I. Os requisitos da impugnação paulina são cumulativos (artº 610º CC).
II. A doação em causa constitui um negócio gratuito pelo que é inexigível o requisito da má-fé; o crédito do Banco/A é anterior aquela doação; o 1º R (doador) possuía bens penhoráveis de igual ou maior valor, aquando da acto impugnado.
III. Tendo aquele R provado possuir outros bens de valor superior, não deve a presente acção ser atendida.
ACORDAM NESTE SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (2ª SECÇÃO)
Banco Comercial Português, SA – Sociedade Aberta deduziu acção declarativa contra, AA, BB, CC e DD, todos completamente identificados nos autos.
Pedindo que: se julgue procedente a impugnação pauliana da suposta doação celebrada pelo 1º réu/R, enquanto doador e pelos 2º, 3º e 4º réus/RR, enquanto donatários, e consequentemente:
“1) Seja reconhecido o direito de crédito do autor sobre o 1.º réu, no valor global de €75.484,21, acrescido de juros e respetivo imposto de selo, às taxas legais em vigor, até efetivo e integral pagamento.
2) Sejam condenados os 2º, 3º e 4º réus a restituir, de acordo com o artigo 616º, nº 1 do Código Civil, ao património do 1º réu, o imóvel que, mais à frente se descreve, apenas em garantia do cumprimento do direito de crédito reconhecido ao autor e referido sob o nº 1 deste pedido: prédio urbano composto de casa de rés-do-chão, anexos e logradouro, sito no lugar de ..., atualmente designado Rua ..., n.º 231, descrito na CRP de ... sob o n.º .37 da freguesia de ..., inscrito na matriz sob o arrigo ..52.
- No caso de não ser julgada procedente a impugnação pauliana – que corresponde ao pedido principal – requer, subsidiariamente, que seja declarada a nulidade, por simulação absoluta, da suposta doação dos imóveis descritos, reconhecendo-se que pertence ao 1.º réu.”
AA/1º R contestou, alegando que:
- Não subscreveu, pelo seu próprio punho a “Remessa Documentária” que esteve na base do financiamento cujo incumprimento levou ao preenchimento da livrança, pelo que não pode ser responsabilizado pela dívida.
- Aquando da realização do negócio impugnado, não existia qualquer crédito vencido, nem a expectativa de qualquer incumprimento.
- Os demais avalistas têm património suficiente para liquidar a dívida, o mesmo sucedendo com o próprio contestante, estando garantido pelo património de todos a satisfação do eventual crédito de que a autora se arroga titular.
- O negócio celebrado corresponde à vontade dos declarantes.
Contestaram também, os demais RR, sustentando que:
- Não houve qualquer divergência entre a vontade real e a declarada no negócio de doação que o pai lhes fez, e desconheciam a existência de qualquer dívida do mesmo, sendo que aquele tinha e tem meios para o pagamento.
Em resposta, o autor/A invocou a existência de caso julgado relativamente à existência do crédito, uma vez que intentou execução contra o réu/R AA, contra o subscritor da livrança “P..., Lda.” e contra os demais avalistas, no âmbito da qual o aqui R AA apresentou embargos de executado nos quais invocou a mesma excepção de não ter assinado a remessa documentária, tendo tais embargos sido julgados improcedentes, por sentença transitada em julgado;
- Impugnou a existência de património dos devedores suficiente para pagamento do crédito, conforme decorre da execução que contra eles intentou;
Aquando do saneamento da causa foi conhecida a excepção de caso julgado no que respeita à existência do crédito, tendo a mesma sido julgada procedente, pelo que foi declarado procedente o primeiro pedido formulado pelo autor, relativo ao reconhecimento do seu crédito e os autos prosseguiram para a análise dos restantes pressupostos da impugnação pauliana.
Realizada a audiência de julgamento foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente (sem prejuízo do crédito reconhecido em despacho saneador), com a consequente absolvição dos réus do pedido.
O autor/A interpôs recurso para Relação onde foi proferido acórdão do seguinte teor – parte decisória:
“-…-
- Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida, ainda que com diferente fundamentação.
Custas pelo apelante.
-…-”
O Banco/A recorreu de revista, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
1 - O A/BCP solicitou que fosse aditado à matéria de facto o seguinte: “À data da doação, o réu AA havia prestado um aval para garantia das responsabilidades assumidas pela sociedade J..., Lda. junto do banco autor, que ascendiam a pelo menos € 300.000,00”.
2 - O Tribunal a quo recusou adicionar este facto à matéria de facto existente, argumentando que não era relevante para o caso em questão.
3 - A impugnação pauliana está sujeita a requisitos específicos, um dos quais é a demonstração de impossibilidade ou agravamento na satisfação integral do crédito do autor, resultante do equilíbrio entre as dívidas do devedor e os bens penhoráveis disponíveis.
4 - É crucial considerar todas as responsabilidades assumidas pelo réu perante o autor, incluindo o aval para a sociedade J..., Lda., uma vez que isso afecta diretamente o passivo global do réu.
5 - O facto de o réu não estar ciente do alcance dos avales prestados não é relevante, uma vez que a análise é objetiva e depende da comparação entre o passivo e o ativo após o ato impugnado.
6 - É necessário avaliar o património global do réu após o acto, considerando o valor dos bens conhecidos do réu em relação às suas dívidas, o que inclui o montante dos avales prestados.
7 - A apreciação da impugnação é um acto útil e relevante, e que a procedência da matéria de facto impugnada tem a virtualidade de poder conduzir à procedência da presente ação.
8 - Ao não conhecer a referida impugnação, o douto acórdão violou o disposto nos artigos 640.º e 641.º do CPC.
9 - E tendo o recorrente cumprido os ónus de impugnação sem que o Tribunal a quo tenha conhecido o aditamento à matéria de facto solicitado, ignorando essa impugnação, incorreu o mesmo em omissão de pronúncia, sendo o acórdão recorrido nulo, nessa parte, nos termos do artigo 615.º do CPC, por força do artigo 666.º do CPC.
10 - Deste modo, impõe-se a revogação do douto acórdão e a substituição por outro e se ordene a reapreciação da referida impugnação da matéria de facto e a final se julgue o mérito da causa em conformidade com os factos provados e assentes.
11 - Sem prescindir, a impossibilidade ou agravamento na satisfação integral do crédito não corresponde à situação de insolvência do devedor após o acto impugnado, mas sim à dificuldade prática de executar outros bens do devedor.
12 - Para aferir se se encontra verificada impossibilidade ou agravamento na satisfação integral do crédito é necessário efectuar uma análise do património do devedor após o acto impugnado.
13 - Após o acto impugnado, o réu possuía apenas participações nas empresas “J..., Lda.” e “P..., Lda.”, das quais havia prestado avales para garantir as dívidas dessas empresas.
14 - O valor das participações está dependente da viabilidade das empresas, pelo que na prática o credor ficou numa clara impossibilidade prática de obter a satisfação do seu crédito.
15 - Assim, existe uma ligação direta entre o accionamento do aval prestado e valor das respetivas participações, ou seja, quando o aval é accionado menos valor terá as respetivas participações.
16 - Acresce que é raro encontrar interessados na compra judicial de quotas de empresas, especialmente quando a empresa está em execução, como no caso de serem executadas livranças subscritas pelas sociedades com aval dos seus sócios.
17 - Quando do acto impugnado, o Réu AA adquiriu a totalidade das participações das “J..., Lda.” e outra na sociedade comercial “P..., Lda.” sem qualquer custo.
18 - A retirada de todo o património imobiliário da esfera patrimonial do Réu impediu ou dificultou objetivamente os seus credores de futuramente virem a satisfazer os seus créditos.
Conclui pedindo que seja ordenada a reapreciação da impugnação da matéria de facto nos termos solicitados e a final se julgue procedente a acção, nos termos peticionados.
Contra-alegou o 1º R, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
1. Conforme sustenta o Recorrente no seu requerimento de interposição do recurso, ancora-se o mesmo na previsão estabelecida no n.º 3 do artº 674º do CPC.
2. Ora, a excepção ao princípio da dupla conformidade decisória exige, assim, o preenchimento de dois requisitos: o acórdão da Relação confirme, com voto de vencido e com fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida em 1.ª instância.
3. No presente caso, nenhuma das condições se mostra verificada, porquanto, se por um lado, não se verificou qualquer voto de vencido no Acórdão recorrido, por outro, a fundamentação apresentada no sobredito aresto não é essencialmente diferente.
4. E na interpretação da conditio “fundamentação essencialmente diferente”, remetemos para a sábia, explicita e indubitável descrição apresentada no supratranscrito Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão proferido a 02.03.2021, no decurso dos autos de processo n.º 1035/10.0TYLSB-B.L1.S1, onde se refere que, se a Relação confirma o resultados decisórios alcançados sem desvio do caminho interpretativo, ainda que respondendo, com adição de fundamentos, desde que tal pronúncia não se estribe em inovações quanto ao enquadramento jurídico-normativo diverso daquele em que assentara a sentença proferida em 1ª Instância.
5. O que é manifestamente o que sucede in casu, isto é, a confirmação, pelo Acórdão da Relação, da decisão da 1.ª Instância, ainda que com um incremento de argumentos.
6. Pelo que, dúvidas não podem subsistir de que, é o presente Recurso de Revista apresentado pela Recorrente legalmente inadmissível, o que se impõe seja reconhecido e declarado com todos os legais efeitos.
SEM PRESCINDIR,
7. Carece de qualquer fundamento a invocada nulidade, por omissão de pronúncia, da impugnação da decisão sobre a matéria de fato.
8. Aliás, em bom rigor, a própria Recorrente reconhece, ainda que implicitamente, que inexiste qualquer omissão de pronúncia.
9. Veja-se que, se por um lado, nas alegações de recurso se sustenta que o autor recorrente “BCP”, na sua apelação, requereu que fosse aditado o seguinte facto provado: “À data da doação, o réu havia prestado um aval para garantia das responsabilidades assumidas pela sociedade J..., Lda. junto do banco autor, que ascendiam a pelo menos € 300.000,00”.
10. Por outro lado, reconhece que, o Tribunal a quo considerou que tal facto não era relevante para os presentes autos.
11. Ou seja, o Recorrente reconhece – e não poderia deixar de reconhecer, porque a isso se opõe a Verdade – que o Acórdão recorrido pronuncia-se integralmente sobre a impugnação da matéria de facto, seja quanto aos factos que a Recorrente, em Apelação, entende que deveriam ser dados por provados, seja quanto aos factos que a Recorrente, em Apelação, pretendia ver aditados.
12. Tudo, aliás, como melhor se comprova com o excerto do sobredito aresto aqui Recorrido que, com a devida vénia respeitadora, passamos a transcrever: “Pretende também o apelante que seja aditado à matéria de facto o seguinte facto provado: À data da doação, o réu havia prestado um aval para garantia das responsabilidades assumidas pela sociedade J..., Lda. junto do banco autor, que ascendiam a pelo menos € 300.000,00. Ora, salvo o devido respeito, tal facto não interessa aos presentes autos em que apenas vem peticionado que se reconheça o direito de crédito do autor sobre o 1.º réu, no valor global de € 75.484,21, acrescido de juros e que os réus sejam condenados a restituir ao património do 1.º réu o imóvel, apenas em garantia do cumprimento do direito de crédito reconhecido ao autor, no valor de € 75.484,21. Não foi, aliás, aquele facto alegado na petição inicial pelo autor, nem na execução que serve de suporte a esta impugnação pauliana. Acresce que o próprio conhecimento por parte do réu do valor total da dívida ao Banco por virtude de avales prestados – a que o apelante faz alusão -, é um conhecimento posterior a todos estes factos, pois, segundo o próprio referiu, no seu depoimento, «na altura não tinha ideia, porque quem tratava da parte financeira não era eu». Daí que improceda o pedido de aditamento à matéria de facto.”
13. É, pois, inequívoco que o Acórdão da Relação se pronunciou integralmente sobre todas as questões cuja apreciação lhe foi suscitada, pelo que, não se verifica in casu qualquer nulidade, mormente a consagrada nos arts. 615.º e 666.º do CPC, razão pela qual, deve improceder a invocada nulidade, com todos os legais efeitos.
14. Por fim, não se pode deixar de vincar que, da prova produzida, resulta que, a Recorrente arroga-se titular de um crédito sobre o Recorrido no montante de € 74.049,48, que se venceu a 14.09.2020.
15. Não obstante a realização da doação aqui impugnada, a 06.03.2019, é apodítico que o Recorrido continuou titular de participações sociais nas sociedades comerciais J..., Lda. e P..., Lda., as quais, em 31.03.2019, apresentavam um valor de mercado de € 116.944,9510 - J..., Lda. – e € 8. 148,11 – P..., Lda.
16. Ora, o valor das participações de que o Recorrido era titular no final do mês em que se realizou o acto aqui impugnado era manifestamente superior ao valor do direito de crédito invocado.
17. Pelo que, também por aqui se verifica inelutavelmente, que não obstante a realização da doação aqui impugnada, a verdade é que o Recorrido disponha ainda de património que lhe permitia responder à eventual responsabilização a que fosse chamado, nos termos do art. 601.º do Código Civil.
18. Daí que, jamais se possa conceber, com recurso à prova produzida in casu, que com a realização da doação impugnada, o Recorrido tenha impossibilitado ou agravado a dificuldade do credor ver satisfeito o seu crédito.
19. Pelo que, não podia a decisão a quo decidir de uma outra forma que não fosse julgar improcedente o pedido principal formulado pela Recorrente e vendo confirmado, através do Acórdão recorrido, tal entendimento.
20. Neste sentido, dúvidas não podem subsistir de que a decisão a quo fez a devida ponderação da prova produzida, identificando a factualidade que da mesma emerge, subsumindo-a ao direito que lhe é aplicável.
21. Destarte, deve a decisão a quo manter-se nos precisos termos, assim, se respeitando a verdade e o direito, realizando-se justiça.
22. Têm as presentes contra-alegações suporte legal no art. 638.º do CPC, arts. 601.º e 610.º e ss do CC e, bem assim, em todas as demais disposições legais que considerem aplicáveis in casu.
Nestes termos e nos melhores de Direito que V/Exas. proficuamente suprirão, deve o recurso interposto pela Recorrente ser julgado legalmente inadmissível, com todos os legais efeitos.
Caso assim não se entenda, deve o recurso interposto pela Recorrente ser julgado totalmente improcedente, por não provado, mantendo-se a decisão a quo nos seus precisos termos.
DA ADMISSIBILIDADE DO RECURSO PARA ESTE SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA/STJ
- O recurso foi devidamente admitido como sendo de revista – artº 671º nº 1 do CPC.
APRECIANDO E DECIDINDO
Thema decidendum
Em função das conclusões do recurso, temos que:
- O recorrente/Banco/A pugna pela procedência da suscitada impugnação pauliana da doação em causa, conhecida que a alegada omissão de pronúncia, e o recorrido/1º R levantou a questão da existência de “dupla conforme”, à luz do artº 674º nº 3 do CPC, impeditiva do conhecimento do recurso.
A) DOS FACTOS
Provados:
1. O autor possui uma livrança no valor de € 74.049,48, subscrita pela sociedade “P..., Lda.” e avalizada por EE, FF e AA, emitida em 29.05.2008, e com vencimento em 14.09.2020
2. Apresentada a pagamento na data do seu vencimento, a livrança em questão não foi paga então, nem posteriormente até hoje, por nenhum dos subscritores, nomeadamente pelo primeiro réu.
3. Em 9.11.2020 a livrança serviu de título na acção executiva instaurada contra o ora réu AA, contra a sociedade “P..., Lda..” e contra os avalistas EE e FF, acção essa que corre termos sob o nº 3384/20.0..., no Juízo de Execução ....
4. Actualmente, não são conhecidos bens imóveis nem móveis à sociedade “P..., Lda.”, nem aos avalistas, que permitam liquidar o crédito mencionado em 1).
5. Por escritura pública datada de 6-3-2019, o réu AA declarou doar aos seus filhos BB, CC e DD, que declararam aceitar a doação, os seguinte bens: a. fracção autónoma designada pelas letras “JJ”, correspondente a uma habitação no quinto andar e terraço, garagem e arrumos na subcave, com acesso independente e direito de uso exclusivo de terraço de cobertura do segundo corpo e dependência coberta nela existente, que faz parte do prédio urbano sito na Rua ..., descrito na Conservatória 5-15 do Registo Predial de ... sob o n.º .76, da freguesia de ..., inscrito na matriz sob o artigo ..55; b. prédio urbano composto de casa de rés-do-chão, anexos e logradouro, sito no Lugar de ..., atualmente designado Rua ..., nº 231, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º .37, da freguesia de ..., inscrito na matriz sob o artigo ..52.
6. O prédio referido em 5-b) foi avaliado pela autoridade tributária em € 73.557,58, no ano de 2017.
7. A propriedade dos prédios referidos em 5) mostra-se inscrita em nome dos ora réus BB, CC e DD, desde 2019.04.02.
8. A sociedade comercial “J..., Lda.” tem como único sócio e gerente o ora réu AA.
9. A sociedade comercial “P..., Lda.” tem como único gerente o ora réu AA.
10. A participação social de AA na sociedade comercial “J..., Lda.” em 31.03.2019 era de € 116.944,95.
11. A participação social de AA na sociedade comercial “P..., Lda.” em 31.03.2019 era de € 8. 148,18.
Não provados:
a. Que, aquando do negócio referido em 5), o réu AA tivesse perfeito conhecimento de que, ao retirar da sua esfera patrimonial os imóveis referidos, estava a impedir que os credores vissem satisfeitos os seus créditos, actuando com esse objectivo.
b. Que, aquando do negócio referido em 5), o réu AA tivesse actuado com o propósito de dificultar ao ora autor o recebimento do seu crédito, disso estando também cientes os réus BB, CC e DD.
c. Que, nessa altura, o réu AA, na qualidade de gerente da sociedade “P..., Lda.”, soubesse que esta não tinha condições para cumprir com as obrigações assumidas junto do autor.
d. Que aquando do referido em 5), AA não tenha querido doar, e BB, CC e DD não tenham querido aceitar a doação dos bens, tendo todos actuado com o propósito de criar a aparência de que os mesmos já não pertenciam ao primeiro e assim obstar à acção dos credores.
B) DO DIREITO
Como procurámos sintetizar acima – A) – o recorrente Banco/A “pugna pela procedência da suscitada impugnação pauliana da doação em causa, conhecida que a alegada omissão de pronúncia, e o recorrido/1º R levantou a questão da existência de “dupla conforme”, à luz do artº 674º nº 3 do CPC, impeditiva do conhecimento do recurso.
Antes de entrarmos na questão de fundo - impugnação pauliana - há que apreciar as questões prévias levantadas pelos recorrente e recorrido.
1ª questão prévia: verifica-se, ou não, uma situação de dupla conforme?
Dispõe o artº 671º nº 3 do CPC que:
- Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível (artº 629 nº 2) – inaplicável in casu - não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1ª Instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte (revista excepcional).
A dupla conforme que foi introduzida com a Reforma de 2007 tendo em vista “a racionalização do acesso ao STJ, acentuando-se a sua função de orientação e uniformização da jurisprudência, procurando dar resposta à notória tendência de crescimento dos recursos cíveis” – vide, Preâmbulo do DL 303/2007, de 24-8.
A reforma de 2013 veio acrescentar à unanimidade do acórdão confirmatório que a fundamentação seja no essencial idêntica.
A doutrina e a jurisprudência têm vindo a densificar o conceito geral de não aplicação pela Relação de “fundamentação essencialmente diferente”.
Precisando, para esse efeito, “deve-se desconsiderar discrepâncias marginais, secundárias, periféricas, que não representem efetivamente um percurso jurídico diverso” – vide, Abrantes Geraldes, in “Recursos em Processo Civil”, 7ª edição actualizada, em particular, pags. 424 e 425.
Segundo o Acordão do STJ, de 28-5-2015: “só se pode considerar existente uma fundamentação essencialmente diferente quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado (…) em interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada (…) se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1ª Instância.”- publicitado in, www.dgsi.pt.
Escreveu-se no acórdão recorrido: “Entende o apelante que a sentença padece de erro porque considera essencial a prova do estado subjetivo dos réus para a procedência da ação e, no caso, sendo o ato a impugnar uma doação, que corresponde a um ato gratuito, é irrelevante a boa ou má-fé dos seus outorgantes aquando da sua celebração. Tem razão o apelante, não parecendo adequada a conclusão retirada na sentença sob recurso, ainda mais quando aí se sublinha que é condição da impugnação que o ato tenha sido realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor (já veremos que o crédito é anterior à data do ato impugnado, não sendo de aplicar este requisito)”.
Como se constata, apesar do instituto jurídico ser o mesmo a qualificação jurídica feita pela Relação é substancialmente diversa da efectuada pela 1ª Instância.
Explicitando, a Relação, diversamente da 1ª Instância (negócio oneroso), qualificou a doação como sendo um negócio gratuito, o que torna inexigível o requisito da má fé.
Isto porque, os requisitos da impugnação pauliana, em termos subjectivo e objectivo são distintos, conforme se esteja na presença, dum negócio gratuito ou oneroso, ou o crédito seja anterior ou posterior ao acto impugnado.
Inexiste, pois, dupla conforme.
2ª questão prévia: incorreu, ou não, o acórdão recorrido em omissão de pronúncia/nulidade, nos termos do artº 615º do CPC?
Segundo o recorrente/Banco o acórdão recorrido padece de omissão de pronúncia ao não aditar aos factos provados, determinada factualidade relacionada com a condição de avalista e garante da dívida reconhecida ao mesmo recorrente.
O acórdão recorrido pronunciou-se – o que afasta, desde logo, a arguida nulidade/ omissão de pronúncia - sobre essa pretensão do recorrente, do seguinte modo:
“(…)
O apelante impugna a decisão de facto.
Considera que deveriam ser dados como provados os factos descritos nas alíneas a), b) e d) dos factos não provados, sustentando-se, essencialmente no depoimento de parte do réu e no depoimento da testemunha GG, que era contabilista de ambas as sociedades. (…) Contudo, considerando toda a prova produzida nos autos, podemos, desde já, adiantar que não concordamos com o apelante. É verdade que o réu aceitou que, por força da doação que fez a seus filhos deixou de ser proprietário de qualquer outro património imobiliário, bem como aceitou que tinha perfeito conhecimento do aval prestado e do valor atual da dívida ao Banco. Contudo, não pode esquecer-se, que o réu não era conhecedor da existência de irregularidades praticadas na sociedade, que conduziram ao endividamento, uma vez que estava afastado dos aspetos financeiros das sociedades e que foi “traído” pelos demais sócios, que mantinham um esquema de beneficiação pessoal que prejudicava as empresas e ao qual o réu era alheio, o que foi confirmado pela testemunha GG, que era a contabilista das empresas e que confirmou que quem lá estava diariamente eram os outros dois sócios, uma que tratava da parte financeira e outro que tratava das encomendas, sendo que o réu muito raramente lá ia (uma ou duas vezes por mês). Acresce que resulta do depoimento das testemunhas GG, HH (funcionária do Banco), II (faz consultadoria às empresas do 2.º réu), conjugadamente com o relatório pericial junto aos autos que apurou o valor das participações sociais de que o réu era titular nas sociedades J..., Lda. e P..., Lda., que até outubro de 2019 estava tudo saldado com o Banco (o que aliás foi confirmado, também, pela outra testemunha do próprio Banco, JJ, que referiu que o início do incumprimento se reportava a finais de 2019, inícios de 2020), sendo que a faturação em ambas as sociedades era muito boa e que a perspetiva era de evolução, não havendo qualquer dificuldade ao nível do financiamento, até porque não existia qualquer incumprimento (em 29/10/2019 foi colocada a perspetiva de nova liquidação de remessas, o que nunca aconteceria se, nessa altura, não estivesse tudo liquidado, conforme referiu a testemunha HH). As faturações do ano de 2019 eram boas, não havia prejuízo nem falta de liquidez, e o financiamento bancário fluía, sem qualquer incumprimento, surgindo, como se disse, as primeiras dificuldades financeiras em dezembro de 2019/janeiro de 2020. Do que fica dito resulta que, tal como na 1.ª instância, consideramos que a doação, ocorrida em março de 2019, não esteve relacionada com as responsabilidades bancárias que se viriam a revelar cerca de um ano depois, motivo pelo qual consideramos que os factos constantes das alíneas a) a d) foram corretamente incluídos nos “não provados”, pois não existia, nessa altura, qualquer impossibilidade de satisfazer os créditos, nem o facto de o réu ter doado a seus filhos o imóvel em questão dificultaria ao autor o recebimento do seu crédito, que, repete-se, estava a ser pago naturalmente, existindo outros bens que poderiam responder pela dívida, caso esta viesse a surgir, o que não se revelava de todo plausível nessa data.
(…)
Daí que improceda o pedido de aditamento à matéria de facto.”
Depois dum longo período de vigência do princípio da oralidade, a reforma de 1995/1996, ao prever o registo ou documentação da prova veio permitir a reapreciação da matéria de facto pela Relação, extensiva, com a reforma de 2013, aos meios de prova sujeitos a livre apreciação do julgador.
A Relação tem o poder-dever de formar a sua própria convicção, dentro dos limites da própria impugnação – artº 640º do CPC -, cientes que vigora o sistema da apelação restrita.
Como tem sido reiteradamente assinalado pelo Supremo Tribunal de Justiça/STJ, “o exercício dos poderes da Relação no que respeita à matéria da decisão de facto não pode limitar-se à enunciação de argumentos marginais de pendor abstrato, impondo sempre a reapreciação dos meios de prova oralmente produzidos, desde que o recorrente tenha cumprido o ónus de alegação regulado no artº 640.” - vide, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª Edição Actualizada, pags.350 e 351, onde se cita o elucidativo Acordão do STJ, de 11-2-16, 907/13, no qual é referido sobre os artºs. 662/640 do CPC: “não estamos perante normas que concedem à relação poderes discricionários, do mesmo modo que nada legitima que sejam feitas do sistema legal – cujo sentido e objetivos se mantêm no mesmo rumo – interpretações criativas que acabem por torpedear os objetivos que o legislador procurou alcançar, designadamente o reforço da possibilidade de serem corrigidas erros decisórios , através dum efectivo 2º grau de jurisdição, desempenhando a Relação funções que verdadeiramente respeitam às instâncias quando se trata de recolher para os autos a matéria de facto que verdadeiramente corresponda à realidade subjacente ao litígio.”
A Relação fez uma criteriosa aplicação do artº 662º do CPC, nos limites impostos pelo artº 640º daquele diploma legal, como se infere do segmento do aresto recorrido supra transcrito.
Estando-se, pois, no domínio da reapreciação dos factos pela Relação, a convicção devidamente fundamentada desta não é sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça/STJ, sendo certo que não se está perante qualquer violação do denominado direito probatório material/substantivo – cfr. artº 674º nº 3 do CPC e doutrinalmente, Lebre de Freitas, Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3º, Almedina, 3ª Edição, pags. 225 a 237, em particular, 230 e 231.
Questão de fundo: deve ou não a impugnação pauliana proceder?
Como elucida Cura Mariano, – in, “Impugnação Pauliana”, 4ª Edição Revista e Aumentada, pags. 209 a 244 - a evolução legislativa manifestada no Código Civil de 1966, teve reflexos diferenciadores – do Código de Seabra -, tendo o seu escopo deixado de ser a “destruição do negócio” para ser a “reconstituição da garantia patrimonial do crédito do impugnante (…) na medida do seu interesse”.
E como lembra o Acordão do STJ de 23-2-2021 proferido no pº nº 1365/11-4TPMS.E1.S1 – 6ª Secção e relatado pelo Conselheiro Barateiro Martins – publicitado, in www.dgsi.pt: “a impugnação pauliana é um meio de conservação patrimonial que não coloca em crise a validade do ato impugnado: é antes um meio em que o credor não aspira a que o tribunal declare inválido (nulo ou anulável) um qualquer ato patrimonial praticado por um seu devedor em seu prejuízo, mas em que apenas pretende que o ato seja ineficaz em relação a si (art. 616º do CC - ineficácia relativa), podendo executar o bem no património do obrigado à restituição (tudo se passa como se o ato realizado entre o devedor e o terceiro adquirente não exista – seja pura e simplesmente irrelevante – em face do credor impugnante).”
A impugnação judicial está regulada nos artºs 610º a 618º do CC.
Quanto aos seus requisitos prevê o artº 610ºdo CC:
- Os actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e não sejam de natureza pessoal podem ser impugnados pelo credor, se concorrerem as circunstâncias seguintes:
a) Ser o crédito anterior ao acto ou, sendo posterior, ter sido o acto realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;
b) Resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade.
Sobre a prova estabelece o artº 611º do CC:
- Incumbe ao credor a prova do montante das dívidas, e ao devedor ou a terceiro interessado na manutenção do acto a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor.
E no que respeita à má fé dispõe o artº 612º do CC:
1 - O acto oneroso só está sujeito à impugnação pauliana se o devedor e o terceiro tiverem agido de má fé; se o acto for gratuito, a impugnação procede, ainda que um e outro agisse de boa fé.
2 – Entende-se por má-fé a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor.
Dúvidas não há, como bem referiu a Relação, que a doação em causa é um negócio gratuito pelo que não é exigível o requisito da má-fé.
Está provado que crédito reconhecido ao A/Banco é anterior à doação firmada entre o 1º R e os restantes RR.
Recaia sobre aquele R o ónus de provar “que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor” aquando do acto impugnado.
E fê-lo como é registado no acórdão recorrido: “o réu logrou provar a existência de bens no seu património na data em que celebrou a escritura de doação, de valor superior à dívida contraída – veja-se os factos provados 10 e 11, de onde se extrai que o réu era detentor de património no valor de € 125.093,13, sendo a dívida no valor de € 74.049,48. Veja-se que é uniforme o entendimento de que, na impugnação pauliana, é em relação à data do ato impugnado que se atende para determinar se dela resulta a impossibilidade, ou o agravamento, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito – por todos, Acórdãos do STJ de 08/02/2000, processo n.º 99A1135 e de 27/03/2001, processo n.º 01A640, ambos em www.dgsi.pt e Antunes Varela e Pires de Lima, CC Anotado, vol. I, 4.ª edição revista e atualizada, pág. 626, onde se pode ler, citando um Acórdão do STJ que: é à data do ato impugnado que se deve atender para determinar se dele resulta a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade; por isso, se nessa data, o obrigado ainda possuía bens de valor bastante superior ao montante do crédito, a impugnação deve ser julgada improcedente”.
Concluindo e sumariando:
1. Os requisitos da impugnação paulina são cumulativos (artº 610º CC).
2. A doação em causa constitui um negócio gratuito pelo que é inexigível o requisito da má-fé; o crédito do Banco/A é anterior aquela doação; o 1º R (doador) possuía bens penhoráveis de igual ou maior valor, aquando da acto impugnado.
3. Tendo aquele R provado possuir outros bens de valor superior, não deve a presente acção ser atendida.
DECISÃO
- Assim e pelos fundamentos expostos, improcede o recurso/revista, e consequentemente mantém-se o decidido pela Relação.
- Custas pelo recorrente/A.
Lisboa, 19-9-2024
Afonso Henrique (relator)
Fernando Baptista
Catarina Serra