I. É admissível revista do acórdão da Relação interposta pelo Conservador do Registo Predial, nas situações tipificadas no artigo 147º, nº5, do Código do Registo Predial.
II. Tratando-se embora de norma especial, a sua aplicação deverá concretizar-se a par do regime geral de revista consagrado no Código de Processo Civil, seja pelo elemento histórico, ou, pelo elemento sistemático.
I. Relatório
1. Interposto recurso do acto da Senhora Conservadora do Registo Predial de ... que indeferiu o requerimento do Clube Desportivo ..., pedindo o cancelamento do registo e a eliminação da cláusula de reversão, ínsita na inscrição de aquisição a seu favor, a coberto da apresentação .53 de .../.../2019, sobre o prédio ..44/......03, veio o tribunal a proferir sentença que julgou o recurso totalmente procedente e revogou o acto impugnado.
2. Inconformados, o Magistrado do Ministério Público e, a Senhora Conservadora, interpuseram recurso de apelação, pugnando ambos e cada um deles, em síntese, pela revogação do julgado e a subsistência do indeferimento liminar do requerido cancelamento do registo da cláusula de reversão em apreço.
4. Em apreciação do requerimento de interposição, a Senhora Juiz Desembargadora relatora não admitiu a revista, concluindo «(…) o regime jurídico que serviu de suporte às decisões proferidas em ambas as instâncias é exactamente o mesmo, não se vislumbrando o tratamento de alguma questão que possa ser entendida como divergente nos termos do enquadramento jurídico que foi efectuado, sendo que as considerações feitas a propósito da doação modal (arts 940° e 963° n° 1 do Código Civil), apenas serviram para reforçar a argumentação essencial que culminou com sentido decisório do acórdão.»
5. Dissentindo, a Senhora Conservadora reclamou para este Supremo Tribunal à luz da faculdade prevista no artigo 643.º, nº1, do CPC.
Na motivação, argumenta, em suma, que as instâncias decidiram com uma diferente fundamentação jurídica, e extraiu as conclusões que se transcrevem na parte que releva para decidir na reclamação:
«(…) 12ª Embora a Primeira Instância e o Tribunal da Relação tenham considerado que a deliberação da Assembleia Municipal de autorizar a renúncia à cláusula de reversão carecia de um ato posterior da Câmara Municipal, considerando o registo nulo e o(s) recurso(s) interposto(s) pela Conservadora improcedente(s), certo é que decidiram com uma diferente fundamentação jurídica, o que permite considerar o presente recurso como revista normal.
13ª - O Acórdão da Relação do Porto fundamentou a sua decisão de confirmar a sentença recorrida, nos artigos 25°, al. I) e 33°, n° 1, al. g), com aplicação extensiva dos ais. g) ou h) do art. 33° do Regime Jurídico das Autarquias Locais, o que não foi considerado na primeira instância.
14 ª O Tribunal de Primeira Instância, ao invés, fundamentou a sua decisão com base nos arts. 25°, al. q) e 33°, al. ccc) do Regime Jurídico das Autarquias Locais.
15ª O acórdão da Relação do Porto socorre-se da al. i) do art. 25° e da al. g) do n° 1 do art 33° do RJAL, ao contrário do que sucedera com o Tribunal da Primeira Instância, como é manifesto.
16ª A sentença e o acórdão recorridos fundamentaram as suas decisões em fundamentos jurídicos distintos sendo, em consequência, admissível o recurso de revista normal.
(…) 22 ª deve ter-se por afastada a dupla conforme, prevista no art° 671° n° 3 do Código de Processo Civil, pelos motivos já referidos, que devem ser dados por reproduzidos.
23 ª A revista deverá, assim, ser admitida como normal.
« (….) Não se mostra controvertido que tal como resulta do descritivo dos pontos 1 e 2 a sentença de primeiro grau e o acórdão da Relação ( em unanimidade do colégio) convergiram no sentido decisório final, i.e, revogaram a decisão de indeferimento da Senhora Conservadora do Registo Predial da pretensão formulada pelo Clube Desportivo ..., e consequentemente, procedente o pedido de cancelamento do registo da cláusula de reversão lavrado, em relação ao prédio descrito na Conservatória do Registo Predial da ..., sob o n.º ..44, na sequência da Ap. .35 de 2019/12/04.
A reclamante, apesar da proclamação que a sentença e, o acórdão apenas convergem no sentido da revogação da decisão da Conservadora, revelou-se parca nos fundamentos em que baseia tal conclusão (Conclusão 12º e 13ª).
Apreciando, é possível antecipar que não lhe assiste razão, pois que, na verdade, conforme judiciosamente explanou a Senhora Desembargadora relatora, não se verifica descaracterização da “dupla conforme “dos julgados vindos das instâncias.
Limitaremos, por isso e, em economia de meios, a uma breve explicitação, remetendo-nos no demais para a decisão reclamada, em particular no destaque dos excertos das decisões que ilustram a dupla conforme.
É pacífico que a figura da “dupla conforme” - nº. 3 do artº 671º. do CPC- impeditiva do recurso de revista normal, pressupõe que haja um acórdão da Relação que confirme a decisão (recorrida) da 1ª. instância, e que essa confirmação ocorra sem qualquer voto de vencido e sem uma fundamentação essencialmente diferente.
Tratando-se de um conceito legal indeterminado - “fundamentação essencialmente diferente” - a sua densificação vem sendo no sentido, de entender que se traduz na solução jurídica prevalecente no acórdão da Relação, sem incursão inovatória, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão de primeiro grau.
O que significa desconsiderar quaisquer discrepâncias marginais, secundárias ou periféricas, que não representem efetivamente um percurso jurídico diverso, bem como o simples reforço da argumentação na mesma solução alcançada, podendo até confluir alteração da matéria de facto sem efeito na decisão recorrida.
Por último, sublinhar que o acórdão da Relação ao aludir ao regime legal da doação modal, fê-lo enquanto mera consideração obiter dictum, para reforço da argumentação e o fundado da decisão da nulidade do registo da cláusula de reversão, que assentou na insuficiência do título base do facto levado a registo.
Na análise comparativa do percurso argumentativo das decisões em confronto, resulta, sem sobressalto, apesar do maior desenvolvimento da argumentação expendida no acórdão, não implica que o raciocínio jurídico-subsuntivo seja “fundamentalmente diverso” outrossim, contata-se que a fundamentação propugnada pelas instâncias é, na sua essência, a mesma.
Em síntese útil- a sentença e o acórdão consideraram que sendo à Câmara Municipal que compete a declaração de renúncia, inexiste título suficiente para o registo efectuado, que por tal como requerido, é nulo.
Pelo exposto, indefere-se a reclamação.
A reclamante goza de isenção legal de custas.»
7. A reclamante pede agora que a Conferência se pronuncie adrede -cfr. artigo 652º, nº3º, ex vi 643º, nº4, do CPC- remetendo para as suas alegações de recurso.
II. Fundamentação
A. Factos
A factualidade e ocorrências processuais que importam à decisão constam do relatório, sem prejuízo da compulsa das peças dos autos.
B. Do mérito da reclamação
A decisão singular, salvo o merecido respeito, supomos que concita as razões que levaram à improcedência da reclamação, ou por outras palavras, a sentença e, o acórdão da Relação não assentaram em “fundamentos substancialmente diferentes”, ocorrendo, pois, dupla conforme e, por conseguinte, verificado o obstáculo legal ao conhecimento do objecto da revista pelo STJ -artigo 671º, 3 do CPC.
Em esforço de melhor esclarecimento e compreensão.
Estamos perante o recurso de revista interposto pela Senhora Conservadora do Registo Predial, tendo por objecto o acórdão da Relação do Porto que manteve o julgado de primeira instância, revogando o seu Despacho que indeferiu o cancelamento do registo indicado no ponto II.
De acordo com o artigo 147º, nº5, do Código do Registo Predial, sendo a matéria impugnada do foro predial, para além dos casos em que é sempre admissível recurso - artigo 629º, nº2, do CPC- que ao caso não acode - é admissível recurso do acórdão da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto pelo Conservador do Registo Predial, nas situações nele tipificadas – (…) 5.Para além dos casos em que é sempre admissível recurso, do acórdão da Relação cabe, ainda, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça nos casos seguintes:
a) Quando esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;
b) Quando estejam em causa interesses de particular relevância social;
c) Quando o acórdão da Relação esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme. (..)” 1
Preceito especial que corresponde ipsis verbis às situações de revista excecional previstas no artigo 672, nº2, a) b) e c) do CPC.
De maneira que, seguindo as regras da interpretação da lei -artigo 9º do CC- a aplicação daquele preceito do CRP, deverá concretizar-se a par do regime geral do CPC, seja pelo elemento histórico, ou pelo elemento sistemático.
No requerimento trazido à Conferência a reclamante não acrescentou argumento ou elemento que extrapole o sentido das conclusões de recurso – 12ª, 13ª, 14ª acima transcritas que exija outra apreciação.
Por último.
Quanto ao requerimento recursivo e subsidiário de revista excecional, suportado no 672º, nº1, al) a do CPC, não constitui objecto da presente reclamação; a matéria foi expressamente excluída do despacho de rejeição proferido pela Senhora Desembargadora relatora, e de igual, não incide a reclamação apresentada pela Senhora Conservadora a este tribunal, ou o pedido de Conferência.2
• O regime jurídico que serviu de suporte às decisões proferidas em ambas as instâncias é o mesmo, sendo que a consideração feita a propósito do tópico da doação modal no acórdão da Relação traduz mero obiter dictum no sentido decisório de confirmação da sentença.
• Não se observando “fundamentação essencialmente diferente “não é admissível a revista - artigo 147º, nº5 do Código do Registo Predial e artigo 671º, nº3 do CPC.
III. Decisão
Face ao exposto, delibera-se indeferir a reclamação, mantendo a decisão impugnada de não admissão da revista.
A reclamante está isenta de custas.
Lisboa, 19.09.2024
Isabel Salgado (relatora)
Emídio Francisco Santos
Ana Paula Lobo
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1. Preceito, cuja última alteração data de 2008 e, portanto, anterior à entrada em vigor do NCPC.