I. À reclamada indemnização pelo lesado de nacionalidade francesa, na sequência dum acidente ocorrido em Portugal, são aplicáveis as regras decorrentes dos artigos 498º, 300º a 327º e 279º do Código Civil português (e não os artigos 2270 do Code civil, conjugado com 640 do Code de procédure civil franceses).
II. O prazo de prescrição (do direito reclamado) apenas começa a contar a partir do cumprimento da obrigação do credor sub-rogado.
III. As semelhanças entre a figura da sub-rogação e do direito de regresso, impõem a aplicação do disposto no nº 2 do artº 498º do CC, se não por analogia, pelo menos por interpretação extensiva.
ACORDAM NESTE SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (2ª SECÇÃO)
RECORRENTE/AUTOR: FONDS DE GARANTIE DES VICTIMES DES ACTES DE TERRORISME ET D’AUTRES INFRACTIONS.
RECORRIDA: VICTORIA SEGUROS, SA/RÉ.
I - O Autor/A, “Fond de Garanties des Victimes”, intentou a presente acção contra a Ré/R, Victoria Seguros, SA, pedindo a condenação desta a reembolsar a A, na quantia de € 229 480,73, acrescida de juros moratórios contados desde a data da citação, até efectivo e integral pagamento.
Alegando para o efeito que:
- No dia ...-...-2010, na praia ..., AA, cidadão francês, quando nadava e mergulhava em local interdito à navegação de embarcações e apenas destinado à prática de banhos e de natação, foi atingido por uma embarcação, comandada pelo seu proprietário BB (que transferira a responsabilidade civil para a Ré), a qual veio a embater-lhe com a hélice provocando-lhe lesões corporais graves e obrigando-o a submeter-se a diversos tratamentos médicos;
- O acidentado cidadão francês demandou o Autor, enquanto organismo francês que suporta as indemnizações devidas por acidentes, no Tribunal de Primeira Instância de Lyon, formulando pedido de indemnização pelos danos sofridos em consequência do acidente de que foi vítima em Portugal;
- No âmbito desse processo judicial, as partes estabeleceram por acordo, o valor indemnizatório de € 229 480,73, que o Autor já pagou ao lesado;
- Quantia essa que pretende ser reembolsado ao abrigo da lei portuguesa no que se refere ao sinistro e à obrigação de indemnizar, e da lei francesa no que diz respeito às regras da prescrição e de contagem dos prazos, conforme decorre do artigo 19.º do Regulamento CE 864/2007, de 11.07.2007.
Ré apresentou contestação:
- Invocando a excepção peremptória da prescrição do direito, por aplicação da lei portuguesa à matéria da prescrição tendo em conta o disposto no artigo 45º, nº 1, do Código Civil/CC e para os fins previstos no artigo 498º, nº 1, do CC (na data da instauração da acção, 29.11.2016, há muito havia prescrito o direito do Autor).
- Impugnando os factos relacionados com o acidente, reconhece a sua ocorrência, bem como a existência do seguro marítimo que celebrou com o proprietário da embarcação envolvida;
Conclui pela prescrição do direito invocado pelo A e pela culpa do sinistrado/banhista.
Em resposta, o A pugnou pela improcedência da excepção da prescrição, entendendo que não decorreu o prazo prescricional face à lei francesa, nem face à lei portuguesa (498º, nº 3 CC).
Dispensada a Audiência Prévia foi proferido Despacho Saneador, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
Realizada a Audiência de Julgamento foi proferida sentença – parte decisória:
“Atento o circunstancialismo factual assente e a fundamentação jurídica invocada, em virtude da procedência da exceção perentória da prescrição (cfr. artigos 498.º, n.º 1, do Código Civil e 576.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), por inteiramente provada, o Tribunal julga improcedente a presente ação e, em consequência, absolve a Ré do pedido”.
II - Daquela sentença apelou o A para a Relação, onde foi proferido o seguinte acórdão – parte decisória:
“-…-
Com o poder fundado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, e nos termos do artigo 663.º do Código de Processo Civil, acorda-se, nesta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, face à argumentação expendida e tendo em conta as disposições legais citadas, em julgar improcedente a apelação, confirmando a Sentença recorrida.
Custas a cargo da Recorrente.
-…-”
III - Não se conformando como o decidido pelas instâncias, o A veio recorrer/revista para este STJ, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
A - Nos termos do artº 498 nºs1 e 2 do Código Civil o prazo prescricional só começa a contar da data do/dos pagamentos da indemnização ao lesado.
B - Não há sub-rogação antes do dito pagamento - artº 592 nº 1, 593 nº 1, ambos do Código Civil.
C - Antes de efectuar o pagamento do montante de 229.480,73€, não podia o Recorrente, sequer, propor a acção, uma vez que não se verifica a sub-rogação em relação a prestações futuras, ou seja, não vencidas.
D - Nos termos do artº 498, nº 2 do CC, contando do último pagamento (7.4.2014) o prazo prescritivo só terminaria em 7.4.2014, muito depois da data da instauração da acção e da citação da Ré.
E - Neste sentido, invocam-se os acórdãos citados nestas alegações, e no voto vencido, nos acs. do STJ de 27.04.2004 e 25.09.2010 relatados, respectivamente, pelos Conselheiros Ferreira Girão e Lopes Rego, e ainda o acórdão uniformizador da jurisprudência do STA nº 2/2018 que impõe decisão contrária à recorrida o qual, embora não obrigatório para os tribunais comuns, segue a melhor jurisprudência do STJ.
F - Face ao que fica exposto violou o acordo recorrido, por erro de interpretação e de não aplicação, a legislação referida nas alegações e nestas conclusões.
G - Deve o acórdão recorrido ser revogado, acolhendo-se as conclusões aqui formuladas.
H – O direito do recorrente deve ser reembolsado pela R, não se encontrando prescrito à data da instauração da acção.
I - Face à matéria de facto provada e não provada deve a recorrida ser condenada no pagamento da quantia peticionada, acrescida dos respectivos juros moratórios, tudo conforme alegado na petição inicial.
Assim, deverá o acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que julgue a presente revista procedente e condene a recorrida/R nos exactos termos peticionados.
Contra-alegou a recorrida/R, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
1 - O A. restringiu o objecto da sua revista à questão do início da contagem do prazo de prescrição de três anos do direito do sub-rogado (tendo excluído desse objecto a questão da extensão do prazo prevista no nº 3 do art. 498º do CC).
2 - O nº 2 do art. 498º do CC (que determina que o prazo de prescrição de três anos começa a contar do cumprimento) aplica-se ao direito de regresso entre os responsáveis solidários, previsto no nº 2 do art. 497º do mesmo código.
3 - Inexiste qualquer lacuna da lei quanto à questão do início da contagem do prazo de prescrição do direito do sub-rogado.
4 - Nos termos do arts. 585º do CC, aplicável ex vi do art. 588º do CC, a posição jurídica do devedor não pode ser prejudicada pela mudança do titular do direito.
5 - Nos termos do art. 308º/1 do CC, a transmissão do direito por sub-rogação não tem quaisquer efeitos sobre a contagem da prescrição já iniciada, que continua a correr.
6 - Assim, ao direito do sub-rogado aplica-se a regra geral do nº 1 do art. 498º do CC, que determina que o prazo de prescrição de três anos começa a contar da data em que o lesado (credor primitivo) teve conhecimento do seu direito.
7 - Ainda que houvesse alguma lacuna quanto ao início da contagem da prescrição do direito do sub-rogado, o que apenas se admite por mero dever de cautela e de patrocínio, a mesma deveria ser integrada com recurso aos arts. 598º, 585º (e, também, 598º), 593º/1 e 308º/1 do CC, conducentes à aplicação do nº 1 do art. 498º do CC.
8 - No caso dos autos, o prazo de prescrição de três anos começou a contar da data em que o lesado AA teve conhecimento do direito, o mesmo é dizer da data do acidente (4.8.2010), nos termos das referidas disposições legais, tendo-se completado em 4.8.2013, pelo que o direito já prescrevera em 7.4.2014 (data da realização do segundo pagamento) e, por maioria de razão, em 28.11.2016 (data de entrada da acção).
9 - Essa solução não ofende o disposto no art. 306º/1 do CC, pois importa não perder de vista que a sub-rogação é uma forma de transmissão de direitos e que, com ela, o direito e o seu exercício se transmitem do credor primitivo para o novo credor, do que resulta que o direito pode ser sempre exercido (ou a sua prescrição interrompida) pelo seu titular, ou seja, pelo credor originário, até à sub-rogação, e pelo novo credor, ulteriormente.
10 - Salvo melhor opinião, e com o devido respeito, a corrente jurisprudencial que entende que o disposto no nº 2 do art. 498º do CC se aplica ao direito do sub-rogado viola regras básicas de interpretação da lei, contidas no art. 9º do CC:
a) Despreza o elemento literal do nº 2 do art. 498º do CC (do qual resulta, claramente, que o legislador se quis referir, apenas, ao direito de regresso previsto no nº 2 do art. 497º do CC) e não procura reconstituir o pensamento legislativo, com recurso à unidade do sistema jurídico (e consequente ponderação dos arts. 308º/1, 585º, 588º e 593º/1 do CC);
b) Acolhe uma solução sem o mínimo de correspondência verbal na letra da lei;
c) Considera ilidida a presunção prevista no nº 3 do art. 9º do CC sem que haja quaisquer indícios de que o legislador se exprimiu mal (pelo contrário, a solução contemplada no nº 2 do art. 498º do CC é coerente com o disposto nos arts. 308º/1, 585º, 588º e 593º/1 do mesmo código, extraindo-se de todas essas disposições o princípio de que a posição jurídica de devedor não pode ser prejudicada pela transmissão do direito);
d) Viola flagrantemente o art. 308º/1 do CC.
12 - O acórdão recorrido interpreta e aplica correctamente os arts. 308º/1, 498º/1, 585º, 588º, 593º/1 e 598º do CC e não viola quaisquer disposições legais, nomeadamente o art. 306º/1 do CC.
Termos em que devem V. Exas. negar provimento à revista e, em consequência confirmar o acórdão absolutório recorrido, com o que fareis a costumada Justiça.
IV - DA ADMISSÃO DO RECURSO/REVISTA
O recurso/revista foi devidamente admitido, nos termos do artº 671º nºs 1 e 3 do CPC, sendo certo que apesar da existência de dupla conforme, o acórdão recorrido não foi subscrito por unanimidade – do mesmo consta um voto de vencido.
V - APRECIANDO E DECIDINDO
Thema decidendum
Em função das conclusões do recurso/revista, o presente recurso está circunscrito às seguintes questões:
a) Aquilatar do momento relevante para a contagem do prazo de prescrição:
b) E da aplicação, ou não, do artº 498º nº 2, do CC, em caso de sub-rogação no direito do lesado.
VI - DOS FACTOS
São os seguintes os factos dados como provados pelas instâncias:
1. No dia 4 de Agosto de 2010, pelas 17h30, ocorreu, em frente à praia ... (Algarve), um acidente entre a embarcação “S.....”, registada com o número ..44FR5, comandada pelo seu proprietário BB, e o banhista AA, cidadão de nacionalidade francesa.
2. Quando a referida embarcação navegava na zona da praia ..., em frente ao restaurante ..., embateu com a hélice no aludido banhista…;
3. …o qual nadava munido de óculos, snorkel (tubo) e barbatanas;
4. O referido embate deu-se a cerca de 250 metros para nascente em relação à linha de costa, a cerca de 120/140 metros de terra e à tona de água…;
5. ...em zona interdita à navegação de embarcações…;
6. …destinada exclusivamente à prática de banhos e natação…;
7. …entre a unidade balnear 4 e a unidade balnear 5 (UB4 e UB5).
8. A embarcação não possuía a bordo qualquer tipo de equipamento de apoio à navegação (designadamente, GPS ou radar).
9. Como consequência directa do embate da hélice no corpo do banhista, este sofreu traumatismo no membro superior esquerdo, fractura de Monteggia com diafisiarias expostas no cúbito radial, ferida incisa contusa a nível do cotovelo e na mão esquerda com amputação traumática total do D 2, 3 e 4 e esfacelo da mão distal semi-amputada e isquemia distal.
10. O sinistrado sofreu, também, lacerações múltiplas do cúbito e rádio com luxação da tacícula radial, Degloving da mão esquerda ao nível da eminência hipotenar.
11. Logo após o sinistro, foi transportado para o Hospital do Barlavento Algarvio.
12. De seguida, foi levado por helicóptero para o Hospital de ..., em Lisboa, onde foi operado e esteve internado de 4 a 9 de Agosto de 2010.
13. Em 9 de Agosto de 2010 foi transportado de avião para França, onde ficou internado até 7 de Setembro de 2010.
14. Sofreu, ainda, diversas intervenções cirúrgicas.
15. Entre os dias 7-9 e 11-11 de 2010, o sinistrado esteve internado no Centro de Reeducação Funcional de ....
16. De 16 a 19-6-2011, sempre em consequência do acidente descrito, ele foi internado na Clínica P..., onde foi intervencionado cirurgicamente para osteotomia complexa para redução do cúbito esquerdo, ressecção da cabeça radial e osteólise do cotovelo.
17. Esteve incapacitado totalmente desde 4-8 a 11-11-2010, de 16 a 19-6-2011 e em 14-2-2012.
18. Teve incapacidade de 60 % de 12-11-2010 a 2-1-2011.
19. E teve incapacidade de 50 % de 3-1 a 15-6-2011, de 20-6-2011 a 13-2-2012 e de 15-2 a 28-12-2012.
20. Em consequência do acidente acima descrito, o sinistrado – cidadão francês com a sua residência em 30 A, Rue ..., ... Lyon – formulou um pedido de indemnização contra o (fundo de garantia) Autor, a entidade francesa responsável por indemnizar, em primeira linha, as vítimas de acidentes.
21. Tal processo decorreu no Tribunal de Primeira Instância de Lyon, sob o número 12/...77.
22. Nesse processo judicial, o sinistrado e o aqui Autor estabeleceram, por acordo, o valor indemnizatório global de € 229.480,73.
23. No âmbito de tal acordo, assinado em 3-3-2014 e judicialmente aprovado em 20-3- 2014, ambas as partes assentaram que as consequências do acidente foram determinadas pelo relatório médico elaborado pelo perito Dr. CC.
24. A indemnização foi fixada para reparação de todos os danos resultantes do acidente em causa, correspondente ao somatório das parcelas seguintes:
- Despesas diversas … €2.028,78;
- Assistência humana de consolidação com base em custo horário de €13,00 … €10.640,50;
- Despesa de veículo adaptado … €5.826,11;
- Assistência humana vitalícia … €76.153,24;
- Desconforto temporário total baseado em custo de € 25,00/hora … €2.415,00;
- Desconforto temporário parcial 60 % … €717,60;
- Desconforto temporário parcial 50% … €8.199,50;
- Danos morais … €22.000;
- Danos estéticos temporários … €3.000;
- Défice funcional permanente (45 %) … €76.500;
- Danos estéticos permanentes … €7.000;
- Prejuízo de afirmação pessoal … €15.000.
25. O aqui Autor pagou ao sinistrado AA, pelos danos sofridos, o mencionado valor global de € 229.480,73, por meio de cheques, respectivamente, em 15-2-2013 (€ 10.000) e em 7-4-2014 (€ 219.480,73).
26. A presente acção judicial foi instaurada no dia 28-11-2016, tendo a Ré sido citada para os seus termos em 12-12-2016.
27. O proprietário BB celebrou com a ora Ré o contrato de seguro marítimo do ramo “Embarcações de Recreio”, o qual tem por objecto de seguro a embarcação acima identificada (com a matrícula ..44FR5), estando incluída a cobertura de responsabilidade civil com o capital seguro de € 250.000, através da apólice com o número ......91.
28. À reclamação apresentada pelo representante do Autor, de 31-7-2014, respondeu a Ré em 12-8-2014, rejeitando-a e alegando, para além da prescrição, que o acidente se ficou a dever à culpa exclusiva do banhista lesado.
29. O processo criminal que foi promovido pelo Ministério Público, na sequência do acidente, foi arquivado pelo Tribunal Judicial de Portimão (Juiz de Instrução Criminal) em 28-11-2012.
30. Na esteira do requerimento para abertura da instrução, o Tribunal julgou extinto, por caducidade do exercício do direito de queixa e consequente ilegitimidade do Ministério Público para a promoção da acção penal, o procedimento criminal que havia sido instaurado contra o arguido BB e determinou o arquivamento dos autos, comunicado em 3-12-2012.
31. Tal processo teve o número 37/10.1... e o arguido fora acusado pelo Ministério Público, pela prática de crime de ofensa à integridade física por negligência…;
32. … Acusação com a data de ...-...-2012.
33. No dia seguinte ao acidente, BB entregou junto da Polícia Marítima de ... um relatório escrito sobre o mesmo, com a data de 5-8-2010 e por si assinado, nos termos e segundo o qual, entre o mais, o segurado não podia ter evitado o acidente, uma vez que o banhista francês, não só se encontrava submerso, como estava numa zona interdita a banhistas e de uso exclusivo de embarcações.
34. Na sequência do acidente, a Ré solicitou a intervenção da empresa “P..., S.A..”, cujo perito (DD) elaborou o relatório documentado de fls. 121 a 131v (aqui dado como integrado).
35. No exercício dessas suas funções, tal perito desenvolveu um conjunto de averiguações, melhor identificadas no relatório que apresentou, e recolheu o depoimento escrito da testemunha EE em 10-1-2011.
36. Mais tarde, em 31-1-2011, o mesmo perito recolheu o depoimento escrito da testemunha Daniela Sofia Florêncio Teixeira.
37. Segundo o relatado pelo mesmo perito, “foi apurado” que o banhista francês se encontrava, no momento do acidente, para lá das boias delimitadoras do corredor náutico; o acidente ocorreu quando o banhista se encontrava a nadar fora da zona habitual para banhos, ou seja, fora da zona de banhos e numa zona afastada da costa (mais de 300 metros), num local onde a embarcação podia circular.
38. Mais referiu o perito que o banhista francês usava, no momento do acidente, óculos de mergulho (máscara), um tubo respirador e barbatanas, e não estava a utilizar bóia sinalizadora;
39. Segundo o depoimento escrito prestado pela testemunha EE em 10-1-2011, o acidente aconteceu “(…) perto da última boia amarela, um pouco para lá desta. Passado uns minutos é que seguiu uma gaivota c/ 2 nadadores-salvadores, de seguida uma prancha e só posteriormente uma mota de água, que chegou em primeiro lugar ao pé do acidente. (…) O acidentado estava de barbatanas e óculos de mergulho o que denota bem andar debaixo de água sem qualquer boia sinalizadora da sua presença” (cfr. documento de fls. 121 a 131v, com enfoque para fls. 131).
Não se provaram os seguintes factos:
- O aludido banhista francês, que se encontrava a mergulhar, só ficou visível quando veio à superfície da água, não tendo efectuado uma qualquer sinalização de alerta antes da ocorrência do acidente em apreço;
- Imediatamente a seguir ao acidente, o segurado BB prestou toda a assistência ao banhista francês;
- O embate ocorreu quando a dita embarcação “S.....” se encontrava muito afastada da costa e numa zona afeta, em exclusivo, ao trânsito de embarcações;
- O banhista francês encontrava-se, no momento do embate, para lá das boias delimitadoras do corredor náutico;
- O embate verificou-se quando o referido banhista se encontrava a nadar fora da zona habitual para banhos, ou seja, numa zona afastada da costa (da praia) mais de 300 metros;
- (…) Onde aquela embarcação podia circular sem restrições.
VII - DO DIREITO
Enquadramento prévio das questões sub judicio
Na Relação foi utilizado o mecanismo do reenvio prejudicial, a fim de se determinar a lei aplicável, numa situação conexa com dois ordenamentos jurídicos, concretamente, o francês e o português.
O Tribunal de Justiça da União Europeia/TJUE não é de mera consulta, as suas decisões vinculam os Tribunais dos Estados – Membros.
No caso vertente o TJUE decidiu que “O artigo 4.º, n.º 1, o artigo 15.º, alínea h), e o artigo 19.º do Regulamento (CE) n.º 864/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de julho de 2007, relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais («Roma II»), devem ser interpretados no sentido de que: a lei que rege a ação do terceiro sub-rogado nos direitos de um lesado contra o autor de um dano e determina, em especial, as regras de prescrição desta ação é, em princípio, a lei do país onde ocorre esse dano” - são aplicáveis – concatenando o artigo 45.º do Código Civil, com o Regulamento (CE) n.º 864/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Julho de 2007, relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais (Roma II) e o artigo 8.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa - a um acidente ocorrido a 04 de Agosto de 2010 em que foram, desde logo, conhecidos os seus intervenientes, bem como o direito da vítima/lesado (que não ficou mentalmente incapacitado e, portanto, ficou de imediato a saber que alguém estaria obrigado a indemnizá-lo), as regras decorrentes dos artigos 498.º, 300.º a 327.º e 279.º do Código Civil português (e não os artigos 2270 do Code civil, conjugado com 640 do Code de procédure civil franceses).
Definida a lei aplicável – a portuguesa – o acórdão recorrido a sindicar concluiu (com um voto de vencido) como a 1ª Instância:
“O prazo de prescrição é de 3 anos a partir da data do acidente, de acordo com o n.º 1 do artigo 498.º, não podendo alargar-se para o prazo da acção penal, nos termos do n.º 3 (5 anos – artigo 118.º, n.º 1, c), do Código Penal), por não ter sido apresentada queixa-crime pela vítima, por ter sido arquivado o processo crime pelo Juiz de Instrução Criminal (por falta de legitimidade do Ministério Público para acusar) e por a factualidade apurada neste autos não permitir afirmar que estava em causa uma situação configurável como passível de ser criminalmente relevante.
Está excluída a possibilidade de incluir no n.º 2 do artigo 498.º uma situação de sub-rogação, uma vez que inexiste qualquer lacuna, constituindo uma opção legislativa expressa, a referência ao direito de regresso: - são institutos jurídicos conhecidos e distintos; - apenas o direito de regresso está referenciado no n.º 2 do artigo 498.º, sendo que o está também no n.º 2 do artigo anterior (497.º); - quis-se restringir o prazo a partir do cumprimento ao direito de regresso entre os responsáveis solidários, porque o direito não existia antes do cumprimento (diferentemente do que se verifica na sub-rogação; quis-se alargar o prazo da prescrição para o caso do direito de regresso (precisamente porque o direito não existia antes, porque é criado ex novo); - a sub-rogação não encerra a virtualidade de modificar o quadro legal aplicável às relações entre o primitivo credor (o lesado) e o devedor sob pena de subversão do regime: é que a sub-rogação é uma forma de transmissão das obrigações (regulada nos artigos 589.º a 599.º do Código Civil e que se traduz no cumprimento de uma obrigação efectuada por um não devedor), à qual se aplicam com as devidas adaptações as regras da cessão (artigo 588.º, que permite a aplicação dos artigos 585.º e 598.º, dos quais resulta que a posição jurídica do devedor não pode ser prejudicada com a mudança do titular do direito); - é o próprio artigo 593.º, n.º 1, que preceitua que o “sub-rogado adquire, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competem”, nessa exacta medida, nem mais, nem menos: os mesmos; - o artigo 306.º (início do curso da prescrição) diz – no seu n.º 1 – com clareza, que o “prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido” e o artigo 308.º (transmissão), expressamente refere, no seu n.º 1, que a prescrição - depois de iniciada – “continua a correr, ainda que o direito passe para novo titular”, pelo que (conjugadamente com o n.º 1 do artigo 498.º), se conclui que o direito do lesado (sub-rogado) começou a sua contagem no dia do acidente, sendo que, tendo tal direito sido transmitido por sub-rogação, não o modificou, nem para mais, nem para menos.
A presença do Tempo como factor conformador das situações jurídicas está particularmente presente na prescrição, a qual pressupõe a existência de um direito, o seu não exercício e o decurso do Tempo.
O fundamento da prescrição assenta na inércia negligente do titular do direito em exercitá-lo e impõe, por razões de certeza e segurança jurídica, protecção dos devedores e estímulo ao exercício dos direitos, a gravosa consequência de extinguir da obrigação (ou, pelo menos, permitir que o obrigado possa recusar o cumprimento).”
- Quid juris?
Como decorre da delimitação feita aquando da definição do thema decidendum, está este recurso/revista circunscrito a saber qual o momento relevante para a contagem do prazo de prescrição em caso de sub-rogação no direito do lesado.
Estando em causa a sub-rogação da autora/A no direito de terceiro lesado – que transferiu a sua responsabilidade civil para a ré/R - o prazo de prescrição deve contar-se, desde a data em que o direito se consolidou na esfera jurídica do lesado ou, pelo contrário e como pretende a recorrente, tal prazo apenas se inicia na data do pagamento por esta ao lesado do valor da indemnização?
Precisando, é também aplicável ao caso - sub-rogação da A no direito de terceiro lesado - o disposto no nº 2 do artº 498º do CC: “prescreve igualmente no prazo de três anos, a contar da data do cumprimento, o direito de regresso entre os responsáveis.”
A matéria em análise nos autos não é nova e já motivou, ao longo dos anos, profusa produção jurisprudencial, em especial ao nível do Supremo Tribunal de Justiça/STJ que tem vindo a propugnar o entendimento pacífico, de que o disposto no nº 2 do artº 498º do CC é aplicável, por analogia, aos casos de sub-rogação.
Esta discussão jurisprudencial remonta, pelo menos, ao ano de 2001, tendo este STJ, por acórdão de 20-02-2001, expresso o entendimento, que acabou por ser secundado pelo STJ até ao presente momento, de que: “O prazo de prescrição do direito do FGA, que é apenas responsável subsidiariamente pela indemnização, deve, por analogia nos termos do art.º 10, do CC, contar-se a partir da data do cumprimento, de harmonia com o n.º 2 do art.º 498, do mesmo código.” – Proc. n.º 11/01, Rel. Aragão Seia, acórdão não publicado nas bases de dados disponíveis.
Este entendimento veio a ser secundado, de forma unânime, pela jurisprudência do STJ que continuou a pronunciar-se, nesse sentido, entre muitos outros, nos acórdãos de 11-02-20211 (proc. n.º 2315/18.2T8FAR.E1.S1, Rel. Tomé Gomes), de 23-01-2020 (proc. n.º 5486/17.1T8SNT.L1.S1, Rel. Nuno Pinto de Oliveira, não publicado nas bases de dados disponíveis), de 19-05-20202 (proc. n.º 2445/16.5T8LRA-A.C1.S1, Rel. Pinto de Almeida), de 26-11-20203 (proc. n.º 1946/16.0T8CSC-A.L1.L1.S1, Rel. Maria do Rosário Morgado), de 07-05-2020 (proc. n.º 2325/18.0T8VRL.G1.S1, Rel. Maria do Rosário Morgado, este não publicado nas bases de dados disponíveis), de 02-04-20194 (proc. n.º 2142/16.1T8PTM-A.E1.S1, Rel. Catarina Serra), de 30-04-20195 (proc. n.º 613/13.0TVPRT.P1.S1, Rel. Maria dos Prazeres Beleza), de 04-07-20196 (proc. n.º 1977/15.7T8VIS.C2.S1, Rel. Nuno Pinto de Oliveira), de 12-04-2016 (proc. n.º 299/12.0TBEVR.E1.S1, Rel. José Raínho, não publicado nas bases de dados disponíveis) e de 25-03-20107 (proc. n.º 2195/06.0TVLSB.S1, Rel. Lopes do Rego).
De referir ainda que, no mesmo sentido, se pronunciou o acórdão de uniformização de jurisprudência, de 27-04-2018, do Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, que uniformizou a seguinte jurisprudência: “o prazo de prescrição do direito da sub-rogada companhia de seguros só começa depois de ter pago os danos sofridos pelo seu segurado, em consequência de acidente de viação, visto que só depois deste pagamento o seu direito pode ser exercido, nos termos do artigo 498º, nºs 1 e 2 do Código Civil”.
Os argumentos mobilizados por este entendimento jurisprudencial reconduzem-se, no essencial, à circunstância de a sub-rogação apenas ocorrer por via do pagamento ao lesado, o que tornaria disruptiva a solução de considerar prescrito um direito ainda antes de o mesmo se subjectivar e de o respetivo titular o poder exercer e ainda de se observar, entre as figuras do direito de regresso e de sub-rogação, semelhanças estruturais que tornariam iníquo o tratamento díspar de duas situações que, na sua matriz, são idênticas.
O nosso legislador, certamente conhecedor deste debate, acabou por positivar esta posição jurisprudencial no âmbito do DL 291/2007, de 21-08, no que diz respeito à sub-rogação do Fundo de Garantia Automóvel nos direitos do lesado, determinando, de forma cristalina, que: “aos direitos do Fundo de Garantia Automóvel previstos nos números anteriores é aplicável o nº 2 do artigo 498º do CC, sendo relevante para o efeito, em caso de pagamentos fraccionados por lesado ou a mais do que um lesado, a data do último pagamento efectuado pelo Fundo de Garantia Automóvel”; deixando a descoberto uma clara concordância de princípio com a necessidade de aplicação daquela solução legal aos casos de sub-rogação e consagrando, igualmente, uma solução interpretativa a considerar, necessariamente, no âmbito da aplicação do nº 2 do artº 498.º do CC.
Aqui chegados, cumpre deixar expresso que não vemos motivos para nos distanciarmos deste que tem sido o entendimento pacífico do STJ.
Senão, vejamos.
Não há dúvidas quanto ao que separa a figura da sub-rogação e do direito de regresso.
A sub-rogação configura, no essencial, uma forma de transmissão de obrigações, ficando o sub-rogado na titularidade do mesmo direito de crédito que era, até então, titulado pelo lesado.
Já o direito de regresso é um direito nascido ex novo na esfera jurídica daquele que, no todo ou em parte, extinguiu a relação existente entre o devedor principal e o lesado.
Como ensina Antunes Varela: “o direito de regresso é um direito nascido ex novo na titularidade daquele que extinguiu (no todo ou em parte) a relação creditória anterior ou daquele à custa de quem a relação foi considerada extinta” - Obrigações em Geral, Vol. II, Reimpressão da 7.ª edição, Almedina, 1997, pp. 345-346.
Vaz Serra defende, no mesmo sentido, que “o direito de regresso é um direito resultante de uma relação especial existente entre o seu titular e o devedor, não operando, portanto, ao contrário daquela (sub-rogação) uma transmissão do direito do credor para o autor da prestação” - RLJ, ano 110º, pp. 339-340.
Já a sub-rogação pode “definir-se, segundo um critério puramente descritivo, como a substituição do credor, na titularidade do direito a uma prestação fungível, pelo terceiro que cumpre em lugar do devedor ou que faculta a este os meios necessários ao cumprimento. Trata-se de um fenómeno de transferência de créditos, que a lei regula no capítulo «transmissão de créditos e de dívidas», mas cujo fulcro reside no cumprimento, ao passo que a cessão tem a sua base jurídica no contrato celebrado entre o transmitente e o adquirente do crédito” – realce e sublinhado nossos - Antunes Varela, in Ob. Cit. p. 336.
Sendo o momento do nascimento do direito o que separa as duas figuras, há, no entanto, que considerar o que aproxima as duas figuras em confronto e que torna injustificado o seu tratamento díspar, no que ao início do prazo de prescrição diz respeito.
Ambas as figuras prosseguem uma função recuperatória do direito, no quadro da relação que se estabelece entre quem cumpre a obrigação de que não é devedor principal e o efetivo devedor.
Como explica Brandão Proença, “o 'direito de regresso' e o 'direito de sub-rogação' mais não são do que, em circunstâncias diferentes, idênticos direitos de reembolso (ou de regresso latu sensu) das quantias pagas, ex vi legis, a título provisório e por obrigados (não responsáveis) secundários, direitos esses a 'construir' substancialmente de forma semelhante, com uma natureza que não é, nem deve ser a do direito do lesado ressarcido e com um conteúdo delimitado essencialmente pelo crédito satisfeito e, em rigor, a considerar extinto.”- in Natureza e prazo de prescrição do “direito de regresso” no diploma do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, Cadernos de Direito Privado, 42.
Como se refere no acórdão deste STJ, de 26-11-2020, já mencionado, “Seja como for, o “direito de regresso" (art. 524º, CC) e o “direito de sub-rogação” (arts. 589º e ss., do CC) desempenham, do ponto de vista prático ou económico, uma análoga «função recuperatória» no âmbito das «relações internas» entre os vários sujeitos que estavam juridicamente vinculados ao cumprimento de certa obrigação ou, embora não o estando, acabaram por realizar efetivamente – na veste de garantes ou interessados diretos no cumprimento – a prestação devida”.
Esta proximidade entre as figuras tornaria iníqua a solução propugnada pelo tribunal recorrido, na medida em que estaríamos a tratar de forma diferente situações que, na substância, são idênticas.
As semelhanças a que se fez referência impõem a aplicação do disposto no nº 2 do artº 498º do CC, se não por analogia, pelo menos por interpretação extensiva, sendo evidente que o legislador disse menos do que quis dizer.
Como defende Baptista Machado, “Interpretação extensiva: o intérprete chega à conclusão de que a letra do texto fica aquém do espírito da lei, que a fórmula verbal adoptada peca por defeito, pois diz menos do que aquilo que se pretendia dizer. Alarga ou estende então o texto, dando-lhe um alcance conforme ao pensamento legislativo, isto é, fazendo corresponder a letra da lei ao espírito da lei. Não se tratará de uma lacuna da lei, porque os casos não directamente abrangidos pela letra são indubitavelmente abrangidos pelo espírito da lei. Da própria ratio legis decorre, p. ex., que o legislador se quer referir a. um género; mas, porventura fechado numa perspectiva casuística, apenas se referiu a uma espécie desse género. A interpretação extensiva assume normalmente a forma de extensão teleológica: a própria razão de ser da lei postula a aplicação a casos que não são directamente abrangidos pela letra da lei mas são abrangidos pela finalidade da mesma. Os argumentos usados pelo jurista para fundamentar a interpretação extensiva são o argumento de identidade de razão (arg. a pari) e o argumento de maioria de razão (arg. afortiori). Segundo o primeiro, onde a razão de decidir seja a mesma, a mesma deve ser a decisão. De acordo com o segundo, se a lei explicitamente contempla certas situações, para que estabelece dado regime, há-de forçosamente pretender abranger também outra ou outras que, com mais fortes motivos, exigem ou justificam aquele regime” – Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 12.ª reimpressão, pp. 185 e ss.
In casu, as semelhanças entre as figuras em análise impõem que se recorra a um argumento de identidade de razão, que autoriza, como vimos, o recurso à interpretação extensiva.
Tal solução é a única que se compadece com a unidade do sistema jurídico e com os fundamentos que justificam e subjazem ao instituto da prescrição.
Manuel de Andrade ensina que “segundo a doutrina dominante o fundamento específico da prescrição reside na negligência do titular do direito em exercitá-lo durante o período de tempo indicado na lei. Negligência que faz presumir ter ele querido renunciar ao direito, ou pelo menos o torna (o titular) indigno de protecção jurídica (…). Outras razões, porém, se costumam invocar, num plano secundário, para justificação do instituto prescricional: 1) Uma consideração de certeza ou segurança jurídica, a qual exige que as situações de facto que se constituíram e prolongaram por muito tempo, sobre a base delas se criando expectativas e se organizando planos de. vida, se mantenham, não podendo ser atacadas por antí-jurídicas. 2) Proteger os obrigados, especialmente os devedores, contra as dificuldades de prova a que estariam expostos no caso de o credor vir exigir o que já haja, porventura, recebido. O devedor pode realmente ter pago sem exigir recibo, ou pode tê-lo perdido. 3) Exercer uma pressão ou estímulo educativo sobre os titulares dos direitos no sentido de não descurarem o seu exercício ou efectivação, quando não queiram abdicar deles.” – Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, Facto Jurídico em Especial Negócio Jurídico, Almedina, 1992, 7.ª reimpressão, pp. 445 e ss.
Como se explica, de forma particularmente cristalina, no acórdão do STJ, de 22-09-20168, “I - A prescrição, cujo nome (praescriptio) e raízes mergulham no húmus fecundo do direito romano, assenta no reconhecimento da repercussão do tempo nas situações jurídicas e visa, no essencial, tutelar o interesse do devedor. II – O fundamento específico da prescrição reside na negligência do titular do direito em exercitá-lo durante o período de tempo tido como razoável pelo legislador e durante o qual ser legítimo esperar o seu exercício, se nisso estivesse interessado. Negligência que faz presumir ter ele querido renunciar ao direito, ou pelo menos o torna (o titular) indigno de protecção jurídica (dormientibus non succurrit jus)». III - Ainda que olhada, sob o ponto de vista da moral e do direito natural, com certo desfavor (os antigos qualificaram-na como impium remedium ou impium praesidium), a prescrição continua a ser reclamada pela boa organização das sociedades civilizadas, apresentando-se, entre nós, como uma excepção não privativa dos direitos de crédito (art.º 298º do Cód. Civil) e, por isso mesmo, inserida na sua parte geral, no capítulo relativo ao tempo e à sua repercussão sobre as relações jurídicas (art.ºs 296º a 327º do Cód. Civil).” – proc. n.º 125/06.9TBMMV-C.C1.S1, Rel. António Joaquim Piçarra, disponível em www.dgsi.pt.
Ana Filipa Morais Antunes considera que a prescrição não se pode reconduzir a um só fundamento, fundando-se, antes, em interesses multifacetados como “i) a probabilidade de ter sido feito o pagamento; ii) a presunção de renúncia do credor; iii) a sanção da negligência do credor; iv) a consolidação de situações de facto; v) a protecção do devedor contra a dificuldade de prova do pagamento; vi) a necessidade social de segurança jurídica e certeza dos direitos; vii) a necessidade de sanear a vida jurídica de direitos praticamente caduco; viii) a necessidade de promover o exercício oportuno dos direitos” – Prescrição e Caducidade, Anotação aos artigos 296.º a 303.º do Código Civil (“O tempo e a sua repercussão nas relações jurídicas”), Coimbra Editora, 2008, p. 21.
O instituto da prescrição busca uma concordância prática entre a tutela do direito de crédito e a necessidade de segurança e certeza jurídicas, desprotegendo o credor que, pela sua inércia, não exerce, atempadamente, o seu direito.
É por estar em causa uma sanção para a inércia que o prazo de prescrição apenas começa a correr quando o direito puder ser exercido, até porque, até esse momento, não existe qualquer inércia que possa ser penalizada (cfr. art. 306.º do CC).
No caso da sub-rogação, temos por evidente que o credor sub-rogado apenas pode exercer o seu direito após o cumprimento da obrigação ou, dito de outro modo, apenas com o cumprimento da obrigação o direito se efectiva na esfera jurídica do credor sub-rogado.
Entendimento contrário equivaleria a penalizar o credor sem que se lhe aponte qualquer inércia.
Como explica Rita Canas da Silva, “uma vez que a prescrição se funda na inércia do titular do direito, “deve ela, logicamente, começar no momento em que o direito pode ser exercido” (Vaz Serra, cit., p. 190). O n.º 1 acolhe regra consentânea com um dos fundamentos do instituto (v. anotação ao art. 300.º); se admitimos que a prescrição procura ainda sancionar a inércia injustificada do credor, só faz sentido que o prazo tenha início quando o direito pode ser exercido” – Código Civil Anotado, Almedina, 2022, pp. 413 e ss.
Resulta, assim, que o único entendimento que se mostra consonante com os fundamentos subjacentes ao instituto da prescrição é aquele que tem vindo a ser propugnado, de forma unânime, por este STJ: o prazo de prescrição apenas começa a contar a partir do cumprimento da obrigação do credor sub-rogado.
Veja-se que o credor sub-rogado apenas procede ao pagamento ao lesado porque é, por ele, responsável, ou seja, o lesado tem uma pretensão legítima à prestação por parte do credor sub-rogado.
Também neste caso, há uma pluralidade de responsáveis - a autora é, como se afirma nos autos e não surge controvertido, a entidade francesa responsável por indemnizar, em primeira linha, as vítimas de acidentes - ainda que com base numa fonte diferente.
É verdade que, no âmbito da sub-rogação estamos perante um caso de transmissão de créditos, o que poderia sugerir, como sugere a recorrida, a aplicação do disposto no artº 308º do CC: “depois de iniciada, a prescrição continua a correr, ainda que o direito passe para novo titular”.
Sucede que, ao contrário do que sucede na comum cessão de créditos, a sub-rogação revela um especial enfoque no cumprimento por parte do credor sub-rogado, o que não sucede no caso de cessão de créditos.
O credor cessionário adquire um crédito voluntariamente conhecendo os seus contornos e aceitando o crédito nos seus precisos termos, já o credor sub-rogado adquire o crédito por estar, de alguma forma, vinculado a cumprir a obrigação de terceiro face a um lesado.
O especial enfoque no cumprimento, a que o credor sub-rogado se encontra vinculado, torna justificada a não aplicação de uma norma, como a constante do artº 308º do CC, cuja ratio está primordialmente vocacionada para a transmissão voluntária entre os titulares de direitos que não se mostram satisfeitos.
Assim, se a transmissão de direitos pressupõe o não cumprimento - sob pena de extinção do direito a transmitir - a sub-rogação pressupõe o cumprimento de terceiro, o que torna as figuras estruturalmente opostas.
Resulta, pois, que o prazo de prescrição, em caso de sub-rogação, deve contar-se apenas após a data do cumprimento.
Cumpre, igualmente, saber se, num caso, como o dos autos, em que o pagamento da indemnização se mostra parcelado em várias prestações, o prazo de prescrição se conta a partir de cada um dos pagamentos parcelares ou se, pelo contrário, se conta a partir da data do último pagamento.
O STJ tem vindo a propugnar o entendimento, absolutamente pacífico, de que, em caso de pagamentos parcelares, o prazo de prescrição se conta desde a data do último pagamento.
Como se deixou escrito no acórdão de 02-04-2019, “[e]stando em causa pagamentos parcelares, a contagem do prazo de prescrição do direito de reembolso inicia-se na data do cumprimento integral da obrigação (i.e., na data do último pagamento parcelar), a não ser quando seja possível a autonomização de um ou mais dos pagamentos, por dizerem respeito a danos normativamente diferenciados” – proc. n.º 2142/16.1T8PTM-A.E1.S1, Rel. Catarina Serra, já mencionado supra.
Ora, como explica o acórdão do STJ, de 04-07-2019, já mencionado supra, “entre as razões por que o prazo deve contar-se da data do último pagamento estão sobretudo duas: Em primeiro lugar, a sub-rogação tem como pressuposto o cumprimento da obrigação e, como a obrigação de indemnizar cada lesado é una e única, a sub-rogação reportar-se-á, ou deverá reportar-se, ao cumprimento integral — terá, ou deverá ter, como pressuposto o cumprimento integral. Em segundo lugar, a sub-rogação parcial, contada de cada pagamento parcial, teria como resultado uma pluralidade de acções, de todo em todo desrazoável”.
Não vemos, novamente, razões para nos afastarmos deste entendimento, que nos parece lógico e razoável. Efetivamente, o cumprimento da obrigação apenas se dá com o pagamento integral das quantias a liquidar ao lesado, sendo evidente que não se pode exigir ao credor a instauração de múltiplas acções para cobrança dos pagamentos parcelares que forem sendo feitos.
A posição do devedor mostra-se protegida, claro está, em caso de situações patológicas em que se conclua que o credor actua em claro abuso do direito, não sendo possível afirmar a existência de incerteza ou insegurança jurídicas, na medida em que o sistema jurídico tem sempre ao dispor válvulas de escape para aquele tipo de situações.
Em suma, resulta do exposto que, no caso de sub-rogação no direito de lesado, o prazo de prescrição do direito de crédito se conta apenas após o cumprimento, relevando apenas, e salvo situações patológicas, a data do último pagamento efectuado.
Resulta manifesto que, tendo o derradeiro pagamento feito pela autora ocorreu em 07-04-2014 e que a presente acção foi instaurada em 28-11-2016, o prazo de prescrição de 3 anos não se havia completado à data da propositura desta acção.
Logo, o direito de crédito cujo cumprimento é reclamado nos autos pela A não se mostra prescrito.
Concluindo e sumariando:
1. À reclamada indemnização pelo lesado de nacionalidade francesa, na sequência dum acidente ocorrido em Portugal, são aplicáveis as regras decorrentes dos artigos 498º, 300º a 327º e 279º do Código Civil português (e não os artigos 2270 do Code civil, conjugado com 640 do Code de procédure civil franceses).
2. O prazo de prescrição (do direito reclamado) apenas começa a contar a partir do cumprimento da obrigação do credor sub-rogado.
3. As semelhanças entre a figura da sub-rogação e do direito de regresso, impõem a aplicação do disposto no nº 2 do artº 498º do CC, se não por analogia, pelo menos por interpretação extensiva.
DECISÃO
- Assim e pelos fundamentos expostos julga-se procedente o recurso/revista, e consequentemente:
a) Revoga-se a decisão recorrida;
b) E ordena-se a baixa dos autos à Relação para prosseguimento dos ulteriores termos do processo.
- Custas pela recorrida/R.
Lisboa, 19-9-2024
Afonso Henrique (relator)
Catarina Serra
Ana Paula Lobo
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1. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/694751a26844e38c802586b00073533d?OpenDocument;↩︎
2. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/8c874902c76321fd802582c00046541a?OpenDocument;↩︎
3. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/1bdee198255e658080258641005ba25d?OpenDocument;↩︎
4. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/171ac6a1ffe6d275802583d10047a8dd?OpenDocument;↩︎
5. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/81842bc497cb817e802583ee0047c12f?OpenDocument;↩︎
6. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/96192f53998189878025842d005877e6?OpenDocument;↩︎
7. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/32a1fd13649a1d5e802576f20057192c?OpenDocument;↩︎
8. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/dde0a5645ceb994680258036005725b7?OpenDocument;