O Administrador da insolvência carece de legitimidade para requerer a abertura do inventário para partilha da herança a que pertence o quinhão hereditário da insolvente, interessada directa nessa partilha.
1. Massa Insolvente de AA veio requerer que se proceda a inventário para partilha das heranças indivisas de BB e CC.
Para tanto alega, em síntese, que AA, filha dos ora inventariados, foi declarada insolvente por sentença proferida a 25-05-2017, no âmbito do proc. n.º 1198/17.4..., que correu termos no Juízo de Comércio de ..., tendo sido apreendido para a Massa Insolvente o quinhão hereditário que lhe cabe por óbito da sua mãe, ora inventariada, e que resulta do acervo patrimonial deixado pelo seu falecido pai, também aqui inventariado.
Conclui, assim, que atenta a existência de bens em comunhão hereditária, dos quais a Insolvente e o seu irmão DD são herdeiros, importa proceder ao inventário, o que requer.
2. A Mm.ª Juiz da 1.ª Instância proferiu despacho de indeferimento liminar, com fundamento na exceção dilatória de ilegitimidade ativa da Recorrente Massa Insolvente, o qual fundamentou, em síntese, da seguinte forma:
“(…)
Desde logo, ainda que tenha sido apreendido o aludido quinhão hereditário da Insolvente na herança aberta por óbito da inventariada, tal não significa que se tenha transferido para a massa insolvente a qualidade sucessória da Insolvente, a qual se mantém na esfera desta.
Mais, o direito da Massa Insolvente cinge-se àquele quinhão hereditário, inexistindo qualquer direito sobre o preenchimento do mesmo com determinados bens, de molde a justificar a propositura de inventário.
Acresce que, sendo o quinhão hereditário um direito com valor patrimonial objectivo – e, assim, susceptível de venda em sede de liquidação – a satisfação dos credores não depende da concretização da composição daquele, por via da partilha a realizar, a qual só indirectamente afectará os interesses da massa insolvente.
Por fim, muito embora na sequência da declaração da insolvência a herdeira tenha perdido os poderes de administração e disposição dos bens integrantes da massa insolvente, passando a ser representada pelo administrador da insolvência para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência, cf. artigo 81.º, n.ºs 1 a 6 do CIRE, tratando-se do exercício de um direito pessoal, não poderá este substituir-se àquela, propondo acção para partilha do acervo hereditário.
Assim, e ainda que administrador da insolvência possa intervir em processo de inventário requerido por outro interessado, em representação da Insolvente, nem ao mesmo, nem à massa insolvente, assiste o direito de o requerer.
(…)
Assim, por não ser interessada directa na partilha das heranças a que faz referência no requerimento inicial, cf. artigo 1085.º, n.º 1, alínea a) do CPC, carece a Requerente de legitimidade para requerer o presente inventário.
Termos em que se indefere liminarmente o requerimento inicial apresentado.”
3. Inconformada com o despacho de indeferimento liminar, veio a Requerente Massa Insolvente de AA apelar para o Tribunal da Relação de Coimbra, com fundamento na incorrecta apreciação da matéria de direito, nos termos do artigo 639.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, por ter entendido carecer a Massa Insolvente de legitimidade para requerer o inventário.
4. O Tribunal da Relação de Coimbra acordou em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida, concluindo:
“I – O administrador da insolvência, pese embora a norma do art 81º/4 do CIRE inculque o contrário, não atua em juízo como representante do insolvente, mas como parte, enquanto substituto processual daquele, recaindo a sua atuação no âmbito da substituição processual.
II – A massa insolvente carece de legitimidade para requerer a abertura do inventário para partilha da herança a que pertence o quinhão hereditário que foi para ela apreendido na sequência da declaração de insolvência do herdeiro, porque não pode beneficiar directa e imediatamente com a partilha, dado que o que está em causa é o quinhão hereditário e não o seu preenchimento com bens concretos.”
5. Novamente inconformada com o Acórdão, veio a Requerente Massa Insolvente interpor o presente recurso de revista excepcional para o Supremo Tribunal de Justiça com fundamento no artigo 672.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil.
6. Por acórdão da formação a que se reporta o art.º 672.º do CPC, o recurso foi admitido, por haver contradição de julgados.
7. No recurso de revista a recorrente conclui assim:
(transcrição)
“1.ª – A Recorrente Massa Insolvente de AA vem interpor recurso de revista excecional do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra datado de 6/02/2024, que julgou improcedente o recurso interposto, mantendo a decisão de indeferimento liminar do processo de inventário por falta de legitimidade ativa da Massa Insolvente, com fundamento na oposição de julgados, conforme os termos dos artigos 629.º, n.º 2, al. d) e 672.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil.
2.ª – O Acórdão recorrido está em contradição com o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12/07/2022, Proc. n.º 40/21.6T8TBU.C1, relatado por Paulo Correia, disponível em www.dgsi.pt., tendo este último determinado a legitimidade do Administrador da Insolvência para, em representação do herdeiro insolvente, instaurar processo de inventário com vista à partilha da herança em que este último é interessado.
3.ª – O Acórdão recorrido e o Acórdão Fundamento partilham do mesmo enquadramento factual – apreensão do quinhão hereditário em virtude da declaração de insolvência do herdeiro–, do mesmo quadro legislativo insolvencial, inventarial e processual e têm como idêntico objeto saber se a massa insolvente tem legitimidade para requerer a abertura de processo de inventário quando, na sequência da declaração de insolvência, haja sido apreendido para a massa insolvente o quinhão hereditário do insolvente, considerando a Recorrente Massa Insolvente que a decisão final que se impõe é a do Acórdão Fundamento.
4.ª – Conforme o disposto nos artigos 1082.º, al. a) e 1084.º, n.º 1 do CPC, o processo de inventário versa sobre a partilha de direitos com expressão e natureza inequivocamente patrimonial, até porque, nos termos do artigo 1198.º, do CPC, é condição essencial e necessária para a partilha, a atribuição, aos específicos bens ou direitos que compõem a herança, de um específico valor pecuniário.
5.ª – Resulta do espírito das normas que compõem o CIRE que a declaração de insolvência é de natureza patrimonial, que se reflete nos poderes de atuação do insolvente nesse domínio da esfera jurídica e que os poderes de disposição e administração de que o devedor fica privado são atribuídos ao Administrador da Insolvência.
6.ª – A Recorrente pretendeu com a instauração do inventário judicial cessar a comunhão hereditária dos inventariados e proceder à partilha de bens, por forma a concretizar a liquidação do quinhão hereditário pertencente à insolvente, património esse que diz diretamente respeito à Massa Insolvente, porquanto se encontra apreendido a favor da Recorrente.
7.ª – Nos termos do artigo 30.º do Código de Processo Civil, o autor é parte legítima quanto tem interesse em demandar, sendo que esse se exprime pela utilidade derivada da procedência da ação.
8.ª – A legitimidade processual para requerer o inventário judicial é conferida aos interessados diretos na partilha conforme dispõe o artigo 1085.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Civil, constituindo um conceito indeterminado e mais alargado de sujeitos admitidos a requerer a partilha, os quais não se limitam aos sucessores legais, ao cônjuge ou ao Ministério Público.
9.ª – O ter ou não ter interesse direto numa partilha de bens com valor patrimonial é que comanda a legitimidade para requerer ou intervir no inventário, e não a qualidade de herdeiro, sendo que o conceito de interessado direto é bastante mais abrangente do que o de herdeiro.
10.ª – Por interessados diretos na partilha entende-se todos os que veem a sua esfera jurídica ser atingida, de forma imediata e necessária, pelo modo como se organiza e concretiza a partilha do acervo hereditário.
11.ª – No pleito inventarial, a Massa Insolvente, representada pelo Administrador da Insolvência, tanto visa satisfazer os legítimos interesses e direitos dos credores da insolvência, o que é pressuposto essencial do processo insolvencial definido no artigo 1.º, n.º 1 do CIRE, como age em representação do devedor para efeitos de carácter patrimonial (cfr. artigo 81.º, n.ºs 1 e 4 do CIRE).
12.ª – Da declaração de insolvência resulta tanto a subtração dos poderes de disposição e administração dos bens do insolvente herdeiro, com a consequente impossibilidade de o próprio falido ter legitimidade para ser requerente do processo de inventário.
13.ª – O quinhão hereditário, que tem utilidade económica (em função dos bens, direitos e obrigações que compõem a herança), é avaliável, alienável e partilhável, nos termos do disposto nos artigos 2101.º e 2124.º do Código Civil.
14.ª – Nessa medida, não pode deixar de ser reconhecido à Massa Insolvente um interesse direto e legitimo na partilha da herança, dado que a definição e a concretização do acervo hereditário apresentam um interesse patrimonial inequívoco, para a sociedade civil em geral, como para a insolvência em especial, essencial para a satisfação dos credores e para realização da finalidade primordial do processo de insolvência, da legalidade e do Direito.
15.ª – A apreensão do quinhão hereditário, excluídos os poderes de administração do herdeiro insolvente, transfere para a Massa Insolvente todos os seus direitos ou toda a sua posição relativamente aos bens e, entre estes, está o direito de exigir a divisão, nos termos do artigo 2101.º do Código Civil, direito esse que apenas pode ser exercido através do seu representante, que é precisamente o Administrador da Insolvência.
16.ª – Se o insolvente fica privado de requerer o processo de inventário, porque não pode administrar e dispor dos seus bens, no qual se inclui o quinhão hereditário, então, na lógica sistémica, tal poder é atribuído ao Administrador da Insolvência.
17.ª – Permanecer na indivisão é também uma forma de administração dos bens pelo herdeiro, que decide manter como património hereditário (indiviso) bens (concretos) que são da sua titularidade, pelo que a decisão de provocar a divisão é um ato de administração que se transfere para o Administrador da Insolvência, porque de outra forma, com a existência de partilha anterior à declaração de insolvência, poderiam ter sido apreendidos bens concretos/determinados para a massa insolvente.
18.ª – No caso de apresentação à insolvência pessoal, com pedido de exoneração do passivo restante, subsume-se a intenção do devedor insolvente de afetar o património da sua titularidade à satisfação dos interesses dos credores da insolvência, para assim obter um perdão das dívidas e um novo recomeço financeiro/económico.
19.ª - A mera apreensão do quinhão hereditário (até pela indefinição do respetivo valor) não satisfaz necessariamente os interesses da massa, devendo ainda reconhecer-se o direito de ver concretizado em bens o quinhão hereditário, sob pena de a apreensão dos bens da insolvente não cumprir a sua finalidade que é a de contribuir para o benefício máximo dos credores e, consequentemente, da própria insolvente.
20.ª – A aferição da medida da quota hereditária e a sua concretização em bens com natureza patrimonial, só alcançáveis mediante a respectiva avaliação em processo de inventário, traduz-se também num mecanismo de defesa dum património apreendido para a Massa e, por isso, devem considerar-se dentro das competências atribuídas ao Administrador da Insolvência, a petição de inventário, por ter interesse em tornar definitiva, certa, determinada e liquidável, a apreensão do quinhão hereditário.
21.ª – Não deve continuar a vingar a interpretação jurisprudencial maioritária de que os direitos da Massa Insolvente recaem exclusivamente sobre o quinhão hereditário, e não sobre o preenchimento desse quinhão com determinados bens, uma vez que tais direitos sobre o quinhão ocorrem relativamente a todos os herdeiros, interessados directos e outros, sendo, no caso, o Administrador da Insolvência representante dos direitos patrimoniais do herdeiro falido.
22.ª – Vedar ao insolvente o direito de requerer a partilha e, ao mesmo tempo, cobrir de um manto de ilegitimidade ativa a ação do administrador nesse sentido, constituiria uma insuportável denegação de justiça, em vários aspectos e sentidos, deixando o tempo da partilha exclusivamente na vontade dos demais interessados, com consequências prejudiciais óbvias para os credores, manietando o legítimo exercício dos poderes adjetivos e substantivos conferidos por Lei ao administrador da massa insolvente.
23.ª – Não sendo possível requerer o inventário pelo insolvente e/ou pelo Administrador da Insolvência até ao encerramento do processo, impede-se a afetação de bens hereditários na insolvência pessoal, perturbando igualmente as regras de boa-fé inerentes à exoneração do passivo restante, não podendo a insolvente, mesmo que assim o entendesse, provocar o inventário para a satisfizer os interesses dos credores com a liquidação da sua herança.
24.ª – Com a generalização do entendimento de ilegitimidade ativa do Administrador da Insolvência, o mais certo é que deixe de se conseguir efetuar a venda dos direitos sucessórios, uma vez que os familiares dos insolventes passarão a protegê-los, abstendo-se de efetuar partilhas e deixando arrastar o processo até findar a insolvência, na maior parte dos casos de insolvência pessoal com exoneração do passivo restante.
25.ª – Caso não assista legitimidade à Massa Insolvente, os processos de insolvência não poderão ser concluídos, pois os ativos nunca serão liquidados, sendo que os valores inerentes aos quinhões hereditários dos insolventes jamais poderão ser objeto de liquidação judicial, paralisando e prejudicando o comércio jurídico em benefício único dos insolventes que tenham valores a receber de herança.
26.ª – O quinhão hereditário de uma herança indivisa revela-se pouco “atraente” para possíveis compradores, na medida em que lhes impõe posteriormente o encargo de requerer, por conta própria, o inventário para preenchimento do quinhão com bens concretos, afastando, pela conflitualidade familiar que caracterizam os processos de inventário, qualquer interesse na realização desse negócio jurídico, em regra nas pequenas heranças, cuja vantagem (valor/bens a receber) se revela inferior às desvantagens (instaurar processo de inventário).
27.ª – Não se afasta o cenário de que a venda do quinhão hereditário se possa realizar por valor inferior aos bens que eventualmente preencham tal quota, representado uma perda e prejuízo para a Massa Insolvente, que deve pugnar pela máxima satisfação dos interesses dos credores.
28.ª – A Massa Insolvente tem interesse processual na instauração do inventário judicial, tratando-se de um mecanismo de defesa da tutela jurídica, designadamente a satisfação dos interesses legítimos dos credores da insolvência.
29.ª – Privar tanto o insolvente como a Massa Insolvente de requerer o inventário na pendência do processo de insolvência viola o direito constitucional a uma tutela jurisdicional efetiva, ínsito no artigo 20.º da Lei Fundamental, representando uma verdadeira denegação de justiça para os credores da insolvência.
30.ª – Ao impedir-se a afetação das heranças ao processo de insolvência por ilegitimidade ativa do Administrador da Insolvência em requerer inventário, age-se contra o espírito e as linhas europeias definidas na Diretiva (UE) 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, conhecida como a Diretiva sobre Reestruturação e Insolvência, que pretendeu definir medidas para aumentar a eficácia dos processos de insolvência e de perdão de dívidas, designadamente o estabelecido no Considerando (80).
31.ª – A entender-se assim tal discrimina os insolventes, porquanto, em caso de inexistência de outros legitimados a concorrer à herança, a concretização do quinhão hereditário com específicos bens e a definição do respetivo valor patrimonial, é percetível pelos credores, visto que, existindo apenas um herdeiro (e uma única quota), não se verifica necessidade de proceder a inventário, ao contrário do que sucede nas heranças em que haja mais que um herdeiro/interessado.
32.ª – Existindo quinhão hereditário apreendido para a Massa Insolvente, entende-se que a impossibilidade de provocar o inventário na pendência do processo de insolvência prejudica os credores quando a herança é indivisa e concorrida por vários interessados, dificultando a liquidação do bem.
33.ª – Tal entendimento viola o princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.
34.ª – A decisão recorrida violou assim o disposto nos artigos 30.º, 1082.º, al. a), 1085.º, n.º 1, al. a), 1098.º, n.º 1 do CPC, e os artigos 1.º, 81.º, n.º 1 e 4 e 85.º, n.º 3 do CIRE.
Face ao exposto,
35.ª – Deverá ser revogada a decisão de indeferimento liminar por ilegitimidade ativa da Massa Insolvente para requerer o inventário judicial do devedor insolvente e ser substituída por outra que decida pelo deferimento liminar do peticionário, dando prosseguimento aos consequentes trâmites legais do processo de inventário.”
Não foram apresentadas contra-alegações.
II. Fundamentação
7. De facto
Relevam os elementos descritos no relatório supra.
De Direito
8. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recurso, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso e devendo limitar-se a conhecer das questões e não das razões ou fundamentos que àquelas subjazam, conforme previsto no direito adjetivo civil - arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.
De acordo com estas conclusões a única questão que se coloca é a de saber se o Administrador da insolvência tem legitimidade para requerer a abertura do inventário para partilha da herança, a que pertence o quinhão hereditário apreendido para a massa insolvente do co-herdeiro.
9. A questão suscitada não é nova na jurisprudência do STJ.
No ac. do STJ de 21/03/2023, proc. 215/20.5T8MNC.G1.S1, este Tribunal voltou a tomar posição sobre a questão que vem também suscitada no presente recurso.
E fê-lo seguindo a orientação que já resultada adoptada e se encontrava espelhada no aresto de 09-11-2022, Proc. 775/22.6T8LRA.C1.S1, que citou amplamente para fundamentar a posição que defendeu: o Administrador da insolvência carece de legitimidade para requerer a abertura do inventário para partilha da herança, a que pertence o quinhão hereditário apreendido para a massa insolvente do co-herdeiro.
Essa fundamentação foi a seguinte:
(transcrição, com sublinhados nossos)
“O Supremo Tribunal de Justiça já também se pronunciou sobre esta matéria, no recentíssimo Acórdão de 09-11-2022, Rel. Ana Resende, Proc. 775/22.6T8LRA.C1.S1, publicado em www.dgsi.pt e em cujo sumário se exarou o seguinte:
«O Administrador da insolvência carece de legitimidade para requerer a abertura do inventário para partilha da herança, a que pertence o quinhão hereditário apreendido para a massa insolvente do co-herdeiro.»
Vejamos.
De acordo com o disposto no art. 30º do CPC, o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar e o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer, exprimindo-se o interesse em demandar pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha, e, na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.
Por norma, a legitimidade é aferida pela forma como o autor desenha, de início, a relação material controvertida, o que é aplicável ao critério normal de determinação da legitimidade, por referência à legitimidade singular e directa, conforme é referido por Lopes do Rego, in Comentário ao Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 1999, p. 46. Já no que concerne à legitimação extraordinária, traduzida na exigência de litisconsórcio ou da atribuição de legitimidade indirecta, a situação é diferente, considerando-se, relativamente a esta, que a efectiva titularidade da relação legitimante é “conditio sine qua non” da legitimação de quem se apresta a exercer interesses alheios (ibid.).
Como observam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, no Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina Coimbra, 2018, p. 59, situações há em que é a própria lei que identifica o detentor da legitimidade activa ou passiva, como nos casos excepcionais em que se concede o direito de acção a sujeitos que são titulares de um interesse indirecto, de que é exemplo a acção sub-rogatória (art. 606º do C. Civil), permitindo-se que o credor actue, contra terceiro, como substituto legal do devedor, no que tange a direitos de conteúdo patrimonial que a este competem, excepto se, por sua própria natureza ou disposição da lei, só puderem ser exercidos pelo respectivo titular.
No que se refere à legitimidade para requerer o inventário, há que observar o disposto no art. 1085º, nº1, do CPC:
«1 - Têm legitimidade para requerer que se proceda a inventário e para nele intervirem, como partes principais, em todos os atos e termos do processo:
a) Os interessados diretos na partilha e o cônjuge meeiro ou, no caso da alínea b) do artigo 1082.º, os interessados na elaboração da relação dos bens;
b) O Ministério Público, quando a herança seja deferida a menores, maiores acompanhados ou ausentes em parte incerta.»
Estando em causa o quinhão hereditário de uma interessada directa que foi declarada insolvente, importará ter em conta o preceituado no art. 81º, nºs 1 a 6, do CIRE:
«1 - Sem prejuízo do disposto no título X, a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência.
2 - Ao devedor fica interdita a cessão de rendimentos ou a alienação de bens futuros susceptíveis de penhora, qualquer que seja a sua natureza, mesmo tratando-se de rendimentos que obtenha ou de bens que adquira posteriormente ao encerramento do processo.
3 - Não são aplicáveis ao administrador da insolvência limitações ao poder de disposição do devedor estabelecidas por decisão judicial ou administrativa, ou impostas por lei apenas em favor de pessoas determinadas.
4 - O administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência.
5 - A representação não se estende à intervenção do devedor no âmbito do próprio processo de insolvência, seus incidentes e apensos, salvo expressa disposição em contrário.
6 - São ineficazes os actos realizados pelo insolvente em violação do disposto nos números anteriores, respondendo a massa insolvente pela restituição do que lhe tiver sido prestado apenas segundo as regras do enriquecimento sem causa, salvo se esses actos, cumulativamente:
a) Forem celebrados a título oneroso com terceiros de boa fé anteriormente ao registo da sentença da declaração de insolvência efectuado nos termos dos n.os 2 ou 3 do artigo 38.º, consoante os casos;
b) Não forem de algum dos tipos referidos no n.º 1 do artigo 121.º».
Refere-se, a propósito da legitimidade para requerer o inventário no caso de um dos interessados directos ter sido declarado insolvente, na obra O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, de Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes, Pedro Pinheiro Torres, Almedina, Coimbra, 2020, pp. 32-33, o seguinte:
«Pode suceder que o quinhão hereditário de um interessado directo tenha sido penhorado ou que um dos interessados directos tenha sido declarado insolvente. Nestas situações, o interessado directo não tem legitimidade para requerer (dif. RE 22/12/17 (219/15)) ou para ser requerido no inventário, dado que, segundo o disposto do art. 819.° CC, é inoponível à execução qualquer acto do executado sobre o quinhão penhorado e, segundo o estabelecido no art. 81.°, n.°s 1 e 6, CIRE, o insolvente perde os poderes de administração e de disposição do quinhão hereditário e são inoponíveis à massa insolvente quaisquer actos praticados pelo insolvente sobre esse quinhão (RL 11/4/19 (171/17)).
Disto decorre que o interessado executado ou insolvente não tem legitimidade para ser parte no processo de inventário. Isto justifica, no âmbito da substituição processual (ou legitimidade indirecta), as seguintes soluções:
a) O administrador é o substituto processual do interessado insolvente (art. 81.°, n.° 4, CIRE). Este preceito refere-se, de modo equívoco, a uma função de representação do insolvente: a verdade é que o administrador actua em juízo como parte, e não como representante do insolvente (que seria então a parte representada). Isto significa que o administrador da insolvência vai actuar no processo de inventário como substituto processual do interessado insolvente.
O interessado executado não tem nenhum substituto processual designado na lei, certamente porque não é comum que haja que actuar quanto aos bens penhorados fora do processo executivo. No entanto, uma das situações em que esta actuação é pensável é precisamente a penhora de quinhão em bens indivisos, dado que esta penhora não pode inibir a faculdade de qualquer contitular requerer a divisão da coisa comum ou a partilha da universalidade comum. Nesta hipótese, suscita-se o problema de saber quem vai estar em juízo em substituição do executado. A resposta só pode ser a de que qualquer credor exequente ou reclamante pode assumir a substituição no processo divisório do contitular executado.
b) Pode perguntar-se se a legitimidade que é reconhecida ao administrador da insolvência ou ao credor exequente ou reclamante, na qualidade de substituto processual do interessado executado ou insolvente, lhe permite requerer a divisão da coisa comum ou o inventário para partilha da universalidade comum. A resposta tem de ser negativa, dado que os direitos dos credores exequentes e reclamantes e da massa insolvente recaem sobre o quinhão hereditário, não sobre o preenchimento desse quinhão com determinados bens.
Disto decorre que o credor exequente ou reclamante e o administrador da insolvência não têm legitimidade para requerer a divisão da coisa ou o inventário da herança, mas têm legitimidade para nestes processos serem requeridos em substituição do interessado directo executado ou insolvente.»
No art. 2101º do C. Civil estabelece-se que qualquer co-herdeiro ou o cônjuge meeiro tem o direito de exigir a partilha quando lhe aprouver, não podendo renunciar-se ao direito de partilhar, embora se possa convencionar que o património se conserve indiviso por certo prazo, que não exceda cinco anos, prazo que, no entanto, é renovável, uma ou mais vezes, por nova convenção.
Como se refere no mencionado Ac. do STJ de 09-11-2022, trata-se de um direito que, pela sua própria natureza, ou disposição legal, só pode ser exercido pelo seu titular, com exclusão da legitimidade indirecta, sofrendo limitações quando esse titular se encontre em situação de insolvência.
E prossegue-se, referindo o seguinte (com destaque nosso, a negrito):
«Na verdade, como se sabe, em termos breves, segundo resulta do art.º 81, n.º 1, e 2 do CIRE, a declaração de insolvência priva o insolvente, por si, e nos casos em que tem uma posição ativa, dos poderes de administração e de disposição (…) dos bens integrantes da massa insolvente, abrangendo esta todo o património do devedor à data da declaração da insolvência, bem como os bens e os direitos que ele adquira na pendência do processo, com vista à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, n.º1, do art.º 46, também do CIRE.
Decorre do mencionado art.º 81, n.º4, do CIRE, que o administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos patrimoniais que interessem à insolvência, não se estendendo contudo à intervenção do devedor no âmbito do próprio processo de insolvência, seus incidentes e apensos, n.º 5, do mesmo preceito legal, porquanto estão em causa “interesses pessoais” do devedor/insolvente, e não dos credores, em função dos quais a intervenção do administrador de insolvência está orientada (…), mas que não são irrelevantes, em termos dos respetivos desfechos para a satisfação dos débitos de cuja titularidade se arrogam os credores, no processo de insolvência.
Assim, na articulação dos regimes enunciados, avulta que apontado o direito de exigir a partilha como direito pessoal, embora de carácter indubitavelmente patrimonial, o respetivo titular insolvente está impossibilitado de o exercer, não o podendo igualmente fazer o administrador da insolvência, face à indelével pessoalidade desse direito, em substituição [do] seu titular, ele sim interessado direto na partilha.»
Observa-se, ainda, que nada obsta a que o administrador da insolvência intervenha no inventário, por da herança a partilhar fazer parte o quinhão hereditário, para viabilizar o efeito útil da partilha, mas também na defesa dos credores da insolvência, salvaguardando no respetivo decurso os respectivos interesses.
A Recorrente defende que a interpretação colhida no acórdão recorrido, a de que o insolvente não pode requerer nem ser requerido no processo de inventário, e a de que o administrador não pode representar o insolvente (para suprir a sua incapacidade), implica que o insolvente nunca poderá ver concretizado o seu quinhão hereditário, o mesmo é dizer que a interpretação da lei, acolhida no douto acórdão, priva o insolvente de um dos direitos fundamentais – o direito de propriedade e o direito de ver transmitida, pela via sucessória, a parte do acervo que lhe toca (artº 2033 CC e artº 17 e 62 CRP) e tal interpretação é vincadamente inconstitucional, por violar, entre outros, os princípios do direito de propriedade, da sucessão, e de tutela jurisdicional efectiva (entre outros, artº 17, 20 e 62 da CRP).
Conforme referem Teixeira de Sousa e Outros, no trecho citado, «segundo o estabelecido no art. 81.°, n.°s 1 e 6, CIRE, o insolvente perde os poderes de administração e de disposição do quinhão hereditário e são inoponíveis à massa insolvente quaisquer actos praticados pelo insolvente sobre esse quinhão (RL 11/4/19 (171/17))», do que «decorre que o interessado executado ou insolvente não tem legitimidade para ser parte no processo de inventário». Por outro lado, recorde-se, no que toca ao administrador da insolvência, assinalam carecer ele de legitimidade para requerer o inventário «dado que os direitos dos credores (…) da massa insolvente recaem sobre o quinhão hereditário, não sobre o preenchimento desse quinhão com determinados bens».
O legislador entendeu limitar os poderes do insolvente (e para além dos que constam do CIRE, há outros avulsos), em regra, até ser encerrado o processo (art. 233º, nº1, a), do CIRE), limitação que se conjuga com a salvaguarda de outros direitos ou interesses legalmente protegidos.
Conforme referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, em anotação ao art. 26º da Constituição da República Portuguesa, a Constituição admite restrições (embora não totais) à capacidade civil, as quais só podem ter lugar nos casos previstos na lei e nos termos nela definidos (“Constituição da República Portuguesa Anotada”, Vol. I, 4ª edição revista, Coimbra Editora, 2007, p. 465).
Salvo o devido respeito, não se vê como possa ser ofendido o direito de propriedade da insolvente e do direito de esta lhe ver transmitido o que lhe caberia por via sucessória, quando, no que lhe concerne, se verifica, desde logo, uma situação de indisponibilidade, por o quinhão hereditário estar “adstrito” à massa insolvente. E, como é referido no mencionado Ac. do STJ de 09-11-2022, não se mostra “que a restrição apontada, não sanável pela substituição do administrador da insolvência, contenda de forma muito mais gravosa do que as demais decorrentes da declaração de insolvência para o devedor afetado por essa declaração”.
No que tange à legitimidade do administrador da insolvência para o inventário, não deixa de se admitir que se verifique, da sua parte, uma intervenção, como se referiu, mas tal não abrange, pelas sobreditas razões, o direito de o requerer.
Entende-se, pelo exposto, que a interpretação em apreço não viola os invocados princípios constitucionais.”
(fim da transcrição)
10. A dúvida que se coloca a este tribunal tem merecido duas respostas antagónicas na jurisprudência dos Tribunais da Relação, como nos dá conta a nota 1 do acórdão do STJ de 09-11-2022, Proc. 775/22.6T8LRA.C1.S1:
“No sentido que o administrador da insolvência carece de legitimidade para, em representação do herdeiro insolvente, instaurar processo de inventário com vista à partilha de herança, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28-04-2022, Processo n.º 5879/20.7T8ALM.L1-2, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, 09-11-2021, Processo n.º 94/21.5T8OHP.C1, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-09-2020, Processo n.º 31/20.4T8MTA.L1-2, em sentido diverso, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-07- 2022, Processo n.º 40/21.6T8TBU.C1, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 7-04-2022, processo n.º 2374/21.0T8ENT.E1, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15-04-2010, Processo n.º 144/09.3TBPNF.P1, todos consultáveis em www.dgsi.pt. “
Nessa mesma nota a referência à doutrina é já em sentido único:
“Na Doutrina, Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes, Pedro Pinheiro Torres, in 0 Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, consignando, que tem de ser negativa a resposta à questão de saber se é reconhecida legitimidade ao administrador da insolvência, na qualidade de substituto processual do insolvente pois os direitos da massa insolvente recaem sobre o quinhão hereditário e não sobre o preenchimento desse quinhão com determinados bens, pág. 33.”
Mas na nota 13 - também reportada à doutrina – a posição parece menos clara:
“Nuno Alonso Paixão, in O “novo” processo de inventário: uma “antiga” questão de legitimidade, in Cadernos de Direito Privado, n.º 77, março de 2022, fls. 12, considerando que o administrador de insolvência terá legitimidade para ser requerido em substituição processual do interessado direto na partilha, mas não para requerer inventário, a fls. 18, contudo na nota 76, embora não o considerando como um “interessado”, antes o sendo os credores do insolvente, questione se face às funções e objetivos atribuídos, não poderá requerer a partilha.”
11. A questão tem chegado ao STJ por via da contradição jurisprudencial entre decisões das Relações.
E aqui - neste STJ – a resposta tem sido única: o Administrador da insolvência carece de legitimidade para requerer a abertura do inventário para partilha da herança, a que pertence o quinhão hereditário apreendido para a massa insolvente do co-herdeiro.
Tendo já sido esgrimidos os argumentos que sustentam as duas orientações nos acórdãos deste STJ que se indicaram – e parcialmente se transcreveram – não se crê existirem dúvidas da resposta a dar à questão - Administrador da insolvência carece de legitimidade para requerer a abertura do inventário para partilha da herança, a que pertence o quinhão hereditário apreendido para a massa insolvente do co-herdeiro.
12. Ainda assim, podem colocar-se as seguintes dúvidas, às quais se podem dar as respostas em seguida indicadas:
12.1. Como qualificar o direito ou a faculdade de requerer a abertura do processo de inventário: será um direito pessoal?
E há quem defenda que não pode ser tido por direito pessoal porque o conceito de direito pessoal relevante teria de ser equivalente ao de direitos que só podem ser exercidos pelo respectivo titular do art. 606.º do Código Civil e o direito de aceitar ou de repudiar a herança não é um direito que só possa ser exercido pelo respectivo titular, pelo que também não parece que o direito de requerer a abertura do processo de inventário para que o quinhão hereditário seja preenchido possa sê-lo (NPO).
Para responder a esta questão o acórdão que temos vindo a seguir justifica a solução apresentada com a finalidade do processo de inventário e ainda com a situação do herdeiro relativamente aos bens que compõem o seu quinhão, dizendo:
“ O processo de inventário, previsto no disposto no art.º 1082, e seguintes do CPC[7], no âmbito do qual se visa pôr termo à comunhão hereditária[8], decorrente do fenómeno sucessório, traduzindo-se no efetivo chamamento de determinadas pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais do falecido, permitindo assim que os bens que àquele pertenciam sejam atribuídos aos interessados, reconhecidos como tal, alínea a) do mencionado preceito legal, que não se esgota num ato, antes se desenvolve num conjunto articulado dos mesmos, até à partilha, possibilitando a intervenção de todos interessados que em conformidade se possam determinar, munidos que estejam da capacidade para tanto, se tal lhe for reconhecido na respetiva pendência.
Para requerer a realização do inventário e nele intervir como parte principal, em todos os termos e atos do processo, estão legalmente os indicados, como os com interesse direto na partilha, assim numa já apontada legitimação “normal”[9], conforme o n.º 1, a) do art.º 1085, do CPC, numa distinção clara daqueles que tão só podem intervir num inventário pendente, caso dos legatários, donatários, credores da herança e o Ministério Público no exercício das suas competências, n.º 2, al), a), b) e c) da mesma disposição legal, também designados de interessados secundários[10], cuja intervenção pode ser requerida ab initio ou posteriormente, de qualquer modo, contudo, sendo necessária para que se obtenha o efeito útil do processo, com a partilha do património comum, em termos de paridade, sabido que em regra, até pelo recurso aos meios judiciais, não existe uma concordância sobre os respetivos termos, na existência de interesses contrapostos, art.º 2102, n.º1e 2, alínea a) do CCivil.
A legitimidade assim delineada consubstancia-se na adjetivação do direito atribuído ao co-herdeiro[11] de exigir a partilha quando lhe aprouver, art.º 2101, n.º1, do CCivil, direito não renunciável, mas podendo ser convencionado que o património se conserve indiviso por certo prazo, que não exceda cinco anos, sendo lícito renovar tal prazo, uma ou mais vezes, por convenção, n.º 2, da mesma disposição legal, resultando da partilha realizada a atribuição de direitos sobre determinados bens, desde a abertura da herança[12], ao co-herdeiro, assim sucessor único quanto a tais bens concretos atribuídos, art.º 2119, do CCivil, sem prejuízo de possíveis situações de contitularidade, na forma de compropriedade.
Podendo, em conformidade, qualificar-se o direito de exigir a partilha como um direito irrenunciável, embora com a possibilidade de autolimitação temporária mencionada, potestativo, na medida que determina a extinção da comunhão hereditária e modificativo do direito de que o co-herdeiro é titular, pessoal, por tratar-se de um direito que pela sua própria natureza, ou disposição legal, só pode ser exercido pelo seu titular, art.º 606, n.º1, do CCivil, com a exclusão da legitimidade indireta nos termos delineados, mas e sobretudo, com um verdadeiro conteúdo patrimonial, pelo que a liberdade que também o caracteriza, sofrerá limitações quando o seu titular se encontrar na situação de insolvência[13].”
Cremos que da exposição indicada decorre a resposta, fundada na análise da própria distinção realizada pelo legislador entre legitimação normal face aos interessados secundários - art.º 1085 CPC.
Artigo 1085.º - Legitimidade
1 - Têm legitimidade para requerer que se proceda a inventário e para nele intervirem, como partes principais, em todos os atos e termos do processo:
a) Os interessados diretos na partilha e o cônjuge meeiro ou, no caso da alínea b) do artigo 1082.º, os interessados na elaboração da relação dos bens;
b) O Ministério Público, quando a herança seja deferida a menores, maiores acompanhados ou ausentes em parte incerta.
2 - Podem intervir num processo de inventário pendente:
a) Quando haja herdeiros legitimários, os legatários e os donatários, nos atos, termos e diligências suscetíveis de influir no cálculo ou determinação da legítima e de implicar eventual redução das respetivas liberalidades;
b) Os credores da herança e os legatários, nas questões relativas à verificação e satisfação dos seus direitos;
c) O Ministério Público, para o exercício das competências que lhe estão atribuídas na lei.
Idêntica justificação está presente no aresto do STJ de 16.11.2023, processo n.º 907/22.4T8MTS.P1.S1 – disponível em www.dgsi.pt:
“A legitimidade do administrador da massa insolvente de CC e BB para requerer o inventário
Uma vez assente que a massa insolvente de CC e BB é a requerente do inventário, para além da questão da falta de representação, dada a não intervenção do administrador de insolvência (art.26 CPC), mas que poderia ser oficiosamente suprida, nos termos do art.27 nº1 e 28 nº1 CPC, sobra o problema da legitimidade.
Tem sido controversa a questão da legitimidade da massa insolvente para requerer o inventário em nome de um herdeiro.
O art.4 nº1 a) da Lei nº 23/2013 de 5/3 (RJPI) (vigente à data da instauração do inventário) sobre a “ legitimidade para requerer ou intervir no inventário” dispunha
“1. Têm legitimidade para requerer que se proceda a inventário e para nele intervirem, como partes principais, em todos os atos e termos do processo:
a. Os interessados directos na partilha.”
O art.1085 nº1 a) do CC (aditado pela Lei nº 117/2019 de 13/9) mantém a mesma redacção, atribuindo a legitimidade activa aos “interessados directos na partilha”.
Os “interessados diretos na partilha” serão os sujeitos que, sendo ou não herdeiros do de cujus, veem a sua esfera jurídica ser atingida, de forma imediata e necessária, pelo modo como se organiza e concretiza a partilha do acervo hereditário (cf. Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes, Pedro Pinheiro Torres, “O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil” Almedina, Coimbra, 2020, pág. 31).
O Supremo Tribunal de Justiça tem adoptado a orientação no sentido de que “O Administrador da insolvência carece de legitimidade para requerer a abertura do inventário para partilha da herança, a que pertence o quinhão hereditário apreendido para a massa insolvente do co-herdeiro” (cf. Ac de 9/11/2022 ( proc nº 775/22), Ac de 21/3/2023 ( proc nº 2315/20 ) disponíveis em www dgsi).
Os tópicos de argumentação são, em síntese, os seguintes:
a) Declarada a insolvência, o quinhão hereditário é apreendido, passando a integrar a massa insolvente. O insolvente perde os poderes de administração e de disposição, sendo “representado” pelo administrador da insolvência;
b) A qualidade de sucessora legal da inventariada permanece na esfera jurídica da insolvente, que sempre seria interessada direta na partilha, pelo que a massa insolvente não tem legitimidade para requerer o inventário;
c)A apreensão do quinhão hereditário não confere à massa insolvente a qualidade de sucessora legal do inventariado, pois o que passa a estar integrado na massa insolvente é o quinhão hereditário que a insolvente possui na herança da inventariada, e não a sua qualidade sucessória em relação à mesma;
d)A massa insolvente não é interessada directa no inventário porque não beneficia directa e imediatamente com a partilha, dado que o que está em causa é o quinhão hereditário e não o seu preenchimento com bens concretos;
e) O art.81 nº4 CIRE, muito embora se reporte à representação, a verdade é que se trata de substituição processual, ou seja, o administrador da insolvência não actua em representação do herdeiro/insolvente, mas como parte, como substituto processual. Na substituição processual, porque não há coincidência entre o sujeito da relação processual e o da relação substantiva, o substituto, agindo em nome próprio, litiga em direito alheio, e, por isso, é parte no processo, com o direito de acção e de defesa;
f) A massa insolvente constitui um património autónomo distinto da pessoa jurídica da herdeira (interessada direta na partilha), pelo que tal massa insolvente não é sucessora da inventariada, carecendo de interesse direto na partilha e, logo, de legitimidade para requerer o inventário.
A jurisprudência das Relações tem vindo a seguir maioritariamente esta orientação (cf., por ex., Ac RL de 24/9/2020 (proc nº 31/20), Ac RC de 9/11/2021 ( proc nº 94/21), Ac RC de 10/5/2022 ( proc nº 775/2022), Ac RL de 28/5/2022 ( proc nº 5879/20), disponíveis em www dgsi.pt ).
A sentença da 1ª instância concluiu pela ilegitimidade activa da massa insolvente, argumentando da seguinte forma:
“Considerando a data do óbito da autora da herança (20-06-2006), a insolvente foi chamada à sucessão antes da sua insolvência (13-03-2018), o que significa que, a partir da declaração de insolvência, o quinhão hereditário da insolvente passou a integrar a massa insolvente, perdendo qualquer poder de disposição sobre o referido direito.
Esta integração de quinhão hereditário na massa insolvente, património de afetação por definição legal, não atribuiu àquela massa a qualidade de sucessor legal da inventariada.
Temos, pois, que o quinhão hereditário da insolvente na herança por óbito de AA, por fazer parte do seu património à data da declaração de insolvência, passou a integrar a massa insolvente.
Assim, o que passou a estar integrado na massa insolvente foi o direito sobre uma quotaparte da insolvente no património da herança da falecida AA.
Pelo facto de o quinhão hereditário da insolvente no património da herança da falecida AA, passar a estar integrado na massa insolvente, não faz desta interessada direta na partilha, de modo a ter legitimidade processual para requerer a abertura do processo de inventário.
O que está integrado na massa insolvente é o quinhão hereditário que a insolvente possui na herança da falecida, e não a sua qualidade sucessória em relação à mesma.
Interessada direta na partilha da herança da falecida seria a insolvente, por ser herdeira, e não a massa insolvente, pois, além de não ser sucessora da de cujus, não é diretamente beneficiada pela partilha (não é um interessado direto).
Isto posto, importa aferir, também, da legitimidade processual do administrador da insolvência para requerer a abertura de processo de inventário.
Como o insolvente não tem legitimidade para ser parte no processo de inventário, o administrador figurará como substituto processual do interessado insolvente (artigo 81.º, nº 4, do CIRE).
Como é consabido, este preceito alude a uma “representação” do insolvente, quando, em rigor, o administrador atua em juízo como parte, e não como representante do insolvente (que seria então a parte interessada). Trata-se de uma substituição processual do interessado insolvente.
Também na esteira do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (proc. n.º31/20.4...), datado de 24-09-2020, entendemos que na medida em que tal substituição processual não permite atribuir legitimidade ativa ao administrador de insolvência para requerer inventário por óbito da progenitora da insolvente. Assim será porque os direitos da massa insolvente recaem sobre o quinhão hereditário, e não sobre o preenchimento desse quinhão com certos e determinados bens.
Com efeito, a herança indivisa constitui uma universalidade de direito, com conteúdo próprio, sendo os herdeiros apenas titulares de um direito indivisível. Enquanto não é partilhada a herança, cada um dos herdeiros, incluindo a insolvente, não tem direitos sobre bens certos e determinados, nem um direito real sobre os bens em concreto, nem sequer sobre uma quota parte em cada um deles.
Donde se retira que o administrador de insolvência não tem legitimidade para requerer o inventário da herança.
Contudo, à luz do disposto no artigo 81.º, n.ºs 1 a 4 do CIRE terá legitimidade passiva para, no processo de inventário, ser requerido em substituição do interessado direto insolvente.
Concluindo, o administrador da insolvência, atuando em juízo como substituto processual da interessada insolvente, e não como seu representante, não é interessado direto na partilha (e nem a massa insolvente, representada pelo seu administrador).
A requerente nestes autos constitui um património autónomo distinto da pessoa jurídica da herdeira (interessada direta na partilha), pelo que tal massa insolvente não é sucessora da inventariada, carecendo de interesse direto na partilha e, logo, de legitimidade para requerer o inventário.”
No mesmo sentido foi proferido o acórdão do STJ de 21-03-2023, relativo ao processo 215/20.5T8MNC.G1.S1 – disponível em www.dgsi.pt
12.2. A segunda questão indaga se é justificada a distinção entre a faculdade de requerer a abertura do processo de inventário e a faculdade de intervir num processo de inventário cuja abertura tenha sido requerida por terceiros?
No sentido negativo, poder-se-ia dizer que o valor de um quinhão hereditário em si pode ser e é, quase sempre, distinto do valor de um quinhão hereditário concretamente preenchido. A pressuposição de que, para a massa insolvente, é mais ou menos indiferente com que bens é preenchido o quinhão e de que, por consequência, a massa insolvente não tem nenhum interesse em requerer a abertura do processo de inventário dá a impressão de ser algo de absolutamente irrealista — ainda que a consistência jurídica da posição da massa insolvente possa não ser afectada pela circunstância de o quinhão hereditário estar ou não preenchido, sempre será afectada a sua consistência prática. Se assim não fosse, como se explicaria que o administrador da insolvência tivesse legitimidade para intervir num processo de inventário cuja abertura tivesse sido requerida por terceiros?
Em sentido positivo, a justificação é dada pelo próprio legislador no já referido art.º 1085º do CPC, que constitui o ponto de partida e o limite do poder interpretativo e a que se poderiam acrescentar as justificações também aduzidas no Ac do STJ que vimos seguindo:
“Na verdade, como se sabe, em termos breves, segundo resulta do art.º 81, n.º 1, e 2 do CIRE, a declaração de insolvência priva o insolvente, por si, e nos casos em que tem uma posição ativa, dos poderes de administração e de disposição[14] dos bens integrantes da massa insolvente, abrangendo esta todo o património do devedor à data da declaração da insolvência, bem como os bens e os direitos que ele adquira na pendência do processo, com vista à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, n.º1, do art.º 46, também do CIRE.
Decorre do mencionado art.º 81, n.º4, do CIRE, que o administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos patrimoniais que interessem à insolvência, não se estendendo contudo à intervenção do devedor no âmbito do próprio processo de insolvência, seus incidentes e apensos, n.º 5, do mesmo preceito legal, porquanto estão em causa “interesses pessoais” do devedor/insolvente, e não dos credores, em função dos quais a intervenção do administrador de insolvência está orientada[15], mas que não são irrelevantes, em termos dos respetivos desfechos para a satisfação dos débitos de cuja titularidade se arrogam os credores, no processo de insolvência.
Assim, na articulação dos regimes enunciados, avulta que apontado o direito de exigir a partilha como direito pessoal, embora de carácter indubitavelmente patrimonial, o respetivo titular insolvente está impossibilitado de o exercer, não o podendo igualmente fazer o administrador da insolvência, face à indelével pessoalidade desse direito, em substituição seu titular, ele sim interessado direto na partilha.
Diga-se, porque estamos a falar de realidades diferentes que não se excluem, nem se contradizem, que nada obsta a que o administrador da insolvência intervenha no inventário, por da herança a partilhar fazer parte o quinhão hereditário, apreendido para a massa insolvente, não só na aproximação dos referenciados interessados secundários, para viabilizar o efeito útil da partilha, mas também na defesa dos credores da insolvência, salvaguardando no respetivo decurso os respetivos interesses.
Não se mostrando que a restrição apontada, não sanável pela substituição do administrador da insolvência contenda de forma muito mais gravosa do que as demais decorrentes da declaração de insolvência para o devedor afetado por essa declaração.
Importa ainda dar nota que num possível retardamento da liquidação do património do insolvente perante a existência de um quinhão hereditário, não traduzido em bens reais que pudessem ser mais rapidamente vendidos, certo é que embora estimáveis e atendíveis as razões de celeridade, não devem as mesmas prostergar os normativos aplicáveis.
Acresce que a abertura dum inventário para partilha de uma herança, mesmo tendo em conta as alterações operadas pela Lei n.º 117/2019, de 13.09, no estabelecimento de um novo paradigma com vista a uma maior eficácia e rapidez[16], não se traduza, de modo seguro, num real aceleramento nas operações de liquidação, em defesa dos interesses dos credores da insolvência.”
Assim, em sentido positivo, poder-se-ia dizer que a justificação reside no seguinte: a partir do momento em que ocorre a abertura do processo de inventário, ainda que o administrador da insolvência vise a protecção do direito patrimonial do insolvente – que se reporta ao quinhão hereditário – e não aos bens concretos que o venham a compor - passa a ser fundamental a defesa da composição desse quinhão por via de definição dos bens que o venham a integrar.
Até esse momento a massa insolvente apenas tinha direitos que recaem sobre o quinhão hereditário, não sobre o preenchimento desse quinhão com determinados bens e não haveria perigos a evitar que surgem com a abertura do inventário.
Em sentido de negar ao administrador da insolvência o direito a requerer a abertura do inventário para definição dos bens que integram o quinhão milita o argumento de que existem interesses dos demais herdeiros, em função dos quais o processo de inventário foi disposto, com vista à cessação do regime vigente e definição de bens concretos que compõem cada quinhão, sendo a eles quem incumbe decidir se querem alterar a situação ou continuar com o regime que têm, o que em nada afecta a posição do credor do insolvente, já que o seu direito é sobre o quinhão hereditário.
Acompanha-se assim a conclusão também constante do mais recente acórdão deste STJ sobre a mesma questão (STJ, de 9.7.2024, proc. 1013/23.0T8GDM.P1.S1 (Maria Amélia) – ainda não disponível na base de dados Dgsi.pt):
“Em suma: nos termos do artigo 81º/4 CIRE, o administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência, mas aí não se inclui a possibilidade de poder interpor processo de inventário em que a insolvente seja interessada direta na qualidade de herdeira.”
12.3. Finalmente, pode questionar-se se a fundamentação do acórdão da 6.ª secção do STJ para que se remete dá lugar a contradições que só com dificuldade se poderão aceitar: não parece que faça algum sentido que, pelo facto de um herdeiro ter sido declarado insolvente, a abertura do processo de inventário fique dependente da iniciativa de terceiros. Os excertos transcritos dos acórdão citados sugerem que nem o herdeiro insolvente, nem o administrador da insolvência podem requerer a abertura do processo de inventário. O herdeiro não poderia fazê-lo, ainda que fosse interessado directo, por ter sido declarado insolvente e o administrador da insolvência não poderia fazê-lo, por não ser interessado directo e não ter legitimidade para a requerer.
Para contraditar este argumento impõe-se repetir: o interessado direta insolvente não tem legitimidade para requerer ou ser requerida no processo de inventário, mas se requerido em processo de inventário, virá a ser representada pelo administrador da insolvência, apenas, pois, do lado passivo, pelos motivos já expostos sobre a determinação da lei, função do inventário, finalidades da insolvência e poderes do administrador. Na verdade, com a declaração de insolvência, o insolvente, por si ou pelos seus administradores, fica imediatamente privado dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência (artigo 81º/1, do CIRE).
12.4. Uma última dúvida reside no seguinte: independentemente de tudo isto, não parece que faça algum sentido que se distinga a legitimidade para requerer a abertura e a legitimidade para intervir no processo de inventário. Os interesses que explicam a legitimidade para intervir são exactamente os interesses que justificariam a legitimidade para requerer a abertura do processo.
Para contraditar este argumento apenas se pode dizer que foi a opção do legislador e ela dita o resultado a aplicar. Maiores detalhes estão já expressos no contraditório às restantes questões supra elencadas.
13. A resposta às questões formuladas no presente recurso está em conformidade com a orientação deste STJ no mesmo sentido, conforme os seguintes acórdãos:
- STJ, de 21.03.23, proferido no processo 215/20.5T8MNC.G1.S1– disponível em www.dgsi.pt,
- STJ, de 16.11.2023, processo n.º 907/22.4T8MTS.P1.S1 – disponível em www.dgsi.pt,
- STJ, de 9.7.2024, proc. 1013/23.0T8GDM.P1.S1 – ainda não disponível na base de dados Dgsi.pt
Para fundamentar essa resposta, consideram-se aqui os argumentos transcritos supra, retirados dos dois acórdãos do STJ que recentemente se ocuparam da problemática, que aqui se dão por reproduzidos, quer para a questão da interpretação da lei, quer para afastar a invocada inconstitucionalidade.
III. Decisão
Pelos fundamentos indicados, é negada a revista e confirmado o acórdão recorrido.
Custas pela requerente – Massa insolvente – sem prejuízo do apoio judiciário.
Lisboa, 19 de Setembro de 2024
Fátima Gomes (relatora)
Nuno Pinto Oliveira, com declaração de voto anexa
Ferreira Lopes
DECLARAÇÃO DE VOTO
Nuno Manuel Pinto Oliveira