No caso dos autos não ocorre a invocada ofensa do caso julgado formado com a sentença dada à execução.
Alegam, para o efeito, que não existe qualquer incumprimento da sentença dada à execução por parte dos embargantes, que declarou constituída uma servidão de passagem a favor do prédio dos autores, ora embargados, através do logradouro do prédio dos embargantes.
Alegam ainda que os exequentes embargados jamais foram impedidos de utilizar a referida servidão, mas nunca pediram as chaves do cadeado do portão, não existindo actualmente qualquer murete e a servidão, em toda a sua largura e extensão não se encontra ocupada com o que quer que seja.
Os embargados contestaram alegando que os embargantes tudo fazem para impedir o acesso à sua casa, tornando o espaço da servidão num conjunto de muros e muretes, entulho, ferramentas e três portões praticamente seguidos, não lhes tendo fornecido a chave do aloquete do portão existente junto à rua.
Foi proferido despacho saneador, fixando-se o valor da causa em € 2.000,00 (dois mil euros).
Teve lugar a audiência de julgamento, no decurso da qual foi entregue pelos embargantes aos embargados, uma chave do portão em causa nos autos. Procedeu-se ainda a inspecção ao local.
Tendo-se verificado que não havia sido dado contraditório às partes relativamente às fotografias tiradas no local e juntas aos autos, foi ordenada a sua notificação para, querendo, exercerem se pronunciarem.
Os embargantes, confirmando as medidas e fotos tiradas no local, vieram, pela primeira vez, alegar que, tendo a servidão constituída pela sentença exequente apenas 6 metros de comprimento e indo a propriedade dos embargantes para além desses 6 metros, até à distância de 7,80 metros desde a entrada da propriedade, a servidão atribuída é inútil (uma vez que tudo o que se encontra para lá desses 6 metros não se encontra abrangido pelo decidido na sentença) e, por isso, inexequível, pelo que, ocorrendo inutilidade superveniente da lide, deve ser declarada a extinção da instância.
Responderam os embargados declarando que a servidão não é inútil, uma vez que é o único acesso à sua casa, sendo a medida de 6 metros uma medida aproximada.
Foi proferida sentença que julgou a oposição à execução improcedente e determinou o prosseguimento da instância executiva.
Inconformados, os embargantes interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, invocando, entre o mais, a ofensa do caso julgado formado com a sentença dada à execução. Por acórdão de 21 de Março de 2024 o recurso foi julgado improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
2. Novamente inconformados, vêm os embargantes interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:
«1 – O Juiz de Execução não pode de forma alguma alargar o âmbito de uma sentença transitada de tal modo que altere completamente as medidas e áreas de uma servidão de passagem e com isso alterando o que consta do titulo dado à execução constituído pela sentença e em consequência considerando os embargos improcedentes.
2 – No caso, como o dos autos, uma servidão de passagem que seja considerada inútil devido à insuficiência de metros indicados na sentença, a liquidação incidental é essencial para determinar os limites da servidão e tornar a sentença executável.
3 - A falta de liquidação nesse contexto nos termos Artº704, nº 6 do C.P.C., como referido na conclusão anterior, deve resultar no indeferimento do requerimento executivo para mais quando quer o juiz do processo declarativo quer o do processo executivo fizeram inspecção ao local e o do processo executivo fez autenticamente uma liquidação incidental que jamais foi requerida e para a qual não tinha legitimidade atento o facto da liquidação dever ser feita no âmbito do processo declarativo.
4 – Um logradouro de um Artigo urbano – no caso uma habitação – não pode ser alvo de uma servidão de passagem, de tal modo, que retire integralmente ou quase integralmente ao seu proprietário todas ou quase todas as utilidades do mesmo porque de acordo com o princípio da compatibilidade ou da exclusão um direito real menor (o caso da servidão) não pode sobrepor-se a um direito de propriedade e de tal forma que aniquila esse direito no tangente ao poder directo e imediato do proprietário relativo às faculdades que ele se reserva sobre a coisa.
5 – No caso dos autos a sentença em execução resultou do pedido dos AA que foram quem indicou as medidas da servidão e a sua área e o juiz do processo declarativo não podia conhecer para além do pedido nem condenar para além do mesmo.
6 – O contraditório no processo declarativo foi exercido pelos RR apenas e relativamente ao pedido conforme às medidas da servidão ali requerida e nunca foram colocados diante de uma servidão com as medidas depois concedidas pelo juiz de execução na decisão dos embargos origem deste recurso e depois confirmadas pela Relação de Guimarães de tal forma que os Executados ora Recorrentes jamais puderam exercer o seu direito ao contraditório no processo declarativo.
7 – Nos termos do Artº 609 e 615, alª e) do C.P.C. a Sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir e se for violada essa imposição legal então a sentença é nula.
8 – No caso dos Autos a sentença dada à execução condenou os Recorrentes conforme aos pedidos dos Recorridos mas o Juiz de execução na sua decisão nos embargos de executado declarou improcedentes os embargos e determinou o prosseguimento da execução passando a servidão de 6 metros de cumprimento por dois e meio de largura, que era o constante da sentença dada à execução, para uma servidão de 7,80 metros por dois e meio de largura ou seja passou a servidão concedida na sentença de 15 metros de área para 19,5 metros quadrados de área e com isso desrespeitando o título dado à execução e de tal modo que o ampliou e dessa forma retirando aos Recorrentes toda e qualquer utilidade daquela sua propriedade do logradouro e tudo isto em violação de caso julgado e dos princípios dos direitos reais e nomeadamente o principio da compatibilidade ou da exclusão.
9 – O Tribunal da Relação de Guimarães confirmou aquela decisão dos embargos e considerou relativamente a portões e muretes, que estavam para além dos seis metros constantes da decisão do processo declarativo, como actos violadores da decisão da primeira instância no processo declarativo; afinal coisas e objectos que estavam fora do âmbito das áreas constantes da sentença em execução.
10 – A Servidão de passagem concedida na sentença de que se pretende a execução é manifestamente inútil por insuficiência de metros indicados na sentença e por isso deveria, mas não foi, ser alvo de liquidação incidental essencial para se determinarem os limites da servidão e tornar a sentença executável e cuja consequência deveria e deverá ser a de se decretar o indeferimento do requerimento executivo.
11 – Sem liquidação incidental no processo declarativo, e sua decisão, não poderia nem a primeira instância nem a Relação de Guimarães alterar completamente as medidas da servidão constantes da sentença dada à execução e com isso violando caso julgado já que nem a Juiz de Execução nos Embargos nem a Relação de Guimarães no Recurso poderiam alterar fosse o que fosse daquela decisão ou desrespeitá-la nos seus limites mandando prosseguir a execução, indeferindo os embargos, com medidas da servidão que não constam do título executivo.
12 – Existe assim violação de caso julgado e o título dado à execução é inexequível conforme retro exposto.».
Terminam pedindo a revogação do acórdão recorrido, declarando-se a extinção da execução.
Não foram apresentadas contra-alegações.
3. Foi dado como provado o seguinte:
A) Os exequentes/embargados ofereceram como título executivo uma sentença proferida, em 07/09/2020, no Processo n.º 730/19.3... do Juízo Local Cível de ... - ... 1, transitada em julgado, podendo ler-se no seu dispositivo o seguinte: “(…) Julgo a presente acção que GG, FF, EE, DD e mulher CC instauraram contra AA e mulher BB parcialmente procedente por provada e em consequência: - Declaro constituída por usucapião a favor do prédio dos autores composto de casa de habitação e logradouro no lugar do ..., com a superfície coberta de 90 m2 e descoberta de 335 m2, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ..., concelho de ..., sob o art. 442º, e que se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º .71/......06, uma servidão de passagem a pé e com viaturas a motor, sobre o prédio urbano inscrito na matriz urbana da freguesia de ..., sob o art. 488º e inscrito em nome do réu AA. - Tal servidão inicia-se no caminho público a nascente, debaixo do local onde se encontra construída a casa de habitação dos réus, e faz-se por uma faixa de terreno, com o seu leito batido com cerca de 15 m2 de área correspondente ao cumprimento de 6 metros e à largura de 2,5 metros. - Condeno os réus a permitirem aos autores o acesso ao seu prédio através da referida faixa de terreno, designadamente, removendo o murete e o portão que ali colocaram ou a facultarem aos autores as chaves do mesmo; - Condeno os réus a absterem-se de qualquer comportamento que impeça os autores e acederem ao prédio. - Julgo improcedentes os demais pedidos formulados pelos autores (…)”.
B) Os Executados foram condenados a permitir aos Exequentes o acesso ao seu prédio através daquela faixa, designadamente removendo o murete e o portão que ali colocaram ou a facultarem aos Exequentes as chaves do mesmo, abstendo-se de qualquer comportamento que impeça os Exequentes de o fazer.
C) Os Executados, ao invés de removerem o murete a que se alude no título executivo, limitaram-se a remover uma parte do mesmo, sendo que, na base dessa abertura, deixaram, ainda, parte do murete que foram condenados a remover, com cerca de 30 cm de altura, composto por pedras e cimento.
D) Deixaram, ainda, por remover, dois tramos laterais do dito murete.
E) Na abertura que fizeram no murete em causa, os Executados instalaram ainda um portão em ferro, anteriormente inexistente, com duas folhas de abrir.
F) No leito da faixa de terreno por onde os Exequentes têm o direito de passar, deixaram os Executados restos de argamassa de cimento e areia, pedras, dezenas de blocos de cimento, um balde em chapa com capacidade para 20 litros cheio de areia, tábuas e um carro de mão.
G) Os Executados não removeram o portão que colocaram a nascente, junto ao caminho público, nem forneceram aos Exequentes qualquer chave do mesmo, antes tendo ali colocado uma corrente em ferro com um aloquete fechado à chave que também impede os Exequentes de entrar e sair para o seu prédio.
H) Na audiência de discussão e julgamento que teve lugar no dia 07/11/2022 neste Juízo de Execução, sediado em ..., pelo ilustre mandatário dos embargantes foi entregue ao ilustre mandatário dos embargados, a chave do portão em causa nos presentes autos, que a recebeu.
I) Na diligência de inspeção ao local realizada no pretérito dia 06/07/2023, com a concordância das partes, foram considerados assentes os seguintes factos: “1 - O primeiro portão já se encontrava aberto e preso com um baraço junto à propriedade dos embargantes/executados. 2 - O segundo portão tem uma largura de 2,57 metros. 3 - O terceiro portão tem uma largura de 2,50 metros. 4 - Do primeiro portão ao segundo distam 6,50 metros. 5 - Do primeiro portão ao terceiro distam 7,80 metros. 6 - Do pilar que suporta o segundo portão ao lado oposto existe uma distância de 2,73 metros. 7 - Com o segundo portão aberto, de ferro a ferro, distam 2,57 metros. 8 - As partes aceitam que os executados colocaram o primeiro e terceiro portão. 9 - As partes aceitam que os exequentes colocaram o segundo portão. 10 - As partes aceitam que a colocação do terceiro portão assenta sob o murete em bloco que originou a instauração da ação onde foi proferida a sentença que se executa. 11 - Do limite da rampa para o terreno dos exequentes existe um declive com uma altura, que ao meio tem 26 centímetros, junto ao terreno dos executados o declive tem a altura de 21 centímetros e do lado oposto o declive tem uma altura de 27 centímetros. 12 - As partes aceitam que a rampa, que no cimo tem assente o terceiro portão, foi feita pelos executados. 13 - As partes aceitam que o murete onde assenta o terceiro portão foi construído pelos executados 14 - As partes aceitam que o terceiro portão foi colocado depois da sentença que se executa. 15 - As partes aceitam que o espaço livre de passagem com o terceiro portão aberto tem uma largura de 2,45 metros. 16 - As partes aceitam que das pedras salientes existentes na servidão de passagem junto ao muro dos executados até aos blocos existentes do lado contrário junto à grade, distam 2,00 metros.
J) 17 - Consigna-se que, no final da diligência, o executado fechou o primeiro portão com o cadeado”.
4. Não se encontram reunidos os pressupostos gerais de recorribilidade do valor da acção e da sucumbência (cfr. art. 629.º, n.º 1, do CPC), além de que, tendo o acórdão recorrido julgado improcedente o recurso de apelação, confirmando a decisão da 1.ª instância, sem voto vencido e com fundamentação essencialmente convergente, se verifica dupla conforme entre as decisões das instâncias que obsta à admissibilidade do recurso (cfr. art. 671.º n.º 3, do CPC).
Porém, tendo os recorrentes invocado a ofensa do caso julgado formado com a sentença declarativa dada à execução, e considerando-se existir possibilidade bastante de que assim seja, nos termos previstos no art. 629.º, n.º 2, alínea a), do CPC, em conjugação com a parte inicial do referido art. 671.º, n.º 3, do mesmo Código, o recurso é admissível, estando, porém, o seu objecto circunscrito à apreciação da invocada ofensa do caso julgado.
5. Nos presentes embargos de executado a defesa dos embargantes assentou essencialmente na alegação de que a decisão condenatória da sentença dada à execução se encontrava integralmente cumprida, o que, segundo entendeu a sentença da 1.ª instância, confirmada pelo acórdão recorrido, os embargantes não lograram provar (cfr. factos provados B) a H)).
Como assinalam quer a sentença quer o acórdão recorrido, os embargantes, ora recorrentes, sem nunca terem feito alusão a tal argumentação no seu requerimento de embargos, vieram posteriormente - aquando da notificação das fotografias tiradas em sede de inspecção ao local -, invocar a inutilidade superveniente da lide por a servidão reconhecida ser inútil e, por isso, inexequível. Como fundamento, alegam que os 6 metros de comprimento, previstos na sentença que declarou a constituição da servidão, não são suficientes para o efeito pretendido, sendo necessários 7,80 metros, conforme se constatou na inspecção ao local.
A sentença da 1.ª instância não acolheu a argumentação dos embargantes, vindo estes, em sede de recurso de apelação, a reiterá-la, o que levou o Tribunal da Relação a pronunciar-se da seguinte forma:
«[O]s apelantes, sem nunca terem feito qualquer alusão a tal argumentação na sua petição de embargos, vieram, posteriormente, aquando da notificação das fotografias tiradas em sede de inspeção ao local, argumentar no sentido da inutilidade superveniente da lide por a servidão atribuída ser inútil e, por isso, inexequível, uma vez que os 6 metros contados desde a entrada do primeiro portão, não são suficientes para atingir a propriedade dos exequentes, o que só se atingiria com 7,80 metros, conforme se constatou na inspeção ao local.
Na sequência de tal requerimento, vêm agora, sustentar o seu recurso, nos termos já supra assinalados.
Mas, salvo o devido respeito, não têm razão.
Como os próprios referem na sua petição de embargos, no artigo 7.º, a servidão onera o seu logradouro numa faixa que vai da rua pública até à extrema da propriedade dos exequentes/embargados.
Nem de outro modo poderia ser, pois caso não desse para chegar ao prédio dos exequentes, não poderia a servidão ter sido constituída como foi declarado na sentença.
Veja-se que a “servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente” – artigo 1543.º do Código Civil – daqui resultando que a servidão tem que ter uma extensão que lhe permita alcançar esse desiderato, ou seja, tem que aproveitar a outro prédio, o que só é possível se os donos desse outro prédio lá conseguirem chegar através da servidão.
Trata-se de um encargo que recai sobre o prédio, “de uma restrição ao gozo efetivo do dono do prédio, inibindo-o de praticar actos que possam prejudicar o exercício da servidão” – Antunes Varela e Pires de Lima, CC Anotado, vol. III, 2.ª edição revista e atualizada, pág. 614 – pelo que não tem qualquer suporte legal os considerandos dos apelantes sobre poderem fazer o que entenderem na sua propriedade.
Ora, nunca aos executados foi negado o contraditório, tendo a ação declarativa corrido com a observância de todas as regras processuais e o mesmo se diga dos embargos agora em causa (em que a questão da inutilidade foi suscitada já em fase avançada, após ter sido dada oportunidade às partes de se pronunciarem sobre a junção das fotografias tiradas pelo tribunal no decurso da inspeção ao local, tendo ficado consignadas em ata todas as observações e medidas aí constatadas, tudo com o acordo e aceitação das partes). Os executados, réus na ação declarativa, conheciam a propriedade e a faixa de terreno aqui em causa e não podem invocar surpresa quanto às medidas da mesma.
A sentença que se executa, refere expressamente que a servidão (que se declara constituída por usucapião) se inicia no caminho público a nascente, debaixo do local onde se encontra construída a casa de habitação dos réus e faz-se por uma faixa de terreno com o seu leito batido, condenando os réus a permitirem aos autores o acesso ao seu prédio através da referida faixa de terreno.
Não há aqui qualquer ambiguidade ou dificuldade interpretativa, nem a sentença proferida nos embargos foi para além desta realidade.
Veja-se até que, no seu extrato decisório, a sentença refere “com cerca de 15 m2 de área”, não podendo retirar-se que se trata de uma medida certa e absoluta.
Constatou-se na inspeção ao local que o comprimento da faixa de terreno desde o caminho público até à extrema do prédio dos exequentes, é de 7,80 metros e não 6 metros como vem dito na sentença.
Para além da falta de certeza que resulta de expressão “cerca de”, o que é relevante na condenação dos réus é que terão que permitir aos autores o acesso ao seu prédio através da referida faixa de terreno, o que seria impossível se apenas fossem contados os 6 metros de comprimento (os autores ficariam a 1,80 metros de atingir a sua propriedade e sem o poderem fazer por qualquer outro meio).
(...)
(...) não pode haver qualquer dúvida que um declaratário normal interpretaria a sentença que declarou constituída por usucapião uma servidão de passagem como a mesma, partindo do caminho público teria que ter o comprimento necessário para atingir o prédio dominante (aquele que beneficia da servidão), sendo a medida de 6 metros aí constante, quando é necessário o comprimento de 7,80 metros para atingir tal desiderato, uma falha de medição, tanto mais que a sentença se refere a “cerca de 15 m2 de área”, o que inculca a ideia que as medidas não foram tomadas com rigor.
Como bem se refere na sentença recorrida, “não faria qualquer sentido que a sentença dada à execução fixasse o limite da servidão num local que não coincidisse com a extrema do terreno dos executados/embargantes”, pois caso tal acontecesse, os exequentes não poderiam entrar no seu prédio através desta servidão, “pelo que, obviamente, o trato de terreno em causa nos autos tem de iniciar-se no caminho a atingir o prédio dos exequentes, nem podia ser de outra forma”.
Não há aqui qualquer violação do caso julgado (aliás, a sentença proferida no apenso de embargos de executado, não declara quaisquer direitos ou condena em quaisquer obrigações, apenas decide sobre a procedência ou improcedência da oposição).
O tribunal de execução/embargos não decidiu contra ou para além do estabelecido na sentença em execução, limitando-se a interpretá-la nos termos que já deixámos assinalados.». [negritos nossos]
Insurgem-se os embargantes, ora recorrentes, contra esta decisão, insistindo na ocorrência de ofensa do caso julgado formado com a sentença declarativa dada à execução.
Vejamos.
Está dado como assente que a sentença em causa foi proferida «em 07/09/2020, no Processo nº 730/19.3... do Juízo Local Cível de ... - ... 1, transitada em julgado, podendo ler-se no seu dispositivo o seguinte: “(…) Julgo a presente acção que GG, FF, EE, DD e mulher CC instauraram contra AA e mulher BB parcialmente procedente por provada e em consequência: - Declaro constituída por usucapião a favor do prédio dos autores composto de casa de habitação e logradouro no lugar do ..., com a superfície coberta de 90 m2 e descoberta de 335 m2, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ..., concelho de ..., sob o art. 442º, e que se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º .71/......06, uma servidão de passagem a pé e com viaturas a motor, sobre o prédio urbano inscrito na matriz urbana da freguesia de ..., sob o art. 488º e inscrito em nome do réu AA. - Tal servidão inicia-se no caminho público a nascente, debaixo do local onde se encontra construída a casa de habitação dos réus, e faz-se por uma faixa de terreno, com o seu leito batido com cerca de 15 m2 de área correspondente ao cumprimento de 6 metros e à largura de 2,5 metros. - Condeno os réus a permitirem aos autores o acesso ao seu prédio através da referida faixa de terreno, designadamente, removendo o murete e o portão que ali colocaram ou a facultarem aos autores as chaves do mesmo; - Condeno os réus a absterem-se de qualquer comportamento que impeça os autores e acederem ao prédio. - Julgo improcedentes os demais pedidos formulados pelos autores (…)”.».
Importa interpretar esta decisão dada à execução.
Socorremo-nos, para o efeito, da lição de Remédio Marques («Em torno da interpretação das decisões judiciais. O limite temporal final para a definição dos direitos conferidos ao trabalhador no quadro das remunerações intercalares por despedimento ilícito», in Lusíada, n.ºs 7 e 8, Porto, 2013, págs. 87-88), autor que, de forma incisiva, apresenta um conjunto de directrizes relativamente ao processo interpretativo de uma decisão judicial:
“Em primeiro lugar, perante o texto da decisão judicial o intérprete deve começar por perceber, segundo as regras linguísticas comuns e da lógica, o seu sentido objectivo. A interpretação das decisões judiciais, como qualquer interpretação começa assim pelo exame do texto a interpretar. Esse é o seu ponto de partida (…). Em segundo lugar — e talvez esta seja a constatação mais importante no que às directrizes interpretativas das decisões judiciais diz respeito —, a ‘mens’ objectivada deste tipo de decisões judiciais e do juízo decisório que lhes é inerente não pode ser logrado senão através do ‘iter’ genético dessas mesmas decisões E esta tarefa interpretativa terá que ser realizada retrospectivamente, ‘post factum finitum’, em particular se a concreta decisão interpretanda já transitou em julgado. Se o texto da decisão é o ponto de partida da interpretação, o ponto de chegada é o ‘iter’ genético dessa mesma decisão. Este ‘iter’ não corresponde, já se vê, ao itinerário psicológico e interior do magistrado: a identificação do objecto do juízo não pode ser reconstruído a esta luz, mas sim, e pelo contrário, à luz do ‘iter’ objectivo (…) Em terceiro — e de um modo decisivo para esta tarefa interpretativa dirigida à reconstrução da génese do juízo objectivado na decisão judicial — alça-se o elemento mais importante para a identificação do objecto desse juízo. E este elemento é determinado pelo princípio do pedido (espécie do princípio do dispositivo), no sentido em que deve existir uma necessária correspondência entre o pedido do autor (ou do réu reconvinte) e a pronúncia ínsita na decisão judicial. O tribunal não pode decidir sobre objecto diferente do pedido ou omitir a resolução de questões que lhe foram pedidas pelo autor.” [negritos nossos]
Procuremos aplicar estas directrizes à interpretação da sentença que constitui o título executivo.
Antes de mais, considera-se ser de acompanhar o entendimento do tribunal a quo a respeito do sentido objectivo do texto da sentença. Com efeito, tendo a sentença declarado «constituída por usucapião a favor do prédio dos autores composto de casa de habitação e logradouro (...) uma servidão de passagem a pé e com viaturas a motor, sobre o prédio urbano» dos réus, a qual se inicia «no caminho público a nascente, debaixo do local onde se encontra construída a casa de habitação dos réus, e faz-se por uma faixa de terreno, com o seu leito batido com cerca de 15 m2 de área correspondente ao cumprimento de 6 metros e à largura de 2,5 metros», condenando «os réus a permitirem aos autores o acesso ao seu prédio através da referida faixa de terreno, designadamente, removendo o murete e o portão que ali colocaram ou a facultarem aos autores as chaves do mesmo», entende-se que o significado da decisão consiste na declaração da constituição, por usucapião, de uma servidão de passagem que incide sobre a faixa de terreno que vai do caminho público ao prédio dos autores. Que as medidas indicadas, de forma aproximada («com cerca de 15 m2 de área correspondente ao cumprimento de 6 metros e à largura de 2,5 metros»), na decisão da sentença não sejam exactas não pode ter-se como contradizendo a declaração de reconhecimento da servidão.
As demais directrizes interpretativas (a atenção ao princípio do pedido e ao iter genético objectivo da decisão) conduzem à mesma conclusão.
Com efeito, compulsada a petição inicial apresentada na acção declarativa e a sentença que veio a ser proferida (e que constitui o título executivo nos autos principais de execução), constata-se:
- Que o pedido subsidiário formulado pelos aí autores («Declarar-se que em benefício deste prédio e onerando o prédio identificado sob o artigo 3º se constituiu, por usucapião, uma servidão legal de passagem, com as características e dimensões definidas no artigo 6º, condenando-se os réus a reconhecê-lo»; tendo o artigo 6º o seguinte teor: «Da parcela doada pela Junta de Freguesia à Autora GG e marido, HH, faz parte, designadamente, um pequeno trato de terreno, com o seu leito batido, com cerca de 15 m2 de área, correspondente ao comprimento de 6 metros e à largura de 2,5 metros, situado na extremidade nascente, o qual confronta, a norte, com a parcela de terreno onde os Réus nos anos 90 do século XX construíram a casa identificada no artigo 3º, a sul e a nascente com a via pública e a poente com o resto da parcela.») foi enunciado com a indicação meramente aproximada das medidas da faixa de terreno em causa («cerca de 15 m2 de área»);
- Que a indicação dessas medidas no artigo 6º não coincide inteiramente com a que consta do artigo 24º da p.i. («Ainda que, por cautela de patrocínio, provavelmente excessiva, aquela parcela de terreno, referida em 6º, integrasse o terreno dos Réus, o que não se concede, sempre se havia constituído a favor do prédio dos Autores uma servidão de passagem, por usucapião, uma vez que tal passagem ou rodeira, com as dimensões descritas (cerca de 6 metros X 2,5 metros), sempre foi perfeitamente visível no terreno, tratando-se de um caminho batido, cotiado, com o seu leito definido e as margens delimitadas por muros, quer do lado norte quer do lado sul.»);
- Que a acção declarativa teve como objecto a discussão acerca da propriedade sobre a faixa de terreno que vai do caminho público ao prédio dos autores e, a título subsidiário, sobre a constituição de uma servidão de passagem sobre a mesma faixa de terreno, e não a definição das medidas do dito terreno, as quais surgem, aliás, indicadas em termos não coincidentes tanto na factualidade dada como provada na sentença («11. E, também, há mais de 30 anos, que os autores utilizavam a parcela com cerca de 15 m2 de área correspondente ao cumprimento de 6 metros e à largura de 2,5 metros, situada na extremidade nascente, ano após ano, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, ignorando lesar interesses alheios e na convicção de exercerem um direito próprio.»; «14. A parcela de terreno por onde os autores passavam, com a dimensão de 6 metros de cumprimento por 2,5 metros de largura, revela um caminho batido, cotiado com o seu leito definido e as margens delimitadas por muros quer do lado norte quer do lado sul.») como na fundamentação da sentença («um pequeno trato de terreno, com o seu leito batido, com cerca de 15 m2 de área, correspondente ao comprimento de 6 metros e à largura de 2,5 metros»; «tal passagem ou rodeira, com as dimensões descritas (cerca de 6 metros X 2,5 metros)), chegando mesmo a surgir enunciadas em termos significativamente diferentes («faixa de terreno, situada a nascente da sua casa, com a área de 15 m2, sendo cerca de 9 metros de comprimento e 3 [d]e largura»);
- Que, em razão da factualidade dada como provada pela sentença («12. Os réus, quando construíram a sua casa, edificaram um muro de vedação a separar a sua casa da casa dos autores. 13. Em fevereiro de 2019 os réus: - Colocaram um portão em ferro, com duas folhas de abrir suportado por dois pilares em betão que colocaram na extremidade da parcela referida em a) a nascente e ocupando toda a sua largura; - Cravaram uma grade de vedação de ferro em cima do muro; - Construíram um muro em pedra e cimento em toda a extensão da extremidade poente da parcela que tem cerca de 175 cm de altura. 14. A parcela de terreno por onde os autores passavam, com a dimensão de 6 metros de cumprimento por 2,5 metros de largura, revela um caminho batido, cotiado com o seu leito definido e as margens delimitadas por muros quer do lado norte quer do lado sul.»), a delimitação da faixa de terreno onerada com a servidão de passagem não oferece dúvidas algumas.
Temos assim que: (i) verificando-se que, na acção declarativa que culminou com a prolação da sentença dada à execução, a questão das medidas exactas da faixa de terreno em causa não foi objecto de discussão pelas partes, nem tampouco foi objecto de pronúncia específica pelo tribunal; (ii) verificando-se ainda que o segmento decisório da sentença contém uma referência meramente aproximada às medidas do terreno («cerca de 15 m2 de área»); (iii) reitera-se o entendimento do acórdão recorrido, segundo o qual o sentido de tal decisão consiste essencialmente em declarar a constituição, por usucapião, de uma servidão de passagem sobre a faixa de terreno do prédio dos réus, ora embargantes, que vai do caminho público ao prédio dos autores, ora embargados.
Perante tal resultado interpretativo, e na medida em que, nos presentes embargos de executados, a sentença da 1.ª instância, confirmada pelo acórdão recorrido, não declara qualquer direito nem condena em qualquer obrigação, apenas decidindo a improcedência da oposição, conclui-se pela inexistência da invocada ofensa do caso julgado.
6. Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido.
Custas pelos recorrentes.
Lisboa, 19 de Setembro de 2024
Maria da Graça Trigo (relatora)
Ana Paula Lobo
Paula Leal de Carvalho