ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
ACORDÃO FUNDAMENTO
ACÓRDÃO RECORRIDO
Sumário


I - Para que exista um conflito jurisprudencial, susceptível de ser dirimido através do recurso extraordinário previsto no art.º 688º do CPC, é indispensável que as soluções jurídicas, acolhidas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, assentem numa mesma base normativa, correspondendo a soluções divergentes de uma mesma questão fundamental de direito.
II - A questão de direito analisada no acórdão recorrido é a “dupla conforme” e “a fundamentação jurídica essencialmente diferente”, enquanto que a questão jurídica analisada no acórdão fundamento é “a oposição de julgados”. Desta forma não se verifica o requisito de admissibilidade do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, por inexistência de um conflito jurisprudencial.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 7.ª Secção do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I - RELATÓRIO

Associação Humanitária de Bombeiros de Parede “Amadeu Duarte”, representada pelo Dr. AA, advogado, veio requerer a interposição de recurso para uniformização de jurisprudência, nos termos do artigo 688.º do Código de Processo Civil, alegando:

«Dos fundamentos do recurso para uniformização de jurisprudência:

1. Com as alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa o recorrente Associação juntou um acórdão desse Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do qual a admitir-se a revista com base em contradição de julgados, ficaria subvertida a Lógica inerente à relação de instrumentalidade que deve existir entre a ação e o procedimento pois a sorte da ação principal (a decisão ainda não proferida na primeira instância) poderia ser traçada pela decisão cautelar que viesse a ser tomada (sumário sob o nº 6).

2. A texto sumariado exprime a ideia de que não pode considerar-se que haja uma contradição de julgados quando essa contradição se verifica entre um procedimento cautelar e a sorte da ação principal que puder vir a ser proferida.

3. O Requerente “Associação Humanitária (…)” remeteu na conclusão 1ª para os factos que alinhou, entre os quais o de ser inexato que esteja em causa o artigo 8º nº 3 do Código Civil, obviamente fundado no acórdão desse Supremo Tribunal de Justiça que juntou.

4. Ora a decisão de 1ª Instância fundamentou a sua decisão na decisão proferida no procedimento cautelar, o mesmo de que se juntou o respetivo acórdão.

5. E a decisão da Relação estribou-se na mesma e sua decisão proferida nesse procedimento, ignorando a circunstância com que fundamentou a sua decisão a revogar a decisão de 1ª Instância no sentido de que um réu como representante em juízo da autora implicava um inadmissível conflito de interesses, o mesmo acontecendo, causa do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, na perspetiva do recorrente “Associação Humanitária (…)” por identidade de razões, com isso de se exigir uma autorização sem conhecer da questão da alteração da assembleia geral pelo modo como agiam os réus.

6. Ora estaríamos num confronto de, como diz o povo, “preso por ter cão e preso por não o ter”, se a lógica da decisão desse Supremo Tribunal de Justiça fosse, como foi, ignorada, no sentido de apontar o artigo 8º nº 3, como fundamento das decisões da 1ª Instância e da Relação de Lisboa.

7. Pelo que vem requerer se uniformize a jurisprudência, no sentido de resolver a questão de saber se o artigo 8º nº 3 pode fundamentar que as decisões proferidas em procedimentos cautelares possam ter de ser seguidas nas decisões das ações principais ou antes não tenham nem devam como se decidiu no acórdão que se juntou e que de novo se junta.”

Após exame preliminar, o Exmo Relator proferiu decisão, nos termos do disposto no art.º 692.º do CPC, através da qual rejeitou o recurso, com a seguinte fundamentação:

«Estando peticionado o pedido de uniformização de jurisprudência impõe-se apreciar a sua admissibilidade.

A) Dispõe o artigo 688º, nº 1, do Código de Processo Civil, que:

«As partes podem interpor recurso para o pleno das secções cíveis quando o Supremo Tribunal de Justiça proferir acórdão que esteja em contradição com outro anteriormente proferido pelo mesmo tribunal, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito».

O recurso em causa depende da verificação dos seguintes requisitos:

- Contradição entre dois Acórdãos do STJ (Acórdão recorrido e Acórdão fundamento) sobre a mesma questão fundamental de direito;

- Carácter essencial da questão de direito relativamente à qual se verifica a divergência;

- Identidade substantiva do quadro normativo em que se enquadra a questão

- O trânsito em julgado de ambos os Acórdãos e o Acórdão recorrido não ter adoptado jurisprudência uniformizada do STJ.

Assim, o recurso para uniformização de jurisprudência tem na sua base e fundamenta-se numa contradição existente entre dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.

Pretende-se com este recurso extraordinário solucionar e dirimir um conflito de jurisprudência sobre a mesma questão de direito, decidida contraditoriamente por dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça.

É, pois, pressuposto da admissão a contradição de Acórdãos deste Supremo tribunal de Justiça.

Deste modo, importa verificar se se encontra preenchido aquele requisito, ou seja se existe oposição entre o acórdão recorrido – ou seja o proferido nestes autos – e o acórdão fundamento, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça junto pela Recorrente.

B) Será que efectivamente ocorre uma oposição entre o Acórdão recorrido e o invocado Acórdão fundamento?

Existirá um real e efectivo conflito entre aquelas duas decisões?

Sabe-se que «1. Para que exista um conflito jurisprudencial, susceptível de ser dirimido através do recurso extraordinário previsto no art. 688º do CPC, é indispensável que as soluções jurídicas, acolhidas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, assentem numa mesma base normativa, correspondendo a soluções divergentes de uma mesma questão fundamental de direito».

E, que «2. O preenchimento deste requisito supõe que as soluções alegadamente em conflito:

- correspondem a interpretações divergentes de um mesmo regime normativo, situando-se ou movendo-se no âmbito do mesmo instituto ou figura jurídica fundamental: implica isto, não apenas que não hajam ocorrido, no espaço temporal situado entre os dois arestos, modificações legislativas relevantes, mas também que as soluções encontradas num e noutro acórdão se situem no âmbito da interpretação e aplicação de um mesmo instituto ou figura jurídica - não integrando contradição ou oposição de acórdãos o ter-se alcançado soluções práticas diferentes para os litígios através da respectiva subsunção ou enquadramento em regimes normativos materialmente diferenciados;

- têm na sua base situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo – tendo em consideração a natureza e teleologia dos específicos interesses das partes em conflito – sejam análogas ou equiparáveis, pressupondo o conflito jurisprudencial uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto;

- a questão fundamental de direito em que assenta a alegada divergência assuma um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso, ou seja, que integre a verdadeira ratio decidendi dos acórdãos em confronto – não relevando os casos em que se traduza em mero obter dictum ou num simples argumento lateral ou coadjuvante de uma solução já alcançada por outra via jurídica», Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-10-2014, in www.dgsi.pt.

C) - Vejamos

1- Entendemos ser manifesto e evidente que o presente pedido de recurso para uniformização de jurisprudência não tem qualquer fundamento.

Na verdade, o Acórdão proferido nestes autos não admitiu a revista pedida pela ora Recorrente uma vez que entendeu que se verificava uma situação de dupla conforme.

O Acórdão do STJ proferido nestes autos não está em contradição com nenhum outro, designadamente com o invocado pela Recorrente.

E para que seja possível admitir o recurso de uniformização de jurisprudência é necessário que seja idêntica a situação versada em cada um dos dois Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça em oposição e que estes estejam em contradição, nomeadamente sobre a mesma questão fundamental de direito, pressuposto substantivo do recurso para uniformização de jurisprudência.

Com o pedido de uniformização de jurisprudência visa-se por termo à contradição de arestos sobre a mesma questão fundamental de direito, importando para isso – como já se deixou dito supra – atender à contradição que tenha sido relevante, fundamental e decisiva para a decisão em ambos os Acórdãos, ou seja a questão de direito tem de ter constituído o fundamento decisivo para a resolução do litígio em ambos os Acórdãos.

Como já se deixou expresso não é esse o caso, pois como se demonstrou no Acórdão Recorrido, ao contrário do Acórdão Fundamento, limitou-se a não admitir a revista por se verificar uma situação de dupla conforme entre a decisão da primeira instância e a decisão da Relação.

Assim, afigura-se-nos que não se mostra verificado um pressuposto essencial do recurso extraordinário interposto, pois que não existe a pretendida contradição ou colisão de interpretações normativas, quanto à questão fundamental de direito.

Pode, assim, concluir-se que, entre os Acórdãos, não se surpreende uma contradição sobre a mesma questão fundamental de direito e, por isso, carece de fundamento o recurso para uniformização de jurisprudência – art. 688.º, n.º 1, do CPC.

Deste modo, o recurso para uniformização de jurisprudência peticionado não é admissível.

Nestas condições, rejeita-se o interposto recurso para uniformização de jurisprudência – art. 692.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.»

Nos termos do disposto no art.º 692.º n.º2 do CPC, inconformada com esta rejeição, a Recorrente vem reclamar para a Conferência, com os fundamentos seguintes:

«1. De acordo com as normas a extrair do artigo 9º do Código Civil e seus números, temos logo o nº 1 a reger assim: “a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.” E seguem-se os números 2 e 3 a melhor precisar o que rege o nº 1.

2. No Código Civil anotado sob a coordenação de ANA PRATA, anota-se, de autoria de DIOGO FREITAS DO AMARAL, o seguinte: o legislador do CC não quis manifestamente, no nº 1 do artigo 9, optar pelo subjetivismo ou pelo objetivismo por isso encontrou uma fórmula nova, abrangente, que procura incluir os dois métodos rivais, ao estabelecer que “a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir, a partir dos textos, o «pensamento» legislativo». A fórmula usada – “pensamento legislativo” – é inovadora e, inegavelmente, abrange no seu seio tanto os subjetivistas – que pretendem apurar a voluntas legislatoris – como os objetivistas – que defendem o apuramento da voluntas legis.

3. De seguida o autor citado, no artigo anterior, depois de diversos considerandos conclui tomando posição sobre o elemento histórico: “de tudo o que antecede conclui-se que a única norma útil e vantajosa contida no artigo 9 é a que manda atender, na interpretação da lei, às condições específicas do tempo em que (ela) é aplicada”. (atualismo)

4. Regressando ao caso concreto em que o Julgador e Excelentíssimo Relator se estriba na letra do preceito para concluir que não há dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça em contradição, vejamos o que se anota na obra citada:

5.O disposto no número 2 – proibição de se considerar um “pensamento legislativo” que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal – constitui uma tentativa manifesta de condicionar a autonomia interpretativa da Jurisprudência e da Doutrina.

6. E, de seguida melhor explicam os citados autores: “Mas esta limitação só pode valer, se valer, nos casos de interpretação declarativa; já não faz qualquer sentido pretender aplicá-la nos casos de interpretação extensiva ou de interpretação restritiva. Porque nestes casos, por definição, o legislador ou disse menos do que queria (minus dixit quam voluit) ou disse mais do que queria (magis dixit quam voluit): a prevalência do espírito da lei, ou da intenção do legislador, sobre a letra de certo preceito, obriga necessariamente a fazer uma interpretação diferente da literal; (os sublinhados são nossos). E acrescenta-se a seguir ao ponto e vírgula:

7. E, seja para alargar o âmbito da aplicação da norma, seja para restringi-lo, isso é feito quase sempre, sem “um mínimo de correspondência verbal” com a letra da lei.

8. Vejamos agora o que anotam LEBRE DE FREITAS e ARMINDO RIBEIRO MENDES ao artigo 763, correspondente ao atual artigo 688, ambos do Código de Processo Civil, com a mesma letra dos respetivos números 1, no que concerne à ratio legis que é o que nos importa apurar saber se justificam a interpretação literal dada pelo Excelentíssimo Juiz Conselheiro Relator:

9. Assim, a página 204, Código de Processo Civil Anotado, volume 3º TOMO 1, 2ª Edição, em anotação ao artigo 793, da anterior formulação, com a mesma redação, expendem os autores referidos no artigo anterior: “há obrigatoriedade de suscitar a revista ampliada em casos de contrariedade de decisão de jurisprudência uniformizada”.

10. Introduziu o legislador um recurso extraordinário de uniformização de jurisprudência e o seu julgamento ampliado “tem natureza preventiva destinando-se a evitar (…) que tal decisão venha no futuro contrariada em processos idênticos”.

11. Ao contrário do que sucedia anteriormente, entendemos, não se exige que haja uma decisão expressa não bastando uma oposição ou diversidade implícita ou pressuposta a que se refere o mesmo autor a página 207, da obra citada, em anotação sob o nº 5 no quarto parágrafo.

12. O não conhecimento do Acórdão recorrido teve por fundamento que ambos os acórdãos aplicaram o disposto no artigo 8 nº 1 do Código Civil, abstendo-se o Supremo Tribunal de Justiça de conhecer que assim não era por ofender o Acórdão do mesmo Supremo Tribunal de Justiça proferido no apenso ao mesmo processo – um procedimento cautelar – sem, por isso, que se tenha assegurado a uniformidade da jurisprudência, conforme determina o nº 2 do artigo 684 do Código de Processo Civil, obrigatoriamente, como resulta do que reproduzimos entre parenteses (“pode ser proposto por qualquer das partes e deve ser proposto pelo relator, é como se exprime o legislador no referido preceito do nº 2 - o negrito é nosso).

13. Ora se tal não aconteceu parece que se deve fazer interpretação extensiva - por aplicação do elemento ratio legis do nº 2, alínea b), do artigo 671 do Código de Processo Civil, porque há um acórdão a abster-se de apreciar com base no impedimento fundamentado na interpretação do que seja a mesma “fundamentação essencialmente diferente” que se teve por existente no caso concreto - na interpretação a extrair do que dispõe o nº 1 do artigo 668 do mesmo código.

14. Fundamentação essa, a que alude o artigo 671 nº 2 alínea b), do CPC, baseada no artigo 8 nº 1 do Código Civil (“não essencialmente diferente”)que estava,porém,emcontradição com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que é o acórdão fundamento do recurso interposto, a justificar o funcionamento do elemento teleológico contra o elemento literal que se utilizou com alheamento do elemento fundado na finalidade da lei, e, isso, por deixar passar a afronta ostensiva ao acórdão fundamento, que as instâncias recorridas bem conheciam, por estar apenso e ter sido apontada pelos recorrentes, do recurso de uniformização de jurisprudência.

Termos em que reclama para a conferência.”

II - FUNDAMENTAÇÂO

Cumpre, pois, apreciar se, tal como entendeu o Exmo Relator, é de rejeitar o recurso para uniformização de jurisprudência com o fundamento invocado – inexistência de contradição entre o acórdão proferido por este STJ e o acórdão fundamento, proferido por este mesmo Supremo Tribunal - bem como apreciar da pertinência dos argumentos invocados pela Reclamante.

Com efeito, dispõe o artigo 688º, nº 1, do Código de Processo Civil, o seguinte:

«As partes podem interpor recurso para o pleno das secções cíveis quando o Supremo Tribunal de Justiça proferir acórdão que esteja em contradição com outro anteriormente proferido pelo mesmo tribunal, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito».

E o n.º 2, estipula:

«Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior com trânsito em julgado, presumindo-se o trânsito

Por sua vez, de acordo com o n.º 3, «o recurso não é admitido se a orientação perfilhada no acórdão recorrido estiver de acordo com jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça».

É, pois, incontestável, como se aponta no despacho reclamado que “O recurso em causa depende da verificação dos seguintes requisitos:

- Contradição entre dois Acórdãos do STJ (Acórdão recorrido e Acórdão fundamento) sobre a mesma questão fundamental de direito;

- Carácter essencial da questão de direito relativamente à qual se verifica a divergência;

- Identidade substantiva do quadro normativo em que se enquadra a questão

- O trânsito em julgado de ambos os Acórdãos e o Acórdão recorrido não ter adoptado jurisprudência uniformizada do STJ.

Assim, o recurso para uniformização de jurisprudência tem na sua base e fundamenta-se numa contradição existente entre dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.

Pretende-se com este recurso extraordinário solucionar e dirimir um conflito de jurisprudência sobre a mesma questão de direito, decidida contraditoriamente por dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça.”

Sendo pressuposto da admissão do recurso para uniformização de jurisprudência a verificação de contradição entre dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, importa verificar se, efectivamente, se verifica tal pressuposto, ou seja, se existe oposição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça junto pela Recorrente.

Em que circunstâncias deve ser entendido que existe esta oposição, susceptível de constituir fundamento para recurso para uniformização de jurisprudência? É o que nos diz o acórdão proferido neste STJ em 02-10-20141:

“1. Para que exista um conflito jurisprudencial, susceptível de ser dirimido através do recurso extraordinário previsto no art.º 688º do CPC, é indispensável que as soluções jurídicas, acolhidas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, assentem numa mesma base normativa, correspondendo a soluções divergentes de uma mesma questão fundamental de direito.

O preenchimento deste requisito supõe que as soluções alegadamente em conflito:

- correspondem a interpretações divergentes de um mesmo regime normativo, situando-se ou movendo-se no âmbito do mesmo instituto ou figura jurídica fundamental: implica isto, não apenas que não hajam ocorrido, no espaço temporal situado entre os dois arestos, modificações legislativas relevantes, mas também que as soluções encontradas num e noutro acórdão se situem no âmbito da interpretação e aplicação de um mesmo instituto ou figura jurídica - não integrando contradição ou oposição de acórdãos o ter-se alcançado soluções práticas diferentes para os litígios através da respectiva subsunção ou enquadramento em regimes normativos materialmente diferenciados;

- Têm na sua base situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo – tendo em consideração a natureza e teleologia dos específicos interesses das partes em conflito – sejam análogas ou equiparáveis, pressupondo o conflito jurisprudencial uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto;

- a questão fundamental de direito em que assenta a alegada divergência assuma um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso, ou seja, que integre a verdadeira ratio decidendi dos acórdãos em confronto – não relevando os casos em que se traduza em mero obter dictum ou num simples argumento lateral ou coadjuvante de uma solução já alcançada por outra via jurídica.»

Vejamos, então, se no confronto entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, estaremos perante uma situação de conflito jurisprudencial, tal como vem supra delineado:

O Acórdão proferido nestes autos não admitiu a revista pedida pela ora Recorrente uma vez que entendeu que se verificava uma situação de dupla conforme.

Por sua vez o acórdão fundamento decide igualmente rejeitar um recurso de revista interposto pela Associação Humanitária de Bombeiros de Parede “Amadeu Duarte”, no âmbito do Apenso D, destes autos.

Constitui esse apenso um procedimento cautelar interposto contra o Banco Santander Totta, SA em que a Requerente pedia a condenação do Banco Requerido a reconhecer o Requerente como o Presidente do Conselho de Administração da Requerente a fim de poder movimentar a conta da Associação Humanitária de Bombeiros de Parede.

Julgado improcedente o procedimento cautelar, foi tal decisão confirmada por acórdão do Tribunal da Relação que julgou improcedente o recurso de apelação daquela interposto.

Inconformada com o acórdão da relação, a Recorrente interpôs recurso de revista invocando que o acórdão recorrido se encontrava em oposição com outro proferido pela mesma Relação, invocando o disposto no art.º 672.º n.º1 c) do CPC.

O recurso de revista foi rejeitado por “manifesta inverificação da oposição de julgados, invocada pela recorrente, como fundamento do recurso.”

É, pois, por demais óbvio que não é possível existir qualquer conflito jurisprudencial entre os dois acórdãos em confronto, pois que não assentam “numa mesma base normativa, correspondendo a soluções divergentes de uma mesma questão fundamental de direito”. A questão de direito analisada no acórdão recorrido é a “dupla conforme” e “a fundamentação jurídica essencialmente diferente”, enquanto que a questão jurídica analisada no acórdão fundamento é “a oposição de julgados”.

Assim, não podemos deixar de concluir, na linha do que consta da decisão singular, que não se verifica um pressuposto essencial do recurso extraordinário de uniformização de jurisprudência, que é uma contradição de decisões sobre a mesma questão fundamental de direito.

Carece, pois, de fundamento recurso para uniformização de jurisprudência – art.º 688.º, n.º 1, do CPC.

Em face do exposto, carece igualmente de oportunidade a invocação do disposto no art.º 9.º do Código Civil. É certo que, tal como aquele dispositivo legal estipula, “a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.” E seguem-se os números 2 e 3 a melhor precisar o que rege o nº 1, no âmbito da interpretação da lei. Contudo não se suscita, no contexto em análise, qualquer questão de interpretação das normas que reclame a intervenção daqueles princípios interpretativos.

Não está, igualmente, em causa o disposto no art.º 8.º do Código Civil, invocado pela Reclamante.

Assim, de novo ponderadas as questões analisadas na decisão singular reclamada e considerando que a Reclamante nada acrescentou de novo que pusesse em causa aquela decisão, entende-se que a mesma é de manter.

III - DECISÃO

Acordam os juízes que integram a 7.ª secção do Supremo Tribunal de Justiça em julgar a reclamação improcedente, mantendo a decisão singular reclamada que decidiu rejeitar o recurso de uniformização de jurisprudência, nos termos do art.º 692.º n.º 3 do CPC..

Custas pela Recorrente

Lisboa, 19 de setembro de 2024

Maria de Deus Correia (relatora)

Fátima Gomes

Nuno Ataíde das Neves

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1. Mencionado do despacho reclamado e referente ao processo 268/03.0TBVPA.P2.S1-A (LOPES DO REGO), disponível em www.dgsi.pt.