I. O caso julgado poderá ser perspectivado segundo uma óptica disjuntiva que se encontra ligada ao cumprimento de duas funções: i) uma função negativa, operada através da excepção (dilatória) do caso julgado, que pressupõe a verificação cumulativa da tríplice identidade de sujeitos, pedidos e causas de pedir (ut art. 581.º do CPC) ; e ii) uma função positiva, que radica na figura da autoridade do caso julgado, equiparável a uma excepção peremptória, e que pressupõe que a decisão de determinada questão – proferida em ação anterior e que se inscreve, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda – não possa voltar a ser discutida.
II. A figura da autoridade do caso julgado apenas prescinde da identidade objectiva (identidade atinente aos pedidos e causas de pedir entre as duas causas), não abdicando, todavia, para fazer operar o seu efeito de vinculação do tribunal posterior à decisão proferida pelo tribunal anterior, da identidade subjectiva entre as duas causas.
III. A força do caso julgado material abrange, para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado.
IV. Os juízos probatórios positivos ou negativos que consubstanciam a chamada “decisão de facto” não revestem, em si mesmos, a natureza de decisão definidora de efeitos jurídicos, constituindo apenas fundamentos de facto da decisão jurídica em que se integram. Nessa medida, embora tais juízos probatórios relevem como limites objectivos do caso julgado material nos termos do artigo 621.º do CPC, sobre eles não se forma qualquer efeito de caso julgado autónomo, mormente que lhes confira, enquanto factos provados ou não provados, autoridade de caso julgado no âmbito de outro processo.
AA instaurou contra BB acção de processo comum, pedindo que a R. seja condenada a pagar-lhe a quantia de 355.051,10 € – correspondente a metade da soma de 244.701,97 €, 459.210,96 €, 5.661,91 € e 527,35 € – e ainda metade das quantias que identifica recebidas pela R. durante os anos de 2005 a 2014, todas acrescidas de juros de mora vencidos desde o dia imediatamente seguinte ao seu recebimento pela R. e vincendos até integral pagamento, com base na responsabilidade civil da R. perante o A., ou, subsidiariamente, por enriquecimento sem causa da R..
Para o efeito, alegou, em suma, que entre os anos 2000 e 2017, na pendência do casamento de ambos celebrado a 30/04/1998 no regime de bens de comunhão de adquiridos – tendo-se, entretanto, separado de facto – a R. recebeu rendimentos do seu trabalho e rendimentos associados a participações sociais e de capitais, 244.701,97 € e 459.210,96 € respectivamente, que, não tendo entrado em nenhuma das contas comuns do casal ou utilizadas em proveito comum, escondeu e subtraiu de si com o propósito concretizado de prejudicar o casal, o mesmo sucedendo com as quantias de 5.661,91 € e 527,35 € devolvidas pela AT ao casal, e com o valor recebido pela R. nos anos de 2005 a 2014, quanto a este último valor nos termos melhor alegados na sequência de um convite do Tribunal nesse sentido.
Citada, a R. apresentou Contestação invocando a autoridade do caso julgado – em virtude de na acção n.º 6539/17.1... instaurada pelo aqui A. contra a aqui R. e contra o seu pai, ter sido decidido que a farmácia aqui em causa pertencia a este último e não ao casal – e impugnando a restante matéria invocada pelo A.
Foi proferida, no Tribunal de Primeira Instância, decisão, integrada no despacho saneador, a julgar improcedente a invocada excepção de autoridade do caso julgado.
CONCLUSÕES
I. A causa de pedir esgrimida na presenta acção assenta no pressuposto essencial de ter pertencido ao casal formado por Autor e Ré o estabelecimento Farmácia B...... de ... e a sociedade comercial unipessoal que o passou a integrar e explorar e, como tal, serem do casal a totalidade dos lucros/dividendos/rendimentos auferidos da exploração desse estabelecimento.
2. A mesma causa de pedir foi também pressuposto essencial e nuclear da ação já finda e com decisão transitada em julgado que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Cível de ... – ... 3, sob o nº de proc. 6539/17.1..., onde o Autor peticionou a anulação de um contrato de cessão de quotas celebrado com o seu sogro e relativo ao capital social da sociedade comercial referida na conclusão anterior, pelo qual o casal não havia recebido qualquer contrapartidapelacessãodequotasrealizada,atendendoaumsupostoestadodeerro ao tempo da celebração do contrato que pelo Autor foi alegado no pressuposto do casal ser dono e proprietário do referido estabelecimento de farmácia.
3. No processo 6539/17.1..., onde foram partes o Autor, a Ré e o seu falecido pai, a Ré defendeu-se por exceção admitindo que a Ré havia, no estado de casada com o
Autor, celebrado escritura de trespasse pelo qual declarou adquirir a farmácia B...... de ... em contrapartida do pagamento de um preço e admitindo que a cessão de quotas realizada no ano de 2016 pela qual Autor e Ré declararam ceder a quota representativa de 90% do capital social da sociedade S..., Unipessoal, Lda. (então transformada em sociedade limitada) não teve qualquer contrapartida pecuniária, mas alegando como factologia impeditiva da causa de pedir do Autor, a existência de acordo celebrado com o seu falecido pai, com o conhecimento e anuência do Autor, pelo qual a Ré (farmacêutica) cederia o seu nome para adquirir o referido estabelecimento, sem nada pagar do preço, mas ficava obrigada a entregar ao seu pai todos os lucros/dividendos/rendimentos auferidos da exploração desse estabelecimento e a transmitir para o seu pai ou quem este lhe indicasse o próprio estabelecimento, sem nada receber do preço, logo que tal lhe fosse solicitado.
4. Nas decisões judiciais transitadas em julgado e proferidas no processo 6539/17.1… foi considerado como pressuposto lógico da inexistência de qualquer estado de erro do Autor, a circunstância do mesmo conhecer e ter aceite o convénio referido na conclusão anterior e, como tal, saber e conhecer que todos os lucros/dividendos/rendimentos auferidos da exploração desse estabelecimento foram entregues ao Pai da Ré, como entregue foi àquele, em cumprimento do mesmo acordo, a quase totalidade do estabelecimento pelo contrato de cessão de quotas que o Autor pretendia anular.
5. Caso não seja entendido que o caso julgado do primeiro processo se impõe nos presentes autos, existe a possibilidade de nesta ação ser repetido o julgamento daquela questão e se venha a decidir que, afinal, a farmácia B...... de ... não era do pai da Ré, mas era desta, e que os rendimentos/lucros gerados pela farmácia B...... não eram do pai da Ré e a ele entregues [sempre com o conhecimento do Autor], mas que eram da Ré e do seu casal e, já agora, que as entregas e disposição desses quantitativos pelo pai da Ré eram ocultações que a Ré fazia do que era do seu casal.
6. A decisão recorrida violou o disposto nos arts. 619º, 621º e 625º do Cód. Proc. Civil.
7. Nos termos do disposto no art. 678º do Cód. Proc. Civil requer-se a subida imediata deste recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, dado mostrarem-se preenchidos no caso concreto todos os pressupostos a que aludem as alíneas do nº 1 do referido art. 678º do Cód. Proc. Civil.
Termos em que, pela procedência das conclusões deste recurso, deve ser revogado o despacho proferido e aqui recorrido e o mesmo substituído por outro que considere que o decidido no proc. nº 6539/17.1..., no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Cível de ... – ... 3, quanto à questão do destino dos lucros auferidos pela exploração do estabelecimento de farmácia B...... de ... e sociedade S..., Unipessoal, Lda.NIPC.......33serdeterminadoedecidido em exclusivo pelo pai da Ré, ao abrigo do acordo celebrado com a Ré, com o conhecimento e assentimento do Autor, impõe-se no presente presente processo judicial, de forma a que este Tribunal respeite o já previamente decidido por decisão transitada em julgado proferida no referido processo nº 6539/17.1... em que foram Autor e Ré, o aqui Autor e Ré.
Em sede de contra-alegações, pugnou o autor pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
O recurso de revista foi admitido no âmbito do apenso B, em que foi julgada procedente a reclamação deduzida pela ré, ao abrigo do art. 643.º do CPC.
E nada obsta à apreciação do mérito da revista.
Com efeito, a situação tributária mostra-se regularizada, o requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC). Para além de que tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC).
• Do efeito de autoridade do caso julgado atribuído aos fundamentos da decisão proferida na ação 6539/17.1... em sede de apreciação do pedido formulado pelo autor quanto aos factos pertinentes à farmácia B......, sita em ....
III. 1. DOS FACTOS
É a seguinte a matéria de facto a considerar para a decisão do presente recurso:
Da petição inicial apresentada pelo autor no âmbito dos presentes autos constam, nomeadamente, os seguintes dizeres:
“1º
O Autor AA casou com a Ré BB no dia 30.04.1998, no regime de comunhão de adquiridos – doc.1.
2º
O casal separou-se de facto em 12 de outubro de 2017.
3º
Nesse mesmo dia (12.10.2017), a Ré instaurou ação de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges contra o Autor, que, em 11.12.2018, foi convertido em mútuo consentimento, não tendo ainda sido decretado o divórcio por se encontrar pendente o recurso de revista excecional relativo ao incidente da atribuição da casa de morada de família. Este processo corre termos no Juízo de Família e Menores ... - ... 3 do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, sob o processo n.º 21097/17.9... – doc.2.
Posto isto,
4º
Na pendência deste casamento, foram adquiridas várias participações sociais pela Ré, as quais integram o património comum do casal.
5º
Como iremos ver infra, pelo facto de essas participações serem um bem comum, os lucros e dividendos daí resultantes são, igualmente, um bem comum do casal.
6º
Como passaremos a explicar de seguida, a presente ação surge na sequência de esses dividendos terem sido, pela Ré, deliberada, dolosa e intencionalmente ocultados e desviados do património comum, impedindo que o Autor dos mesmos usufruísse.
7º
O mesmo sucedeu com os rendimentos de trabalho dependente da Ré, cujos valores recebidos não coincidem com os valores que entraram nas contas comuns e que foram utilizados em proveito comum do casal, ou seja também a Ré desviou deliberada, dolosa e intencionalmente parte desses rendimentos impedindo que o Autor dos mesmos usufruísse.
(…)
15º
Em 18.07.2013, foi constituída a F..., Lda, com o NIPC .......81, com sede na Rua ..., ..., ..., tendo por objeto a gestão de farmácias e atividades farmacêuticas, com capital social de 10.000,00€ correspondente a três quotas:
- quota no valor de 4.000,00€ titulada por CC;
- quota no valor de 3.000,00€ titulada por DD;
- quota no valor de 3.000,00€ titulada por BB – doc.9.
16º
Por contrato de cessão de exploração celebrado em 30.09.2013 (doc.10), a F..., Lda passou a gerir e explorar as seguintes farmácias:
- Farmácia da C....;
Esta farmácia gira sob a firma CC, CC, com o NIF .......17 e tem sede na Rua ..., ... ..., ....
- Farmácia C...S...;
Esta farmácia gira sob a firma I..., Unipessoal, Lda, com o NIF .......57 e tem sede na Rua ..., ... ....
- Farmácia B.......
Esta farmácia gira sob a firma S..., Unipessoal, Lda, com o NIF .......33, com sede na Rua de ..., ... ....
17º
Significa isto que toda a exploração da atividade farmacêutica, vendas, lucros, dividendos e contabilidade destas três farmácias são da responsabilidade da F..., Lda, a quem foi cedido o direito de exploração.
18º
A F..., Lda obriga-se pela assinatura de dois gerentes, exceto para as contas de depósitos bancários à ordem, em que basta a assinatura de um.
19º
No que respeita às referidas sociedades, tudo aquilo que o Autor sabia e conhecia, era por intermédio da Ré. Por conseguinte, se a Ré lhe dizia que as coisas estavam a correr bem e que ele não tinha de se preocupar com nada, ele assim o percecionava e concebia, por acreditar na Ré.
20º
Todavia, o Autor veio a tomar conhecimento, anos mais tarde, em agosto de 2017, que afinal havia sido enganado pela Ré na gestão daquelas sociedades e que, por isso, havia muitos mais dividendos a receber e recebidos pela Ré, do que aqueles que a Ré alegadamente tinha recebido, assim como veio a descobrir que os valores declarados, pela Ré, a título de rendimento de trabalho dependente eram superiores aos valores que efetivamente entraram nas contas comuns do casal – doc.11.
(…)
Termos em que se requer V. Exa. se digne julgar a presente ação procedente, por provada, e, em consequência, condenar a Ré no pagamento de uma indemnização ao Autor, no valor de 355.051,10 € acrescida dos juros vencidos desde o dia imediatamente seguinte ao seu recebimento pela Ré e dos juros vincendos até efetivo e integral pagamento, ou, subsidiariamente, condenar a Ré a restituir ao Autor, ao abrigo do enriquecimento sem causa, a quantia de 355.051,10€ acrescida dos respetivos juros.
(…)”
Do acórdão proferido no âmbito do processo 6539/17.1... consta a seguinte fundamentação de facto:
“1. FACTOS PROVADOS.
1). A empresa I..., Unipessoal, Lda encontra-se registada na 2.ª C. R. C. do Porto com gerência a cargo de DD e CC – fls. 38 e 119 e 120.
2). A empresa S..., Unipessoal, Lda encontra-se registada tendo por objeto atividades farmacêuticas sendo sócios BB (quota de 38 000 EUR) e EE (quota de 342 000 EUR) – fls. 40 e 132 e 133.
3). A empresa R..., Lda encontra-se registada na C. R. Comercial de ... sendo sócios FF (quota de 200 000 EUR), I..., Unipessoal, Lda (quota de 200 000 EUR), sendo gerentes FF, DD e CC – fls. 42 e 43 e 121 verso.
4). A empresa F..., Lda encontra-se registada tendo como sócios CC (quota de 4 000 EUR), DD (quota de 3 000 EUR) e BB (quota de 3 000 EUR), sendo gerentes CC, DD e BB – fls. 45 e 46 e 124.
5). No dia 29/07/2016 foi celebrado um acordo denominado de «contrato de divisão de quota, cessão de quota, transformação de sociedade e alteração de pacto» entre:
«Divisão/Cessão de Quotas» - BB e marido AA (cedentes), EE (cessionário);
«Transformação de sociedade» - BB, casada com AA, EE;
«Alteração de pacto» - BB, EE.
Em síntese, acordou-se:
- os cedentes declaram dividir a sua quota em duas, uma de 342 000 EUR e outra de 38 000 EUR;
- os mesmos cedentes declaram ceder a quota de 342 000 EUR ao cessionário;
- BB e EE declaram transformar a empresa «S..., Unipessoal, Lda» em «S..., Unipessoal, Lda» com duas quotas, uma de 38 000 EUR de BB e outra de EE (342 000 EUR), estando o contrato assinado por BB (1.ª Ré), AA (Autor) e EE (2.º Réu) – fls. 48 a 58.
(…)
7. No dia 27/12/1999, em Cartório Notarial, compareceram GG e marido, HH (1ºs), BB (2ª), tendo os 1ºs declarado que sendo GG dona da farmácia «B......», pelo preço de €224 459,05 (45.000.000$00) trespassam à 2.ª a dita farmácia a qual declara aceitar o negócio – fls. 125 verso e 126.
8. No dia 28/12/1999 BB e marido AA (1ºs) e EE (2º) celebraram acordo denominado de «contrato-promessa de trespasse» onde os 1ºs declaram prometer trespassar ao 2º a indicada farmácia B...... por €274 338,84 (55 000 000$00), a pagar no ato da assinatura do presente contrato-promessa, tendo ainda os 1ºs declarado passar procuração a favor do 2.º e mulher – fls. 127 e 128.
(…)
22. Foi o 2º réu que pagou o valor mencionado no contrato referido em 7, sendo o 2º réu quem dava destino aos lucros da farmácia.
23. O que era do conhecimento do autor.
24. Desde dezembro de 1999 até julho de 2001, todos os atos de gestão e administração (não técnicos) da Farmácia B...... praticados pela 1ª ré eram realizados, pelo menos, com a anuência do 2º réu, bem como posteriormente e até ao presente.
25. Desde o ano de 2002 até 2006, o 2º réu deu à 1ª ré a quantia de €2.500,00/mês; desde o ano de 2007 até 2010, o 2º réu deu à 1ª ré a quantia de €3.500,00/mês; e desde o ano de 2011 o 2º réu deu à sua filha, 1ª ré, a quantia de €5 000,00/mês.”
Na fundamentação do acórdão proferido no âmbito do processo 6539/17.1... pode ler-se, nomeadamente, o seguinte:
“Não havendo fundamento para alterar a matéria de facto provada, também inexiste razão para alterar a decisão de direito: quer porque o objeto do recurso, visando a alteração da decisão de direito, na medida em que fosse alterada a matéria de facto provada, no tocante aos pontos impugnados, essa alteração não procedeu; quer porque, em face dos factos provados, a decisão de direito é a adequada e não merece qualquer censura.
O autor/apelante pretendia a anulação da declaração negocial por si emitida no contrato de divisão de quota, cessão de quota e transformação de sociedade e alteração de pacto, celebrado por autor e réus, no dia 29/07/2016.
Fundamentava aquela sua pretensão no alegado erro sobre o objeto do negócio, na medida em que pensou, ao celebrá-lo, que se tratava de parte de um negócio que abrangia outros, ao qual foi dolosamente conduzido; ou então, por erro sobre os motivos do negócio.
Ou seja, o negócio consistia na entrega dos 10% das restantes farmácias ao autor e à sua mulher e na entrega dos 90% da Farmácia B...... ao sogro, ficando, assim, o casal com 10% de todas as farmácias – da Farmácia B...... e das restantes –, estando a assinar aquele documento e que, mais tarde, lhe entregariam os restantes documentos das outras cessões de quotas das demais.
Invoca o disposto nos artigos 253º e 251º do C.C. e, por via deste, o artigo 247º do mesmo diploma.
O autor, porém, não provou que, ao assinar o referido contrato de divisão de quota, cessão de quota e transformação de sociedade e alteração de pacto, no dia 29/07/2016, estivesse com a sua vontade viciada, quer quanto aos termos do negócio, quer quanto ao que o mesmo acarretaria, quer quanto aos seus motivos.
Improcede, assim, o recurso do autor AA.”
• Do efeito de autoridade do caso julgado atribuído aos fundamentos da decisão proferida na ação 6539/17.1... em sede de apreciação do pedido formulado pelo autor quanto aos factos pertinentes à farmácia B......, sita em ...
A questão que constitui objecto do presente recurso consiste em dilucidar se a fundamentação de facto inerente à ação que correu termos sob o n.º 6539/17.1..., na medida que constituiu antecedente lógico necessário à decisão proferida, poderá vincular, por via da autoridade do caso julgado, o julgamento a realizar neste processo quanto à apreciação do pedido formulado pelo autor relativo à alegada ocultação pela ré de bens comuns decorrentes da exploração da farmácia B......, sita em ....
Argumenta a recorrente que “a causa de pedir esgrimida na presente ação assenta no pressuposto essencial e nuclear de ter pertencido ao casal formado por Autor e Ré o estabelecimento Farmácia B...... de ... e a sociedade comercial unipessoal que o passou a integrar e explorar e, como tal, serem do casal a totalidade dos lucros/dividendos/rendimentos auferidos da exploração desse estabelecimento”, contrapondo que “a mesma causa de pedir foi também pressuposto essencial e nuclear da ação já finda e com decisão transitada em julgado que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Cível de ... – ... 3, sob o nº de proc. 6539/17.1..., onde o Autor peticionou a anulação de um contrato de cessão de quotas celebrado com o seu sogro e relativo ao capital social da sociedade comercial referida na conclusão anterior, pelo qual o casal não havia recebido qualquer contrapartida pela cessão de quotas realizada, atendendo a um suposto estado de erro ao tempo da celebração do contrato que pelo Autor foi alegado no pressuposto do casal ser dono e proprietário do referido estabelecimento de farmácia.”
Afirma a recorrente que, nas decisões judiciais transitadas em julgado e proferidas no processo 6539/17.1..., foi considerado como pressuposto lógico da inexistência de qualquer estado de erro do autor a circunstância de o mesmo conhecer e ter aceite o convénio invocado pela ré e celebrado com o seu falecido pai, pelo qual a aí (e nesta sede) demandada cederia o seu nome para adquirir o referido estabelecimento, sem nada pagar do preço, mas ficava obrigada a entregar ao seu pai todos os lucros/dividendos/rendimentos auferidos da exploração desse estabelecimento e a transmitir para o seu pai ou para quem este lhe indicasse o próprio estabelecimento, sem nada receber do preço, logo que tal lhe fosse solicitado.
Conclui a recorrente, rematando, que, caso se entenda que o caso julgado do primeiro processo não se impõe nos autos, “existe a possibilidade de nesta ação ser repetido o julgamento daquela questão e se venha a decidir que, afinal, a farmácia B...... de ... não era do pai da Ré, mas era desta, e que os rendimentos/lucros gerados pela farmácia B...... não eram do pai da Ré e a ele entregues [sempre com o conhecimento do Autor], mas que eram da Ré e do seu casal e, já agora, que as entregas e disposição desses quantitativos pelo pai da Ré eram ocultações que a Ré fazia do que era do seu casal.”
Em resposta, sustentou o autor não haver lugar à aplicação da figura da autoridade do caso julgado pelo facto de a primeira decisão não ser prejudicial à presente ação, retorquindo que os objetos de ambas as ações se afiguram notoriamente diferentes, não sendo sequer confundíveis.
Para afastar a verificação da exceção da autoridade do caso julgado, o Tribunal de Primeira Instância afirmou, em termos sintéticos, o seguinte: “retomando o caso dos autos, o que se verifica é que o objecto de ambas as acções não só é diferente, como, pese embora haja factos comuns a uma e outra acção, nem em parte se confunde, porquanto nestes autos se discute a responsabilidade civil da A. e naqueles outro discutiu-se a anulação da cessão de quotas da sociedade cujo capital social era constituído pela dita Farmácia B.......”
Nos presentes autos, o autor pede a condenação da ré no pagamento de uma quantia, alegando que, na pendência do casamento que manteve com a mesma, sob o regime de bens de comunhão de adquiridos, foram adquiridas pela demandada participações sociais de uma sociedade cujo objecto consistia na gestão e exploração, entre outros estabelecimentos farmacêuticos, da denominada farmácia B......, sita em ....
Alega o demandante que, no ano de 1999, autor e ré compraram a farmácia B...... e que, em 17.07.2001, com vista a gerir aquele estabelecimento comercial, foi constituída a sociedade S..., Unipessoal, Lda que, até 2008, apresentava como sócia e única gerente a ré.
Acrescenta que, em 18.07.2013, foi constituída a sociedade F..., Lda, da qual a ré era sócia, sociedade que, por contrato de cessão de exploração celebrado em 30.09.2013, passou a explorar o mencionado estabelecimento comercial.
Invoca o Autor ter vindo, posteriormente, a tomar conhecimento de que, na gestão daquelas sociedades, existiram dividendos a receber e recebidos pela ré e valores declarados pela ré, a título de rendimento de trabalho dependente que, não obstante assumirem a natureza de bens comuns, não ingressaram nas contas comuns do casal, tendo sido intencionalmente ocultados pela demandada.
Pretende, pois, o autor, através do presente pleito, exercer o seu direito a uma indemnização por danos decorrentes de actos praticados pela ré, enquanto administradora de bens que afirma serem comuns, com intenção de lhe causar prejuízo, assentando a sua pretensão na previsão do n.º 1 do art. 1678.º do CC e recorrendo, a título subsidiário, ao instituto do enriquecimento sem causa.
Já no âmbito do processo que correu termos sob o n.º 6539/17.1..., o autor peticionou a anulação da declaração negocial por si emitida no contrato de divisão de quota, cessão de quota e transformação de sociedade e alteração de pacto, celebrado entre o autor, a ré e o pai desta, EE, no dia 29/07/2016, contrato esse em que, entre o mais, as partes neste processo acordaram dividir a quota detida na sociedade S..., Unipessoal, Lda em duas – uma de 342 000 EUR e outra de 38 000 EUR – e ceder ao pai da ré a primeira quota.
Alegou o aí autor, para o efeito, que actuou em erro sobre o objecto do negócio, na medida em que pensou, ao celebrá-lo, que se tratava de parte de um negócio que abrangia outros, ao qual foi dolosamente conduzido, referindo, a título subsidiário, ter actuado em erro sobre os motivos do negócio.
Invocou o demandante que o negócio que o motivou a outorgar o convénio que pugnava estar viciado consistia na entrega ao autor e à sua mulher de uma percentagem de10% das restantes farmácias (farmácia da C.... e farmácia C...S...), num contexto em que, perante a titularidade de capital correspondente a 90% da sociedade exploradora da farmácia B...... EE, o casal ficaria a deter uma percentagem de 10% das três farmácias.
Tal pretensão foi julgada improcedente, tendo as instâncias considerado que “o autor, porém, não provou que, ao assinar o referido contrato de divisão de quota, cessão de quota e transformação de sociedade e alteração de pacto, no dia 29/07/2016, estivesse com a sua vontade viciada, quer quanto aos termos do negócio, quer quanto ao que o mesmo acarretaria, quer quanto aos seus motivos.”
Vejamos.
Nas palavras de Miguel Teixeira de Sousa, “o caso julgado traduz-se na inadmissibilidade da substituição ou modificação da decisão por qualquer tribunal (incluindo aquele que a proferiu) em consequência da insusceptibilidade da sua impugnação por reclamação ou recurso hierárquico.” 2
Quanto ao âmbito da sua eficácia, o caso julgado material apresenta uma eficácia simultaneamente intra e extraprocessual, incidindo, em regra, sobre questões de mérito.
É reiteradamente afirmado pela jurisprudência do STJ que o caso julgado poderá ser perspectivado segundo uma óptica disjuntiva que se encontra ligada ao cumprimento de duas funções: i) uma função negativa, operada através da exceção (dilatória) do caso julgado, que pressupõe a verificação cumulativa da tríplice identidade de sujeitos, pedidos e causas de pedir, nos termos do art. 581.º do CPC ; e ii) uma função positiva, que radica na figura da autoridade do caso julgado, equiparável a uma excepção peremptória, e que pressupõe que a decisão de determinada questão – proferida em ação anterior e que se inscreve, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda – não possa voltar a ser discutida. Estabelecendo esta distinção, vide, a título meramente exemplificativo, os acórdãos do STJ de 05-12-20173, de 11-07-20194, de 30-06-20205, de 25-03-20216, de 24-05-20227 e de 02-06-20238.
É a vertente positiva da eficácia do caso julgado (autoridade do caso julgado) a que deverá ser convocada na análise ora a fazer.
Rui Pinto observa que a possibilidade de um efeito positivo externo do caso julgado apresenta duas condições objectivas - uma negativa e uma positiva - e uma condição subjectiva9.
Como condição objectiva negativa, “a autoridade de caso julgado opera em simetria com a exceção de caso julgado: opera em qualquer configuração de uma causa que não seja a de identidade com causa anterior; ou seja, supõe uma não repetição de causas. Se houvesse uma repetição de causas, haveria, ipso facto, exceção de caso julgado.”10
No que concerne à condição objectiva positiva, esta traduz-se numa relação de prejudicialidade ou “numa relação de concurso material entre objetos processuais ou, pelo prisma da decisão, uma relação entre os efeitos do caso julgado prévio e os efeitos da causa posterior, seja quanto a um mesmo bem jurídico, seja quanto a bens jurídicos conexos.”11
Na síntese do autor, “a condição objetiva positiva consiste na existência de uma relação entre os objetos processuais de dois processos de tal ordem que a desconsideração do teor da primeira decisão redundaria na prolação de efeitos que seriam lógica ou juridicamente incompatíveis com esse teor.”12
Segundo Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, o efeito positivo do caso julgado conferido pela figura da autoridade “assenta numa relação de prejudicialidade: o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida (…) ou o fundamento da primeira decisão, excecionalmente abrangido pelo caso julgado (…) é também questão prejudicial na segunda ação.”13
Já Miguel Teixeira de Sousa densificou deste modo as relações assim identificadas: “a relação de prejudicialidade entre objectos processuais verifica-se quando a apreciação de um objecto (que é o prejudicial) constitui um pressuposto ou condição do julgamento de um outro objecto (que é o dependente). Também nesta situação tem relevância o caso julgado: a decisão proferida sobre o objecto prejudicial vale como autoridade de caso julgado na acção em que é apreciado o objecto dependente.”14
Já as relações de concurso objectivo verificam-se “quando vários objectos processuais se referem a um mesmo efeito jurídico. Quanto à relevância do caso julgado nas situações de concurso objectivo, importa distinguir entre as hipóteses em que os vários objectos concorrentes se referem aos mesmos factos e aquelas em que os objectos, apesar de concorrentes, se fundamentam em factos diversos.
O caso julgado abrange todas as possíveis qualificações jurídicas do objecto apreciado, porque o que releva é a identidade da causa de pedir (isto é, dos factos com relevância jurídica) e não das qualificações jurídicas que podem ser atribuídas a esse fundamento (art°s 497°, n° 1, e 498°, n° 4). Assim, quando o objecto apreciado for susceptível de comportar várias qualificações jurídicas – como sucede quando um mesmo facto preenche simultaneamente a previsão da responsabilidade contratual e extracontratual – , o caso julgado, ainda que referido a uma única dessas qualificações, abrange-as a todas elas, porque o tribunal deve apreciar a procedência da causa segundo todas essas qualificações.
Nesta hipótese, a excepção de caso julgado impede que um efeito jurídico pretendido ou obtido com fundamento numa qualificação jurídica possa ser requerido com base numa outra qualificação dos mesmos factos. Por exemplo: se o autor não conseguiu obter a condenação do demandado com fundamento na responsabilidade contratual, a excepção de caso julgado impede a reapreciação da mesma situação perspectivada como responsabilidade delitual. Ressalva-se, todavia, a hipótese de o tribunal não ser competente para apreciar o objecto alegado segundo todas as suas possíveis qualificações jurídicas: assim, se, por exemplo, a competência é determinada pelo art° 5º, n° 3, CBrux / / CLug, o tribunal só pode apreciar a responsabilidade delitual do réu, pelo que não fica precludida a apreciação, numa outra acção, da eventual responsabilidade contratual do mesmo demandado.”15
Se as causas de pedir nas duas causas se referirem a factos distintos, a excepção de caso julgado não pode operar (arts. 580.º/1 e 581.º/4 do CPC).
No entanto, esta asserção não garante, de per se, a viabilidade de uma segunda acção com um objecto concorrente com o da causa anterior. Como, mais uma vez, observa Miguel Teixeira de Sousa, “há que distinguir entre as hipóteses em que a improcedência da acção obstou a que se tenha produzido o efeito pretendido pelo autor e aquelas em que da procedência da acção já resultou a produção desse efeito.”16
- acórdão de 29-09-202217: “a vertente positiva do caso julgado entronca no conceito de prejudicialidade. E uma causa é prejudicial relativamente a outra quando o desfecho possível de uma das causas seja suscetível de fazer desaparecer o fundamento ou razão de ser da outra, sendo necessário que exista uma precedência lógica entre o fim de uma ação e o da outra o que deverá ser perseguido no ângulo de conexão das respectivas relações materiais controvertidas”;
- acórdão de 21-06-202218: “o caso julgado material, como autoridade de caso julgado, pressupõe sempre uma relação de prejudicialidade, no sentido de que o fundamento da decisão transitada condiciona a apreciação do objeto da ação posterior, sendo pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta venha a ser proferida”;
- acórdão de 04-07-202319: “relativamente à autoridade do caso julgado exige-se, igualmente, que o caso decidido anteriormente seja prejudicial relativamente ao caso que vai ser julgado e bem assim que se mostre ínsito, ainda que parcialmente, no objeto do processo que vai ser decidido”;
- acórdão de 30-04-202420: “o efeito positivo da autoridade de caso julgado” privilegia o sentido de uma primeira decisão judicial transitada em face de decisões sobre objectos processuais conexos (prejudiciais ou em concurso) entre si; nas decisões sobre o mérito da causa o efeito positivo é material, configurando-se processualmente como uma excepção peremptória impeditiva, subsumível no conceito previsto no art. 576.º, n.º 3, beneficiando do regime do art. 579.º do CPC (efeito vinculativo à não repetição e à não contradição da decisão anterior em processo subsequente com diverso objecto: art. 580.º, n.º 2, CPC).”.
Finalmente, e no que tange à condição subjectiva do reconhecimento de um efeito positivo externo do caso julgado, esta radica no princípio da proibição da indefesa e preceitua que “a autoridade de caso julgado apenas pode ser oposta a quem seja tido como parte do ponto de vista da sua qualidade jurídica como definido pelo artigo 581.º, n.º 2.”21
Efectivamente, a jurisprudência do STJ vem admitindo, em linha com a doutrina tradicional22, que a figura da autoridade do caso julgado apenas prescinde da identidade objectiva (identidade atinente aos pedidos e causas de pedir entre as duas causas), não abdicando, todavia, para fazer operar o seu efeito de vinculação do tribunal posterior à decisão proferida pelo tribunal anterior, da identidade subjectiva entre as duas causas (cfr., entre outros, os acórdãos do STJ de 25-11-201423, de 24-03-201524, de 06-11-201825, de 26-02-201926, de 30-06-202027, de 11-11-202028, de 22-06-202129, de 21-06-202230, de 29-09-202231, de 25-03-202132 e de 02-03-202333).
No caso, está reunida a condição subjetiva para aplicação da excepção de autoridade do caso julgado.
Quanto às relações intercedentes entre os objectos das duas causas, é de afastar a existência de qualquer relação de prejudicialidade, uma vez que o objecto da acção transitada não é pressuposto ou condição do julgamento do objecto dos presentes autos.
Efectivamente, e do ponto de vista decisório, a validade do contrato através do qual as partes nestes autos cederam parte do capital social da sociedade S..., Unipessoal, Lda, que se discutiu na acção transitada, não condiciona, por não ser seu pressuposto lógico e indispensável, a apreciação do objecto da presente acção, em que se terá de determinar a titularidade dos dividendos de tal sociedade e dos rendimentos obtidos pela ré enquanto trabalhadora na farmácia B...... por conta de outrem. São planos diferentes: o da titularidade do capital social da sociedade – na qual a ré, aliás se manteve como sócia – e o da titularidade dos dividendos da sociedade.
Por outro lado, de acordo com o que o autor alega na presente acção, foi constituída, em 2013, uma outra sociedade (a F..., Lda), da qual a ré também era sócia, que passou a partir daquele ano a gerir e a explorar a farmácia B......
Do mesmo modo, há que afastar uma relação de concurso objectivo entre as causas, dado que as mesmas se referem a efeitos jurídicos distintos: enquanto que, no presente pleito, o autor visa a atribuição de uma indemnização por danos decorrentes de actos praticados pela ré, enquanto administradora de bens – dividendos de uma sociedade e rendimentos devidos pelo trabalho dependente desempenhado na farmácia B...... – que o demandante afirma serem bens comuns, no âmbito do processo 6539/17.1..., o mesmo autor pretendia anular, por erro, o acordo denominado “contrato de divisão de quota, cessão de quota, transformação de sociedade e alteração de pacto”, através do qual autor e ré declararam dividir a quota que dispunham na sociedade S..., Unipessoal, Lda e ceder ao pai da ré EE uma das quotas resultante de tal divisão.
Os efeitos prático-jurídicos visados pelos objectos das duas causas, que se fundamentam em factos distintos, são, pois, estruturalmente diversos – o que obsta a que se considere que estamos na presença de objectos processuais concorrentes.
Pelo que, neste primeiro plano de análise, se conclui que a excepção de caso julgado não pode operar “in casu” (arts. 580.º/1 e 581.º/4 do CPC) por não estarmos perante objectos processuais conexos (prejudiciais ou em concurso) entre si.
Senão vejamos.
A autoridade do caso julgado destina-se a evitar que se profiram decisões posteriores juridicamente incompatíveis com uma primeira decisão. Este desiderato assenta numa primeira razão, que se pode enunciar da seguinte forma: “a decisão transitada em julgado que seja de procedência constitui um título jurídico (ou fonte) de efeitos jurídicos recognitivos ou constitutivos finais nas esferas das partes: tal como sucede, por ex., com um contrato, se foi declarado em sentença que o autor é o dono de um imóvel, não pode ser emitido um outro título dizendo o oposto, salvo superveniência de outro título jurídico (v.g., se o autor vender o bem ao réu).”34
Nos casos de improcedência do pedido do autor na ação transitada, “parece ser de defender que a exceção perentória com que o réu obstou ao vencimento daquele (v.g., a nulidade ou a caducidade) deverá ser passível de ser oposta ao mesmo autor noutra ação em que se discuta um pedido conexo. Deste modo, a mesma decisão sobre esses mesmos fundamentos que apenas goza de caso julgado formal (cf. artigo 91.º, n.º 2, in fine), goza, porém, de autoridade de caso julgado. Ela não impede uma segunda decisão (pois não faz caso julgado material), mas condiciona o seu sentido.”35
No processo 6539/17.1... foi proferida, precisamente, uma decisão de improcedência do pedido do autor. Ora, se, em tese, seria possível atribuir autoridade de caso julgado a uma eventual excepção peremptória invocada pela ré nesses autos nesta sede, tal pressuporia que aqui se discutisse um pedido conexo ao pedido prévio36 – conexão essa que, como vimos, não se verifica.
Por outro lado, e no que tange ao âmbito objectivo do caso julgado, isto é, ao “quantum da matéria que foi apreciada pelo tribunal [que] recebe o valor de indiscutibilidade do caso julgado”37, é exacto, como fez notar o acórdão do STJ de 22-02-201838, que, “embora, em regra, o caso julgado não se estenda aos fundamentos de facto e de direito, [se tem] entendido que “a força do caso julgado material abrange, para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado” (cfr., no mesmo sentido, entre outros, os acórdãos do STJ de 27-09-201839, de 28-03-201940, de 26-11-202041, de 19-10-202142).
No entanto, a matéria que a recorrente defende integrar uma excepção que se afirma como pressuposto lógico da inexistência de qualquer estado de erro por banda do autor – a existência de acordo celebrado com o falecido pai da autora, com o conhecimento e anuência do autor, pelo qual a ré (farmacêutica) cederia o seu nome para adquirir a farmácia B......, sem nada pagar do preço, mas ficava obrigada a entregar ao seu pai todos os lucros/dividendos/rendimentos auferidos da exploração desse estabelecimento – não consta do elenco dos factos provados da decisão, não tendo constituído antecedente lógico necessário da improcedência do pedido de anulação das declarações negociais do demandante emitidas no contrato de divisão e de cessão de quota, celebrado a 29-07-2016, por erro sobre o objecto do negócio ou sobre os motivos deste. A improcedência da pretensão do autor de anulação da declaração negocial por si emitida no convénio teve, sim, como antecedente lógico a não demonstração de que aquele tivesse contratado na convicção errónea de que tal contrato era parte de um negócio, mais amplo, que consistia na aquisição pelo casal de 10% de todas as farmácias integrantes do universo familiar.
Há que sublinhar, por outro lado – e ainda que tal argumentação não tenha sido expressamente enunciada pela recorrente – , que nunca seria de atribuir eficácia extraprocessual, na presente sede, aos eventuais juízos probatórios formulados no âmbito do processo 6539/17.1... quanto à mencionada matéria de facto.
Com efeito, como não deixou de realçar o autor recorrido na sua resposta, tem sido entendido por este STJ que “os juízos probatórios positivos ou negativos que consubstanciam a chamada “decisão de facto” não revestem, em si mesmos, a natureza de decisão definidora de efeitos jurídicos, constituindo apenas fundamentos de facto da decisão jurídica em que se integram. Nessa medida, embora tais juízos probatórios relevem como limites objetivos do caso julgado material nos termos do artigo 621.º do CPC, sobre eles não se forma qualquer efeito de caso julgado autónomo, mormente que lhes confira, enquanto factos provados ou não provados, autoridade de caso julgado no âmbito de outro processo” (acórdão de 08-11-201843, tendo, no mesmo sentido, se pronunciado o acórdão de 09-05-202444) – destaque nosso.
A factualidade invocada pela recorrente – em concreto, a atinente à invocada obrigação da ré de entregar ao seu pai todos os lucros/dividendos/rendimentos auferidos da exploração da farmácia B...... –, se, em tese, poderia revestir carácter prejudicial em relação ao objecto processual destes autos, não integra o âmbito objectivo do caso julgado formado na ação 6539/17.1..., não tendo sido emitida nesses autos uma decisão declarativa ou constitutiva de tal obrigação, nem tendo esta pretensa obrigação sido configurada, na economia de tal processo, como uma causa impeditiva ou extintiva do direito invocado pelo autor.
Realce-se que a facticidade demonstrada nos pontos 22) e 23) da decisão transitada, no sentido de que foi o sogro do autor que pagou o valor corresponde ao trespasse da farmácia B...... e que dava destino aos lucros da farmácia, o que era do conhecimento do autor, não se identifica com a invocada obrigação de a demandada entregar ao seu pai todos os lucros/dividendos/rendimentos auferidos da exploração da farmácia em causa.
Reitera-se, todavia – e este é o ponto -, que tais factos não consubstanciam um antecedente lógico necessário à decisão de improcedência do pedido de anulação formulado pelo autor naqueles autos, pelo que não apresentam a virtualidade de se imporem extraprocessualmente.
Deve, assim, improceder o recurso.
Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso interposto pela ré e, consequentemente, negar a revista, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela Ré/Recorrente.
Lisboa,
Fernando Baptista de Oliveira (Juiz Conselheiro Relator)
Isabel Salgado (Juíza Conselheira 1º adjunto)
Afonso Henriques (Juiz Conselheiro 2º Adjunto)
_____
1. Processo n.º 4006/20.5T8PRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt
2. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2.ª edição, Lex, Lisboa, 1997, pp. 567, 569, 570.
3. Processo n.º 1565/15.8T8VFR-A.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
4. Processo n.º 13111/17.4T8LSB.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
5. Processo n.º 638/15.1T8STC.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt
6. Processo n.º 17335/18.9T8PRT.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
7. Processo n.º 882/12.3TBSJM.P3.S1, disponível em www.dgsi.pt.
8. Processo n.º 2381/19.3T8CBR.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
9. Rui Pinto, “Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias”, Julgar online, Novembro 2018, pp. 26-27.
10. Rui Pinto, “Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias”, Julgar online, Novembro 2018, pp. 26.
11. Rui Pinto, “Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias”, Julgar online, Novembro 2018, p. 27.
12. Rui Pinto, “Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias”, Julgar online, Novembro 2018, p. 27.
13. José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código Processo Civil Anotado, volume 1.º, 3.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2014, pp. 598-599.
14. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, pp. 575.
15. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, pp. 576.
16. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, pp. 576.
17. Processo n.º 499/17.6T8STB.E1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
18. Processo n.º 43/21.0YHLSB.L1-A.S1, disponível www.dgsi.pt.
19. Processo n.º 142/15.8T8CBC-C.G1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
20. Processo n.º 5765/03.5TVLSB-A.L2.S1, disponível em www.dgsi.pt.
21. Rui Pinto, “Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias”, Julgar online, novembro 2018, pp. 28.
22. Cfr. Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática, s/l, 1968, pp. 38 e ss., Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1976, pp. 304 e ss., Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, pp. 572 e ss.
23. Processo n.º 5443/12.4TBBRG.G1.S1, não publicado na “dgsi.”
24. Processo n.º 966/07.0TBTNV.C1.S1, não publicado na “dgsi.”
25. Processo n.º 1/16.7T8ESP.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
26. Processo n.º 4043/10.8TBVLG.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
27. Processo n.º 638/15.1T8STC.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
28. Processo n.º 214/17.4T8MNC.G1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
29. Processo n.º 1600/17.5T8PTM.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
30. Processo n.º 43/21.0YHLSB.L1-A.S1, consultável em www.dgsi.pt.
31. Processo n.º 5138/05.5YXLSB-F.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
32. Processo n.º 12191/18.0T8LSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
33. Processo n.º 6055/18.4T8ALM.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
34. Rui Pinto, “Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias”, Julgar online, novembro 2018, p. 33.
35. Rui Pinto, “Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias”, Julgar online, novembro 2018, pp. 34-35.
36. Cfr. Rui Pinto, “Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias”, Julgar online, novembro 2018, p. 34.
37. A expressão pode ser encontrada em Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, pp. 578.
38. Processo n.º 3747/13.8T2SNT.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
39. Processo n.º 10248/16.0T8PRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
40. Processo n.º 6659/08.3TBCSC.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
41. Processo n.º 7597/15.9T8LRS.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
42. Processo n.º 34666/15.2T8LSB.L2.S1, disponível em www.dgsi.pt.
43. Processo n.º 478/08.4TBASL.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
44. Processo n.º 497/19.5BEPNF.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt.