas processuais e substantivas expressas, aplicando-as de uma maneira que a apelante não podia de forma nenhuma contar que viesse a suceder.

19) E a Relação, no seu douto acórdão, reconhece efetivamente e de forma expressa que a Mmª Juiz de 1ª instância analisou de forma errada e violadora da lei a repartição do ónus da prova.

20)O Tribunal da Relação reconheceu que a prova de que os vinhos se mantinham na propriedade das heranças, assim como a prova de que não se operou a tradição dos vinhos para os alegados donatários, eram factos que não competia à autora provar; e considerou que, ao contrário do que a Mmª Juiz de 1ª instância entendeu, era à Ré que competia essa provar(prova da existência da doação e da tradição da coisa), enquanto matéria de exceção que é.

21) Ora, se a Mmª Juiz de 1ª instância repartiu errada o ónus da prova sobre o núcleo essencial da matéria de facto que era objeto de prova e, nessa medida, decidiu contra legem, é evidente que a parte não pode contar à partida que o juiz decida mal e utilize critérios de apreciação da prova que são o oposto do que a lei determina.

22) Nessa medida, é por demais evidente que a parte foi surpreendida com a decisão que foi tomada pois, embora sendo certo que não foi surpreendida com os factos, porque os factos a provar eram aqueles, foi conduto surpreendida com a forma anómala como o Tribunal analisou as provas relativas aos factos.

23) O acórdão recorrido, embora admita que o pressuposto da imprevisibilidade abrange tanto os casos em que a sentença se alicerça em factos imprevisíveis como os casos em que se formule uma exigência probatória imprevisível (fls. 29, penúltimo parágrafo do acórdão), acaba por afinal restringir o requisito da imprevisibilidade aos factos, e não à forma como é feita a exigência probatória (fls. 30, 1º e 2º parº).

24) Tem isto que ver com a análise da premissa de saber se o documento já era potencialmente útil ou relevante para a boa decisão da causa, consoante expendido no, por si citado, Cod. Proc. Civil Anotado de Abrantes Geraldes e outros, vol. I, 2018, pag. 502.

25) Só que, para se analisar se o documento era potencialmente útil em 1ª instância, não bastará analisar a factualidade que era objeto dos temas de prova, tout court, pois teremos de o fazer à luz das regras da repartição do ónus da prova.

26) Tal como se escreve no douto Ac. STJ de 29/09/2012, Proc. 174/08:

Acentua a doutrina e a jurisprudência que esta necessidade só surge na altura da apresentação da alegação de recurso em virtude da sentença se ter baseado em meio probatório não oferecido pelas partes ou de ter resultado da aplicação ou interpretação de regra de direito com que as partes, razoavelmente, não contavam...

27) Portanto, para se apreciar se o documento era ou não potencialmente necessário, teremos de o fazer à luz das expectativas processuais da parte que pretende apresentar o documento, ou seja, analisar se a decisão é ou não surpreendente, para quem pretende juntar o documento, em face dos factos que lhe incumbia provar e de acordo com os critérios legais de repartição do ónus da prova.

28) Ora se, no final do julgamento, quando a autora tinha por assente que a prova da alegada doação não tinha sido feita e a prova da usucapião muito menos, a Mmª Juiz de 1ª instância profere uma decisão em que afirma que a autora não provou, como lhe competia, que não houve doação e que se manteve na posse, assim subvertendo por completo as regras de repartição do ónus da prova em relação à matéria de facto controvertida, e decidindo com base nessa apreciação errada e legalmente infundada, revela-se inquestionável que a autora foi surpreendida por essa decisão!

29) E foi surpreendida com essa decisão, não porque não soubesse que eram esses os factos em disputa, mas sim porque não podia imaginar que o Tribunal apreciasse os factos à luz de uma repartição do ónus da prova antagónica àquela que a lei determina.

30) Assinale-se que a apreciação que se pede ao Supremo Tribunal de Justiça que seja feita incide sobre a admissibilidade do documento pela Relação, à luz da decisão que tinha sido tomada pela 1ª instância, ou seja, na ocasião em que a parte recorrente está a analisar a sentença e a preparar o seu recurso.

31) Ora, nesse momento, tornando-se necessário para a autora, afinal – e contrariamente ao que legitimamente pensava, escudada na lei – provar que a doação nunca existiu e que a posse nunca esteve do lado da ré, o documento de que lançou mão e cuja admissão requereu (certidão judicial de sentença transitada em julgado) era mais do que relevante para a produção dessa prova, que nunca contara ter de vir a fazer, mas que, em face da sentença, teria então de produzir na 2ª instância.

32) Este é mesmo um dos casos paradigmáticos em que tem completa pertinência a junção superveniente de documentos ao abrigo do segmento normativo invocado, do artº 651º nº 1 in fine do CPC.

C. QUANTO À VIOLAÇÃO DE REGRAS IMPERATIVAS SOBRE A APRECIAÇÃO E VALORAÇÃO DA PROVA – Prova de doação de bens móveis sem tradição manual e sem título

33) Fazendo tábua rasa dos artigos 364º, 393º e 394º, todos do Código Civil, o Tribunal acolheu na motivação da resposta à matéria de facto prova testemunhal sobre matéria que só poderia ser provada por meio de documento, sendo esta questão cognoscível pelo Supremo Tribunal de Justiça nos estritos limites do art. 674º, nº3 segunda parte, e do art. 682º, nº2, ambos do CPC.

34) Ao decidir como decidiu, o Tribunal violou normas de direito probatório material, designadamente, a violação de norma legal que fixa a força probatória de determinado meio de prova, sendo assim considerado como vício de direito em sede de direito probatório a conhecer no âmbito dos poderes do STJ. – neste sentido Ac. STJ de 06/10/2021 publicado em www.dgsi.pt

35) Está em causa o facto de o acórdão recorrido ter consagrado a existência de uma doação de bens móveis, sem que tenha ocorrido tradição, e sem que exista documento escrito de doação.

36) Ocorreu assim violação do preceituado no art. 947º nº 2 do Código Civil, preterindo-se a forma legal e acolhendo-se como existente um contrato de doação supostamente feito de forma consensual e sem que, concomitantemente, tenha ocorrido a tradição dos bens dos alegados doadores para os alegados donatários.

37) Com efeito, afirma-se no acórdão (pag. 68): ... tendo em 09.09.1976 sido declarada a doação com vista ao registo da transmissão a favor dos donatários, aquela inscrição/registo constitui precisamente o título representativo da tradição e da correspondente posse.

38) Nada mais errado e inaceitável, porque a tradição não se opera de forma simbólica pela inscrição num livro de inscrições da Casa do Douro, porque a lei não o permite.

39) A lei estipula, de forma expressa, que em caso de doação de bens móveis, a tradição só se efetiva porvia de tradição manuale não de tradição simbólica, estando por isso vedada a tradição por constituto possessório ou, por maioria de razões, a traditio brevi manu – artº 947º nº 2 do Código Civil – v. por todos Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, anotação ao citado artigo.

40) Se a tradição não pode ser simbólica, se tem de ser manual, efetiva, implicando a transferência da detenção do bem para a esfera patrimonial do donatário, não pode o Tribunal considerar que a tradição ocorreu neste caso de forma simbólica, através de uma anotação num livro de inscrições da Casa do Douro, porque esse ato não integra uma transmissão manual da posse do bem.

41) Não tendo ocorrido uma transferência efetiva do vinho, não tendo assim ocorrido nenhuma tradição material – então essa doação, a ter existido, só por documento escrito poderia provar-se.

42) E esse documento escrito teria de ser um documento que expressasse a vontade declarada dos doadores em doarem os bens móveis, neste caso aquele concreto vinho, aos donatários, que aceitariam essa doação.

43)Neste caso concreto em apreço, título de doação teria de ser um documento em que os três comproprietários desse vinho declarassem, todos eles, por escrito por si assinado, que doavam tais vinhos, sendo consensual que semelhante documento não existe.

44) Um averbamento num livro não é um título, porque não é uma declaração de vontade, nem sequer está assinado por ninguém, muito menos foi feito pelos doadores.

45) Donde a conclusão, inelutável, de que o Tribunal de 2ª instância considerou provada a existência de uma doação de bens móveis, sem tradição manual e sem título – o que viola a exigência de forma prescrita no artº 947º nº 2 do Código Civil.

46) A Mmª Juiz de 1ª instância, ao considerar a existência de uma doação verbal, quando a lei o não permitia, violou frontalmente a norma do Código Civil, enquanto o Tribunal de 2ª instância, para manter o sentido da decisão ilegal, fez uma interpretação da norma que não colhe dentro da letra da mesma (desrespeita-a ostensivamente) e que nem por interpretação extensiva cabe no espírito do preceito, nem mesmo que se faça uma leitura da norma com uma amplitude desmedida.

47) Estando os vinhos guardados na Quinta da ..., e aí continuando ininterruptamente guardados, exatamente no mesmo local e nas mesmas pipas, desde sempre e de forma contínua até agora, é indesmentível que a detenção material dos vinhos é da Quinta da ..., como sempre foi e, nessa medida, nunca ocorreu transmissão material efetiva do vinho, dos primitivos donos para os quatro supostos donatários, que são apenas meros sócios, com todos os outros herdeiros, da Quinta da ....

48) Sem mudança do corpus não há tradição manual, poderia até ocorrer tradição simbólica (que neste caso seria ineficaz), mas manual é que nunca houve.

49) E a Quinta da ..., na ação judicial certificada no documento junto, de 1999, foi demandada para entregar esses vinhos aos que se arrogavam donatários, nomeadamente à autora, que aqui nesta ação é ré, mas essa ação foi julgada improcedente, porque não se provou a doação que agora o Tribunal erradamente veio a acolher como existente.

50) Ora, a Quinta da ..., que negou a propriedade desses vinhos aos supostos donatários, detinha a sua posse e ganhou a ação, continuando por isso na posse até aos dias de hoje, pelo que o corpus, a detenção material está numa entidade terceira, e sempre aí esteve.

51) Afirma a Relação que os vinhos têm tratamento diferenciado, porque nas declarações de existências em armazém da Quinta da ... constam os nomes dos quatro supostos donatários – acórdão a fls. 68, 4º parº.

52) Esta afirmação é completamente insubsistente contraditória, porque é o Tribunal da relação quem, noutra passagem do mesmo acórdão, escreve que as declarações eram emitidas em nome dessas pessoas, porque assim tinha de ser, apenas porque a Casa do Douro não as aceitava de outra maneira – v. douta c. recorrido, análise da matéria de facto do ponto 45 dos factos provados.

53) Aliás, a questão foi suscitada em assembleia geral da sociedade e ficou em ata de assembleia geral que a Sociedade Quinta da ... recusava abrir mão desses vinhos para os alegados donatários.

54) Impõe-se assim concluir que não ocorreu tradição, porque a detentora recusou abrir mão dos vinhos em favor dos alegados donatários.

55) Assim, a inscrição no livro da Casa do Douro não pode ser o título que comprova a tradição e a posse, porque o próprio Tribunal reconhece que não houve tradição e não há posse, visto que o vinho sempre esteve e está na posse da Sociedade Agrícola Quinta da ..., faltando assim, pelo menos, o corpus dessa posse, como consta aliás dos Factos Provados.

56) Tal como se disse em sede de apelação, devendo a declaração de doação ser formulada por escrito, não pode ser provada por testemunhas, muito menos por arremedos de afirmações feitas em sede de depoimentos de partes, redundando a indagação de indícios sobre a doação no âmbito da prova pessoal numa violação flagrante do preceituado no artº364º do Código Civil.

57) Acresce que no dia 16 de fevereiro de 1996, o primitivo contitular dos ajuizados vinhos, TT, a quem foi imputada a qualidade de doador, declarou por escrito, pessoalmente e perante um notário que o atestou, bem como perante duas testemunhas, que também assinaram a declaração conjuntamente com o declarante, que não fez qualquer dádiva de vinhos tratados aos seus sobrinhos EE, YY, XX e FF, em tempo algum da sua vida, de igual modo lhe não constando que seus irmãos o tenham feito.

58) É absolutamente inaceitável, porque violador das mais elementares regras de aquisição da prova, que o Tribunal haja desconsiderado este meio de prova documental, com o único argumento de que o seu autor nada teria feito em vida para alterar a situação de facto – leia-se, a inscrição existente nos livros da Casa do Douro.

59) Como pode o Tribunal saber o que essa pessoa fez ou não em vida para alterar essa hipotética e efabulada doação, se ninguém perguntou nada sobre isso a ninguém, e nem o próprio Tribunal ao longo do julgamento fez nenhuma pergunta sobre tal matéria?

60) Dizer que esse suposto doador nada fez para alterar a inscrição na Casa do Douro é afirmar algo sem a mínima sustentação, nem nos factos provados nem na prova produzida, porque nada se referiu a esse propósito, em nenhum momento do julgamento.

61) Como quer que seja, o documento existe e está nos autos, não tendo sido impugnada a sua assinatura, tem-se por verdadeiro o conteúdo nele aposto, que aliás foi certificado presencialmente por notário, sendo por isso um instrumento público, que faz prova plena das declarações atribuídas ao seu autor – cfr. art. 363º, 375º e 376º nº 1 do Código Civil.

62) Logo, pelo menos um dos doadores fez consignar num documento escrito, que não foi validamente impugnado, que essa doação nunca ocorreu!

63) E, para cúmulo, a inscrição desses vinhos na Casa do Douro, a que alude a Relação para a considerar o documento comprovativo da doação, data de 17 de novembro de 1976, quando um dos alegados doadores já tinha morrido em 11 de setembro desse ano (facto provado nº 11).

64) Refere ainda a Relação que foi feita uma venda pelos supostos donatários de uma parte desse vinho, no longínquo ano de 1979 à Sociedade M..., Lda

65) Porém, o Tribunal não sabe se o vinho foi efetivamente disponibilizado à sociedade M..., Lda, e em caso afirmativo quando o foi, sendo certo que nessa data não foi, bem como ignora em absoluto se foi pago qualquer preço e a quem, não se sabe quem recebeu o preço da alienação desse vinho, se é que algum preço houve, bem como se o mesmo – a ter existido – entrou nos cofres da sociedade agrícola ou noutros.

66) Logo, não há nenhuma prova de que esses quatro irmãos tenham vendido vinho e tenham recebido o preço da venda e, por conseguinte, nenhum ato de disposição desses vinhos se evidencia, sendo certo que o suposto donatário XX, além de procurador de algunsirmãos, era também gerente da Sociedade Agrícola onde os vinhos estavam armazenados.

67) Assim, é abusiva a conclusão de que os quatro supostos donatários venderam vinho e eles quatro, apenas, receberam o preço desses vinhos, pois desses factos nada se sabe nos autos.

68) Assim, a matéria dos Factos Provados constante do ponto 34 dos Factos Provados, tal como emerge do julgamento em 2ª instância – fls. 60 do acórdão – não pode manter-se, porque a convicção que levou à sua consideração assentou em prova que não obedece às especiais exigências de prova consignadas no artº 947º nº 2 do Código Civil (inexiste documento escrito comprovativo da doação).

69) Não podia, portanto, o Tribunal da Relação concluir – como concluiu – que se formou o contrato de doação e que o mesmo seria válido, assim como não podia julgar que com esse (inexistente e não comprovado) contrato de doação se transmitiu a propriedade dos vinhos em causa para os supostos donatários.

70) E, consequentemente, a exceção ao direito de propriedade invocado pelaautora, terá de ser julgada improcedente.

D. QUANTO AO ARGUMENTO SUBSIDIÁRIO DA AQUISIÇÃO POR USUCAPIÃO

71) Na parte final do acórdão, considera a Relação que, se a doação não houvesse de ser considerada válida, “... sempre se deveria considerar, como se fez na sentença, que os donatários teriam adquirido o direito de propriedade sobre os vinhos por usucapião.”

72) Mas também essa conclusão era juridicamente impossível, porque não se mostram reunidos os requisitos para a aquisição por usucapião pelos quatro herdeiros, que supostamente teriam sido beneficiados com a doação inexistente.

73) No que respeita à posse que poderia conduzira essa usucapião, pelo decurso do tempo, foram violados no acórdão recorrido os comandos normativos dos artigos 1251º, 1252º nº 1, 1257º e 1258º a 1262º, e 1263º, todos do Código Civil e, por outro lado, foram indevidamente descurados os preceitos dos artigos 1255º, 1311º e 1313º do mesmo diploma.

74) Isto mesmo já havia sido invocado nas alegações de apelação, mas o Tribunal de 2ª instância não apreciou esta matéria, tendo assim cometido nulidade por falta de pronúncia relativamente às conclusões XCIV, CXV, CXVI, CXVII, CXXXIX, CXL, CXLI, CXLIII, CXLIV, CXLIX, CL e CLI das alegações de recurso - nulidade esta integradora de vício insanável, que o Supremo Tribunal de Justiça pode e deve reconhecer.

75) Os ajuizados vinhos, desde que foram produzidos, nas décadas de 1930, 1960 e 1970, sempre estiveram depositados na Quinta da ..., onde ainda se encontram. Isto decorre sem margem para qualquer dúvida dos pontos 7, 8, 23, 25 e 37 dos Factos Provados.

76) Portanto, os referidos quatro irmãos, supostos donatários, nunca estiveram na posse de tais vinhos, nem atualmente estão, porque tais vinhos estão na posse duma Sociedade que pertence a todos os herdeiros: aos supostos donatários e aos supostamente excluídos da doação.

77) Consta dos factos provados que durante as duas primeiras décadas do século atual, sucederam-se ações judiciais atinentes a estes vinhos, tendo os mesmos permanecido sempre à guarda da Sociedade Agrícola Quinta da ..., de forma ininterrupta, até aos dias de hoje.

78) Para que os supostos donatários tivessem a posse de tais vinhos, haveria de ter ocorrido (ser alegada e comprovada, que não foi...) uma inversão do título de posse ou a prática reiterada de atos materiais correspondentes ao exercício do direito.

79) Tal inversão de título de posse, ou arrogo de propriedade dos vinhos, nunca existiu, e não existe nos autos o maior vestígio de que sequer tenha sido intentada. Não está aliás sequer alegada. Muito menos provada.

80) Ademais, não pode haver inversão do título de posse entre herdeiros de uma mesma herança e, portanto, não basta que um dos herdeiros, ou até vários herdeiros, estejam a gerir e administrar os bens, para que uma nova posse seja emergente, de alguns contra os demais herdeiros, porque essa inversão de título não é legalmente possível – artº 1255º do Código Civil.

81) Por morte do possuidor, a posse continua nos seus herdeiros, e presume-se legalmente que a posse continua em nome de quem a começou – artº 1257º nº 2 do Código Civil.

82) Não existe, não está alegado, nem consta dos autos, nenhum ato de posse material dos supostos donatários, exercido ou não contra os demais herdeiros daquelas heranças, que possa significar uma intenção de posse, um indício sequer de animus possidendi.

83) Nada disso consta dos factos provados e por isso o Tribunal não pode dar esses factos por assentes, simplesmente porque não estão comprovados.

84) Aliás, a aqui ré contestante intentou contra a Sociedade Agrícola Quinta da ... Lda. aquela ação judicial reivindicando precisamente o direito a ¼ dos vinhos – direito que foi aí contestado pela Sociedade Agrícola – tendo a ré perdido essa ação – v. Facto Provado 2.a) e certidão judicial junta na apelação pelo que, nessa medida, nunca se pode falar de posse dos quatro irmãos supostos donatários, porque ela não existiu.

85) Os vinhos são coisas corpóreas, cuja apreensão material tem de ser demonstrada por quem a invoca, e a aquisição da posse pela prática reiterada de atos materiais, tal como a letra do preceito inculca, implica a prática sucessiva de diversos atos materiais de administração ou disposição dos bens.

86) Tal como o descreve a doutrina, que se pode acolher, designadamente, na anotação ao artº 1253º do Código Civil do Comentário ao Código Civil – Direitos das Coisas da Faculdade de Direito de Universidade Católica, coordenado pelo Professor Henrique Antunes, 2021, pág. 50, é indispensável a prática de atos materiais. Aí se escreve, de forma elucidativa: É indispensável a prática de atos materiais. A prática de atos jurídicos (de administração ou de disposição) não é relevante para este efeito, uma vez que podem ser praticados por qualquer pessoa. Apenas os atos materiais demonstram inequivocamente o corpus, um poder de facto direto sobre a coisa.

87) Portanto, não existindo presunção decorrente do registo, por não se tratar de bens sujeitos a registo, e não beneficiando os supostos donatários de presunção decorrente da posse, tem de presumir-se legalmente que os bens pertencem aos seus donos primitivos (comprovados) e, por morte destes, aos seus sucessores, na sua globalidade.

88) Não há início de posse juridicamente relevante sem inversão do título de posse ou arrogo dos novos possuidores relativamente aos anteriores.

89) Dos Factos Provados não decorre essa posse, muito menos que ela seja pacífica (resulta que é controvertida, até judicialmente impugnada em 3 ações judiciais), ou pública (porque os bens estão guardados, não na esfera patrimonial dos interessados, mas sim numa entidade terceira, a Sociedade Agrícola Quinta da ..., que os detém e se recusa a entregá-los).

90) Resultam assim violadas as normas de direito substantivo e adjetivo invocadas ao longo destas conclusões.

91) A ação deve, pois, imperiosamente proceder, porque se não provaram as exceções ao exercício do direito da autora que foram invocadas pela ré.

TERMOS EM QUE, admitido, DEVE SER JULGADO PROCEDENTE ESTE RECURSO DE REVISTA, revogando-se ambos os segmentos decisórios do douto acórdão recorrido, substituindo-se por outro acórdão que, admitindo o documento junto e alterando a matéria de facto em conformidade com o alegado, reconhecendo as nulidades e vícios invocados, aplicando o direito aos factos, julgue a ação procedente, como é de inteira Justiça.

A recorrida veio contra-alegar, culminando com as seguintes conclusões:

1. A recorrente admite e bem, nas suas doutas contra-alegações, que o sentido decisório da douta Sentença de 1ª instância e do douto Acórdão ora recorrido, é idêntico! E é-o efectivamente na sua substância, que é o que efectivamente aqui interessa, para efeito de preenchimento legal do conceito de Dupla Conforme e consequente inadmissibilidade do recurso em apreço.

2. De facto, não é admitida Revista do Acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a Decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no art. 672.º do CPC (art. 671.º, n.º 3, do CPC), o que, não se verifica nos presentes autos.

3. Reportando-se a fundamentação jurídica, a diferença essencial não se verifica só porque a Relação alterou a decisão proferida sobre a matéria de facto na 1.ª instância – cfr. 19-01-2016 - Revista n.º 1279/08.5TBCBR.C1.S2 - 6.ª Secção.

4. A admissibilidade do recurso normal de revista deve aferir-se mediante o confronto de cada um dos diversos segmentos decisórios que integram a parte conclusiva – o que, in casu, facilmente se verifica a igualdade dos mesmos – cfr. 19-01-2016 - Revista n.º 1368/11.9TBVNO.E1.S1 - 6.ª Secção.

5. Neste processo e no presente recurso suscita-se a questão de uma (alegadamente e não mais do que isso!!) manifesta violação da norma do art. 364º/nº 1 do Código Civil, tendo sido a decisão tomada (alegadamente) manifestamente contra legem, quando admitiu provas (alegadamente) ao arrepio daquele preceito legal.

6. Aliás, veja-se o esforço (a que não estavam legalmente obrigados!!!) os Digníssimos Senhores Juízes Desembargadores, que perante a não observância no presente recurso do preceituado no artigo 640º, nºs 1, al. b), e 2, al. a), do CPC - indicação relativamente a cada ponto de facto que considera incorrectamente julgado os concretos meios probatórios que impunham uma decisão diversa da recorrida – foram tentar descobrir aquilo que a recorrente efectivamente não disse, procederam à análise integral dos autos, com especial ênfase nos documentos que os integram, e à audição integral da gravação da audiência final, incluindo as alegações dos Senhores Advogados, em prol de uma Justiça Material, em detrimento de uma Justiça Formal.

7. E neste apurado enquadramento, o douto Acórdão recorrido, na substância essencial do processo, considerou/confirmou (e bem) a doação dos Vinhos Nominais provada, donde resulta necessariamente a (dupla) improcedência da acção instaurada pela recorrente.

NESTES TERMOS, DEVE O PRESENTE RECURSO SER LIMINARMENTE NÃO ADMITIDO, POR NÃO OCORRERCIRCUNSTÂNCIALEGALQUEO JUSTIFIQUE.

Sem prescindir,

• DO INDEFERIMENTO DA JUNÇÃO DO DOCUMENTO EM SEGUNDA INSTÂNCIA

8. As partes nos seus articulados ou ao longo do processo, juntam as provas e as contraprovas que consideram pertinentes para a prova dos factos cuja prova lhes incumbe, ou as contraprovas (nomeadamente, para a improcedência de excepções!!) para contraditar/obstar á prova dos factos que incumbe á contraparte.

9. Ora, a doação dos Vinhos Nominais e a respectiva posse, independentemente da parte a quem cabia o respectivo ónus probatório, foram matérias amplamente discutidas em sede de articulados e julgamento, pelo que, a recorrente já sabia a priori (em sede de 1ª Instância) que aquelas concretas matérias estavam a ser julgadas e sujeitas a prova … e contraprova … pelo que, se entendia pertinente, deveria ter junto o documento que tardiamente pretende agora carrear para os presentes autos.

10. A douta Decisão de 1ª Instância não é surpreendente … apenas não acolheu o agrado da recorrente, e assim, em desespero, tentou juntar uma (contra)prova num momento processual que já não é legalmente admissível.

11. Não se tratou de uma inimaginável junção de toda a prova documental existente no Mundo!! … mas sim, de um documento cuja existência a recorrente conhece há décadas, que sempre esteve na disponibilidade de, querendo, obter, e juntar aos autos durante todo o processado em sede de 1ª Instância, como legalmente se impunha.

12. A douta Sentença de 1ª Instância não contém elementos de novidade, isto é, que tenham sido absolutamente surpreendentes para a recorrente, face ao que seria de esperar em face da discussão ocorrida antes do recurso para o Tribunal da Relação.

13. Aquela douta Sentença não é inovatória ou imprevisível em face dos elementos probatórios recolhidos no âmbito do processo; além do mais, o douto Acórdão ora recorrido, alcançou a mesma conclusão factual e jurídica, com os mesmos meios de prova considerados em 1ª Instância, e ainda que tenha ocorrido diversa interpretação das regras do ónus da prova.

14. Na contestação da aqui recorrida já tinha sido alegada a doação dos Vinhos e a respectiva tradição para os donatários; a propósito da excepção alegada pela recorrida, confira-se nomeadamente o teor dos arts. 16º, 17º, 18º, 19º e 26º da dita peça processual, que aqui, por economia processual se consideram integralmente reproduzidos; nestas circunstâncias, a recorrida, plenamente consciente e informada do que se discutia adicionalmente nos presentes autos, replicou expressamente que os donatários nunca estiveram na posse dos Vinhos Nominais, pelo que, era o momento processual próprio para a junção de prova (documental) que considerasse adequada e pertinente.

15. A doação e posse (originária ou derivada) dos Vinhos Nominais, foram suscitadas ao longo de todo o processo, intensivamente discutidas, e culminando na douta Sentença de 1ª Instância.

NESTES TERMOS, E NESTE CONCRETO PONTO, CONFIRMANDO-SE O DOUTO ACÓRDÃO EM RECURSO, FARÃO V. EX.CIAS A COSTUMADA BOA APLICAÇÃO DO DIREITO, E ASSIM … JUSTIÇA!

• DA ALEGADA VIOLAÇÃO DE REGRAS IMPERATIVAS SOBRE A APRECIAÇÃO E VALORAÇÃO DA PROVA – PROVA DE DOAÇÃO DE BENS MÓVEIS SEM TRADIÇÃO MANUAL E SEM TÍTULO

16. Nesta sede, convém desde logo clarificar a evidente distinção entre Detenção e Posse,

- sendo que a primeira, ocorre quando alguém conserva a posse em nome de outro e em cumprimento às suas ordens e instruções;

- e a segunda, é inerente àqueles que têm de facto o exercício de poderes inerentes à propriedade;

17. É matéria completamente incontroversa nos presentes autos – vide Matéria de Facto Assente e Não Provada (aliás, já estabilizada e até complementada! neste concreto momento processual!!) – que a sociedade que explora a Quinta da ... não tem exercido ao longo das últimas décadas qualquer acto possessório relativamente aos Vinhos Nominais.

8. Se a recorrente alega que os Vinhos Nominais ainda pertencem às Heranças dos três primeiros contitulares, cabia-lhe nomeadamente provar que, v.g. o que TT fez para alterar a inscrição na Casa do Douro, uma realidade que o mesmo conhecia, que teve até o seu assentimento expresso com a assinatura de declarações de existências, e que, alegadamente (na teoria da recorrente) depauperaria o respectivo património ...! Nenhuma prova fez nesse sentido, nem podia … porque aquele sabia perfeitamente que havia doado a respectiva quota-parte naqueles Vinhos e a quem.

19. E no que concerne especificamente a este doador, veja-se que na “declaração” que a recorrente apresentou assinada pelo mesmo, então com cerca de 85 anos, o mesmo assumia ter dúvidas sobre se existia um documento por si assinado a doar os vinhos, … ora, um declarante que esteja seguro/consciente do que fez ou não fez limitar-se-ia a afirmar a inexistência da doação, sem mais …!

20. Bem decidiram a 1ª e 2ª Instâncias em considerar provada a doação dos Vinhos em questão, e sem qualquer violação do artigo 947º/nº 2 do CC, se atentarmos nomeadamente no seguinte, - competia à Casa do Douro «Abrir e escriturar contas correntes para todos os possuidores (…) vinhos (…), inscrevendo nelas todas as operações de que resultasse transmissão dos produtos e verificando a sua exactidão e a realidade das operações; in casu isso foi feito, pois, além do registo da transferência, mostra-se anotado que foi «visto pelo contencioso»;- nestes termos, a doação mostra-se evidenciada por um documento emitido pela entidade legalmente incumbida de registar, inscrevendo nas contas correntes, as operações de transmissão de vinhos, após ter verificado a sua exactidão e a realidade da operação; - por outro lado, aquando do óbito dos doadores UU e VV, correram termos processo judicial de Inventário, sem que os Vinhos Nominais (doados) tenham sido objecto de relacionação e partilha, e sem que qualquer herdeiro haja acusado a respectiva omissão no património deixado por aqueles; - e talvez até o facto mais gritante!!, veja-se que por óbito do donatário XX, correu termos processo de Inventário judicial, e no mesmo foi relacionado um quarto indiviso dos Vinhos doados, sem qualquer reclamação por quem quer que seja, designadamente da ora recorrente!!! … e que até recebeu tornas relativamente aos mesmos!! …

- é verdade que os Vinhos continuaram guardados no mesmo local, a Quinta da ... – propriedade da família dos donatários (e seus sucessores) – mas isso não obsta a que tenha ocorrido a tradição dos mesmos, como aliás bem disserta o douto Acórdão recorrido;

- aliás, os Vinhos passaram a ter tratamento diferenciado dos demais armazenados naquela propriedade, designadamente no que concerne ao cumprimento de obrigações perante as entidades reguladoras da produção de vinho na Região Demarcada do Douro, como é o caso da declaração de existências (até pelo punho dos doadores!) em armazém, a qual sempre foi emitida em nome dos quatro donatários;

- cfr. a propósito (entre outros) o Facto 41. (dos Provados) – “Os anteriores proprietários, os três irmãos, ficaram impedidos de os transaccionarem ou de deles disporem por qualquer forma.”, porque sabiam da doação, porque nada fizeram para alterar esse status quo, porque tiveram efectivamente animus donandi concretizado!;

NESTES TERMOS, NÃO OCORREU QUALQUER VIOLAÇÃO NA APRECIAÇÃO E VALORAÇÃO, NOMEADAMENTE DO ARTIGO 947º/Nº 2 DO CC, TENDO-SE PROVADO DE FORMA CONCLUDENTE A DOAÇÃO E A TRADIÇÃO DOS VINHOS NOMINAIS;

• DA AQUISIÇÃO POR USUCAPIÃO (subsidiária)

21. Conforme já supra se expôs, os quatro irmãos donatários (e seus sucessores), estão na efectiva posse dos Vinhos Nominais, durante o tempo necessário para a respectiva aquisição originária.

22. Eventualmente, os Vinhos estarão na mera detenção de uma sociedade na qual os donatários têm participações sociais, sendo que a posse (e propriedade) é indubitavelmente destes e não daquela.

23. Caso a doação não fosse válida (o que não se concede), sempre se deve considerar, que os donatários (e seus sucessores) adquiriram o direito de propriedade sobre os Vinhos por usucapião, e na medida em que estamos perante uma posse de boa-fé (art. 1260º), pacífica, em virtude de não ter sido adquirida com violência (art. 1261º), e pública (art. 1262º).

Por todo o exposto, deve o presente recurso ser julgado improcedente, e assim, mantido o douto acórdão antecedente, por corresponder a uma correcta aplicação do direito e como é de justiça!”

Considerada a dupla conforme nos julgamentos das instâncias, forma remetidos os autos Formação, nos termos e para os efeitos do nº 3 do art. 672º do CPC, vindo a ser proferido Acórdão que determinou a admissibilidade da revista excepcional, apenas quanto à questão da doação de bens móveis sem tradição, da correspondente necessidade de escrito e da sua configuração material.

Corridos os vistos, cumpre decidir, tendo presente que são as conclusões das alegações recursivas que delimitam o objeto do recurso, bem como os termos do Acórdão da Formação, em si também delimitador do objecto do recurso nos termos sobreditos, estando vedado ao tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, com excepção daquelas que são de conhecimento oficioso (cfr. art. 635º nº 4, 639º nº 1, 608º nº 2, ex vi art. 679º, todos do CPC).

Apreciando:

Na presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, intentada por AA contra -------------------------------------------------------------BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN, OO, PP, QQ, RR e SS, ----------------------------------------------------------------------pretende a autora que se reconheça a sua qualidade de herdeira nas heranças por óbito de TT, UU E VV, bem como o reconhecimento de que os vinhos que identifica em 1.º da petição inicial pertencem a tais heranças.

Em primeira instância, foi proferida sentença a julgar a ação parcialmente procedente, nos termos da qual:

a) foi declarada reconhecida a qualidade de herdeira da autora nas heranças por óbito de TT, UU e VV;

b) foi julgado improcedente o demais peticionado, absolvendo os réus dessa parte do pedido.

No mais, condenou a autora como litigante de má-fé, em multa que fixou em 5 (cinco) UC, e em indemnização a favor da ré contestante, no valor de € 3.000,00 (três mil euros).

Em sede de recurso de apelação, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães veio, no que para ora releva, confirmar a sentença da primeira instância, tendo decidido:

Julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, revogar a sentença na parte em que condenou a Autora como litigante de má-fé, confirmando-se em tudo o mais a sentença, sem prejuízo da modificação da matéria de facto ora operada.”.

Inconformada com a decisão proferida pelo Tribunal da Relação, veio a Autora interpor recurso de revista excecional, nos termos do artigo 672.º n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, que foi admitida por Acórdão da Formação, quanto à questão da doação de bens móveis sem tradição, da correspondente necessidade de escrito e da sua configuração material.

Objecto do recurso:

A questão essencial submetida à apreciação deste Tribunal assume cariz normativo e respeita “à questão da doação de bens móveis sem tradição, da correspondente necessidade de escrito e da sua configuração material”.

Apreciando:

Sopesado o requerimento de interposição da revista excecional, a recorrente pugna pela necessidade de uma melhor aplicação do direito relativamente à questão de saber se é válida a doação de bem móvel, nos casos em que não ocorre entrega do bem, nem emissão de título correspondente.

Para melhor enquadramento da questão de direito a apreciar, importa primeiramente atender à matéria de facto que as instâncias julgaram provada:

1. Existe um conjunto de vinhos generosos que se encontram inscritos no IVDP em nome de BB e outros, e que se encontram depositados em 4 cubas seladas pelo IVDP, depositadas na Quinta da ....

2. O direito de propriedade sobre tais vinhos, ou sobre uma parte determinada de tais vinhos, já foi discutido em várias ações judiciais, nomeadamente:

a. Processo ordinário nº ... do Tribunal Judicial de ...;

b. Processo ordinário nº 336/14.3... (ex-processo 4/D/...) da instância local, secção de competência genérica de ...;

c. Inventário nº 336/14.3... da instância local, secção de competência genérica de ....

3. Neste último processo, de inventário, por despacho de 2 de maio de 2017, devidamente transitado em julgado, foram os interessados remetidos para os meios comuns quanto a saber se as quotas indivisas de vinho aí relacionadas/reclamadas faziam parte do património dos inventariados à data do seu decesso.

4. São antecessores da autora e de todos os réus, TT, falecido em .../.../2000, UU, falecido em .../.../1976 e VV, falecido em .../.../1979.

5. Estes três falecidos antecessores de autora e réus eram irmãos, todos filhos de DDD e EEE.

6. Exploravam quintas com vinhas na zona do Douro, das quais extraíam anualmente vinho generoso.

7. Os vinhos em causa, em 1975, encontravam-se distribuídos por vasilhame existente na denominada Quinta da ..., no lugar da ..., da freguesia de ..., do concelho de ..., dentro da região demarcada de Vinho do Porto.

8. Tal quinta pertencia aos três referidos irmãos, que ainda eram vivos.

9. Nessa altura, tais vinhos encontravam-se manifestados na Federação dos Viticultores da Região do Douro (CASA DO DOURO) em nome dos três indicados irmãos.

10. O referido TT faleceu intestado em ........2000, no estado de viúvo e sem filhos nem ascendentes sobrevivos.

11. O referido UU faleceu intestado em .../.../1976, no estado de solteiro e sem filhos nem ascendentes sobrevivos.

12. O referido VV faleceu intestado, em .../.../1979, no estado de viúvo de WW e do seu casamento nasceram seis filhos:

a. BB

b. XX

c. YY

d. ZZ

e. RR (aqui 17ª ré)

f. AAA.

13. A 1ª ré BB foi casada com FFF, sob o regime de comunhão geral de bens.

14. Falecido este FFF em ... de 1977, deixou como seus herdeiros a viúva e os seguintes filhos do casal de ambos:

a. CC (aqui 2ª ré)

b. DD (aqui 3ª ré)

c. GGG.

15. Este último - GGG – faleceu no dia .../.../2018, no estado de solteiro e sem descendentes, deixando como sua única herdeira sua mãe, a aqui 1ª ré BB.

16. O aludido XX faleceu em .../.../1991, no estado de casado com EE (aqui 4ª ré), deixando como herdeiros a viúva e seus cinco filhos:

a. AA (aqui autora);

b. FF (aqui 5º réu);

c. GG (aqui 6ª ré);

d. HH (aqui 7º réu);

e. II (aqui 8º réu).

17. A aludida YY faleceu em .../.../1998, no estado de casada com HHH, sob o regime de separação e bens, deixando como herdeiros os seus três filhos:

a. JJ (aqui 9º réu);

b. KK (aqui 10ª ré);

c. LL (aqui 11º réu).

18. O ZZ faleceu em .../.../2012, no estado de casado com MM, deixando como herdeiros a viúva (aqui 12ª ré) e seus quatro filhos:

a. NN (aqui 13º réu);

b. OO (aqui 14º réu);

c. PP (aqui 15º réu);

d. QQ (aqui 16º réu);

19. A RR (aqui 17ª ré) foi casada, em primeiras e únicas núpcias de ambos, sob o regime de comunhão geral de bens, com III, que, entretanto, veio a falecer intestado em .../.../2004.

20. Deste último casamento nasceram dois filhos:

a. JJJ (aqui 18ª ré);

b. SS (aqui 19º réu).

21. O AAA faleceu em .../.../2011, no estado de solteiro, sem filhos, nem ascendentes sobrevivos, intestado e interdito, tendo o seu óbito dado origem ao inventário nº 336/14.3... acima referido.

22. Assim, além da autora e dos réus, não há mais ninguém que prefira ou possa concorrer na sucessão por óbito dos aludidos TT, UU e VV.

23. Os vinhos em causa nos autos são o que resta atualmente dos vinhos que os mesmos possuíam em 1975, posto que o remanescente, ou foi alienado no decurso do tempo, ou foi alvo de evaporação natural.

24. Tais vinhos nunca foram partilhados pelos herdeiros dos três referidos irmãos TT, UU e VV.

25. Tais vinhos permaneceram ininterruptamente guardados na Quinta da ....

26. Por óbito de UU e VV, correu termos o inventário nº 4/75.

27. Contudo, os vinhos em causa nesta ação não foram descritos nem partilhados nesse inventário.

28. Ao patrocinar o interdito AAA, no inventário por óbito deste, que corre termos pelo Juízo 2 de competência genérica de ... sob o nº 7/79, apenso ao inventário 4/75 (atual 336/14.3...), o Ministério Público veio requerer a partilha adicional de tais vinhos, originando que nos mesmo autos se viesse a cumular também o inventário pelo terceiro dos irmãos acima referidos, TT.

29. Mostra-se inscrito em documentação da Casa do Douro, que em 1975, os referidos três irmãos eram proprietários e, por isso, com inscrição em conta-corrente na Casa do Douro, de 314.733 litros de vinho generoso, sendo: 106.836 litros de vinho velho (VV, colheitas de 1932 a 1962), 57.294 litros da colheita de 1969, 116.816 litros da colheita de 1970 e 33.787 litros da colheita de 1972.

30. Em 09/09/1976 saíram desta conta-corrente as seguintes partidas de vinhos:

17.806 litros das colheitas de 32/62 (VV),

9.549 litros da colheita de 1969,

19.782 litros da colheita de 1970,

5.631 litros da colheita de 1972,

e 80 litros da colheita de 1974.

31. Está inscrito que esta saída teve o seguinte fundamento: “Transferência por oferta para BB e irmãos”.

32. Nessa sequência, na Casa do Douro, foram abertas quatro contas correntes de vinhos generosos, constando como titulares, em comum e partes iguais, os seguintes quatro irmãos: BBB (tia da A.), CCC (tia da A.), XX (Pai da A.) e ZZ (tio da A.).

33. E estes são, todos eles, filhos do VV e todos sobrinhos do UU e do TT.

34. Os três proprietários primitivos doaram a estes seus filhos e sobrinhos, que aceitaram, aquelas partidas de vinhos, em comum e partes iguais.

35. Nas contas correntes referidas, está inscrito o seguinte:

“Transferência por oferta de VV, UU e TT: - colheita de 1972: 5.631 litros, - colheita de 1974: 80 litros, - colheita de 1970: 19.782 litros, - colheita de VV: 27.355 litros.”.

36. Esta litragem corresponde exatamente à que está anotada como transferência por oferta na conta-corrente de UU, VV e TT, apenas com a alteração de que o vinho generoso da colheita de 1969 foi considerado em VV e somado ao das colheitas de 32/64, ou seja: 17.806 + 9.549 = 27.355 litros.

37. Estes vinhos estavam depositados em armazéns da “Quinta da ...”, em ..., deste Concelho de ..., que, na altura era propriedade em comum do VV, do UU e do TT, e lá continuaram depositados até hoje, por os donatários se terem, entretanto, tornado comproprietários da quinta e, mais tarde, sócios da “Sociedade Agrícola Quinta da ..., Lda.”, que passou a ser proprietária da quinta (redação alterada pelo Tribunal da Relação).

38. Estes vinhos passaram a ter tratamento diferenciado dos demais ali armazenados sobretudo no que respeita ao cumprimento de obrigações perante as autoridades reguladoras da produção de vinho na Região Demarcada do Douro.

39. Anualmente, a declaração de existências em armazém e respeitante àquelas litragens sempre foi emitida em nome destes quatro comproprietários como titulares delas e assim apresentadas perante aquelas autoridades.

40. E, ao menos, desde 1996 encontram-se em vasilhames próprios e separados dos demais vinhos armazenados.

41. Os anteriores proprietários, os três irmãos, ficaram impedidos de os transacionarem ou de deles disporem por qualquer forma.

42. Em julho de 1979, os donatários venderam 3.053 litros de VV (vinho velho) à sociedade “M..., Lda” (redação alterada pelo Tribunal da Relação).

43. As declarações anuais de existências perante a Casa do Douro e depois perante as entidades que lhe sucederam, a CIRDD e o IVDP, foram tituladas por aqueles quatro irmãos (donatários) e assinadas pelo XX que, para este efeito, tinha procuração dos demais.

44. E, depois, assinadas por quem estava na administração, ou gestão corrente, da “Quinta da ...”, nomeadamente o aqui corréu FF, o Sr. KKK, encarregado geral da administração da quinta, ou a gerência da “Sociedade Agrícola da Quinta da ...”, NIPC .......86, atual proprietária daquela.

45. [eliminado pelo Tribunal da Relação]

46. Todas as pessoas que exerceram até agora a gerência da Sociedade Agrícola da Quinta da ..., Lda., estavam e estão cientes de que os vinhos doados não são propriedade daquela sociedade. (redação alterada pelo Tribunal da Relação).

47. Os procedimentos supra descritos mantiveram-se inalterados até hoje, ou seja, por mais de 30 anos.

48. Por óbito do VV correu termos, com início após 1976, inventário judicial para partilha dos bens deixados e nele o cabeça de casal não relacionou aqueles vinhos.

49. Nenhum herdeiro acusou a sua falta de relacionação.

50. A partilha foi julgada por sentença que transitou em julgado.

51. Por óbito do UU também correu termos, com início após 1976, inventário judicial para partilha dos seus bens e nele o cabeça de casal não relacionou aqueles vinhos.

52. Também aqui nenhum herdeiro acusou a sua falta de relacionação.

53. A partilha foi julgada por sentença que transitou em julgado.

54. Por óbito do TT corre, agora, termos inventário judicial para partilha dos seus bens e nele o cabeça de casal não relacionou aqueles vinhos.

55. A aqui Autora, sobrinha-neta do inventariado, veio acusar a falta de relacionação deles.

56. Por falecimento do Pai da Autora, XX, que era um dos donatários referidos, correu termos pelo Tribunal de ... o processo de inventário para partilha dos respetivos bens e que teve início em .../.../1999, depois renumerado para processo de inventário nº 321/14.5... do Juízo de Competência Genérica de ... - J1, deste Tribunal da Comarca de Vila Real.

57. Nele foi relacionado sob o nº 08 o seguinte bem:

Um quarto indiviso de 49.795 litros de Vinho Generoso do Douro, registados na Federação dos Vinicultores da Região Demarcada do Douro (Casa do Douro) em nome do Inventariado e de BBB, LLL e ZZ à guarda da Sociedade Agrícola Quinta da ..., Lda. e que esta se recusa a entregar à herança no valor estimado de Esc. 6.224.375$00.

58. Trata-se das mesmas partidas/litragens de vinhos doadas e supra, referidas com um diferencial dos 3.053 litros de VV que foram transacionados para a empresa “M..., Lda”.

59. A Autora não requereu a exclusão desta verba da herança deixada por seu Pai.

60. Na conferência de interessados, a mesma foi licitada em comum e parte iguais pela aqui Ré/contestante (mãe da A.), e por HH, II e FF, todos de apelido ..., e todos irmãos da A., e pelo valor de Esc. 6.300.000$00.

61. Consta do mapa de partilha que a Autora ficou credora de tornas a pagar pelo II e pelo montante de 23.409,08 €, e de mais 66.065,54 € a pagar pelo FF.

62. Quantias estas que, efetivamente, foram pagas por depósito no processo e que a Autora recebeu.

63. O mapa de partilha foi homologado por sentença que transitou em julgado.

64. A Autora aceitou entrar na partilha dos bens deixados por seu pai e neles estava incluído um quarto indiviso dos vinhos doados, recebendo tornas dos demais interessados e nelas estando contabilizado o valor daqueles vinhos (redação alterada pelo Tribunal da Relação).

65. [eliminado pelo Tribunal da Relação]

66. Por falecimento, em .../.../1977 de FFF, a cabeça de casal, a sua viúva e aqui Ré BBB, relacionou perante a Repartição de Finanças e para efeitos de liquidação do respetivo imposto sucessório, o ¼ que o casal tinha naqueles vinhos.»

Da doação de bens móveis

Apurada a factualidade provada, cabe, pois, analisar a pretensão da autora, que se cinge, no âmbito do presente recurso de revista excecional em apreço, em saber se os vinhos identificados nos autos pertencem às heranças por óbito de TT, UU e VV, das quais a autora é também herdeira, ou se, ao invés, vinga a tese da ré contestante no sentido de que os vinhos foram doados a quatros pessoas, uma das quais o seu falecido marido.

Como decorre das suas alegações recursivas, a autora insurge-se contra o facto de o acórdão recorrido ter concluído pela existência de uma doação de bens móveis, sem que tenha ocorrido tradição e sem que exista documento escrito de doação.

Entende, pois, a recorrente que ocorreu violação do preceituado no art. 947º nº 2 do Código Civil, preterindo-se a forma legal e acolhendo-se como existente um contrato de doação feito de forma consensual e sem que, concomitantemente, tenha ocorrido a tradição dos bens dos alegados doadores para os alegados donatários.

Assim, coloca-se como questão central a de saber se a invocada doação cumpriu ou não os requisitos de forma referido no art. 947º nº 2 do Código Civil.

Atenta a factualidade provada, a primeira instância considerou que “pese embora não exista qualquer documento escrito que comprove a doação, admitindo-se que esta tenha sido verbal, considera-se que a transferência dos doadores para os donatários (a tradição) se operou por via da inscrição na casa do Doutro daquelas litragens em nome dos donatários EE, YY, XX e FF.”. (sublinhado nosso)

De igual modo, a Relação considerou ter-se formado validamente um contrato de doação, com base nos seguintes pressupostos:

estamos perante coisas móveis que, logo ao tempo da doação, estavam sujeitos a um regime especial relativo à produção, armazenamento, transmissão e comercialização. A transmissão dos vinhos generosos tinha de ser declarada e, consequentemente, a Casa do Douro estava incumbida de abrir novas contas correntes para os novos possuidores (v. art. 6º, nº 10, do Decreto nº 30.408, de 30.04.1940).

Ressalvada a devida consideração por entendimento diferente, tendo em 09.09.1976 sido declarada a doação com vista ao registo da transmissão a favor dos donatários, aquela inscrição/registo constitui precisamente o título representativo da tradição e da correspondente posse.

É verdade que os vinhos continuaram guardados no mesmo local, a Quinta da ..., mas isso resulta da especificidade da coisa móvel em questão e da situação relativa ao seu armazenamento num local que era da família dos donatários. Não era necessária, nem se impunha a sua transferência para outro local, em face do aludido circunstancialismo, como bem atestam os autos.

Os vinhos passaram a ter tratamento diferenciado dos demais armazenados na Quinta da ..., designadamente no que respeita ao cumprimento de obrigações perante as entidades reguladoras da produção de vinho na Região Demarcada do Douro, como é o caso da declaração de existências em armazém, na parte, respeitante àquelas litragens, a qual sempre foi emitida em nome dos quatro donatários. Os vinhos encontram-se separados dos vinhos da Quinta ..., em vasilhames próprios.

Se não tivesse havido tradição, com a correspondente posse, os donatários nunca teriam conseguido vender, de forma regular, parte dos vinhos à sociedade M..., Lda Aliás, a atestar a tradição está a circunstância de, perante o registo realizado na Casa do Douro, somente os donatários poderem dispor validamente dos vinhos, estando disso impedidos os primitivos proprietários dos vinhos ou os sucessores destes.”

Concluiu, assim, o acórdão recorrido que se formou o contrato de doação, e que se produziu o efeito essencial previsto na al. a) do artigo 954º do Código Civil, ou seja, a transmissão da propriedade dos vinhos para os donatários.

Vejamos:

Conforme decorre do n.º 1 do art. 940º do Código Civil, doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente.

E nos termos do art. 945º do Código Civil, sob a epígrafe aceitação da doação, é estabelecido que:

1 – A proposta de doação caduca, se não for aceita em vida do doador.

2 – A tradição para o donatário, em qualquer momento, da coisa móvel doada ou do seu título representativo, é havida como aceitação.

3 – Se a proposta não for aceita no próprio ato ou não se verificar a tradição nos termos do número anterior, a aceitação deve obedecer à forma prescrita no artigo 947º e ser declarada ao doador, sob pena de não produzir os seus efeitos.

Já no que respeita à forma da doação, o art. 947º do Código Civil prescreve que:

1 – Sem prejuízo do disposto em lei especial, a doação de coisas imóveis só é válida de for celebrada por escritura pública ou por documento particular autenticado.

2 – A doação de coisas móveis não depende de formalidade alguma externa quando acompanhada de tradição da coisa doada; não sendo acompanhada de tradição da coisa, só pode ser feita por escrito.

Por fim o art. 954º al. a) dispõe que um dos efeitos essenciais da doação é a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito”.

No caso vertente, as instâncias consideraram ter existido tradição dos vinhos identificados nos autos, o que fizeram com base nos factos provados em 29. a 43., dos quais resulta que em 1976 foi efetuada uma inscrição ou registo dos vinhos em causa nos autos a favor dos donatários, concluindo o Tribunal da Relação que aquela inscrição ou registo constitui o “título representativo da tradição e da correspondente posse.”.

Face à factualidade dada como provada, temos por certo que estamos perante uma doação verbal de coisa móvel consistente em vinhos generosos, que foram objeto de inscrição a favor dos donatários, e cuja validade depende, pois, da correspondente tradição dos referidos vinhos, no seu sentido mais clássico de entrega física e “brevi manu” da mesma.

Resta, pois, saber se, neste caso, face aos específicos contornos do registo dos vinhos na Casa do Douro em nome titulares dos correspondentes direitos, se tem por verificada a tradição da coisa doada.

Segundo os ensinamentos de Vaz Serra (em anotação ao acórdão do STJ, de 18/05/1976, in RLJ Ano 110.º, p. 212), a exigência legal de que a doação verbal de coisas móveis seja acompanhada de tradição da coisa “funda-se na circunstância de a doação poder ser perigosa se não houver um facto que chame especialmente a atenção das partes para a gravidade do acto.”.

Argumenta, por sua vez, Baptista Lopes (in Das Doações, Almedina, 1970. p. 44), que “a necessidade de escrito, para a doação de móveis, quando não seja manual, funda-se na conveniência de evitar doações levianas, atitudes imponderadas e precipitadas, pois o escrito chama a atenção do doador para o acto pelo qual, doando móveis sem os entregar ao donatário, desfalca o seu património de uma maneira não visível materialmente. Havendo tradição, esta chama já por si mesma essa atenção.”.

Entende o mesmo autor (ob. cit. p. 42, nota 1), que tal tradição não tem de ser necessariamente simultânea da declaração de doar, podendo ser anterior ou mesmo posterior a esta, podendo consistir seja numa entrega material da própria coisa doada, seja numa entrega simbólica do bem doado, por exemplo do seu título representativo, como decorre, aliás, do disposto nos arts. 945º nº 2 e 1263º al. b), ambos do Código Civil.

Por sua vez, Pires de Lima e Antunes Varela defendem que “a tradição” pode ser feita pelo doador ou por seu representante, mandatário ou comissário.” (In Código Civil anotado, anotação aos arts. 945.º e 947.º do Código Civil).

Reportando-se concretamente sobre o conceito de tradição, Nuno Pinto de Oliveira (in Contrato de compra e venda, vol. II — Sujeitos e objecto. Efeitos essenciais da compra e venda, Gestlegal, 2023, págs. 299 ss), citando um Acórdão do STJ de 19 de abril de 2001 (relatado por Quirino Soares), salienta que “enquanto a tradição material é realizada através de um acto físico de entrega e recebimento da própria coisa, a tradição simbólica é o resultado do significado social ou convencional atribuído a determinados gestos ou expressões.”

Tendo vindo o Supremo Tribunal de Justiça a problematizar o conceito de “tradição”, sobretudo em casos em que o litígio incide sobre entregas de dinheiro através de depósitos bancários, tem vindo igualmente admitir a tradição simbólica do bem doado.

Nesse sentido, veja-se o Acórdão do STJ de 16-06-2016 (processo n.º 865/13.6TBDL.L1.S1; relator: Tomé Gomes), onde se escreve que “o documento em que se consubstancia a conta de depósito bancário representa o dinheiro que dele foi objeto, pelo que a colocação pelo doador na disponibilidade do donatário de movimentar ou dispor dos valores ali depositados pode, em determinadas circunstâncias, traduzir-se na entrega simbólica desses valores ou do direito de crédito a eles correspondente.”.

No mesmo acórdão é feita referência a um outro Acórdão do STJ de 3-03-2005 (processo n.º 04B3711, relator: Bettencourt de Faria), em cujo sumário se deixa escrito:

I - A conta bancária conjunta é meio idóneo para efectuar a tradição da quantia depositada, se, simultaneamente, se provar o animus donandi.

II - A doação de coisa móvel, quando haja tradição, pode ser provada por prova testemunhal, não sendo exigível o documento escrito.

Perfilhando idêntico entendimento, o Acórdão do STJ de 9-07-2003 (processo n.º 04B2753, relator: Pereira da Silva) discorre sobre o elemento “tradição”, admitindo que a mesma “tanto pode ser material como simbólica. O que bem se compreende, uma vez que a disposição material de uma coisa - a sua posse - tanto pode resultar dum acto que confere de imediato essa disposição, como de um que apenas a torna possível. Em qualquer das hipóteses o que releva é que o acto de entrega torna efectivo o apossamento da coisa.”.

No mesmo sentido, o Acórdão do STJ de 25-06-2015 (processo n.º 26118/10.3T2SNT.L1.S1, relator: Gregório Silva Jesus) admite que, em caso de doação de bens móveis, a tradição pode efetivar-se de forma simbólica. Aí se defende que “a “tradição” é uma forma de conferir a alguém a posse de determinado bem, o antigo possuidor demite-se da sua situação e entrega a coisa ao novo possuidor, ao adquirente, constituindo-o na situação de facto própria da posse. Desdobra-se a mesma em dois momentos, na cessação da relação material com a coisa por parte do primeiro possuidor e no seu empossamento por parte do segundo (accipiens )(cfr.art.1263.ºalínea b).

Diz este preceito que a “tradição” tanto pode ser material como simbólica, pressupondo a primeira a execução de actos de entregar e receber que conferem de imediato a disposição do bem, ao passo que na simbólica não ocorre directa interferência no controlo material da coisa, a posse advém de um acto que apenas a torna possível, de um acto simbolizador da coisa (ex. entrega da chave de uma casa vendida).”.

Resta aplicar as considerações teóricas acabadas de tecer ao caso que nos ocupa, não ignorando que os supratranscritos acórdãos do STJ, incidentes sobre o conceito de “tradição” a propósito de situações relativas a contas bancárias, não comportam, em si mesmo, uma solução normativa abstrata que permita ser aplicável a todo e qualquer caso. Serão, em todo, o caso, as circunstâncias concretas de cada situação que permitirão considerar estarmos perante uma efetiva tradição do bem para efeitos de qualificar essa entrega como um verdadeiro contrato de doação.

Aproximando-nos do caso concreto, somos levados a concluir que a realidade evidenciada pelo acervo factual apurado é bem mais expressiva do que aquele que apresenta a recorrente.

Argumenta a recorrente que não existe qualquer documento escrito em que conste uma qualquer declaração de doação dos vinhos sob litígio. Sobre isso, porém, não subsistem dúvidas, razão pela qual o acórdão recorrido analisa a questão sob a perspetiva de ter havido ou não tradição do bem doado, questão que só releva no contexto de uma doação que se tem por verbal.

Acrescenta a recorrente que a lei estipula, de forma expressa, que em caso de doação de bens móveis, a tradição só se efetiva por via de tradição manual e não de tradição simbólica. Ora, esta asserção claudica perante aquela que tem vindo a ser a posição unânime da doutrina e jurisprudência a propósito do conceito de “tradição” em caso de doações verbais, que admite, sem reservas, a tradição simbólica.

Por outro lado, revertendo à factividade apurada no caso concreto, não vemos como não concluir, como o acórdão recorrido, no sentido de se ter como provada, no caso, a tradição dos vinhos generosos.

Como bem evidenciou o Tribunal da Relação, o caso concreto tem a particularidade de os bens doados estarem, ao tempo da doação e pela sua própria natureza, sujeitos a um regime especial relativo à produção, armazenamento, transmissão e comercialização. “A transmissão dos vinhos generosos tinha de ser declarada e, consequentemente, a Casa do Douro, estava incumbida de abrir novas contas correntes para os novos possuidores (v. art. 6.º, n.º 10 do Decreto n.º 30 408 de 30.04.1940).”.

No caso, resultou provado que se mostrava inscrito em documentação da Casa do Douro, que em 1975, os referidos três irmãos eram proprietários e, por isso, com inscrição em conta-corrente na Casa do Douro, de 314.733 litros de vinho generoso, sendo: 106.836 litros de vinho velho (VV, colheitas de 1932 a 1962), 57.294 litros da colheita de 1969, 116.816 litros da colheita de 1970 e 33.787 litros da colheita de 1972.

Mais resultou provado que, em 09/09/1976 saíram desta conta-corrente as seguintes partidas de vinhos: 17.806 litros das colheitas de 32/62 (VV), 9.549 litros da colheita de 1969, 19.782 litros da colheita de 1970, 5.631 litros da colheita de 1972, e 80 litros da colheita de 1974, tendo sido, aí, inscrito que esta saída teve o seguinte fundamento: “Transferência por oferta para BB e irmãos”.

Nessa sequência, na Casa do Douro, foram abertas quatro contas correntes de vinhos generosos, constando como titulares, em comum e partes iguais, os seguintes quatro irmãos: BBB (tia da A.), CCC (tia da A.), XX (Pai da A.) e ZZ (tio da A.).

Resultou ainda demonstrado que os referidos vinhos, pese embora se terem mantido armazenados no mesmo local, passaram a ter tratamento diferenciado dos demais ali armazenados, sobretudo no que respeita ao cumprimento de obrigações perante as autoridades reguladoras da produção de vinho na Região Demarcada do Douro.

Com efeito, anualmente, a declaração de existências em armazém e respeitante àquelas litragens sempre foi emitida em nome destes quatro comproprietários como seus titulares, e assim apresentadas perante aquelas autoridades (cf. facto provado em 39).

E, ao menos, desde 1996 encontram-se em vasilhames próprios e separados dos demais vinhos armazenados (cf. facto provado em 40), atos em que se consubstancia, quanto a nós, a tradição material daqueles vinhos (a tradição não foi, assim, apenas simbólica como alega a recorrente).

Toda a realidade fáctica subsequente reforça, pois, a existência de uma efetiva entrega daqueles vinhos aos donatários, tanto que estes passaram a deles dispor efetiva e materialmente, assim como de forma exclusiva. Veja-se que, em julho de 1979, os donatários venderam 3.053 litros de VV (vinho velho) à sociedade “M..., Lda” (cf. facto provado em 42), estando disso impedidos os primitivos proprietários dos vinhos. Ora, a venda de parte daqueles vinhos por parte dos donatários não seria possível sem que tivesse havido tradição, com a correspondente posse.

Perante o exposto, conclui-se pela existência e validade do contrato de doação daqueles vinhos generosos, com a consequente transferência da respetiva propriedade para os donatários (cf. art. 954 º al. al) do CC).

Improcedem, assim, todos os argumentos aduzidos nas conclusões recursivas, pelo que a revista terá de improceder, confirmando-se o Acórdão recorrido.

DECISÃO

Por todo o exposto, Acordam os Juízes que integram a 7ª Secção Cível deste Supremo Tribunal de Justiça em julgar a revista improcedente, confirmando-se o Acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 19.09.2024

Relator: Nuno Ataíde das Neves

1º Juiz Adjunto – Conselheiro Ferreira Lopes

2º Juiz Adjunto – Conselheiro Nuno Pinto Oliveira