CONTRATO DE COMODATO
BEM IMÓVEL
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
DESPEJO IMEDIATO
BOA FÉ
PRAZO RAZOÁVEL
NECESSIDADE DE CASA PARA HABITAÇÃO
OCUPAÇÃO A TÍTULO PRECÁRIO
PRAZO INCERTO
INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
NEGÓCIO GRATUITO
ASSOCIAÇÃO
INSTITUIÇÃO PARTICULAR DE SOLIDARIEDADE SOCIAL
FIM SOCIAL
Sumário


I - A cedência gratuita de um imóvel por uma Associação, na prossecução do seu objeto social, a uma pessoa, com a finalidade de satisfazer as carências habitacionais desta, constitui um comodato sujeito ao regime do artigo 1137.º, n.º 2, do Código Civil, o qual obriga o comodatário a entregar o imóvel logo que lhe seja exigido.
II – No entanto, a boa fé no exercício dos direitos de crédito, recomenda que, no caso de comodato de imóveis, sobretudo quando ao comodato presidiu a finalidade de suprir as carências habitacionais do comodatário, seja concedido a este um prazo razoável para desocupar o imóvel.

Texto Integral

I – Relatório

A Autora intentou ação de processo comum contra a Ré, pedindo a condenação desta a reconhecer que a Autora é dona e legitima proprietária do prédio situado no lugar de ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº ..24, e inscrito na matriz sob o artigo ...73, e a restituir tal prédio, imediatamente, à Autora.

Para o efeito, alegou, em síntese, que é uma instituição particular de solidariedade social, sem finalidade lucrativa, reconhecida como pessoa coletiva de utilidade pública, tendo por objeto o apoio à família e que, com vista à prossecução desse seu objeto, lhe foram doados dois imóveis em 30 de setembro de 1983, que identifica e que veio a lotear, tendo ainda em data anterior ao loteamento, na prossecução do seu objeto social, cedido de forma gratuita à Ré a casa n.º 2 que a Autora edificou no terreno, a qual a Ré passou a habitar desde 14 de agosto de 1987, de forma gratuita, ciente que a casa pertence à Autora.

Citada, a Ré contestou e deduziu reconvenção, impugnando parcialmente os factos e alegando, em síntese, que a doação dos imóveis foi efetuada à Autora para que as famílias carenciadas pudessem construir uma habitação para lá residirem, colocando os lotes dos terrenos doados em nome das famílias a quem se destinavam, sendo essa cedência sempre sem qualquer contrapartida monetária em troca, e que, já antes da doação dos terrenos à Autora, a Ré havia dado início à construção da habitação onde atualmente reside, tendo tal construção sido efetuada totalmente pela Ré e familiares e amigos, apenas tendo a Autora colocado a expensas suas janelas, portas e persianas da habitação da Ré.

Invocou ainda que o terreno foi doado verbalmente à Ré que, desde 1981, altura em que deu início à edificação do imóvel que mantém na sua posse no terreno e habitação, após o loteamento efetuado em 2012, como lote 2 ou casa 2, pratica atos de utilização e fruição do imóvel, que descreve, sem oposição e sendo reconhecida por todos como legitima proprietária do imóvel, pelo que adquiriu o direito de propriedade sobre o imóvel por usucapião.

Em sede de reconvenção peticionou que se declare que adquiriu o terreno e imóvel por usucapião; que se reconheça a Ré como dona e legítima proprietária do terreno e imóvel descrito nos autos; que se cancele o registo realizado pela Autora em 26.05.2003 e que se ordene o registo a favor da ré na data de 30 de setembro de 1983.

A Autora apresentou réplica, impugnando a matéria de facto alegada na reconvenção e apresentando outra versão dos factos, alegando que a casa foi por si, Autora, construída nos anos de 1983 a 1987, tendo gasto na sua execução, em materiais e mão de obra, pelo menos 1.581.991$00, e que a Ré sempre soube que o imóvel era propriedade da Autora e que o uso da casa lhe estava a ser facultado em virtude das suas dificuldades económicas.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação procedente, condenando a Ré a reconhecer a Autora como proprietária do prédio situado no lugar de ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº ... e inscrito na matriz sob o artigo ...73, e a entregar à Autora o prédio livre de pessoas e bens, e que julgou a reconvenção improcedente, absolvendo a Autora dos pedidos reconvencionais formulados.

Desta decisão foi interposto recurso de apelação para o Tribunal da Relação que, na procedência parcial da apelação, com um voto de vencido, alterou a sentença recorrida, absolvendo a Ré do pedido de condenação a entregar à Autora, o imóvel onde habita, livre de pessoas e bens, no mais se mantendo a decisão apelada.

A Autora interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo concluído as suas alegações do seguinte modo:

1ª – O Acórdão recorrido, resultante da interposição de recurso da Ré, ora Recorrida, manteve inalterada a sentença de 1ª instância, no que concerne à improcedência do pedido reconvencional (usucapião) deduzido pela Ré, mantendo ainda incólume o reconhecimento do direito de propriedade da ora Recorrente sobre o imóvel, em apreço, mas,

2ª – Julgou parcialmente procedente a apelação, interposta pela Ré, e alterou a sentença de 1ª instância, absolvendo a Ré, ora Recorrida, do pedido de condenação na entrega do imóvel à A., ora Recorrente.

3ª – A decisão recorrida, não obstante, a existência de um voto de vencido, entendeu que o comodato em causa tem «uso determinado» em virtude da carência económica da Ré/Recorrida e por tal razão absolveu a Ré da condenação da entrega do imóvel à A/Recorrente.

4ª – A Recorrente entende, face à factualidade apurada, mormente do documento n.º 6 junto à p.i. (denominado declaração de compromisso) que, da sua leitura e análise não resulta que o uso do imóvel se mostra delimitado no tempo ou que exista qualquer critério que inculque a ideia de uso delimitável.

5ª – Não resulta provado expressa ou tacitamente, aquando da celebração do contrato de comodato, que a sua duração se mostre predeterminada.

6ª – Com relevo para o caso, em apreço, no Ac. Relação Coimbra identificado supra nestas alegações diz-se:

“A afetação do imóvel à habitação dos réus, enquanto para eles perdurassem as insuficiências económicas para angariação desse bem não tem que ver com a função do imóvel. Respeita à causa ou à motivação que presidiu à celebração do comodato”

“Diversamente, o uso determinado é aquele que é possível prever a antecipar no tempoem que se esgota. Por conseguinte, o uso determinado de que fala o artigo 1137º diz necessariamente respeito a um acto ou uma séria de actos de execução temporalmente delimitada ou delimitável logo no momento da celebração do contrato”.

7ª – No sentido acabado de referir podemos ainda colher os ensinamentos da Jurisprudência deste S.T.J, identificada nestas alegações e na doutrina explanada do Prof. Antunes Varela quando cita exemplos de uso determinado como o empréstimo de um livro para figurar numa exposição ou o empréstimo de um carro para certa viagem.

8ª – Face ao exposto, constata-se que estamos perante um contrato de comodato de duração indeterminada, sujeito à regra da cessação prevista nº n.º 2 do artigo 1137º do Código Civil.

9ª – Constata-se, pois, que o acórdão recorrido não interpretou nem aplicou corretamente a lei, uma vez que no contrato de comodato em apreço não se verificam os requisitos do uso determinado, face à inexistência de delimitação temporal do uso imóvel.

10ª – A decisão recorrida violou, entre outros, o disposto nos artigos 1137º, 237º do Código Civil, motivo porque deve ser concedida a presente revista, revogando-se o acórdão recorrido.

A Ré respondeu em defesa do acórdão recorrido.


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II – O objeto do recurso

Tendo em consideração as conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida cumpre apurar se o contrato celebrado entre a Autora e a Ré tinha uma duração indeterminada, estando a Ré obrigada a restituir o imóvel que lhe foi comodatado pela Autora logo que esta o exigisse.


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III – Os factos

São os seguintes os factos apurados neste processo:

1. A Autora é uma instituição particular de solidariedade social, sem fim lucrativo, sob a forma de associação de solidariedade social, reconhecida como pessoa coletiva de utilidade pública.

1 - A. Consta dos Estatutos da Autora, além do mais, o seguinte:

CAPÍTULO PRIMEIRO

Da denominação, sede, âmbito e fins

Artigo 1º

A Associação BOM SAMARITANO é uma instituição particular de solidariedade social, sem finalidade lucrativa, sob a forma de associação de solidariedade social.

(…)

Artigo 3.º

1- Tem por objetivo o apoio à família nas condicionantes, material, social e espiritual, procurando que cada família viva em adequadas condições de abrigo, higiene e conforto, à luz dos princípios fundamentais dos Direitos do Homem, dentro de um espírito de beneficência e caridade cristãs.

2- Especificamente procurará apoiar a família:

-» Na sua integração social e comunitária;

-» Na sua proteção em situações de falta ou diminuição dos meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho;

-» Na resolução da carência de habitação de famílias desprovidas de recursos próprios para, por si sós, a conseguirem adquirir.

3- Para a realização dos objetivos definidos, a Associação procurará criar e manter:

-» (…)

-» Um serviço de apoio financeiro para comparticipação nos encargos com rendas, com consumos de água, eletricidade e gás e com serviços médicos;

-» Um serviço de apoio na construção, reparação e conservação de habitações próprias, arrendadas ou em comodato quem competirá a legalização dos terrenos, a elaboração e legalização dos respetivos projetos, o fornecimento de materiais, a orientação na execução das obras e sua fiscalização,

-» Um serviço de gestão corrente das habitações que são propriedade da Associação, provendo pela sua manutenção e reparação e arrecadando os proveitos que possam resultar do seu uso. (…)

2. Tem por objeto o apoio à família nas condicionantes, material, social e espiritual, designadamente, no apoio de bens alimentares, medicamentos e apoio na construção de habitações.

3. Por escritura de doação outorgada no dia 30 setembro de 1983, BB e mulher CC declararam doar à Autora os seguintes prédios:

- Uma leira de mato e pinhal, chamada “...”, situada no lugar de ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrita na matriz sob o artigo ..59;

– Leira de mato e pinhal, situado no mesmo lugar de ..., da referida freguesia inscrita na matriz sob o artigo ..61.

4. Os prédios encontram-se descritos na 2ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ..24 e inscritos a favor da Autora desde 26.05.2003.

5. Os prédios foram doados à Autora com vista à prossecução do seu objeto.

6. Posteriormente, a 17.09.2012 a Autora procedeu ao loteamento urbano dos prédios que lhe foram doados.

7. Em Agosto de 1987 a Autora, na prossecução do seu objeto social, cedeu de forma gratuita à Ré, o R/C da casa n.º 2 construída nos imóveis doados.

8. A casa edificada no terreno foi construída com materiais fornecidos pela Autora e materiais doados por terceiros, no valor global de 981.725$00, tendo familiares, amigos e vizinhos da Ré auxiliado na construção da casa, ao nível de mão de obra.

9. A casa nº 2, encontra-se inscrita na matriz sob o artigo ...73.

10. A Ré passou a habitar tal casa desde agosto de 1987 de forma gratuita, sem qualquer contrapartida.

11. De escrito intitulado de “Declaração de Compromisso”, datado de 14 de agosto de 1987, assinado pela Ré e DD consta comprometemo-nos a conservar a casa em bom estado, a não fazer nenhuma alteração sem consentimento da direção do Bom Samaritano, a usa-la apenas para a família (pais e filhos) (…) a colaborar com a Associação Bom Samaritano a quem pertence a casa.

12. Os outorgantes, na data da assinatura, entregaram à Autora cópia dos seus Bilhetes de Identidade.

13. A Ré sabia que a casa pertence à Autora.

14. Autora e Ré encetaram negociações com vista à aquisição do imóvel pela Ré, não tendo as partes logrado obter acordo.

15. A Autora atua sobre os imóveis como coisa sua, à vista e com conhecimento de todos, sem oposição de ninguém, na convicção de ser a sua dona.

16. Aquando da doação, o intuito dos doadores era de que esses terrenos servissem para criar condições de habitação a famílias carenciadas.

17. A Ré reside na habitação em causa de forma ininterrupta desde 1987.

18. Em 08 de março de 1996 foi inscrito na matriz sob o artigo ..10, prédio urbano sito na .... A Ré procedeu a pagamento de IMI de imóvel inscrito na matriz sob o artigo ..10 de 2004 a 2014.

19. Por declaração datada de 28.03.2003, EE e a Ré declaram autorizar a Autora a requerer em seu nome contador de água.

20. Da ata nº 31 da Direção da Autora consta “Na casa que será para o cunhado da FF falta a eletricidade e os estores. Ficou decidido nesta reunião que se pedisse um orçamento para estes acabamentos”.

21. A Autora tinha a prática de, previamente, à entrega de qualquer casa solicitar aos novos moradores a assinatura de um documento que provisoriamente titulasse a cedência.

22. No andar/sótão da referida casa 2, incluindo o logradouro norte, uma parte de terreno a quintal e uma cave, vivia a irmã da Ré, de nome FF, os quais, entregaram à Autora o espaço onde viveram.

23. Após a entrega passou a Autora a ocupar e a utilizar todo esse espaço para exercício da sua atividade, que destinou a armazém, onde passou a recolher e distribuir géneros alimentares, materiais de construção e equipamentos domésticos diversos, para distribuição às famílias apoiadas e onde ainda guarda diversos materiais e equipamentos, possuindo as chaves de acesso aos portões das duas entradas e ao andar/sótão.

24. Foi a Autora quem custeou o pagamento dos ramais de ligação às casas.


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IV - O direito aplicável

A Autora interpôs a presente ação, reivindicando um imóvel ocupado pela Ré.

Resolvida nas instâncias a questão da titularidade do imóvel reivindicado (pertence à Autora), resta apurar se a Ré tem um título que justifique a sua ocupação, designadamente se a relação de comodato estabelecida entre a Autora e a Ré tem um conteúdo tal que impede a Ré de obter a entrega imediata do imóvel comodatado.

Relativamente aos termos em que o imóvel reivindicado foi comodatado à Ré, provou-se que, em Agosto de 1987, a Autora, na prossecução do seu objeto social, cedeu de forma gratuita à Ré, o R/C da casa n.º 2 construída nos imóveis doados, tendo a Ré e DD assinado um escrito intitulado de “Declaração de Compromisso”, de onde consta: comprometemo-nos a conservar a casa em bom estado, a não fazer nenhuma alteração sem consentimento da direção do Bom Samaritano, a usa-la apenas para a família (pais e filhos) (…) a colaborar com a Associação Bom Samaritano a quem pertence a casa.

Nos Estatutos da Autora pode ler-se que esta tem por objetivo o apoio à família nas condicionantes, material, social e espiritual, procurando que cada família viva em adequadas condições de abrigo, higiene e conforto, à luz dos princípios fundamentais dos Direitos do Homem, dentro de um espírito de beneficência e caridade cristãs.

Perante esta factualidade, o acórdão recorrido entendeu que o contrato de comodato celebrado com a ré foi-o para uma finalidade determinada: resolver a carência de habitação desta como uma das famílias desprovidas de recursos próprios para, por si sós, a conseguirem adquirir.’ (3.º ponto do n.º 2 do art. 3.º dos Estatutos).

Não se está assim, perante uma mera cedência sem prazo de habitação à ré; mas sim perante um comodato de uma habitação para a resolução da carência económica da ré que a impedia de ter uma habitação. Afigura-se-nos que tal cedência gratuita, atento o fim da mesma emergente dos factos provados – comodato do R/C de uma casa para a ré ter uma habitação que a sua carência económica a impedia de ter – tem um uso determinado, na medida em que só se justifica que o contrato de comodato subsista enquanto se verificar a carência económica que motivou a referida cedência gratuita da referida habitação à ré.

Tendo tal uso determinado – a cedência gratuita de habitação à autora foi efetuada por causa e em razão da sua carência económica para, por si, poder ter uma habitação, o que pressupõe que o título para tal utilização só subsista enquanto durar a carência económica que fundamentou a aludida cedência gratuita da habitação –, não estamos perante um “comodato precário”, em que a “(…) todo o momento o comodante poderá exigir a restituição da coisa comodatada.

A Recorrente, sustenta, porém, que da matéria provada não resulta que o uso do imóvel se mostra delimitado no tempo ou que exista qualquer critério que inculque a ideia de uso delimitável, pelo que , na sua perspetiva, estamos perante um contrato de comodato de duração indeterminada, sujeito à regra da cessação prevista no n.º 2 do artigo 1137.º do Código Civil.

Relativamente à restituição das coisas comodatadas, dispõe o artigo 1137.º, n.º 1, do Código Civil, que, se os contraentes não convencionaram prazo certo para a restituição da coisa, mas esta foi emprestada para uso determinado, o comodatário deve restituí-la ao comodante logo que o uso finde, independentemente de interpelação, acrescentando o n.º 2 do mesmo artigo que se não foi convencionado o prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida.

No presente caso, atenta a matéria fáctica provada acima realçada, constata-se que não foi convencionado um prazo para a restituição do imóvel emprestado.

Resta, pois, saber se o imóvel foi emprestado para um “uso determinado”, caso em que o comodatário apenas estaria obrigado a restituí-lo quando esse uso findar.

Quanto a esse aspeto, resulta dos termos do acordo apurado e da declaração de compromisso subscrita pela Ré, que o imóvel se destinava à habitação desta e do seu agregado familiar, e que essa cedência gratuita pela Autora se inseriu na prossecução no seu objeto social, o qual consiste no apoio à família nas condicionantes, material, social e espiritual, procurando que cada família viva em adequadas condições de abrigo, higiene e conforto, à luz dos princípios fundamentais dos Direitos do Homem, dentro de um espírito de beneficência e caridade cristãs, procurando, especificamente, apoiar (...) na resolução da carência de habitação de famílias desprovidas de recursos próprios para, por si sós, a conseguirem adquirir.

Será que a cedência gratuita e temporária de um imóvel para que o comodatário nele habite com a sua família se traduz numa cessão para um uso determinado do imóvel (a habitação), apenas cessando o respetivo contrato de comodato quando o comodatário deixe de nele residir ou estamos antes perante um denominado contrato de “comodato precário” que pode cessar a todo o tempo, pela respetiva declaração de vontade do comodante?

Considerando que a temporalidade é uma caraterística essencial do contrato de comodato, a jurisprudência deste Supremo Tribunal 1 tem entendido, maioritariamente que o «uso determinado», a que se alude no artigo 1137.º, do Código Civil, pressupõe uma delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, não podendo considerar-se como determinado o uso de certa coisa se não se souber, quando aquele uso não vise a prática de atos concretos de execução isolada mas antes atos genéricos de execução continuada, por quanto tempo vai durar, caso em que se deve haver como concedido por tempo indeterminado. Assim, o uso só é determinado se o for também por tempo determinado ou, pelo menos, determinável (...) No quadro normativo vigente, não seria de aceitar um comodato que subsistisse indefinidamente, seja por falta de prazo, seja por ele ter sido associado a um uso genérico, de tal modo que o comodatário pudesse manter gratuitamente e sem limites o gozo da coisa.

Esta posição (...) é (...) a mais consentânea com o princípio geral emanado do art. 237º, do CC, segundo o qual, em caso de dúvida, nos contratos gratuitos deve prevalecer o sentido da declaração menos gravoso para o disponente 2.

É esta também a posição da doutrina dominante 3.

No entanto, em dois acórdãos recentes 4, o Supremo Tribunal de Justiça entendeu que, tendo-se acordado que o imóvel comodatado se destinava a ser usado como casa de morada de família do comodatário, estaríamos perante um comodato com uso determinado, com um termo incerto, pelo que este contrato só cessaria com o fim desse uso, não sendo, até lá, livremente denunciável, aplicando-se o disposto no artigo 1037.º, n.º 1, do Código Civil 5.

A relação de comodato é, estruturalmente, uma situação de duração limitada, tendo, por isso, um termo.

Esse termo pode ser certo, quando as partes acordam no período de vigência do contrato, derivando de uma data concreta ou de uma duração explícita, como se prevê no artigo 1137.º, n.º 1, 1.ª parte, do Código Civil, mas o termo também pode ser incerto, quando no contrato se fixa que o empréstimo se destina a um uso determinado da coisa emprestada, o qual, pelas suas caraterísticas, terá que ser temporário, preenchendo a hipótese da 2.ª parte, do mesmo n.º 1, do artigo 1037.º, do Código Civil.

O termo incerto é aquele em que se desconhece o momento exato da sua verificação, embora esta seja certa – dies certus an incertus quando -, a qual, neste caso, ocorre quando cessar ou quando deva cessar o uso para o qual a coisa foi emprestada.

Devendo o uso acordado ser temporário, deve o mesmo ter um grau de concretização que permita determinar quando ocorre o seu termo. O uso acordado deve encontrar-se associado a um tempo de utilização.

Ora, o simples uso para habitação do comodatário e sua família de um imóvel, por ser demasiado genérico, não é suficientemente determinativo desse momento, uma vez que não define um uso limitado no tempo do imóvel emprestado 6.

Mas, já estaremos perante a convenção de um uso suficientemente determinado quando se convencione uma utilização do imóvel durante uma prova desportiva ou durante a frequência de um curso universitário, situações em que o termo do contrato se mostra suficientemente fixado, tendo a cedência do gozo do imóvel um cariz temporário, independentemente da sua duração poder ser mais ou menos prolongada.

O mesmo poderá ocorrer quando se acorde que a cedência gratuita do imóvel se destina a satisfazer as carências habitacionais do comodatário, desde que resulte inequivocamente, dos termos do acordado, que a cedência perdurará enquanto se mantiverem essas carências. Nestas situações, o uso do imóvel emprestado também se mostra suficientemente delimitado, aplicando-se o disposto na 1.ª parte, do n.º 1, do artigo 1137.º, do Código Civil.

Mas, caso os termos do contrato não permitam apurar, com segurança, qual a duração do período da cedência do gozo do imóvel, visando satisfazer as carências habitacionais do comodatário, deve aplicar-se a regra interpretativa do artigo 237.º, do Código Civil, segundo a qual, em caso de dúvida, nos contratos gratuitos deve prevalecer o sentido da declaração menos gravoso para o disponente, sob pena de se desincentivar a pratica de ações solidárias temporárias.

No caso sub iudice, apesar de apenas se ter provado que a Autora cedeu à Ré gratuitamente uma casa para esta a utilizar para sua habitação e dos seus parentes mais próximos (pais e filhos), há que ter presente que essa cedência ocorreu na prossecução do objeto social da Autora, a qual é uma instituição particular de solidariedade social, sem fim lucrativo, sob a forma de associação de solidariedade social, que tem por objetivo o apoio à família nas condicionantes, material, social e espiritual, procurando que cada família viva em adequadas condições de abrigo, higiene e conforto, à luz dos princípios fundamentais dos Direitos do Homem, dentro de um espírito de beneficência e caridade cristãs, especificamente (...) na resolução da carência de habitação de famílias desprovidas de recursos próprios para, por si sós, a conseguirem adquirir.

Foi este aspeto que, para o acórdão recorrido, foi decisivo para se considerar que se convencionou um uso determinado para o imóvel comodatado, tendo, por isso, o respetivo contrato um termo fixado – a superação da situação de carência da comodatária.

Tendo-se provado que a Autora, na prossecução do seu objeto social, cedeu de forma gratuita à Ré, o imóvel em causa, e que no seu objeto social se conta a resolução da carência de habitação de famílias desprovidas de recursos próprios para, por si sós, a conseguirem adquirir, é possível concluir que a motivação da Autora ao ceder gratuitamente à Ré o gozo de um imóvel foi o de proporcionar-lhe uma habitação, por esta se encontrar numa situação de carência habitacional.

Apesar de se tratar de uma motivação subjetiva antecedente à realização do contrato, correspondendo ela ao objeto social da comodante, contrariamente ao que sucede, em regra, com as motivações subjetivas dos outorgantes 7, não é correto afirmar que esse elemento se situa fora do perímetro negocial, uma vez que essa motivação não deixa também de coincidir com a função objetiva do contrato, integrando, por isso, a sua estrutura.

No entanto, o simples facto de se ceder o uso de um imóvel para habitação do comodatário, com a finalidade de satisfazer as carências habitacionais deste, não é suficiente, só por si, para determinar quando ocorre o termo dessa cedência, uma vez que não nos dá uma indicação segura sobre a duração do período em que o comodatário poderá usar o imóvel do comodante 8.

A imprecisão dos contornos do uso para o qual foi cedido o gozo do imóvel não permite, pois, afirmar que estamos perante a contratualização de um uso que se possa qualificar como suficientemente determinado para se estabelecer o seu termo, pelo que estamos perante uma situação prevista no artigo 1137.º, n.º 2, do Código Civil, e não pelo n.º 1, do mesmo artigo.

Tendo a Autora exigido à Ré a devolução do imóvel comodatado, deve esta proceder à sua entrega à Autora.

Contudo, apesar daquele preceito referir que o comodatário se encontra obrigado a restituir a coisa comodatada logo que lhe seja exigida, a boa fé no exercício dos direitos de crédito prevista pelo artigo 762.º, n.º 2, 2.ª parte, do Código Civil, recomenda que, no caso de comodato de imóveis, sobretudo quando ao comodato presidiu a finalidade de suprir as carências habitacionais do comodatário, seja concedido a este um prazo razoável para desocupar o imóvel 9.

Considerando o tempo de duração do comodato, as razões que a ele presidiram, o objeto social da Autora e a escassa oferta do mercado de habitação no nosso país, entende-se como razoável um prazo de 6 meses após o trânsito em julgado desta decisão para que a Ré proceda à entrega do imóvel.

Por esta razão deve o recurso deve ser julgado parcialmente procedente, revogando-se a decisão recorrida e repondo-se a sentença proferida na 1.ª instância.


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Decisão

Pelo exposto, julga-se procedente o recurso de revista interposto pela Autora e, em consequência, revoga-se o acórdão recorrido, condenando-se a Ré a entregar à Autora, no prazo de seis meses após o trânsito em julgado desta decisão, o prédio sito no lugar de ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº ..24 e inscrito na matriz sob o artigo ...73, livre de pessoas e bens.


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Custas da ação e dos recursos de apelação e de revista pela Ré, na proporção de 90%, e pela Autora, na proporção de 10%.

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Notifique.

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Lisboa, 19 de setembro de 2024

João Cura Mariano (relator)

Emídio Santos

Catarina Serra

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1. Vide, entre outros, os acórdãos do STJ de 13.5.2003, Proc. n.º 1323/03 (Rel. Silva Salazar), de 27.5.2008, Proc. n.º 1071/08, (Rel. Alberto Sobrinho); de 31.3.2009, Proc. n.º 359/09 (Rel. Pereira da Silva), de 16.11.2010, Proc. n.º 7232/04 (Rel. Alves Velho), de 26.11.2020, Proc. n.º 3233/18 (Rel. Maria da Graça Trigo), de 14.12.2021, Proc. 1580/14 (Rel. Maria João Vaz Tomé), e de 09.07.2024, Proc. 3068/21 (Rel. Leonel Serôdio), disponíveis in www.dgsi.pt.

2. Transcrição da fundamentação do acórdão do STJ de 26.11.2020, citado na nota anterior.

3. RODRIGUES BASTOS, Notas ao Código Civil, vol. IV, Rei dos Livros, p. 250-251, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. II, Coimbra Editora, 1997, p. 756, e MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, Vol. XII, Almedina, 2018, p. 165-168.

4. Acórdãos proferidos em 05.07.2018, Proc. 1281/13 (Relator: Olindo Geraldes) e em 04.02.2021, Proc.5779/18 (Rel. Manuel Capelo), acessíveis em www.dgsi.pt.

5. Apoiando o decidido nestes dois acórdãos, RUI ATAÍDE, Direito dos Contratos, Gestlegal, 2022, p. 32-33, e Código Civil Comentado III – Dos Contratos em Especial, Almedina, 2024, p. 662-663.

6. Com esta perspetiva JÚLIO GOMES, Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações. Contratos em Especial, UCP Editora, 2023, p. 591.

7. ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, A Causa do Negócio Jurídico no Direito Civil, Universidade Católica Editora, 2016, p. 79-82.

8. Assim também decidiram, em casos semelhantes, os acórdãos da Relação de Coimbra de 11.03.2014, Proc. 886/11 (Rel. Freitas Neto) e da Relação do Porto de 18.04.2024, Proc. 422/22 (Rel. Francisca Mota Vieira).

9. Neste sentido, JÚLIO GOMES, ob. cit., pág. 592.