RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
CONTRATO-PROMESSA
COMPRA E VENDA
ESCRITURA PÚBLICA
INCUMPRIMENTO
EXIGIBILIDADE DA OBRIGAÇÃO
RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO
SINAL
ABUSO DO DIREITO
Sumário


I – A resolução do contrato-promessa em causa solicitada pelos AA e 1º R, na acção e na contra-acção, respectivamente, pressupunham o incumprimento definitivo por parte dos mesmos, sendo que só se apurou a mora do 1º R na realização do prometido contrato de compra e venda.
II – A interpelação admonitória para ser eficaz exigia que o Tribunal concluísse objectivamente pelo desinteresse dos AA na realização daquele negócio, e que fosse concedido ao 1º R um prazo razoável para ultrapassar o litígio que mantém com a 2ª R.

Texto Integral

ACORDAM NESTE SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (2ª SECÇÂO)

AA e BB/AA intentaram acção declarativa de condenação contra, CC e Hefesto STC, SA/RR, todos devidamente identificados nos autos, formulando os seguintes pedidos:

“1) Declarar-se resolvido o contrato promessa de compra e venda;

2) Condenar-se o primeiro R, a pagar aos Autores a quantia de € 56.0000,00 (cinquenta e seis mil euros), acrescida de juros à taxa legal, desde a citação até integral pagamento;

3) Reconhecer-se aos AA o direito de retenção sobre a referida fracção, para garantia do seu crédito, no montante de € 56.000,00, bem como, os juros vincendos;

4) Condenar-se o primeiro R e segunda R, a verem reconhecidos tal direito de retenção dos AA sobre a referida fracção;

5) Condenar-se o primeiro R nas custas e procuradoria.”

Alegaram, para o efeito, que:

- Celebraram com o 1º R um contrato de compra e venda relativo à fracção autónoma designada pela letra “Q”, correspondente a uma habitação de tipologia T4, no 5º andar direito, com entrada pelo nº 488 da Rua ..., freguesia da ..., concelho de ...;

- O 1ºRprometeu vender, livre de ónus ou encargos a supra referida fracção, da qual era dono e legitimo proprietário e os AA prometiam comprar ao 1º R pela quantia de € 278.500,00 (duzentos e setenta oito mil e quinhentos euros).

- Os AA ocupam o imóvel, desde 20 de Março de 2020, tendo os contratos da “meo”, da água e da luz em seu nome.

- As partes celebraram pelo menos dois adiamentos relativamente à realização do contrato prometido, para que o 1º R conseguisse junto da 2ª R a regularização da hipoteca que incidia sobre a fração.

- Foi marcada uma última escritura a pedido do 1º R, em 30/11/2020, não tendo o contrato de compra e venda sido realizado, por culpa deste, assistindo aos AA o direito de resolver o contrato promessa, por perda de interesse na manutenção do mesmo, com a consequente condenação do 1º R no pagamento em dobro do sinal, invocando ainda o direito de retenção sobre a identificada fracção autónoma.

Contestou o 1º réu, alegando em suma que:

- A não realização da escritura não resulta de qualquer responsabilidade do 1º R.

- A 2ª R. juntamente com outra entidade, a W..., S.A., exigem ao 1º R. o valor de € 244.431,17, alegadamente por uma cessão de créditos por parte da Caixa Económica Montepio Geral (CEMG) do montante de €184.270,62, sem razão legal para o fazerem, recusando-se a emitir o distrate da hipoteca necessário para a venda da fração autónoma aos AA livre de ónus e encargos como prometido.

- Os AA estiverem sempre ao corrente desta situação e solidários com o 1º R.

- Contudo, o representante legal da 2ª R. não compareceu à escritura para proceder ao distrate da hipoteca impedindo a realização da escritura.

- Perante a intransigência de quem tem o registo da hipoteca a seu favor em ir à escritura para proceder ao distrate, restava ao 1º R. interpor uma acção, tal como havia prometido aos AA., o que acabou por acontecer.

- Não existe assim qualquer incumprimento definitivo imputável ao 1º R., que tudo fez e faria para celebrar o contrato prometido, não tivessem os AA. mudado de planos de vida e desistido de comprar, querendo ainda locupletar-se indevidamente às custas do 1º R, inexistindo fundamento legal que permitisse aosAA resolver o contrato-promessa de compra e venda com o 1º R, querendo o melhor dos dois mundos: continuarem a habitar o imóvel do 1º R, sem nada pagarem e tentarem receber o dobro do valor que entregaram ao 1º R, o que configura, no seu entender, uma actuação dos AA em ostensivo abuso de direito.

E formula os seguintes pedidos reconvencionais contra osAA/reconvindos:

“a) Deve ser declarada infundada a resolução do contrato-promessa de compra e venda perpetrada pelos AA.

b) Deve ser reconhecida a resolução requerida pelo 1º R, por incumprimento definitivo do contrato-promessa de compra e venda celebrado, uma vez que a resolução infundada por parte dos AA representa a recusa categórica e antecipada dos AA em quererem cumprir o contrato.

c) Em resultado de b), deve o tribunal reconhecer o direito ao 1º R de fazer seu o valor de € 28.000,00 entregues pelos AA a título de sinal, de acordo com o estipulado no nº 2 do artigo 442º do CC.

d) Condenar os AA. à entrega do imóvel ao 1º R livre de pessoas e bens, com excepção dos que constam no contrato-promessa, em perfeito estado de conservação e limpeza.

e) Condenar os AA a ressarcir o 1º R com pagamento de um montante mínimo € 1500,00/mês, pela privação do uso e fruição por parte do 1º R, com o consequente uso e fruição por parte dos AA, desde 20/03/2020 até à efetiva entrega do imóvel, quer por via da responsabilidade civil ou, subsidiariamente, pelo enriquecimento sem causa, sendo certo que considerando o valor mínimo mensal referido, encontram-se vencidos €22.500,00;

f) Devem ser condenados os AA em juros civis, vencidos e vincendos, à taxa legal, pelos montantes referidos em e), sendo certo que se outro valor não vier a ser apurado, tomando como referência o valor de 1500,00€/mês, os juros vencidos têm já o valor de € 579,69;

g) Devem ser condenados os AA. a pagar ao 1º R todos os valores que advenham do uso e fruição do imóvel, nomeadamente, despesas de condomínio, quotizações ordinárias e extraordinárias, fundo de reserva, IMI, obras de manutenção e reparação, desde 20/3/2020 até à efectiva data da entrega do imóvel.

A R “HEFESTP STC SA” também veio contestar, defendendo-se por impugnação, deste modo:

-Foi informada de que deveria emitir distrate para levantamento das hipotecas registadas, contra a entrega de cheque bancário no valor de €184.270,62 (cento e oitenta e quatro mil, duzentos e setenta mil euros e sessenta e dois euros).

- Contudo, tendo em conta o valor em dívida, tal “proposta” não foi aceite e o devedor/1º R foi informado de que os distrates não iriam ser emitidos nem a credora iria comparecer à escritura.

- No demais, os termos do contrato promessa não lhe são oponíveis.

Os AA/reconvindos replicaram, pugnando pela improcedência da reconvenção.

Foi dispensada a realização de audiência prévia, admitida a reconvenção e proferido despacho saneador, com indicação do objecto do processo e fixação dos temas da prova.

Realizado o julgamento, no final, veio a ser proferida sentença – parte decisória:

“-…-

a) Julgar a acção totalmente procedente e, em consequência, declara-se resolvido o contrato-promessa de compra e venda celebrado em 31-12-2019, entre o Réu e os Autores tendo por objecto a fracção autónoma Q, descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..12/......15-Q; condena-se o Réu a pagar aos Autores a quantia de € 56.000,00 (cinquenta e seis mil euros), acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal, desde a citação até integral pagamento; reconhece-se aos Autores o direito de retenção sobre a referida fração autónoma Q, para garantia do seu crédito de € 56.000,00 (cinquenta e seis mil euros) e dos respetivos juros moratórios; condenam-se o Réu CC e a Ré Hefesto Stc, S.A. a reconhecer tal direito de retenção;

b) Julgar prejudicado o conhecimento dos pedidos reconvencionais a), b), c) e d);

c) Julgar improcedentes os pedidos reconvencionais e), f) e g).

Condena-se o Réu a pagar as custas (art. 527.º do Código de Processo Civil), sem prejuízo para o apoio judiciário que lhe foi concedido.”

Inconformados, os RR vieram apelar daquela sentença, tendo a Relação proferido acórdão – parte decisória:

“-…-

Pelo exposto e em conclusão, acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedentes os recursos interpostos pelos RR, revogando-se a sentença na parte em que decidiu a acção principal, alterando-se a matéria de facto em conformidade com o supra decidido e julgando improcedentes todos os pedidos formulados pelos Autores, deles se absolvendo os Réus.

E acordam em julgar improcedente o recurso interposto pelo Reconvinte, julgando-se improcedentes todos os pedidos reconvencionais, deles se absolvendo os reconvindos.

Custas pelos Apelados quanto á ação principal e pelo apelante primeiro réu quanto á reconvenção.

-…-”

Os AA recorreram para este STJ, de revista, formulando as seguintes CONCLUSÕES:

– Os Recorrentes não se conformam com o acórdão sob recurso, na parte em que revoga a sentença proferida em primeira instância, a saber, julgando não haver incumprimento contratual, subsistindo apenas a mora do recorrido promitente vendedor, mais considerando que o contrato, em consequência, ainda pode ser cumprido e que a resolução operada não é válida, numa decisão salomónica, que determina que tudo se mantenha na mesma.

– Para o que alterou o julgamento da matéria de facto, no sentido de sustentar esta decisão, olvidando-se que a escritura pública de compra e venda foi marcada por três vezes e ao longo de praticamente um ano, período durante o qual o Recorrido promitente vendedor se colocou na posição de não poder celebrar o contrato definitivo.

- O Tribunal a quo desvalorizou em absoluto os factos julgados provados constantes dos pontos 9 a 23, a saber, as diversas marcações, os adiamentos pedidos pelo Recorrido promitente vendedor, os aditamentos, vertendo sobre os compradores o ónus de esperarem “ad aeternum” que aquele resolva um problema que é apenas dele.

– Apenas permitir ao promitente comprador a possibilidade de revogar ou resolver o contrato recebendo o sinal passado em singelo é redutora e contraria as expectativas legítimas de quem, comos os Recorrentes, celebraram o negócio na ignorância da divergência que o promitente vendedor mantinha e mantém com o credor hipotecário.

- Há que considerar que os Recorrentes instalaram a sua vida no locado e pretenderam sempre cumprir com o contrato, o qual só não é cumprido por facto que não lhes é imputável, mas tão só ao promitente vendedor.

– A situação de incumprimento imputável a alguma ou a ambas as partes, que possa determinar a resolução contratual, deverá ser apreciada em função das circunstâncias que marcaram a fase decisiva tendente à outorga do contrato prometido, devendo ser desconsideradas ou desvalorizadas alegações posteriores que não sejam coerentes com os motivos que determinaram a frustração do resultado.

- Sendo o contrato-promessa um contrato preparatório, é importante que na sua execução cada parte outorgante paute o seu comportamento de acordo com as regras da boa-fé, como o assinala o n.º 2 do art. 762.º do CC, o que se mostra especialmente relevante tendo em conta as expectativas mútuas e a necessidade de que nenhuma delas seja surpreendida, a destempo, com exigências ou com justificações que não lhe tenham sido oportunamente assinaladas.

- Para que se considere verificado o incumprimento contratual relevam seguramente as obrigações principais que cada parte tenha assumido, ou seja, a obrigação do promitente-vendedor de outorgar na escritura de compra e venda, emitindo a declaração de venda, no caso, livre de ónus ou encargos, tendo como sinalagma a obrigação do promitente-comprador de efectuar o pagamento do preço acordado.

- A Relação não pode desconsiderar a responsabilidade do promitente vendedor pela frustração do contrato prometido, não valorizando que apenas a ele cabe promover o cancelamento das hipotecas que pendem sobre a fracção autónoma e que já subsistiam aquando da celebração do contrato promessa.

- Caberia ao promitente vendedor apurar antes da celebração do contrato promessa qual o valor a pagar para assegurar os distrates, e não deixar essas diligências para aquando da marcação da escritura de compra e venda.

- As expectativas de quem celebrou um contrato promessa na ignorância dessa divergência, a quem foi transmitida a posse do imóvel, sediou a sua vida pessoal no locado, viu frustrar-se o crédito bancário aprovado, e que vê alteradas as condições, necessariamente, de novo crédito face à evolução da idade, da conjuntura financeira, etc., são, por si só, fundamento de resolução contratual com imputação de culpa ao promitente incumpridor.

– A sentença proferida em primeira instância teve em conta a evolução execução do contrato promessa, mostrando-se mais adequada e justa que o acórdão recorrido, porquanto, descortinou os verdadeiros motivos que estiveram na génese da frustração do contrato prometido, pelo que deve ser confirmada, revogando-se o aventureirismo que caracteriza o acórdão recorrido.

- O direito do promitente comprador à configuração jurídica do direito sobre o bem semelhante à prevista na promessa constitui-se como uma obrigação que, embora secundária ou acessória da obrigação de facere consistente na celebração do contrato prometido, quando incumprida, conduz ao incumprimento contratual.

- Como escreve Ana Prata (O Contrato-Promessa e o Seu Regime Civil, 2001, pgs.660 e 662), “como primeira expressão do direito a exigir o cumprimento pontual da obrigação principal, tem o credor direito a exigir do devedor a extinção do direito constituído sobre o bem, por forma a reconduzi-lo à sua identidade jurídica prevista na promessa”, sendo aplicável o regime do incumprimento total e definitivo.

- As diligências no sentido do preenchimento dos pressupostos jurídicos necessários à conclusão do contrato prometido cabem àquele dos contraentes que se encontrar em posição de as levar a cabo com êxito.

- Se o promitente vendedor não se dispõe a pagar o valor que o credor hipotecário diz ser devido, e não logrou durante todo o período entre a celebração do contrato promessa e a última marcação da escritura pública de compra e venda do imóvel, a acordar a sua fixação, tendo sido a escritura adiada por mais que uma vez para que o fosse, temos que concluir que aquele não praticou os actos necessários ao cumprimento da sua prestação de facto (art.º 813.º CC), ou seja, a desoneração do prédio, potenciando que os promitentes compradores procedessem à resolução do contrato por incumprimento irreversível daquele.

– O acórdão recorrido violou, entre outros normativos, os artigos 406º, nº 1, 755º, nº 1, f), 762º, e 813º, todos do Código Civil.

Termos em que, deve ser concedido provimento à Revista ora apresentado pela Recorrente, revogando-se o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, e confirmando-se a decisão proferida em primeira instância nos seus exactos termos.

Contra-alegaram os RR formulando as seguintes CONCLUSÕES:

1. Conforme resulta do recurso interposto pelos AA., não foi dirigido ao Tribunal recorrido o requerimento a que alude o n.º 1 do artigo 637.º do CPC, manifestando, desse modo, perante aquele Tribunal a intenção sequer de recorrer, indicando ainda a espécie, o efeito e o modo de subida do recurso interposto, para que o Tribunal recorrido pudesse proferir despacho a que alude o n.º 1 do artigo 641.º do CPC.

2. Deste modo, o recuso deve ser rejeitado, por incumprimento do disposto do n.º 1 do artigo 637.º do CPC.

Sem prescindir,

3. O recurso interposto pelos AA. deve ser julgado totalmente improcedente, sendo o mesmo o consolidar da sua litigância de má-fé, que os Tribunais teimam em não reconhecer, como se demonstrará.

4. Tendo o 1. R interposto, também, recurso da decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto e, uma vez que os fundamentos aí invocados rebatem o sustentado pelos AA./Recorrentes, por uma questão de economia processual, dá-se aqui por integralmente reproduzido o contido no recurso interposto pelo 1. R. .

5. Do recurso interposto pelos AA. não resulta qualquer impugnação à matéria de facto dada como provada, mesmo a matéria aditada pelo Tribunal recorrido, dando razão ao 1. R. e que passou a constar das alíneas 40) e 41), supra transcritos.

6. Sem prejuízo de toda a factualidade relevante para a melhor aplicação do direito, destaca-se, ainda, o contido na alínea 32) dos factos provados, que em supra se transcreveu.

7. Ou seja, se ainda dúvidas existissem sobre a litigância de má-fé dos AA. as mesmas parecem dissipadas com o teor do presente recurso, salvo, sempre, melhor opinião.

8. Com efeito, não obstante, estarem os AA. sempre ao corrente sobre o litígio entre o 1. R. com a co-Ré Hefesto, de saberem que o 1. R. iria interpor uma acção judicial contra a co-R., no sentido de resolver o conflito entre ambos, sendo que prevendo a demora de tais trâmites legais, propôs aos AA. devolver o sinal em singelo, contra a entrega do imóvel, que os AA. recusaram pois queriam e ainda pretendem a concretização da compra, através da realização do contrato prometido, não se coibiram de resolver o contrato-promessa de compra e venda, proporem a acção judicial para receber o sinal em dobro, ao mesmo tempo querendo o direito de retenção.

9. Porém, na audiência de discussão e o julgamento, vieram os AA., no depoimento que prestaram a dizer que não querem que se desfaça o negócio.

10. Ou seja, os AA. pretendem o melhor de dois mundos: querem ficar com o imóvel, ou seja, realizar o contrato prometido, mas ao mesmo tempo querem receber o sinal em dobro, pela resolução do contrato prometido, e ainda usufruírem do imóvel sustentado num direito de retenção, ficando no imóvel ad eternum , sem nada pagarem a ninguém, o que constitui uma poupança mensal no valor mínimo de 1224,90€/mês (cfr. alíneas 32) e 39) dos factos provados).

11. A este propósito destacam-se aqui algumas das passagens da fundamentação do Tribunal recorrido:

(…)

“Mostra-se assim contrária á confiança que transmitiram ao A ao dizer-lhes que continuavam interessados em comprar a fração prometida, instaurarem uma ação pedido a condenação do Réu no pagamento do sinal em dobro e o reconhecimento do direito de retenção que lhes permitirá continuar a habitar a fração que prometeram comprar.

(…)

“Desta forma, entendemos que, mesmo que se entenda, como na sentença, que o contrato foi validamente resolvido, sempre os efeitos resolutivos do contrato seriam paralisados, por se entender que a os AA atuam em abuso de direito, mantendo-se dessa forma a mera mora no cumprimento da obrigação por parte do Réu.”

12. Não entendeu o Tribunal recorrido pela existência de litigância de má-fé, de onde se destaca, aqui, alguma da fundamentação expedida:

(…)

“No caso em apreço o comportamento dos autores que se entendeu não ser conforme aos ditames da boa-fé revelou-se em sede do direito substantivo, já que entendemos ser abusiva a resolução do contrato, operada através da declaração resolutiva que os AA enviaram á parte contrária, com a finalidade de porem termo ao contrato, apesar de não pretenderem ver cessado o contrato promessa.”

(…)

“Já quanto á posição das partes esgrimidas em juízo em que ambas pretendem ver declarada a resolução do contrato promessa com fundamento em incumprimento culposo da parte contrária, mais não é que a “salutar” discussão em juízo dos direitos que cada uma se arroga.”

13. Está em crer o 1. R. que tem sido a bondade com que os Tribunais, desde a 1. ª instância, têm apreciado a litigância de má-fé dos AA., com as legais consequências, nomeadamente, o pedido formulado pelo 1. R. , que faz com que os AA. continuem a sua senda, que agora também se reflete no presente recurso, nomeadamente, nos pontos V e VI das conclusões recursórias, supra transcritas.

14. Resulta das mesmas que, mais uma vez, os AA. pretendem realizar o contrato prometido, pois mantêm o interesse no imóvel e disso resultou dos depoimentos de parte na audiência de discussão e julgamento no Tribunal de 1.ª instância, mas processualmente pretendem a resolução e os seus efeitos, ou seja, receberem o dobro do sinal.

15. Não obstante tudo quanto foi dito pelo Tribunal recorrido na sua fundamentação, no que diz respeito à postura dos AA. e ao abuso de direito com que litigam, os AA. têm ainda a desfaçatez de desconsiderar tudo quando é referido e seguir o seu caminho contrário ao direito, o que consubstancia a sua litigância de má-fé.

16. Refere o Tribunal recorrido, a determinada altura:

(…)

“Mostra-se assim contrária á confiança que transmitiram ao A ao dizer-lhes que continuavam interessados em comprar a fração prometida, instaurarem uma ação pedido a condenação do Réu no pagamento do sinal em dobro e o reconhecimento do direito de retenção que lhes permitirá continuar a habitar a fração que prometeram comprar.

Existe mesmo uma incoerência na posição dos AA que não querem sair da casa que habitam, continuando por isso interessados na sua aquisição, mas vêm pedir ao tribunal, que se declare resolvido o contrato promessa, após terem concedido um prazo perentório á parte contrária para cumprir que sabiam não ser possível para aquele respeitar e que teve como finalidade “pressionar” o credor hipotecário a “desbloquear o impasse”.

Para tanto e salvaguardando o interesse confessado de continuar a habitar a fração do réu, invocam o direito de retenção.”

(…)

Desta forma, entendemos que, mesmo que se entenda, como na sentença, que o contrato foi validamente resolvido, sempre os efeitos resolutivos do contrato seriam paralisados, por se entender que a os AA atuam em abuso de direito, mantendo-se dessa forma a mera mora no cumprimento da obrigação por parte do Réu.”

17. Não obstante o que foi dito pelo Tribunal recorrido, não existe uma palavra sequer por parte dos AA. sobre o seu ostensivo abuso de direito, não tendo sido impugnada esta apreciação feita pelo Tribunal recorrido, o que , salvo melhor opinião, seria desde logo motivo para a improcedência do recurso interposto, uma vez que, os AA. querem para si o exercício de um direito que excede os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, tal como previsto no artigo 334.º do Código Civil.

18. O pedido de condenação dos AA. como litigantes de má-fé, resulta, primeiramente, do requerimento apresentado pelo Mandatário do 1. R., na sessão julgamento realizada em 30/10/2022, que ditou para acta. Porém, não obstante, encontrar-se gravado (00:00 a 03:50), não o viu espelhado na acta, pelo que aqui se transcreve:

“Decorreu do depoimento prestado pelos Autores, Autor AA e Autora BB, que não pretendiam resolver o presente contrato pois contraria, continuavam interessados no imóvel e que esta ação destinava-se única e simplesmente a pressionar o primeiro Réu. Resultou também de uma forma consensual que, Autores e primeiro Réu, em determinada altura proposta pelo primeiro Réu, estaria disposto a restituir o valor do sinal, desistindo ambos do negócio e restituindo o imóvel ao primeiro Réu por parte dos Autores.

Ora, acontece que, a petição inicial apresentada pelos Autores, o que vem alegado e o que vem pedido é contrário à intenção dos Autores pois as ações em Tribunais não se destinam a pressionar o que quer que seja mas a defender direitos e a lutar pelos mesmos.

Os Autores propõem a resolução do contrato fundado numa situação de terem um crédito até determinada altura, um fundamento extremamente ligeiro e não fundamentado.

No entanto, das declarações que prestam, dizem que a intenção da ação não era essa mas pressionar os, o primeiro Réu e continuarem a manter a casa.

Neste sentido, os Autores litigam de má fé uma vez que fizeram uso do processo, um uso manifestamente reprovável do processo com o fim de obter um objetivo ilegal.

Neste sentido, devem os Autores ser condenados numa multa, numa pesada multa, a aplicar pelo Tribunal, bem como uma indemnização a pagar ao primeiro Autor, ao primeiro Réu desculpe, ao primeiro Réu, que consista nos reembolsos e despesas tidas com o Mandatário e outras despesas decorrentes e que se estimam ser um valor não inferior a seis mil euros mas será liquidado a final.

Termos em que se requer.”

19. Relativamente a esta matéria, o Tribunal de 1.ª instância considerou que: “A circunstância de os Autores terem afirmado que ainda estariam na disposição de adquirir o imóvel, não configura litigância de má fé, mas, tão só, um desejo que poderia concretizar-se no âmbito de uma transação a celebrar entre as Partes neste processo.”

20. Reiterado este pedido pelo 1. R., assim como o abuso de direito, junto do Tribunal recorrido, este foi peremptório no reconhecimento no abuso de direito, mas benevolente no reconhecimento da litigância de má-fé, considerando ter existido no direito substantivo, mas não no ponto de vista processual.

21. Estando em crer, o 1. R., como já supra referido, que será essa razão que os AA. insistem na sua postura anti-jurídica, conforme decorre do conteúdo do recurso interposto.

22. Pelas razões expostas, deve o recurso apresentado ser rejeitado ou, subsidiariamente ser julgado totalmente improcedente, sendo os AA. condenados como litigantes de má-fé, nos termos peticionados pelo 1. R. e que, resumidamente, fez constar nos pontos 34. a 39 do recurso por si interposto.

TERMOS EM QUE, e nos melhores de Direito que V. Exas. mui Doutamente suprirão, deverá ser rejeitado o recurso interposto ou, subsidiariamente, ser julgado totalmente improcedente.

Também o 1º R veio recorrer para este STJ, de revista, formulando as seguintes CONCLUSÕES:

1. Não obstante a absolvição de que foi alvo o 1º R, não pode concordar com a solução jurídica encontrada, em resultado dos factos dados como provados, tendo em conta a alteração à matéria de facto decidida.

2. De igual modo e, em consequência, da solução encontrada, não pode o 1º R. aceitar a total improcedência dos pedidos reconvencionais formulados contra os AA, assim como, não pode aceitar o 1º R a não condenação dos AA como litigantes de má-fé.

3. Decorrente do aditamento - factos 40) e 41) - resulta que os AA fizeram crer ao 1º R que não resolveriam o contrato-promessa de compra e venda, pois, estavam cientes de todas as dificuldades do 1º R em conseguir levar a C/R à escritura do contrato prometido e proceder ao distrate.

4. Tanto assim é que, perante a proposta do 1º R em lhes entregar o sinal em singelo, em virtude da demora previsível para a resolução de tal situação, recusaram tal proposta, manifestando o propósito da concretização da compra.

5. Não obstante, e sem que nada fizesse prever, encetaram as diligências no sentido de resolver o negócio, comunicando tal resolução em 21/01/2021.

6. Actuaram, assim, os AA, em manifesto abuso de direito, reconhecido pelo Tribunal da Relação.

7. Porém, nenhumas consequências advieram para os AA, decorrentes deste comportamento antijurídico, para além de ser considerada infundada a resolução por mora do devedor.

8. Nem deste, nem do facto da resolução apresentada em 21/01/2021 ser totalmente infundada, conforme decorre da prova produzida, uma vez que tal resolução era fundada na perda do interesse do credor (AA) na prestação, em virtude da proposta de mútuo que tinham aprovado no Banco terminar em 2/12/2020.

9. Ora, conforme se verificou na audiência de discussão e julgamento pelo depoimento prestado pelos AA, tal não era real, era um argumento falso, pois. decorrido aquele prazo, manifestaram continuarem a ter interesse na celebração do contrato prometido, expressando, então (quiçá depois de reconhecerem o teor da reconvenção), que, afinal, tudo teria sido feito para “pressionar”.

10. A propósito da falta de fundamento invocado para a resolução – para além dos AA agirem em abuso de direito – refere, a determinada altura, o Tribunal recorrido: “Da parte dos AA, exceder o prazo fixado, não inviabilizaria a possibilidade de poderem cumprir com a compra acordada, apenas os obrigaria a diligenciarem naquela ou noutra instituição bancária a obtenção de novo empréstimo, nada havendo nos autos que indique que o novo empréstimo não seria obtido, nem tão pouco alegaram que as condições seriam menos vantajosas.”

11. Citando o Prof. Baptista Machado: “A resolução opera-se por meio de declaração unilateral, receptícia, do credor (art.436.º), que se torna irrevogável, logo que chega ao poder do devedor ou dele é conhecida (art. 224.º, 1; cfr. art. 230.º, 1 e 2)” (MACHADO BAPTISTA, Das obrigações em geral, Almedina, II volume, 2.ª reimpressão da 7.ª edição, 2003, p. 108).

12. Ora, tendo em conta o supra exposto, a razão dada ao 1º R assente no fundamento de que este se encontrava em mora e não em incumprimento definitivo, atento ao facto dos AA lhe terem dado um curto prazo para poder realizar o contrato prometido, sabendo que ele, naquele prazo, não o poderia cumprir, não parece ter sido a melhor apreciação jurídica relativamente aos factos dados como provados, perante a resolução em abuso de direito e infundada perpetrada pelos AA.

13. Nem mesmo, se pode aceitar, as considerações feitas pelo Tribunal de 1.ª instância e corroboradas pelo Tribunal recorrido, de que: “A credor hipotecário não assumiu qualquer compromisso perante os Autores e os Autores não condicionaram a celebração da escritura à resolução do litígio entre o Réu e a Ré, quanto ao montante necessário para os distrates das hipotecas. Não foi pelo facto de a não ter comparecido para a celebração da escritura que esta não se realizou, a escritura não se realizou porque o Réu não obteve o distrate das hipotecas. A não celebração do contrato-promessa é, pois, imputável ao Réu, promitente vendedor (…)”.

14. Referindo o Tribunal recorrido que: “o motivo da não realização do contrato prometido celebrar é uma: a celebração do contrato de compra e venda do imóvel prometido vender, não se mostra possível de realizar nos termos acordados porque o Réu não libertou de «ónus, encargos e hipotecas» esse imóvel, sendo certo que prometeu vender tal imóvel aos autores livre de ónus ou encargos.”

15. Ora, parece não se ter apercebido o Tribunal que, conforme resulta do artigo 10º da contestação do 1º R. e do documento aí junto (Doc. 2), também o 1º R não assumiu qualquer compromisso com a 2ª R – credora hipotecária – pois, foi surpreendido pela cedência de créditos feita pela entidade mutuante, a “Caixa Económica Montepio Geral (CECM)”, sendo que quem tem vindo a reclamar o crédito, ora é a 2ª R, ora é a “W..., S.A.”, exigindo valores exorbitantes.

16. Sendo que é a 2ª R quem tem faltado à escritura de compra e venda, sem que o 1º R a possa obrigar, se não propondo uma acção judicial para o efeito, como o fez, ou pagando os valores exorbitantes exigidos e totalmente desconhecidos, que nunca demonstraram ter direito.

17. Não pode assim concordar o 1º R que todas e quaisquer circunstâncias lhe possam ser imputadas, nomeadamente, pela teimosia e aproveitamento que pretende a 2ª R fazer da situação, obtida por uma cessão de créditos nunca comunicada ao 1º R.

18. Acresce que, decorrente do que ficou provado em 41) dos factos provados – “O 1º réu deu conhecimento aos AA que iria interpor uma acção contra a 2ª R., no sentido de resolver o conflito existente entre ambos, sendo que prevendo a demora de tais trâmites legais, propôs aos AA. devolver o sinal em singelo, contra a entrega do imóvel, que os AA recusaram pois queriam e ainda pretendem a concretização da compra, através da realização do contrato prometido.” - resultou como que um aditamento ao contrato-promessa no sentido de que os AA esperariam pela demora dos trâmites legais, pois, mantinham o interesse na concretização da compra.

19. Pelo que, assim sendo, nenhuma mora pode ser imputada ao 1º R apenas pelo facto de, entretanto, os AA/promitentes compradores terem feito uma interpelação admonitória, dando um prazo que o 1º R não tinha como conseguir cumprir para, de seguida, resolverem um negócio, invocando um facto objectivamente inconsistente, a validade da proposta de mútuo, que em sede de audiência de discussão e julgamento vieram a dar o dito por não dito.

20. Revela-se assim que os AA. actuaram em clamoroso abuso de direito, sem fundamento válido para a resolução, o que é tido, por a mais diversa doutrina e jurisprudência como equiparada à denúncia do contrato promessa.

21. A este propósito refere o Tribunal da Relação do Porto, no acórdão proferido em 12/10/2020, pº nº 709/14.1T2AVR.F. P1 que: “o n.º 2 do artigo 808.º do CC estabelece que a perda do interesse do credor é apreciada objectivamente, subtraindo o devedor ao capricho do credor no que respeita à perda do interesse da prestação”.

22. Deste modo, ao invés do Tribunal dar razão aos AA, por mora do 1º R e não incumprimento definitivo, deveria ter apreciado, antes, à luz do abuso de direito e da falta de fundamento da resolução.

23. Realce-se que os AA., ao contrário dos ditames da boa-fé, resolveram o negócio, mas não quiseram para si as suas consequências, pois continuaram a usufruir do imóvel, sustentado num alegado direito de retenção, quando o direito de retenção não o permite.

24. Relativamente a esta matéria, refere o Tribunal da Relação de Coimbra, no acórdão proferidos em 12/09/2017, pº n.º 362/06.6TBANS.C1, no seu sumário: “1.- O direito de retenção destina-se, como claramente se depreende do art. 759º Código Civil (retenção de coisas imóveis), não a proporcionar o gozo ou fruição da coisa ao titular desse direito, mas a permitir-lhe apenas a execução da coisa retida e o pagamento sobre o valor dela com preferência sobre os demais credores.”

25. Ou seja, se tudo corresse de feição aos AA, teriam um crédito de € 56.000.00, resultante da resolução (abusiva e infundada) que promoveram do contrato-promessa e sustentados num alegado direito de retenção, fazem, ilegitimamente, o uso e fruição da imóvel pertença do 1º R, que com o decurso do tempo, à razão da poupança que fazem de € 1224,90/mês (facto 39 provado), recebem o imóvel a custo zero.

26. Destarte, não se pode o 1º R. conformar com a aplicação que Tribunal recorrido fez do direito aos factos, que conduziu à improcedência total dos pedidos reconvencionais.

27. Resulta do sumário do acórdão de 08/06/2006, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, pº nº 06A135, que: “O direito de resolução dum contrato, enquanto destruição da resolução contratual, quando não convencionado pelas partes, depende da verificação de um fundamento legal, correspondendo, nessa medida, ao exercício de um direito potestativo vinculado. Fica, pois, a parte que invoca o direito à resolução obrigada a alegar e a demonstrar o fundamento que justifica a destruição do vínculo contratual.

28. Ora, conforme resulta dos autos e foi sobejamente já exposto, da prova produzida resultou a total falta de fundamento da declaração resolutiva de 21/01/2021, resolução que jamais os AA colocaram em causa ou manifestaram arrependimento, só mudando de postura, já em sede de audiência de discussão e julgamento, depois de conhecerem os articulados, nomeadamente, a reconvenção apresentada pelo 1º R, mas cuja mudança não é susceptível de reverter a resolução ocorrida, abusiva e infundada.

29. Nem mesmo, com a posição tomada em audiência de discussão e julgamento, manifestaram qualquer intenção de desistirem da instância, mantendo-se à espera do que a sorte do processo lhes ditasse, apesar da sua posição em contradição.

30. A resolução abusiva e infundada constituiu um caso de incumprimento definitivo do contrato-promessa por parte dos AA, por se poder incluir nas situações em que existe uma recusa categórica e antecipada dos AA no cumprimento do contrato a que se vincularam.

31. Neste sentido assim decidiu o Tribunal da Relação do Porto, em 12/10/2020, pº nº 709/14.1T2AVR.F. P1, referindo no seu sumário: “II - O exercício ilícito (infundado) do direito de resolução é ineficaz e nunca poderá conduzir à extinção do contrato-promessa. III A parte contrária, que se manteve fiel ao cumprimento do contrato, é que poderá considerar, em determinados casos, que a declaração de resolução infundada constitui um caso de incumprimento definitivo do contrato-promessa, por se poder incluir nas situações em que existe uma “recusa categórica e antecipada de não querer cumprir o contrato” e, nessas circunstâncias, pode recorrer a qualquer uma das faculdades previstas na lei para reagir perante uma situação de incumprimento. De entre estas, encontramos, de um lado, a faculdade de pôr termo ao contrato, resolvendo-o, e, do outro, a faculdade de manter o contrato, consoante a ponderação que o contraente cumpridor faça dos interesses em jogo no âmbito do programa contratual estipulado entre os contraentes”.

32. Pelo que se justifica a apreciação e total procedência dos pedidos reconvencionais apresentado pelo 1º R, com os valores ajustados ao fixado nos factos provados em 39.

33. Relativamente ao pedido de condenação dos AA como litigantes de má-fé, o Tribunal considerou o pedido improcedente, com a fundamentação, em que aqui se destaca uma parte: “No caso em apreço o comportamento dos autores que se entendeu não ser conforme aos ditames da boa-fé revelou-se em sede do direito substantivo, que entendemos ser abusiva a resolução do contrato, operada através da declaração resolutiva que os AA enviaram á parte contrária, com a finalidade de porem termo ao contrato, apesar de não pretenderem ver cessado o contrato promessa. quanto á posição das partes esgrimidas em juízo em que ambas pretendem ver declarada a resolução do contrato promessa com fundamento em incumprimento culposo da parte contrária, mais não é que a “salutar” discussão em juízo dos direitos que cada uma se arroga. Improcede, pois, nesta parte o recurso”.

34. Não obstante o Tribunal considerar abusiva a resolução, sem, no entanto, quaisquer consequências para os AA, mas antes sendo imputada mora ao 1º R, o Tribunal desconsiderou toda a postura dos AA no processo, quer quanto ao abuso de direito reconhecido pelo Tribunal, quer quanto às suas declarações, em que admitem um uso manifestamente reprovável do processo, pois referem que o mesmo foi apenas para “pressionar”.

35. Tivessem de boas intenções os AA e poderiam ter recorrido à execução específica, nos termos do nº 1 do artigo 830º do CC.

36. Levaram o processo até ao fim, para reconhecimento da resolução, enquanto admitem não querer a mesma. E assim, ficaram à espera do que lhe melhor poderia a sorte do processo ditar: a efectiva resolução do contrato com o recebimento do sinal em dobro (56.000,00€) ou continuar tudo na mesma, a habitarem o imóvel do 1º R. sem nada pagarem.

37. Seguiram com um processo, sustentado no reconhecimento da resolução perpetrada em 21/01/2021, deduzindo pretensão cuja falta de fundamento não poderiam ignorar, que resulta das suas próprias declarações.

38. Assim sendo, mal andou o Tribunal ao não condenar os AA como litigantes de má-fé, razão pela qual se insiste em tal condenação.

Com as decisões proferidas, o Tribunal violou várias disposições legais, nomeadamente, o artigo 801º, o artigo 808º e nº 2 do 442º, o artigo 334º, a alínea f) do artigo 755º, todos do CC; os artigos 154º, 542º e 543º, o nº 4 do artigo 607º, as alíneas b), c) e d), do nº 1 do artigo 615º, o nº 3 do artigo 466º, todos do CPC; os artigos 2º, 3º e 205º da Constituição da República Portuguesa.

TERMOS EM QUE, deverá ser dado provimento ao recurso apresentado e, em consequência, ser reconhecida a resolução abusiva e infundada nos termos supra expostos, devendo ser dado total provimento aos pedidos reconvencionais formulados pelo 1º R., assim como ao pedido de condenação dos AA como litigantes de má-fé.

Os AA contra-alegaram, formulando as seguintes CONCLUSÕES:

I – O presente recurso de revista é inadmissível carece de fundamento de direito.

II – Em ambas as instâncias, no segmento dos pedidos reconvencionais, os Autores foram absolvidos.

III – Pelo que existe dupla conforme.

IV - Ambas as decisões proferidas por instâncias compostas por diversos segmentos decisórios distintos, uns favoráveis e outros desfavoráveis, pelo que, o conceito de dupla conforme, previsto no artigo 671º nº 3 do C.P.Civil, deve ser aferido separadamente em relação a cada um deles.

- Havendo, por isso, que ponderar, a existência de dupla conforme em relação a alguns desses segmentos (artº 671º nº 3 CPC).

E consequente, inadmissibilidade de recurso nesse particular.

DA ADMISSÃO DOS RECURSOS

Os recursos/revistas deduzidos pelos AA e R foram devidamente admitidos pelo Tribunal a quoartºs 671º nº 1, 675º e 676º nº 1 a contrario, todos do CPC.

Isto porque, no que se reporta ao recurso/revista deduzido pelo R, ao contrário do alegado pelos AA, está afastada, desde logo, a invocada dupla conforme, tendo em atenção que em sede de 1ª Instância considerou-se existir incumprimento definitivo do R, e na Relação concluiu-se haver apenas mora do mesmo R, o que constitui fundamentação essencialmente diferente daquela – artº 671º nº3 do CPC.

Quanto à arguição de nulidade, arguida pelo R, em relação à admissão do recurso/revista dos AA, a mesma já foi decidida pela Relação, nestes termos e com a conformação do R: “veio (R) arguir a nulidade do despacho de admissão daquele recurso, alegando que Tribunal ao pronunciar-se sobre a admissão das alegações apresentadas pelos AA., sem que estes tenham dirigido um requerimento para esse efeito (…). O requerimento de recurso apresentado pelos AA, mostra-se devidamente remetido a este Tribunal, tendo sido entregue por via eletrónica nos termos previstos na Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto e mostra-se devidamente apreciada pelo tribunal que proferiu a decisão recorrida, que tem competência para tal. Mostra-se ademais devidamente apreciada a pretensão daqueles AA de recorreram do acórdão proferido por este Tribunal da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo sido proferido despacho em conformidade com o disposto no art. 641º do C.P.C,. nos seus nºs 1 e 5.

Não se vê assim que tenha ocorrido o vício apontado, julgando-se sem necessidade de mais considerações improcedente a nulidade arguida.

(…)”

APRECIANDO E DECIDINDO

Thema decidendum

- Em função das conclusões dos recursos/revistas, no essencial, temos que:

1 – O 1º R pretende o reconhecimento do seu pedido reconvencional, precisando, o direito à resolução do contrato prometido, face à alegada conduta abusiva dos AA, e consequentemente, a faculdade de fazer seu o sinal prestado pelos mesmo AA.

2 – Os AA pugnam pela repristinação da sentença proferida em sede de 1ª Instância que considerou haver incumprimento do contrato promessa por parte do 1º R.

DOS FACTOS

A) PROVADOS

“1) Encontra-se descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..12/......15-Q, da freguesia de ..., a fração autónoma designada pela letra “Q”, sita na Rua ..., 488 e Rua ..., 163, composta por habitação - no quinto andar direito e, na cave, dois aparcamentos e arrumos.

2) Pela apresentação n.º ..42, de 30-11-2010, foi definitivamente inscrita a aquisição, por partilha subsequente a divórcio, a favor de CC (ora Réu), do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..12/......15-Q.

3) Pela apresentação n.º 63, de 14-12-2004, foi definitivamente inscrita uma hipoteca a favor de Caixa Económica Montepio Geral, quanto ao imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..12/......15-Q, para garantia do montante máximo de 241.966,00 Euros.

4) Pela apresentação n.º ..49, de 12-11-2013, foi definitivamente inscrita uma hipoteca a favor de Caixa Económica Montepio Geral, quanto ao imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..12/......15-Q, para garantia do montante máximo de 34.760,44 Euros.

5) Pela apresentação n.º ..66, de 04-12-2017, foi definitivamente inscrita a transmissão da titularidade da hipoteca referida em 3) a favor de Hefesto Stc, S. A. (ora Ré).

6) Pela apresentação n.º ..67, de 04-12-2017, foi definitivamente inscrita a transmissão da titularidade da hipoteca referida em 4), bem como a titularidade de hipoteca a favor de Hefesto Stc, S. A. (ora Ré).

7) Em 31-12-2019, entre, por um lado, CC (ora Réu), como promitente vendedor, e, por outro lado, AA e BB (ora Autores), como promitentes compradores, foi celebrado um acordo com o teor que consta do documento intitulado «CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA», apresentado como documento 1 com a petição inicial, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido.

8) Em 31-12-2019, AA e BB (ora Autores) entregaram a CC (ora Réu) a quantia de € 26.000,00, como sinal e princípio de pagamento.

9) AA (ora Autor) remeteu a CC (ora Réu) uma carta, datada de 10-03-2020, com o teor que consta do documento 7 apresentado com a petição inicial, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido.

10) “Que foi recebida pelo Réu em 12-03-2020.”

11) CC (ora Réu) e AA e BB (ora Autores) acordaram em adiar a celebração da escritura de compra e venda da fração autónoma designada pela letra “Q” pelo período de 90 dias, a contar de 20-03-2020, tendo celebrado um acordo com o teor que consta do documento intitulado «ADITAMENTO AO CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA», apresentado como documento 10 com a petição inicial, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido.

12) AA (ora Autor) remeteu a CC (ora Réu) uma carta, datada de 17-06-2020, com o teor que consta do documento 11 apresentado com a petição inicial, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido;

13) “Que foi pelo Réu recebida em 19-06-2020.”

14) No dia 29-06-2020, pelas 10:00 horas, nas instalações do Banco Santander Totta, S. A., sitas na Rua ..., n.º 796, ... – data, hora e local designados para a celebração do contrato de compra e venda da fração supra referida em 1), o Réu não compareceu para a celebração da compra e venda acabada de referir, tendo comparecido osAutores.

15) CC (ora Réu) remeteu a AA e BB (ora Autores) uma carta, datada de 26-06-2020, com o teor que consta do documento 15 apresentado com a petição inicial, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido, que foi recebida pelos Autores.

16) Em 30-06-2020, entre, por um lado, CC (ora Réu), como promitente vendedor, e, por outro lado, AA e BB (ora Autores), como promitentes compradores, foi celebrado um acordo com o teor que consta do documento intitulado «2.º ADITAMENTO AO CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA CELEBRADO EM 31 DE DEZEMBRO DE 2019», apresentado como documento 16 com a petição inicial, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido;

17) “Para que o Primeiro Réu, conseguisse junto do Segundo Réu, o valor correto, da hipoteca que incidia sobre a fração”.

18) AA (ora Autor) remeteu a CC (ora Réu) uma carta, datada de 30-09-2020, com o teor que consta do documento 17 apresentado com a petição inicial, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido.

19) No dia 08-10-2020, pelas 10:30 horas, nas instalações do Banco Santander Totta, S. A., sitas na Rua ..., n.º 796, ... – data, hora e local designados para a celebração do contrato de compra e venda da fração supra referida em 1) –, a Ré não compareceu para entregar o distrate das hipotecas, contra a entrega do montante em dívida garantido pelas hipotecas que incidem sobre a mencionada fração, tendo comparecido os Autores e o Réu.

20) AA e BB (ora Autores) remeteram a CC (ora Réu) uma carta, datada de 29-10-2020, com o teor que consta do documento 21 apresentado com a petição inicial, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido.

21) “Que foi pelo Réu recebida em 30-10-2020”.

22) No dia 30-11-2020, pelas 10:00 horas, nas instalações do Banco Santander Totta, SA., sitas na Rua ..., n.º 796, ... – data, hora e local designados para a celebração do contrato de compra e venda da fração supra referida em 1) - a Ré não compareceu para entregar o distrate das hipotecas, contra a entrega do montante em dívida garantido pelas hipotecas que incidem sobre a mencionada fração, tendo comparecido os Autores e o Réu.

23) Os Autores solicitaram à Autoridade Tributária as guias para pagamento do IMT, no ato da formalização da compra e venda da fração supra referida em 1).

24) A proposta de empréstimo bancário concedida aos Autores tendo em vista a aquisição da fração supra referida em 1), só tinha validade até 02-12-2020.

25) Em 21-01-2021, os Autores enviaram ao Réu uma carta com o teor que consta do documento 27 apresentado com a petição inicial, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido.

26) Autores e Réu acordaram, mediante a subscrição do «ADITAMENTO AO CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA» supra referido em 11), «que no dia 20/03/2020 [o Réu] […] procedeu à entrega [aos Autores] […] da chave do imóvel, para permitir que estes pudessem, entretanto, proceder à mudança da residência e assim ocuparem, exclusivamente, o imóvel»; «que, na impossibilidade de transferir de momento para [os Autores] […] os contratos de fornecimento de gás e eletricidade (EDP) e de água (I......), estes irão manter-se em nome do [Réu] […]»; «que, a partir de 20/03/2020, os custos de luz e água serão suportados exclusivamente pelos [Autores] […]»; «que, a partir de 01/04/2020, as despesas de condomínio serão exclusivamente suportadas pelos [Autores] […]»; e «que [o Réu] […] mantém o pagamento mensal à Administração de Condomínio […] fornecendo posteriormente [aos Autores] […] o respetivo valor, que será liquidado até ao dia 8 (oito) de cada mês, mantendo-se essa situação até à realização da escritura definitiva».

27) O Réu entregou as chaves do imóvel aosAutores em 20-03-2020.

28) A partir dessa data os Autores passaram a utilizar o imóvel, ficando responsáveis pelo pagamento das despesas relativas ao fornecimento de eletricidade, gás e água, bem como das despesas de condomínio.

29) “Tendo aí fixado a sua residência”.

30) Os Autores celebraram contrato de fornecimento de serviços de telecomunicações/internet com a MEO, em 23-03-2020, contrato de fornecimento de eletricidade e de gás natural com a EDP, em13-10-2020, e contrato de fornecimento de água com a I......, em 15-10-2020.

31) Os Autores alteraram o seu domicílio fiscal para a fração autónoma supra referida em 1).

32) Com ressalva para o supra referido em 26) e 28), os Autores não pagaram e não pagam qualquer contrapartida pecuniária ao Réu pela utilização do imóvel.

33) O Réu trocou correspondência com a Ré tendo em vista chegarem a acordo quanto ao montante em dívida do Réu para com a Ré, a fim de o Réu proceder ao respetivo pagamento e obter o distrate das hipotecas que incidem sobre a fração supra referida em 1), a favor da Ré.

34) Não foi alcançado acordo entre a Ré e o Réu quanto ao valor que se encontra em dívida pelo Réu para com a Ré.

35) O Réu não procedeu ao pagamento à Ré do valor que esta lhe comunicou como sendo o valor em dívida, garantido pelas hipotecas.

36)A Ré não procedeu ao distrate das hipotecas.

37) O Réu interpelou a Ré para estar presente em 30-11-2020, na hora e local designados para a celebração do contrato de compra e venda da fração supra referida em 1).

38) Em 27-05-2021, CC (ora Réu no presente processo) intentou contra Hefesto Stc, S. A. (ora Ré no presente processo) e contra W..., S.A., uma ação declarativa de simples apreciação negativa, pedindo que se «declare a inexistência do crédito de qualquer montante das RR. perante o A., conforme se arrogam e, em consequência, ser cancelado o registo de hipoteca e eventualmente outros dados e registos que se encontrem efetuados a favor da 1.ª R».

39) O valor locativo da fração supra referida em 1), desde 20-03-2020, é de € 1.224,90/mês.

40) - Os Autores estavam ao corrente, porque o 1º Réu sempre os foi informando, da existência de um litígio entre o Réu e a co-ré HEFESTO, relativo ao valor em dívida pelo réu, cujo pagamento era necessário para se obter o distrate das hipotecas que incidem sobre a fração supra referida em 1), a favor daquela co-Ré, bem como das negociações que corriam entre estes Réus. (facto ora aditado).

41) - O 1º réu deu conhecimento aos AA que iria interpor uma acção contra a 2.ª R., no sentido de resolver o conflito existente entre ambos, sendo que prevendo a demora de tais trâmites legais, propôs aos AA. devolver o sinal em singelo, contra a entrega do imóvel, que os AA. recusaram pois queriam e ainda pretendem a concretização da compra, através da realização do contrato prometido. (facto ora aditado).

NÃO PROVADOS

“- A carta referida em 15) foi recebida pelos Autores em data posterior a 29-06-2020.

- A ação referida em 38), foi instaurada por acordo com os Autores na presente ação.

- Os Autores acordaram com o Réu que a celebração do contrato de compra e venda da fração supra referida em 1) só ocorreria depois de conhecido o desfecho da ação referida em 38).

- Os Autores acordaram com o Réu que as quantias relativas ao IMI da fração supra referida em 1) seriam suportadas pelos Autores.

- A partir de 20-03-2020, o Réu pagou quantias de despesas de condomínio que não foram reembolsadas pelos Autores.”

B) DO DIREITO

Definido o objecto dos recursos/revistas – cfr. “thema decidendum” supra/A) – passemos, então, à análise dos temas em discussão.

Estamos na presença dum contrato-promessa em que os AA são os promitentes compradores e o 1ª R o promitente vendedor.

Como sabemos, este contrato preliminar ou pré-contrato timidamente previsto no denominado Código de Seabra (1867) teve consagração definitiva no Código Civil de 1966, ainda vigente – para maior desenvolvimento doutrinal sobre este importante instituto, M. J. Almeida Costa, in “Contrato-Promessa - Uma Síntese do Regime Actual”, pags. 21 a 24.

Como explica Calvão da Silva, a sua melhor regulação decorreu dum “panorama de crise social e económica” aproveitada, pelos promitentes vendedores, para incumprirem o prometido, mesmo quando o sinal fora prestado e tenha existido traditio do imóvel, “obrigando famílias inteiras a abandonar a habitação”, à procura de maior lucro, proporcionada pela inflação dos preços – in “Sinal e Contrato-Promessa”, pags.218 e ss.

O contrato-promessa está regulado, especificamente, nos artºs 410º a 413º, 441º, 442º, 755º nº 1 f) e 830º, todos do Código Civil/CC, sendo de assinalar no desenvolvimento deste instituto, os DL 236/80, de 18-7 e DL 379/86, 18-7.

O caso decidendi, que não devemos/podemos perder de vista, é um exemplo da sua utilidade, uma vez que os contratantes quando subscreveram o contrato-promessa ainda não tinham condições para formalizar o contrato definitivo, de compra e venda, cujas regras lhe são aplicáveis em tudo que não seja incompatível com o regime próprio do contrato em análise – princípio da equiparação – artºs 874º e ss. aplicável ex vi artº 410º nº 1, todos do CC.

Provou-se, com manifesto interesse para a apreciação destes recursos/revistas, que:

“- Em 31-12-2019, entre, por um lado, CC (ora Réu), como promitente vendedor, e, por outro lado, AA e BB (ora Autores), como promitentes compradores, foi celebrado um acordo com o teor que consta do documento intitulado «CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA», apresentado como documento 1 com a petição inicial, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido.

- Em 31-12-2019, AA e BB (ora Autores) entregaram a CC (ora Réu) a quantia de € 26.000,00, como sinal e princípio de pagamento.

- CC (ora Réu) e AA e BB (ora Autores) acordaram em adiar a celebração da escritura de compra e venda da fração autónoma designada pela letra “Q” pelo período de 90 dias, a contar de 20-03-2020, tendo celebrado um acordo com o teor que consta do documento intitulado «ADITAMENTO AO CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA», apresentado como documento 10 com a petição inicial, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido.

- No dia 29-06-2020, pelas 10:00 horas, nas instalações do Banco Santander Totta, S. A., sitas na Rua ..., n.º 796, ... – data, hora e local designados para a celebração do contrato de compra e venda da fração supra referida em 1), o Réu não compareceu para a celebração da compra e venda acabada de referir, tendo comparecido osAutores.

- Em 30-06-2020, entre, por um lado, CC (ora Réu), como promitente vendedor, e, por outro lado, AA e BB (ora Autores), como promitentes compradores, foi celebrado um acordo com o teor que consta do documento intitulado «2.º ADITAMENTO AO CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA CELEBRADO EM 31 DE DEZEMBRO DE 2019», apresentado como documento 16 com a petição inicial, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido.

- No dia 08-10-2020, pelas 10:30 horas, nas instalações do Banco Santander Totta, S. A., sitas na Rua ..., n.º 796, ... – data, hora e local designados para a celebração do contrato de compra e venda da fração supra referida em 1) –, a Ré não compareceu para entregar o distrate das hipotecas, contra a entrega do montante em dívida garantido pelas hipotecas que incidem sobre a mencionada fração, tendo comparecido os Autores e o Réu.

- No dia 30-11-2020, pelas 10:00 horas, nas instalações do Banco Santander Totta, SA., sitas na Rua ..., n.º 796, ... – data, hora e local designados para a celebração do contrato de compra e venda da fração supra referida em 1) - a Ré não compareceu para entregar o distrate das hipotecas, contra a entrega do montante em dívida garantido pelas hipotecas que incidem sobre a mencionada fração, tendo comparecido os Autores e o Réu.

- Autores e Réu acordaram, mediante a subscrição do «ADITAMENTO AO CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA» supra referido em 11), «que no dia 20/03/2020 [o Réu] […] procedeu à entrega [aos Autores] […] da chave do imóvel, para permitir que estes pudessem, entretanto, proceder à mudança da residência e assim ocuparem, exclusivamente, o imóvel»; «que, na impossibilidade de transferir de momento para [os Autores] […] os contratos de fornecimento de gás e eletricidade (EDP) e de água (I......), estes irão manter-se em nome do [Réu] […]»; «que, a partir de 20/03/2020, os custos de luz e água serão suportados exclusivamente pelos [Autores] […]»; «que, a partir de 01/04/2020, as despesas de condomínio serão exclusivamente suportadas pelos [Autores] […]»; e «que [o Réu] […] mantém o pagamento mensal à Administração de Condomínio […] fornecendo posteriormente [aos Autores] […] o respetivo valor, que será liquidado até ao dia 8 (oito) de cada mês, mantendo-se essa situação até à realização da escritura definitiva».

- O Réu entregou as chaves do imóvel aosAutores em 20-03-2020.

- A partir dessa data os Autores passaram a utilizar o imóvel, ficando responsáveis pelo pagamento das despesas relativas ao fornecimento de eletricidade, gás e água, bem como das despesas de condomínio.

- Em 27-05-2021, CC (ora Réu no presente processo) intentou contra Hefesto Stc, S. A. (ora Ré no presente processo) e contra W..., S.A., uma ação declarativa de simples apreciação negativa, pedindo que se «declare a inexistência do crédito de qualquer montante das RR. perante o A., conforme se arrogam e, em consequência, ser cancelado o registo de hipoteca e eventualmente outros dados e registos que se encontrem efetuados a favor da 1.ª R».

- Os Autores estavam ao corrente, porque o 1º Réu sempre os foi informando, da existência de um litígio entre o Réu e a co-ré HEFESTO, relativo ao valor em dívida pelo réu, cujo pagamento era necessário para se obter o distrate das hipotecas que incidem sobre a fração supra referida em 1), a favor daquela co-Ré, bem como das negociações que corriam entre estes Réus. (facto ora aditado).

- O 1º réu deu conhecimento aos AA que iria interpor uma acção contra a 2.ª R., no sentido de resolver o conflito existente entre ambos, sendo que prevendo a demora de tais trâmites legais, propôs aos AA. devolver o sinal em singelo, contra a entrega do imóvel, que os AA. recusaram pois queriam e ainda pretendem a concretização da compra, através da realização do contrato prometido. (facto ora aditado).”

Estes últimos factos sublinhados a negrito, não tinham sido dados como provados pela 1ª Instância e, como veremos, são decisivos para o desenlace deste processo.

E são factos definitivamente assentes, uma vez que a impugnação da decisão de facto se esgota com a reapreciação da Relação, “salvo havendo ofensa duma disposição expressa na lei que exija certa espécie de prova para a existência do ou que fixe a força de determinado meio de prova”, ou seja, violação do direito probatório material, o que não se verifica in casuartº 674º nº 3 CPC.

Escreveu-se no acórdão recorrido:

“-…-

Acontece que nas diversas marcações da escritura pública de compra e venda promovidas pelos autores para as datas de 20.3.2020; 29.6.2020 e 8.10.2020 e 30.11.2020, a mesma não se realizou.

O motivo da não realização do contrato prometido celebrar é uma: a celebração do contrato de compra e venda do imóvel prometido vender, não de mostra possível de realizar nos termos acordados porque o Réu não libertou de «ónus, encargos e hipotecas» esse imóvel, sendo certo que prometeu vender tal imóvel aos autores livre de ónus ou encargos.

Como é sabido, de acordo com o disposto no art. 406º do CC, o contrato deve ser pontualmente cumprido, só podendo modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos por lei.

Daí que tenhamos de concluir que o incumprimento do contrato promessa é imputável ao aqui Apelante. E trata-se de um incumprimento culposo no sentido que a ele competia o ónus de libertar a fração autónoma prometida vender das hipotecas que sobre a aludida fração autónoma impendem e não libertou, pelo que se encontra impedido de cumprir a obrigação a que se vinculou no contrato promessa de vender aosAA a identificada fração livre de ónus.

Daí que concordemos com a sentença quando se afirma: “A Ré – credor hipotecário – não assumiu qualquer compromisso perante os Autores e os Autores não condicionaram a celebração da escritura à resolução do litígio entre o Réu e a Ré, quanto ao montante necessário para os distrates das hipotecas. Não foi pelo facto de a Ré não ter comparecido para a celebração da escritura que esta não se realizou, a escritura não se realizou porque o Réu não obteve o distrate das hipotecas. A não celebração do contrato-promessa é, pois, imputável ao Réu, promitente vendedor (…)”.

Acontece que, tal como já referimos anteriormente, fazendo apelo à jurisprudência nesta matéria, só no caso de incumprimento definitivo do contrato-promessa pelo promitente-vendedor, e não no de simples mora, há lugar à resolução do contrato e à aplicação das sanções previstas no artigo 442.º do C.Civil.

Daí que importe agora analisar a factualidade provada em ordem a apurar se o incumprimento do apelante se traduz numa situação de incumprimento definitivo do contrato promessa.

Aquando da derradeira marcação da escritura pública de compra e venda, os AA dirigiram ao ora apelante uma carta registada com a/r datada de 29.10.2020, onde se pode ler:

“ULTIMA MARCAÇÃO” Exmº Sr. Dr.

Em conformidade com a cláusula 6ª do contrato promessa de compra e venda, celebrado entre nós em 31.12.2019 referente á fração autónoma designada pela letra “Q” (…), venho pela presente informar que a escritura pública de compra e venda está agendada para o dia 30 de novembro de 2020, pelas 10.00 horas, na Rua na Rua ..., n.º 796, ... e para o efeito deverá providenciar todos os documentos e ações necessárias para a realização da mesma. Mais informamos que como é do s/ conhecimento, está é a terceira e última marcação da escritura pública de compra e venda que efetuamos.

Como referimos na última reunião, caso a escritura pública não se realize na data supra epigrafada, consideramos resolvido o contrato promessa de compra e venda celebrado em 31/12/2019 em virtude de o crédito hipotecário aprovado pelo banco, ter validade até 2.12.2020.

Na eventualidade da não realização da escritura pública, será por culpa imputável a Vª Exª, pelo que iremos recorrer á via judicial para reclamarmos o sinal em dobro de 56.000,00 mais o reconhecimento do direito de retenção, dado termos a posse do imóvel desde 20.3.2020. (…)”

No dia 30-11-2020, pelas 10:00 horas, nas instalações do Banco Santander Totta, S. A., sitas na Rua ..., n.º 796, ... – data, hora e local designados para a celebração do contrato de compra e venda da fração supra referida em 1) –, a Ré não compareceu para entregar o distrate das hipotecas, contra a entrega do montante em dívida garantido pelas hipotecas que incidem sobre a mencionada fração, tendo comparecido os Autores e o Réu. A proposta de empréstimo bancário concedida aos Autores tendo em vista a aquisição da fração supra referida em 1), só tinha validade até 02-12-2020. Os autores em 21.1.2021 remeteram ao ora apelante nova carta registada com a/R dizendo: “Serve a presente para reiterar que em virtude de Vº. Exa. não ter tido condições para cumprir o contrato promessa de compra e venda celebrado entre nós em 31.12.2019, consideramos o contrato resolvido e perdemos o interesse na manutenção do mesmo. Pelo que vamos recorrer á via judicial.”

Na sentença sob recurso entendeu-se que o contrato foi validamente resolvido por ocorrer “incumprimento definitivo, como decorre das várias tentativas frustradas para a celebração do contrato prometido e da interpelação admonitória dirigida ao Réu pelos Autores, consubstanciada na carta datada de 29-10-2020 (documento 21 apresentado com a petição inicial).

Sendo o incumprimento imputável ao Réu, promitente vendedor, que recebeu dos Autores um sinal de € 28.000,00, têm os Autores o direito a resolver o contrato-promessa celebrado com o Réu e a exigir do Réu o dobro do sinal que prestaram (art. 442.º, n.º 2 do Código Civil).”

É com esta decisão que os Réus não se conformam, defendendo que se mostrou patente das declarações prestadas pelos autores na audiência de julgamento que aqueles não perderam o interesse na realização do contrato prometido.

Como já o dissemos, as partes devem cumprir pontualmente o contrato, na medida do que se obrigaram, (cfr. artigos 405º e 406º e do Código Civil), visto que o contrato vale como lei em relação aos contraentes.

As relações obrigacionais podem extinguir-se por resolução – a resolução destrói a relação contratual (validamente constituída), sendo operada por um dos contraentes, com base num facto posterior à celebração do contrato - A. Varela, in “Das Obrigações em Geral”, Vol. II, p. 265.

Consiste a resolução, como é sabido na destruição da relação contratual operada por ato posterior de vontade de um dos contraentes que pretende fazer regressar as partes à situação em que se encontrariam se o contrato não tivesse sido celebrado.

Como salienta Brandão Proença “o exercício fundado do direito de resolução, origina à luz dos arts. 433º, 289º, 434º nº 1 primeira parte, do C.C., uma eficácia retroativa entre as partes contratantes consubstanciada numa relação de liquidação em que a normal reposição entre as partes da situação vigente ao tempo da celebração contratual deve obedecer ao princípio da restituição integral e ao princípio da simultaneidade do cumprimento dessa obrigação de restituição” - in “A resolução do Contrato no Direito Civil”, pg. 171.

O que é preciso é que uma das partes esteja em falta e a outra não, ou seja, que um dos contraentes não execute culposamente o contrato e que o outro o tenha executado ou se tenha prestado a executá-lo.

De acordo com o preceituado no artigo 432º, n.º 1, do CC, a resolução do contrato é admitida fundada na lei ou em convenção das partes.

Na generalidade dos casos, a resolução assentará num poder vinculado, obrigando-se a parte que dela se pretende fazer valer a alegar e provar o fundamento, previsto na convenção das partes ou na lei, que justifica a destruição unilateral do contrato - A. Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, p. 265.

A resolução é, na maior parte dos casos, extrajudicial, não necessitando do concurso do tribunal para operar os seus efeitos, pois que opera mediante declaração de uma parte à outra – art. 436º, nº 1 do CC.

Além disso, importa ter em atenção que as declarações negociais são receptícias (cfr. o artigo 224.º, n.º 1, do Código Civil), pelo que a declaração de resolução se torna plenamente eficaz logo que chega à esfera do seu destinatário, maxime nos termos convencionados pelas partes.

No domínio da resolução legal, como é consabido, por via de regra, a mora, enquanto mero atraso na realização da prestação devida pelo devedor, não consente a imediata resolução do contrato, gerando apenas o direito ao cumprimento e a obrigação de indemnizar pelos danos causados (artigo 804º, do Cód. Civil), pois que a cessação do contrato, enquanto última ratio, pressupõe uma situação de incumprimento definitivo imputável ao devedor.

De facto, por princípio, o simples retardamento na realização da prestação não compromete de forma irremediável o interesse do credor, nem traduz, de per si, uma conduta intolerável do devedor que justifique a rutura do contrato por parte do credor.

O direito de resolução do contrato, traduzido no ato de um dos contraentes, dirigido à dissolução do vínculo contratual contemplado no artigo 432.º, do Código Civil, assumindo pleno cabimento no âmbito do contrato-promessa (já que o incumprimento deste contrato é regido pelos preceitos de carácter geral atenta a equiparação estabelecida pelo n.º1 do artigo 410.º relativamente ao contrato prometido), constitui um direito potestativo com eficácia extintiva dependente de um fundamento legal, que é a situação de incumprimento definitivo (resolução de génese legal), ou da verificação de uma cláusula resolutiva expressa (resolução de origem contratual).

Daí que inexista direito de resolução sem o “juízo de inadimplemento”. Porque, no caso, o direito de resolução não foi convencionado entre as partes, a validade da destruição do vínculo contratual firmado mostra-se dependente da verificação de fundamento legal legitimado na situação de incumprimento definitivo do contrato que pode ser configurada por diversas vias: impossibilidade de cumprimento, falta de cumprimento de obrigação que, pelas circunstâncias que a rodeiam, revele a clara intenção de não cumprir; falta de cumprimento depois de ter sido expressamente interpelado para o efeito; recusa de cumprimento; desinteresse objetivo da parte (que poderá ser caracterizado pelo decurso de um prazo excessivo revelador da falta de vontade de cumprir ou do desinteresse da contraparte) - cfr. artigos 801 e 808.º, n.º1, do Código Civil.

Assim sendo, a resolução do contrato enquanto exercício de um direito potestativo vinculado impõe à respetiva parte o ónus de alegar e demonstrar o fundamento justificativo da desvinculação contratual.

Restará, pois, apurar se os promitentes compradores lograram demonstrar o incumprimento definitivo do contrato promessa por parte do aqui Apelante suscetível de fundar a declaração resolutiva do contrato promessa.

Com efeito, no que aos contratos em geral concerne existem três formas de não cumprimento: a falta de cumprimento ou incumprimento definitivo, a mora ou atraso na prestação e o cumprimento defeituoso - A. Varela, “Das Obrigações em Geral”, 9ª ed., II, págs.62 e segs

A falta de cumprimento ocorre quando a prestação deixou de ser executada no devido tempo e já não pode ser cumprida por se tornar impossível (art.ºs 801º e 802º do C.Civil).

O incumprimento definitivo do contrato promessa tem de ser aferido pelas regras gerais do não cumprimento das obrigações estabelecidas no art. 808º do C.C.

A declaração rescisória contida na carta de 21.1.2021, indica como fundamento da resolução o facto do 1º Réu não ter tido condições para cumprir o contrato promessa de compra e venda na data da escritura de 30.11.2020, e terem perdido o interesse na manutenção do contrato.

É ainda certo que aquando da marcação da escritura pública para aquela data os AA haviam já informado o 1º R que aquela seria “a terceira e última marcação da escritura pública de compra e venda que efetuamos.” E ainda que “caso a escritura pública não se realize na data supra epigrafada, consideramos resolvido o contrato promessa de compra e venda celebrado em 31/12/2019 em virtude de o crédito hipotecário aprovado pelo banco, ter validade até 2.12.2020.” Não resultando dos autos que as partes tivessem convencionado entre si um prazo fixo, perentório, ou absoluto, a não celebração do contrato prometido nas datas agendadas pelos Autores, por si só, configurará, à partida, apenas uma situação de mora no cumprimento da prestação. Tanto é assim que a escritura foi sucessivamente adiada com o acordo dos contraentes.

A mora, enquanto modalidade do incumprimento contratual latu sensu pressupõe que a prestação, sendo ainda possível, não tenha sido realizada no prazo certo acordado no contrato cfr. arts. 804º nº 2 e 805º nº 2 al a) do C Civil.

Tal incumprimento não é ainda definitivo e como tal mostra-se insuficiente para fundamentar a resolução contratual.

Porém, a mora poderá converter-se em incumprimento definitivo.

Isto ocorre através dos mecanismos previstos no art. 808º do C.C, aos quais a jurisprudência acrescenta ainda a recusa categórica do devedor em cumprir.

Estabelece esta norma o seguinte: “Se o credor em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação.

A perda do interesse ma prestação é apreciada objetivamente.” Tem-se como pacífico o entendimento que, para produzir os efeitos de incumprimento e resolução estabelecidos na norma, interpelação admonitória, deve, além de fixar um prazo razoável para o cumprimento, informar com clareza que a inexecução da prestação dentro desse prazo terá como consequência ter-se a mesma como definitivamente não cumprida, isto é, deve conter uma intimação clara e inequívoca para cumprir sob pena de se ter como verificado o incumprimento definitivo.

Assim, a interpelação deverá conter uma declaração inequívoca, precisa e não condicionada de que o contrato se tem por incumprido e será resolvido se, no prazo perentório suplementar, a prestação não for efetuada.

Neste contexto, nas obrigações sem prazo limite ou perentório para o seu cumprimento, tem o credor, perante a mora do devedor e salvo a hipótese de perca de interesse (apreciado objetivamente) na prestação, que o instar ao cumprimento dentro de um prazo suplementar e razoável que lhe estabeleça para o efeito, sob pena de a mora se transformar em incumprimento definitivo – cfr. artigo 808º, n.º 1, do Cód. Civil - legitimando a resolução do contrato.

Como assinala em termos unânimes a doutrina, a realização por parte do credor da citada interpelação do devedor é, nos casos de mora na realização da prestação devida, meio indispensável para gerar um eventual incumprimento definitivo do contrato (pelo devedor que não cumpra naquele prazo razoável) e para, nesse contexto, permitir ao credor a resolução do contrato.

Neste sentido, isto é, a interpelação admonitória é um instrumento de conversão da mora em incumprimento definitivo.

O Professor Batista Machado a este propósito observa que a interpelação admonitória com fixação de prazo perentório para o cumprimento está longe de constituir uma violência para o devedor que apenas de si próprio se poderá queixar, por não ter cumprido, nem quando inicialmente devia fazê-lo nem dentro do prazo que para o efeito, posteriormente lhe foi fixado. O mais que o devedor pode fazer é discutir a razoabilidade do prazo suplementar que o credor fixou, uma vez que a lei alude a prazo que razoavelmente for fixado - Pressupostos da Resolução por Incumprimento”, in “Obra Dispersa”, I, pg. 42 Citado por Antunes Varela e Pires de Lima em anotação ao art. 808º in CC anotado, II Vol, 3ª edição, pg 72.

Os AA justificaram o prazo curto que fixaram, (a anterior escritura pública tinha sido marcada para menos de um mês antes, em 8.10.2020) por terem aprovado um crédito bancário para a aquisição do imóvel e aquele ter apenas validade até 2.12.2020.

Considerando as concretas circunstâncias do caso em apreço, a fixação de tal prazo não se nos afigura razoável, pelas seguintes razões:

Tal como se provou, os autores foram informados do litígio existente entre o Réu e o credor hipotecário quanto ao montante em dívida necessário para aquele obter o distrate das hipotecas sobre o imóvel prometido vender.

Os autores sabiam que o Réu tinha intenção de lhes vender o imóvel, queria pagar o crédito hipotecário, tendo-lhes explicado porque é que não podia pagar o valor peticionado para o distrate da hipoteca, tendo diligenciado, no sentido de ser resolvido o diferendo cm o credor hipotecário, interpondo uma ação judicial, para resolver o litígio e dessa forma ultrapassar o impasse.

Da parte dos AA, exceder o prazo fixado, não inviabilizaria a possibilidade de poderem cumprir com a compra acordada, apenas os obrigaria a diligenciarem naquela ou noutra instituição bancária a obtenção de novo empréstimo, nada havendo nos autos que indique que o novo empréstimo não seria obtido, nem tão pouco alegaram que as condições seriam menos vantajosas.

Por outro lado, tal como ficou provado, prevendo a demora inerente á ação judicial que o réu ia intentar, este chegou a propor aos AA. devolver o sinal em singelo, contra a entrega do imóvel, o que os AA. recusaram, (sendo certo que não eram obrigados a aceitar), mas fizeram-no porque queriam e ainda pretendem a concretização da compra, através da realização do contrato prometido.

Em face deste facto, ou seja, da vontade que os AA expressaram de pretenderem concretizar a compra, não se mostra razoável o prazo que fixaram na interpelação admonitória que fizeram ao Réu, porque sabiam de antemão que aquele não estava em condições de cumprir.

Com efeito, houve um segundo aditamento ao contrato promessa, em que as partes, por acordo, acordaram que o contrato prometido fosse celebrado em 8.10.2020.

À escritura pública designada para essa data compareceram os AA e o Réu, tendo aquele esclarecido os AA que não obteve o distrate da hipoteca e que iria intentar uma ação contra o credor hipotecário.

Os AA autores disseram ao Réu que continuavam a querer concretizar a compra.

Provou-se em audiência de julgamento, que os AA ainda hoje querem comprar a prometida fração. Queixaram-se dos incómodos que esta situação de incerteza lhes traz, mas nunca disseram que já não queriam adquirir o imóvel, a que sempre se referiam como a “nossa casa”.

Ora, os AA continuam a habitar a fração prometida vender, nas mesmas condições anteriores, o que fazem desde março de 2020, sendo que ali pretendem continuar a viver.

Acresce que o autor, no depoimento de parte que prestou afirmou a este propósito o seguinte: “Nós queremos ficar no imóvel porque isto foi sempre tudo para pressionar e a última marcação da escritura foi em consonância com ele por forma a pressionar a Hefesto de forma a chegarem a um acordo para comparecer. E ele disse que aceitava o acordo e chegou ao dia e não aceitou. Não sei. A comunicação com a Hefesto, desconheço.” (sublinhado nosso).

Ou seja, resulta do depoimento prestado pela própria parte que a interpelação admonitória enviada ao réu, foi pensada como forma de pressionar a realização da escritura pública, pressionando nomeadamente o credor hipotecário uma vez que este iria ser pago no ato da compra e venda.

Não tiveram assim os AA a intenção de fixar um último e definitivo prazo a partir do qual os autores pretendiam “desfazer” o negócio.

Do exposto podemos concluir que, se à partida a interpelação admonitória seria suscetível de converter a mora do réu em incumprimento definitivo, tal não ocorre, porque, em face das concretas circunstâncias apuradas, o prazo concedido para o efeito, não se mostra razoável, para efeitos do art. 808º nº 1 do C.Civil, pelo que não se tem o contrato promessa por incumprido definitivamente pelo réu, subsistindo a mora no cumprimento da obrigação do réus, uma vez que a obrigação ainda pode ser cumprida.

Daí que tenhamos de concluir que o contrato não se mostra validamente resolvido.

Impõe-se desta foram a revogação da sentença na parte em que julgou procedente a ação, com fundamento da validade da resolução contratual, impondo-se a absolvição do réu do peticionado pelos autores, como consequência da resolução contratual, nomeadamente o pagamento do sinal em dobro e a absolvição das rés de verem reconhecido o direito de retenção sobre o imóvel.

Com efeito, apenas se provou que subsiste uma situação de incumprimento contratual por parte do 1º réu, com fundamento da mora.

Em consequência do exposto, o pedido reconvencional mostra-se igualmente improcedente, uma vez que, em face do exposto também não se pode concluir pelo incumprimento do contrato promessa por banda dos Autores (por perda do interesse da prestação), fundamento em que assentava a pretensão do Reconvinte formuladas em sede reconvencional, mantendo-se a absolvição dos pedidos formulados pelos reconvindos.

-…-”

Como se constata, entendeu a Relação haver incumprimento contratual por parte do 1º R (promitente vendedor), mas não de modo definitivo, antes na forma de mora, uma vez que a não realização da escritura de compra e venda do imóvel em causa não pode ser imputada aos AA, deveu-se, sim, à não comparência da 2ª R, em litígio com o 1º R – artº 813º CC.

Contudo, o 1º R informou os AA da existência desse conflito relacionado com o valor em dívida, impeditivo da obtenção dos distrates das hipotecas que incidem sobre imóvel em causa.

O 1º R também deu a conhecer aos AA que iria propor uma acção judicial contra 2ª R, “sendo que prevendo a demora de tais trâmites legais, propôs aos AA. devolver o sinal em singelo, contra a entrega do imóvel, que os AA. recusaram, pois, queriam e ainda pretendem a concretização da compra, através da realização do contrato prometido”

Daqui resulta que ambas as partes continuam a ter interesse na concretização do prometido contrato.

Significa isto que os AA estão adstritos a essa manifestação de interesse para sempre?

Claro que não.

A perda de interesse na prestação é apreciada objectivamente, nos termos do artº 808º nº2, do CC.

E o que vemos é o que se segue: houve traditio do imóvel, encontrando os AA a habitá-lo, desde o primeiro trimestre de 2020, e o 1º R recebeu dos AA, aquando da celebração do contrato-promessa (31-12-2019), a título de sinal, “a quantia de € 26.000,00”.

Ambas as partes estão, pois, a beneficiar da situação criada na sequência do acordado, não se mostrando razoável/proporcional qualquer delas solicitar a “destruição” do contrato.

Senão, vejamos.

O instituto da resolução contratual – artºs 437º e ss. do CC - tem especificidades no que ao contrato promessa diz respeito, plasmadas no estabelecido no artº 442º do CC, de que se realçam a perda do sinal a favor do promitente comprador, e o recebimento do sinal em dobro em benefício do promitente vendedor, consoante o incumprimento contratual seja imputável ao primeiro ou ao segundo contratante.

A execução específica não foi ponderada pelos AA - contraente não faltoso - opção legítima face ao disposto no nº 3 do citado artº 442º e artº 830º, ambos do CC, e à condicionante do desentendimento entre os RR.

Os AA gozam ainda do direito de retenção sobre o imóvel de que estão legitimamente na posse – artº 755º nº 1 f), do CC, e simultaneamente, constitui uma garantia em relação aos créditos resultantes do não cumprimento imputável à outra/o parte/contratante.

Pretendendo o promitente vendedor fazer seu o sinal recebido, ficaria prejudicada a sua reivindicação de qualquer outra indemnização – artº 442º nº 4 do CC.

Resta analisar se a última notificação do 1º R a fim de se proceder a efectivação da escritura do prometido contrato de compra e venda, constituiu, ou não, uma verdadeira interpelação admonitória, susceptível de transformar a registada mora em incumprimento definitivo.

Como elucida o acórdão do STJ - 2ª Secção, relatado pelo Conselheiro Fernando Baptista, de 12-9-2023 e publicitado, in www.dgsi: “(…) há que distinguir a mora do incumprimento definitivo (…); a simples mora não concede o direito à resolução imediata do contrato, salvo se houver perda de interesse (…). A interpelação admonitória com fixação de prazo peremptório para o cumprimento a que se refere a segunda parte do n.º 1 do art. 808.º é, pois, uma intimação formal, dirigida ao devedor moroso para que cumpra a sua obrigação dentro de certo prazo determinado, sob pena de se considerar o seu não cumprimento como definitivo. Assim, através da fixação de um prazo peremptório, obtém‑se uma clarificação definitiva de posições. A interpelação admonitória deve conter três elementos: a) a intimação para o cumprimento; b) a fixação de um termo peremptório para o cumprimento; c) admonição ou a cominação (declaração admonitória) de que a obrigação se terá por definitivamente não cumprida se não se verificar o cumprimento dentro daquele prazo. Trata‑se, pois, de uma declaração intimativa»; «Uma intimação para cumprir que não contenha um termo preciso, mas se reporte apenas a um prazo «breve» ou «brevíssimo», ou a um prazo «razoável», não pode valer para o efeito – Baptista Machado, in “Pressupostos da Resolução por Incumprimento”, pp 164 – 5, Vol. I, pp. 125 e ss.

(…)”

Ora, como já assinalámos os factos assentes não permitem concluir terem os contratantes perdido interesse na realização do negócio prometido.

Há igualmente que convir que o tempo que mediou, entre a penúltima marcação e a intitulada “última" marcação da escritura, foi de cerca de um mês, prazo não razoável para se ultrapassar o litígio entre os RR.

Por tudo o que fica dito, desde logo, tendo em atenção o incumprimento moratório do 1º R, não se pode imputar aos AA uma conduta integradora do conceito de abuso de direito prevista no artº 334º CC, do seguinte teor: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos da boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Nem de litigância de má-fé, uma vez que a sua posição nos autos foi ao nível da discordância factual e de Direito perfeitamente aceitável, como demonstra a divergente decisão em sede de 1ª Instância – artº 542º do CC.

Concluindo e sumariando:

I – A resolução do contrato-promessa em causa solicitada pelos AA e 1º R, na acção e na contra-acção, respectivamente, pressupunham o incumprimento definitivo por parte dos mesmos, sendo que só se apurou a mora do 1º R na realização do prometido contrato de compra e venda.

II – A interpelação admonitória para ser eficaz exigia que o Tribunal concluísse objectivamente pelo desinteresse dos AA na realização daquele negócio, e que fosse concedido ao 1º R um prazo razoável para ultrapassar o litígio que mantém com a 2ª R.

DECISÃO

- Assim e pelos fundamentos expostos, julgam-se improcedentes os recursos/revistas, e consequentemente, mantém-se o decidido pela Relação.

- Custas pelos recorrentes/AA e 1º R, na medida do respectivo vencimento.

Lisboa, 19-9-2024

Afonso Henrique (relator)

Ana Paula Lobo

Maria da Graça Trigo