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RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
UTILIZADORES VULNERÁVEIS
CULPA
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
EQUIDADE
Sumário
- Os factos instrumentais puramente probatórios não têm que ser objecto de articulação específica pelas partes, sendo a instrução e julgamento o momento próprio para os mesmos emergirem, cabendo ao juiz atendê-los e valorá-los em sede da fundamentação da convicção quanto fixa os factos provados e não provados (Artigo 607º, nº 4, do Código de Processo Civil; - Não observa o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida o apelante que se abstém de desconstruir toda a apreciação crítica da prova, realizada pelo tribunal a quo na decisão impugnada, limitando-se a assinalar que existe um ou outro meio de prova em sentido diverso do aceite como prevalecente pelo mesmo tribunal; - É adequada a fixação da proporção de culpa pelo sinistro, dos peões idosos e do condutor da viatura automóvel envolvida, na proporção de, respectivamente 20% e 80%, quando estes fizeram a travessia da estrada fora da passagem de peões que ficava a menos de 50 metros de distância confiantes de que o automóvel em causa permaneceria parado, como se encontrava, quando iniciaram a essa travessia; - Fixada indemnização com base na equidade, o Tribunal superior só deve intervir quando os montantes fixados se revelem, de modo patente, em colisão com os critérios jurisprudenciais que vêm a ser adoptados, para assegurar a igualdade. - Revela-se proporcionado aos danos morais próprios do marido e filhos da vítima mortal de acidente de viação o valor de, respectivamente, 40000 e 35000 euros (neste último caso para cada).
Texto Integral
Assinado digitalmente por: Rel. – Des. José Manuel Flores 1ª Adj. - Des. Fernanda Proença Fernandes 2ª - Adj. - Des. Maria Amália Santos
Recorrente(s): - AA, BB e CC; - EMP01... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., Recorrido(s): - EMP01... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.; - AA, BB e CC.
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Acordam os Juízes na 3ª Secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:
1. RELATÓRIO
AA, BB e CC intentaram a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra EMP01... – Companhia de Seguros, S.A., na qual pedem que seja a Ré condenada:
a) No pagamento da quantia de € 90.000,00 aos Autores, a título de perda de direito à vida da sinistrada;
b) No pagamento da quantia de € 125.000,00 aos Autores, a título de danos morais sofridos pela sinistrada;
c) No pagamento da quantia de € 60.000,00 ao 1.º Autor, a título de danos morais;
d) No pagamento da quantia de € 50.000,00 a cada um dos 2.º e 3.º Autores, no valor global de 100.000,00 €, a título de danos morais;
Pedem, ainda, que todos os valores peticionados sejam actualizados, até integral pagamento, de acordo com o índice do preço do consumidor, e acrescidos, ainda, de juros de mora à taxa legal de 4%, vencidos desde a citação, sobre os danos patrimoniais, e desde a data da sentença que vier a ser proferida, relativamente aos danos morais.
A Ré contestou, impugnando parcialmente a matéria alegada na Petição Inicial, imputando ao 1.º Autor e sua falecida esposa a culpa pela produção do acidente, em virtude de terem efectuado a travessia da via fora e a menos de 50 metros de local especialmente assinalado para esse fim, sem tomarem as devidas precauções e quando aí já circulava o condutor do veículo de matrícula ..-HV-.., que nada pôde fazer para evitar o embate.
A final foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Nestes termos e face ao exposto, julgo parcialmente procedente a acção e, em consequência: a) Condeno a Ré, “EMP01... – Companhia de Seguros, S.A.”, a pagar aos Autores, AA, BB e CC, quantia de € 56.000,00, a título de perda de direito à vida da sinistrada; b) Condeno a Ré, “EMP01... – Companhia de Seguros, S.A.”, a pagar aos Autores, AA, BB e CC, quantia de € 36.000,00, a título de danos morais sofridos pela sinistrada; c) Condeno a Ré, “EMP01... – Companhia de Seguros, S.A.”, a pagar ao Autor, AA a quantia de € 32.000,00, a título de perda de direito à vida da sinistrada, a título de danos morais; d) Condeno a Ré, “EMP01... – Companhia de Seguros, S.A.”, a pagar a cada um dos Autores, BB e CC, a quantia de € 24.000,00, a título de danos morais, no total de € 48.000,00; e) Condeno a Ré, “EMP01... – Companhia de Seguros, S.A.”, a pagar aos Autores, AA, BB e CC, os juros que se vençam desde a data da presente sentença e até efectivo e integral pagamento, sobre as quantias referidas em a), b), c), e d), à taxa legal de 4% ao ano. Custas pelos Autores e pela Ré na proporção do respectivo decaimento – Cfr., art.º 527.º, do Código de Processo Civil.”
Inconformados com esta decisão, os Autores e a Ré recorreram, formulando as seguintes Conclusões
Recurso dos Autores
1. Deu-se como provado que, quando iniciaram a travessia da via, outros peões a atravessavam, no mesmo local, motivo pelo qual o trânsito se encontrava, nesse momento, imobilizado. 2. E também se deu como provado que, quando se encontravam à frente do veículo segurado pela R., este (que se encontrava até então imobilizado) reiniciou a marcha, embatendo nos peões. 3. É o que resulta dos 9º, 10º, 11º e 14º a 17º factos provados. 4. De tal matéria não se pode retirar a conclusão de que a conduta dos peões tenha sido culposa. 5. De facto, apesar de inexistir uma passadeira no local, nenhuma negligência ou conduta temerária (e muito menos dolo) lhes pode ser assacada pois a travessia apenas se iniciou porque existiam condições de segurança para tal: o trânsito estava imobilizado para ceder passagem aos peões entre os quais se incluía o casal atropelado. 6. Acresce que, sendo idosos, iniciaram a travessia a passo, e de braço dado, repete-se, com o veículo atropelante imobilizado, e pela frente deste! 7. Verifica-se, também, de tal factualidade, que o condutor, porque se encontrava imobilizado para ceder a passagem aos peões, e porque o casal lesado atravessava a passo, pela frente do ligeiro de passageiros por si conduzido, se apercebeu da presença dos mesmos ou não podia deixar de se ter apercebido (até porque o local é uma recta, com boa visibilidade e inexistia qualquer obstáculo que obstruísse a sua visão sobre o casal que se encontrava a escassos metros do ligeiro). 8. É, pois, manifesto, que o acidente ocorre porque o condutor do ligeiro reiniciou inadvertidamente a marcha quando se encontravam dois peões na via, à sua frente. 9. Não é, pois, a circunstância de o peão se encontrar fora da passadeira que dá causa ao acidente: este teria ocorrido mesmo que a passadeira existisse no local, pela simples razão de que condutor, com o veículo imobilizado, reinicia a marcha com dois (ou mais) peões na via, imediatamente à sua frente, tendo ele imobilizado a marcha anteriormente, precisamente para lhes ceder passagem. 10. Estamos, pois, perante um caso de culpa exclusiva do condutor. 11. Conclusão semelhante foi alcançada no Ac. do STJ, de 11.2.2021 (Abrantes Geraldes), no Proc. 625/18.8T8AGH.L1.S1, referente a atropelamento fatal de menor, na via (sem passadeira). 12. Atendendo ao que antecede, deve a douta sentença recorrida ser parcialmente revogada e a R. condenada no pagamento dos valores arbitrados, na sua totalidade: € 70.000,00 pela perda da vida, € 45.000,00 pelo sofrimento da vítima antes de falecer, € 40.000,00 pelos danos sofridos pelo cônjuge e € 30.000,00 o pelos danos sofridos por cada um dos filhos. Termos em que deve o presente recurso merecer o douto provimento.
A Recorrida não respondeu.
Recurso da Ré
A. Vem o presente recurso interposto da Sentença proferida pelo Juízo Central Cível de Guimarães, com a firme convicção de que a decisão merece censura em 2 pontos essenciais: responsabilidade pela ocorrência do sinistro e o quantum indemnizatório; B. Relativos ao sinistro sub judice, o Tribunal a quo considerou provados os factos identificados como 4, a 16 e 20 na Sentença de que se recorre; C. Conforme será possível perceber ao analisar a prova documental e a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, salvo o devido respeito, o Tribunal a quo não teve qualquer sensibilidade prática para perceber a dinâmica do acidente, o que determinou um errado apuramento da responsabilidade pela sua eclosão. D. As testemunhas foram peremptórias e unânimes no sentido de terem sido os Autores os primeiros a sair do autocarro e, por esse motivo, é falso o facto n.º 6, i.e., que os vários membros da excursão tenham procedido ao atravessamento apeado antes da ocorrência do acidente, razão pela qual a forma como este facto é inserido na narrativa antes da ocorrência do acidente vem falsear a verdade dos factos e não e inócua, na medida em que não é verdade, e parece resultar do encadeamento dos factos provados, que o acidente tenha ocorrido depois de terem passado pela frente do veículo de matrícula ..-HV-.. outros membros desta excursão. E. Atente-se, então, o que disse cada uma das testemunhas, que determina que o facto n.º 6 deve ser julgado não provado: testemunha DD (inquirição 11.12.2023 (10:46 – 11:07): em particular no minuto 17:04 a Minuto 20:07; F. Deverá atender-se também ao que disse a testemunha EE (inquirição 11.12.2023 (11:07 – 11:29): em particular no minuto 3:29 a minuto 3:49, no minuto 04:53 a Minuto 05:19, no minuto 21:23 a Minuto 22:11 G. Deverá atender-se ainda ao que disse a este propósito FF (inquirição 11.12.2023 (10:06 – 10:26): em particular no Minuto 04:19 a 06:38 e no Minuto 14:54 a Minuto 17:12 H. Assim, deverá ser dado como não provado o facto n.º 6, dando-se, por seu turno, como provado que: Vários membros da excursão tinham a intensão de proceder ao atravessamento apeado da Rua ..., ..., em direcção às cafetarias e WC público que se situam do lado oposto da via, na proximidade do Lar...; I. Mais devendo considerar-se provado, em função da prova produzida, que: O Autor e a sua esposa foram, a par das testemunhas FF e GG, os primeiros a sair da camioneta e a iniciar a travessia da rua”. J. Por sua vez, é também enganadora a conjugação dos factos n.º 9 e 10.º, na medida em que é falso que os veículos estivessem parados para que o Autor e esposa procedessem à travessia no local em que o fizeram, devendo atender-se ao facto de haver uma longa fila de trânsito e uma natural maior afluência de peões a atravessar na passadeira existente a 19 metros do local do embate (cfr. auto de participação do acidente); K. A verdade é que havia, de facto, muita afluência de pessoas naquela zona mas, essas pessoas, provindas de autocarros que tinham estacionado correctamente no parque existia naquele local para o efeito, faziam a travessia pela passadeira ali existente. L. Ficou ainda demonstrado que o Autor e a esposa, bem como as testemunhas FF e GG, foram as primeiras pessoas a sair do autocarro e a escolher um “caminho alternativo” para chegar mais rápido ao WC e ao café existentes do outro lado da estrada, sendo desonesto afirmar que todos os peões atravessaram a rua nas mesmas “circunstâncias”, já que a maioria atravessou pela passadeira e os membros da excursão em que seguiam o Autor e a sua esposa ainda nem sequer tinham saído do autocarro; M. Aliás, para haver uma grande fila de trânsito era necessário que houvesse uma afluência significativa de veículos ali e, em especial, junto à passadeira ali existente; N. Mais, o facto de o autocarro onde seguiam o Autor e a sua esposa ter sido o único a estacionar erradamente naquela zona é sintomático de só os membros da excursão onde seguiam terem atravessado a rua naquela zona, i.e., fora da passadeira; O. Vejamos o que a este propósito foi dito pelas testemunhas ouvidas no processo, a saber: GG (inquirição 11.12.2023 (10:26-10:45): em particular ao minuto 13:03 a Minuto 13:24; P. Vejamos ainda o depoimento da testemunha EE (inquirição 11.12.2023 (11:07 – 11:29): em particular no minuto 04:09 a Minuto 04:16 e no minuto 05:58 a Minuto 07:11; Q. Mais deverá ser atendido o depoimento da testemunha HH (inquirição 13.12.2023 (10:30 – 10:45): em particular ao Minuto 04:10 a Minuto 05:45 R. Por último, veja-se o depoimento da testemunha II (inquirição 11.12.2023 (16:03 – 16:24): em particular no minuto 05:54 a Minuto 06:10; S. Por sua vez, atente-se na proximidade, de apenas 19 metros, entre o local onde o Autor e a sua esposa estavam a atravessar a rua e o local onde se situa a mais próxima passadeira – conforme auto de participação do acidente junto com a Petição Inicial (Participação): folhas 13 verso a 15. T. Atente-se ainda na imagem junta ao processo com a contestação (folhas 79 verso), que foi considerada pelo Tribunal a quo e em que é possível perceber a configuração do local onde ocorreu o acidente dos autos e a proximidade entre esse local e a passadeira mais próxima U. Em face do exposto, deverão os factos 9.º e 10.º ser dados como não provados e, para além disso, ser dado como provado que: O trânsito que circulava na Rua ... encontrava-se imobilizado, para ceder a passagem aos peões que efectuavam a travessia através da passadeira aí existente; V. Mais deverá resultar provado que o Autor, a sua esposa e as testemunhas FF e GG iniciaram foram os primeiros a iniciar a travessia da rua, a 19 metros da passadeira mais próxima, para abreviar o caminho até ao WC e café existente do outro lado da estrada. W. Por último, mais uma vez, são completamente falaciosos os factos n.º 14 e 20.º dados como provados, na medida em que não retratam com fidelidade a dinâmica do acidente, sendo possível demonstrar que tais factos são falsos pela análise conjunta do depoimento das testemunhas, auto de participação do acidente e as imagens do automóvel que terá embatido contra o Autor, consideradas, naturalmente, à luz das regras da experiência comum. X. A verdade é que não se pode afirmar que o acidente ocorre “durante a travessia da Rua ...”, quando “o 1.º Autor e a falecida esposa passaram pela frente do ligeiro de passageiros”, na medida em que o acidente dos autos ocorre no exacto momento em que o Autor e a sua esposa iniciam a travessia daquela rua, sendo esse pormenor relevantíssimo para apurar a responsabilidade do condutor do automóvel. Y. Na verdade, segundo o auto de participação do acidente de viação, o local onde ocorreu o embate e o próprio local onde a peã falecida ficou prostrada permite concluir, precisamente, que o casal estava a iniciar a travessia da rua e embateu no lado do automóvel mais próximo do seu passeio de onde provinham, i.e., do lado esquerdo – conforme auto de participação do acidente junto com a Petição Inicial e cuja imagem se reproduziu supra. Z. Para além disso, as imagens do automóvel sinistrado após o embate e a indicação feita pelo perito do local onde terá sido o embate (coincidente com o já referido auto de participação do acidente) não deixam margem para dúvidas quanto ao local onde ser verificou o embate e, assim, que o Autor e a sua esposa tinham iniciado, naquele momento, a travessia da rua – conforme imagem junta com a contestação (folhas 80). AA. Para além da prova a que já se fez referência e que permite concluir que o Autor e a sua esposa foram os primeiros a sair do autocarro, escolheram seguir por um caminho alternativo ao invés de utilizaram a passadeira existente a 19 de metros do local onde ocorreu o acidente, que tinham pressa para chegar mais rápido e evitar filas no WC e no café, existe ainda a percepção do condutor do automóvel seguro pela Recorrente – cujo depoimento foi considerado fidedigno pelo Tribunal a quo – e que relata que, no mesmo momento em que está a arrancar, o Autor e a sua esposa aparecem-lhe à frente e não foi possível evitar o embate; BB. Não é possível ainda considerar que o condutor do veículo seguro pela Recorrente travou para evitar o embate, o que, atentas as conclusões retiradas pelo Tribunal da prova provada, fez perpassar a ideia de que o automobilista não evitou o acidente porque estava distraído ou porque não olhou ao trânsito em seu redor quando, no momento em que se apercebeu do atravessamento do Autor e da sua esposa já tinha iniciado a marcha e não seria expectável que algum peão atravessasse naquele momento, fora passadeira, muito próximo da frente do veículo. CC. A este propósito atente-se ao depoimento do automobilista do veículo seguro pela Recorrente, a saber na testemunha HH (inquirição 13.12.2023 (10:30 – 10:45): em particular no minuto 2:20 a Minuto 3:47 e no minuto 04:10 a Minuto 05:45; DD. Em face do exposto, deverão ser considerados não provados os factos 14 e 20 e, para além disso, considerar-se provado que: No exacto momento em que iniciaram a travessia da Rua ..., ... Autor e a falecida esposa o ligeiro de passageiros de matrícula ..-HV-.., marca ..., modelo ..., iniciou a marcha. EE. Mais deverá ser julgado provado que, quando se apercebeu do embate com o 1.º Autor, o condutor do HV travou. FF. Para além da alteração à matéria de facto requerida supra, o Tribunal a quo cometeu ainda um erro de aplicação do direito aos factos, tendo violado grosseiramente o alcance teleológico do n.º 1 do artigo 12.º do Código da Estrada; GG. Para além disso, atentos os factos provados na Sentença de que se recorre e independentemente da alteração da matéria provado – de que naturalmente não se prescinde e reforça o entendimento que entendemos ser de seguir quanto à responsabilidade – não há dúvida que ao fixar a quota de responsabilidade do automobilista em 80% e a dos peões em 20%, o Tribunal violou o disposto no n.º 1 do artigo 570.º do CPC. HH. Em primeiro lugar, o acto de iniciar ou retomar a marcha é diferente da marcha em pára-arranca numa fila de trânsito, na medida em que, nesse caso, não há nunca um início ou reinício da marcha mas, tão só e apenas, uma marcha lenta que pode implicar, em certas ocasiões, paragens momentâneas. II. É completamente diferente o objectivo legislativo ao implementar uma norma da natureza do n.º 1 do artigo 12.º do Código da Estrada foi de salvaguardar o risco decorrente da utilização da mesma via por parte de um veículo já em movimento e de um outro veículo que, estando a iniciar ou a retomar a marcha, se desloca a uma velocidade inferior, podendo, dessa forma, causar embaraço ou perigo para o veículo que circule em marcha normal, naturalmente, com maior velocidade. JJ. Ora, neste caso, não podemos transpor o risco acabado de sinalizar e que a norma pretende acautelar com uma situação em que os automóveis utentes da via se encontram numa fila, em pára-arranca, na medida em que circulam a velocidade semelhante e, mesmo que tenham necessidade de, esporadicamente, parar o carro, quando prosseguirem a marcha não causarão, seguramente, embaraço ou perigo para os outros veículos. KK. Para além disso, devemos aqui convocar também, como se fez na Sentença de que se recorre, a bitola do “Homem Médio” que, nestas circunstâncias, mesmo em pára-arranca, não pode prever que um peão atravesse fora da passeira e, ainda para mais, que atravesse sem garantir que foi visto pelo automobilista que conduz o carro à frente do qual se propõe atravessar a estrada. LL. As regras da prudência e da experiência comum dizem-nos que se um peão pretender atravessar uma estrada movimentada por automóveis em local diferente de uma passadeira, por não ser expectável nem permitida a sua passagem naquele local, deve estabelecer contacto visual e/ou sinalizar a sua intenção ao(s) automobilista(s) que se estejam a aproximar para que o(s) automobilista(s) não seja surpreendido pela invasão por parte do peão de uma zona da via em que não é permitida a sua travessia. MM. Aliás, este procedimento é, do ponto de vista do peão, o que faria o “Homem Médio” nestas circunstâncias para salvaguarda da sua integridade física, i.e., garantir que o automobilista que conduzia o veículo que pretendia que lhe cedesse a passagem para atravessar a rua conhecesse, pelo menos, a sua intenção de atravessar. NN. Em face de tudo o exposto, alterando a matéria de facto de acordo com o seu expôs supra e, não menos importante, aplicando convenientemente o disposto no artigo 12.º n.º 1 do código da estrada e o artigo 570.º n.º 1 do Código Civil, deverá a Sentença recorrida ser alterada no sentido de imputar a culpa exclusiva pelo acidente aos peões que atravessaram a estrada, em violação do disposto no artigo 101.º do Código da Estrada e sem o cuidado que um “Homem Médio” teria nestas circunstâncias. OO. E, ainda que não se entenda imputar, em exclusivo, a responsabilidade aos peões, a sua quota-parte de responsabilidade deverá, pelos motivos expostos, ser bastante superior, devendo, por isso, ser revogada e alterada a Sentença, fixando uma proporção diferente na responsabilidade pela eclosão do acidente que, com o devido respeito, poderia fixar-se em 20% para o automobilista e 80 % para os peões. PP. Sem prescindir e caso assim não se entenda, também o quantum indemnizatório merece censura QQ. Sentença de que se recorre vem fixar em € 40.000,00 o valor pelos danos sofridos pelo cônjuge e em € 30.000,00 o valor pelos danos sofridos por cada um dos filhos”. RR. Ora, de acordo com a jurisprudência citada e os parâmetros fácticos que vêm sendo utilizados pelos Tribunais Superiores para fixar indemnizações por conta dos referidos danos, atento o caso concreto, deverá concluir-se que os valores fixados são exageradamente altos e que foi violado o disposto nos artigos 483.º, 494.º, 496.º e 566.º, n.º 3 do Código Civil. SS. Relativamente aos danos não patrimoniais sofridos pelo marido da falecida em consequência do acidente há, tempo, que considerar a idade da esposa e, assim, segundo a jurisprudência, o tempo que iriam ainda conviver juntos, não esquecendo o que também já tiveram oportunidade de viver em comparação com a morte de um(a) jovem. TT. A este propósito atente-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 12.09.2023, disponível para consulta em https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/4470d93e0b741cd780258a3600353888?OpenDocument, que entendeu que “não podem deixar de ser tidas em conta a idade da vítima (87 anos) e do seu, entretanto, falecido marido. Pela ordem natural das coisas, o convívio entre ambos já não iria durar por muitos anos. O demandante DD faleceu cerca de 2 anos e 6 meses depois do falecimento da sua mulher. UU. Para além disso, convocando os Acórdãos coligidos na Sentença de que se recorre, em nenhum deles foi fixado indemnização no valor fixado nos presentes autos, a saber, € 40.000 pelos danos decorrentes do falecimento do cônjuge, quando, na maioria dos casos, a lesada tem idade substancialmente inferior à lesada nos presentes autos (71 anos); VV. No Acórdão do STJ de 06.12.2018, processo n.º 1685/15.9T8CBR, foi fixada a indemnização de € 30.000,00 ao cônjuge de uma senhora que faleceu com 44 anos de idade. WW. No Acórdão do STJ de 24.09.2020, processo n.º 9/14.7T8CPVZ.S1, foi fixada indemnização ao cônjuge da lesada falecida no valor de € 20.000,00, sendo que a sua idade à data da morte era 75 anos. XX. No Acórdão do STJ, de 27.10.2020, processo n.º 3819/15.4T8LRA, foi fixada indemnização para compensar os danos não patrimoniais do cônjuge no valor de € 20.000,00, tendo a vítima e sua esposa 73 anos no momento em que faleceu. YY. No Acórdão do STJ de 15.09.2022, processo n.º 2374/20.8T8PNF, o cônjuge da infeliz falecida, à data com 33 anos de idade, foi indemnizado, pelos danos não patrimoniais decorrentes do falecimento da esposa no valor de € 35.000,00. AAA. No Acórdão do STJ, de 10.10.2023, processo n.º 9039/20.9T8SNT, o filho nascituro e o pai, numa situação em que a falecida tinha 39 anos de idade, receberam, a título de danos não patrimoniais, em conjunto, € 50.000,00. BBB. Em face do exposto, dúvidas não restam que o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 483.º, 494.º, 496.º e 566.º, n.º 3 do Código Civil e que, por esse motivo, deverá ser revogada por Sentença que fixe a indemnização por danos não patrimoniais do cônjuge da falecida, atentas as circunstâncias do caso concreto, em € 20.000,00. CCC. Para além da idade da vítima, nos casos em que é necessário apurar os danos patrimoniais dos filhos, é importante aferir se os filhos são menores e, mesmo maiores, se dão dependentes economicamente da falecida DDD. Convocando os Acórdãos coligidos pelo Tribunal, em nenhum deles os danos não patrimoniais dos filhos foram fixados em montante superior ao dos autos, sendo comum, em quase todos estes casos, a circunstância de a vítima ter idade bastante inferior à lesada nos presentes autos (71 anos de idade). EEE. No Acórdão do STJ de 24.09.2020, processo n.º 9/14.7T8CPVZ.S1, foi fixada indemnização a cada filho da lesada no valor de € 10.000,00, sendo que a sua idade à data da morte era 75 anos. FFF. No Acórdão do STJ, de 27.10.2020, processo n.º 3819/15.4T8LRA, foi fixada indemnização para compensar os danos não patrimoniais dos filhos no valor de € 20.000,00, tendo a vítima e sua Mãe 73 anos no momento em que faleceu. GGG. No Acórdão do STJ de 08.06.2021, processo n.º 2261/17.7T8PNF, os filhos da infeliz falecida, à data com 75 anos de idade, foram indemnizados, pelos danos não patrimoniais decorrentes do falecimento da Mãe no valor de € 10.000,00. HHH. No Acórdão do STJ de 15.09.2022, processo n.º 2374/20.8T8PNF, os filhos menores da infeliz falecida, à data com 33 anos de idade, foram indemnizados, pelos danos não patrimoniais decorrentes do falecimento da Mãe no valor de € 25.000,00. III. No Acórdão do STJ de 30.11.2022, processo n.º 1896/20.5T8FNC, o filho menor da infeliz falecida, à data com 69 anos de idade, foi indemnizado, pelos danos não patrimoniais decorrentes do falecimento da Mãe no valor de € 20.000,00. JJJ. No Acórdão do STJ, de 10.10.2023, processo n.º 9039/20.9T8SNT, o filho nascituro e o pai, numa situação em que a falecida tinha 39 anos de idade, receberam, a título de danos não patrimoniais, em conjunto, € 50.000,00. LLL. A este propósito e porque a equidade é, também, a comparação com outras situações, ainda que ligeiramente distintas, veja-se os valores que têm sido fixados aos Pais, a título de danos não patrimoniais, por falecimento de um filho, sabendo que, em comparação com o processo dos autos, esta não é a ordem natural da vida e, por esse motivo, são situações em que as indemnizações devem ser fixadas em valor superior. MMM. Atente-se no Acórdão do STJ de 04/03/2004, proferido no âmbito do processo n.º 03B4439, disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/5876A8C8EEC7388D80256E77002B958A: “VI - Contando a vítima mortal de acidente de viação 24 anos de idade, sendo saudável, alegre, bem disposto e muito apegado à vida, vivendo com a mãe, que é surda-muda, em comunhão de mesa e habitação, e contribuindo para as despesas de saúde, alimentação e vestuário desta com parte significativa do seu salário, é adequada a fixação, em € 20.000, da indemnização por danos não patrimoniais sofridos pela mãe, traduzidos no forte choque e grande desgosto de que padeceu em consequência da morte do filho.” NNN. No mesmo sentido veja-se o Acórdão da Relação de Guimarães, datado de 15/12/2009, no âmbito do processo n.º 680/07.6TCGMT.G1, disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/ecab478460e89fd98025770b004924a6?OpenDocument: “Também o montante de €25.000 para cada um dos Autores, pela perda do filho, em face da dor que lhes causou e por ter destroçado a respectiva vida familiar, se coaduna com os valores praticados noutros casos.” OOO. Em face do exposto, Dúvidas não restam que o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 483.º, 494.º, 496.º e 566.º, n.º 3 do Código Civil e que, por esse motivo, deverá ser revogada por Sentença que fixe a indemnização por danos não patrimoniais dos filhos da falecida, atentas as circunstâncias do caso concreto, em € 20.000,00. Nestes termos, e nos que Vossas Excelências mui doutamente suprirão, julgando procedente o presente recurso, em conformidade com as precedentes CONCLUSÕES e, em consequência, revogando a Sentença recorrida farão V. Exas. verdadeira e sã JUSTIÇA!
Os Recorridos responderam a este recurso, culminando as suas alegações com pedido da sua improcedência.
2. QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objectiva da actividade do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas[2] que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[3]
As questões enunciadas pelo/a(s) recorrente(s) podem sintetizar-se da seguinte forma:
Recurso dos Autores:
- Saber se a culpa do acidente deve ser exclusivamente imputada ao condutor segurado na Ré e, em função disso, deve ser alterada a sentença quanto aos valores a suportar por esta;
Recurso da Ré:
- Modificação da decisão da matéria de facto e consequente revisão do mérito do julgado;
- Saber se a responsabilidade pela ocorrência do sinistro e o quantum indemnizatório foram devidamente ponderados, tendo em conta a revisão da matéria de facto e/ou o alegado erro grosseiro na interpretação do art. 12º, nº 2, do Código da Estrada, ou a violação do disposto no art. 570º, do Código Civil, e no art. 101º, daquele Código da Estrada, e, nessa medida, deve ser alterada a proporção de culpas dos intervenientes no acidente;
- Saber se o quantitativo indemnizatório merece censura, quer quando aos danos não patrimoniais sofridos pelo marido da vítima, quer pelos sofridos pelos filhos, por violação do disposto nos arts. 483º, 494º, 496º e 566º, nº 3, do Código Civil.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir. 3. FUNDAMENTAÇÃO
3.1. REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO JULGADA
Nos termos do Artigo 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, «Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
No que toca à especificação dos meios probatórios - «Quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente,sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (Artigo 640º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).
Como refere Abrantes Geraldes[4], sendo certo que actualmente a possibilidade de alteração da matéria de facto é agora assumida como função normal da Relação, verificados que sejam os requisitos que a lei consagra, certo é que nessa operação “foram recusadas soluções que pudessem reconduzir-nos a uma repetição do julgamento, tal como foi rejeitada a admissibilidade de recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto, tendo o legislado optado por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente.
De acordo com este mesmo autor e Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, em síntese, o sistema actual de apelação que envolva a impugnação sobre a matéria de facto exige ao impugnante, o seguinte:
“a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenha sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos[5]; c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exactidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considera oportunos; (…) e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos[6], exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos e pendor genérico e inconsequente;(…).
Além disso, como já acima se foi adiantando e afirma Ana Geraldes, in “Impugnação e reapreciação da decisão da matéria de facto”,:
«(…) tal como se impõe que o Tribunal faça a análise crítica das provas (de todas as provas que se tenham revelado decisivas), (…), também o recorrente, ao enunciar os concretos meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa, deve fundar tal pretensão numa análise (crítica) dos meios de prova, não bastando reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos. Como é sabido, a prova de um facto não resulta, regra geral, de um só depoimento ou parte dele, mas da conjugação de todos os meios de prova carreados para os autos. E ainda que não existam obstáculos formais a que um determinado facto seja julgado provado pelo Tribunal mediante o recurso a um único depoimento a que seja atribuída suficiente credibilidade, não deve perder-se de vista a falibilidade da prova testemunhal quotidianamente comprovada pela existência de depoimentos testemunhais imprecisos, contraditórios ou, mais grave ainda, afectados por perjúrio. Neste contexto, é facilmente compreensível que se reclame da parte do recorrente a explicitação da sua discordância fundada nos concretos meios probatórios ou pontos de facto que considera incorrectamente julgados, ónus que não se compadece com a mera alusão a depoimentos parcelares e sincopados, sem indicação concreta das insuficiências, discrepâncias ou deficiências de apreciação da prova produzida, em confronto com o resultado que pelo Tribunal foi declarado. Exige-se, pois, o confronto desses elementos com os restantes que serviram de suporte para a formulação da convicção do Tribunal(e que ficaram expressos na decisão), com recurso, se necessário, às restantes provas, v.g., documentais, relatórios periciais, etc., apontando as eventuais disparidades e contradições que infirmem a decisão impugnada.”
Por sua vez, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.2.2012, Abrantes Geraldes, 1858/06[7], afirmou-se, relativamente ao regime semelhante do art. 690ºA, do Código de Processo Civil revogado, que:
«Insurgindo-se contra uma decisão fundada em determinados meios de prova que ficaram concretizados na motivação, era suposto que se aprimorasse na enunciação dos reais motivos da sua discordância traduzidos na análise crítica (e séria) da prova produzida e não na genérica discordância quanto ao facto de o tribunal de 1ª instância ter dado mais relevo a umas testemunhas do que a outras. Ónus esse que deveria passar pela análise conjugada dos diversos meios de prova, relevando os que foram oralmente produzidos e os de outra natureza constantes dos autos. Em face de tantas e tão graves distorções em relação aos trâmites impostos pela lei, não seria exigível que a Relação desse seguimento à referida pretensão genérica, justificando-se a rejeição do recurso na parte respeitante à decisão da matéria de facto. Com efeito, o regime legal instituído não acolhe de forma alguma a impugnação genérica e imotivada de todos os pontos inscritos na base instrutória, do mesmo modo que se afastou de um modelo alternativo que impusesse à Relação a realização de um segundo julgamento. O que está subjacente ao regime vigente é a impugnação especificada e motivada dos pontos relativamente aos quais existe discordância, levando a que a Relação repondere a decisão que foi tomada sobre determinados pontos de facto, servindo-se dos meios de prova que se mostram acessíveis.
Resulta deste excurso pela doutrina e jurisprudência que o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida não é observado quando o apelante: (i) se insurge genericamente quanto à convicção formada pelo tribunal a quo; (ii) se limita a sinalizar que existe um meio de prova, v.g., testemunha, que diverge dos factos tidos como provados pelo tribunal a quo, pretendendo arrimar – sem mais – nesse meio de prova uma decisão de facto diversa da expressa pelo tribunal a quo.
Com efeito, o tribunal de primeira instância – no âmbito do contexto de justificação – elabora uma motivação-documento em que explicita as razões que permitem, ou não, aceitar os enunciados fácticos como verdadeiros. Nessa motivação, o juiz a quo valora o conjunto dos meios de prova que foram carreados para o processo, expressando uma convicção que tem que ser objectivável e intersubjectiva[8]. O standard de prova do processo civil é, na maioria dos casos, o da probabilidade prevalecente (“more-likely-than-not”) que se consubstancia em duas regras fundamentais: (i) entre as várias hipóteses de facto deve preferir-se e considerar-se como verdadeira aquela que conte com um grau de confirmação relativamente maior face às demais e (ii) deve preferir-se aquela hipótese que seja “mais provável que não”, ou seja, aquela hipótese que é mais provável que seja verdadeira do que seja falsa[9].
Assim sendo, cabe ao apelante – para efeitos de cumprimento do ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida – argumentar, de forma concretizada, no sentido de que os meios de prova produzidos no processo, apreciados em conjunto e de forma crítica, impõem uma convicção diversa quanto à reconstituição dos factos, atingindo essa diferente versão dos factos o patamar da probabilidade prevalecente, arredando - do mesmo passo - a versão aceite pelo tribunal a quo. Cabe ao apelante colocar-se na posição do juiz a quo e exercitar - ele próprio - a apreciação crítica da prova, hierarquizando a credibilidade dos meios de prova (enunciando os parâmetros que majoram ou diminuem a credibilidade de cada meio de prova), concluindo por uma versão alternativa dos factos. Deste modo, este exercício não se basta com a mera enunciação da existência de meios de prova em sentido oposto/diverso da versão dos factos tida como provada pelo tribunal a quo. A existência de sentidos díspares dos meios de prova é conatural a qualquer processo judicial pelo que o cumprimento do ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto não pode ter-se por observado com tal enunciação singela.
É incumbência do apelante actuar numa dupla vertente: (i) rebater, de forma suficiente e explícita, a apreciação crítica da prova feita no tribunal a quo, (ii) tentando demonstrar que a prova produzida inculca outra versão dos factos que atinge o patamar da probabilidade prevalecente. Assim, não chega sinalizar a existência de meios de prova em sentido divergente, cabendo ao apelante aduzir argumentos no sentido de infirmar directamente os termos do raciocínio probatório adoptado pelo tribunal aquo, evidenciando que o mesmo é injustificado e consubstancia um exercício incorrecto da hierarquização dos parâmetros de credibilização dos meios de prova produzidos, ou seja, que é inconsistente.
Em suma, não observa o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida o apelante que se abstém de desconstruir a apreciação crítica da prova, realizada pelo tribunal a quo na decisão impugnada, limitando-se a assinalar que existe um meio de prova em sentido diverso do aceite como prevalecente pelo mesmo tribunal.
Com refere Abrantes Geraldes[10] - As referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se a final, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.
Tendo em mente a interpretação do art. 640º, que acima enunciamos, analisemos a pretensa impugnação da Apelante/Ré.
*
Descendo ao caso.
A Apelante Ré, nas suas conclusões, sindica a decisão da matéria de facto inserta nos itens 6º, 9º, 10º, 14º e 20º, relativamente aos quais entende que “não têm respaldo na prova produzida”, defendendo ainda que devem ser aditados como provados factos que não foram considerados pelo Tribunal a quo.
Em primeiro lugar, esta Recorrente questiona a decisão do item 6. dos factos provados, no qual se julgou provado que: Vários membros da excursão, procederam, então, ao atravessamento apeado da Rua ..., ..., em direcção às cafetarias e WC público que se situam do lado oposto da via, na proximidade do Lar....
No seu entender, para além de dever ser julgada não provada essa matéria, deverá ficar positivamente registado (cf. conclusões itens H. e I.) que, sic: Vários membros da excursão tinham a intenção de proceder ao atravessamento apeado da Rua ..., ..., em direcção às cafetarias e WC público que se situam do lado oposto da via, na proximidade do Lar...;
Mais devendo aqui considerar-se provado, em função da prova produzida, que: O Autor e a sua esposa foram, a par das testemunhas FF e GG, os primeiros a sair da camioneta e a iniciar a travessia da rua”.
Em suma, argumenta aqui a Ré que faltou ao Tribunal Recorrido “qualquer sensibilidade prática para perceber a dinâmica do acidente”.
Mais afirma, em conclusões que, em geral, mais não fazem do que copiar as suas extensas alegações, que “as testemunhas foram peremptórias e unânimes no sentido de terem sido os Autores os primeiros a sair do autocarro e, por esse motivo, é falso o facto n.º 6, i.e., que os vários membros da excursão tenham procedido ao atravessamento apeado antes da ocorrência do acidente, razão pela qual a forma como este facto é inserido na narrativa antes da ocorrência do acidente vem falsear a verdade dos factos e não e inócua, na medida em que não é verdade, e parece resultar do encadeamento dos factos provados, que o acidente tenha ocorrido depois de terem passado pela frente do veículo de matrícula ..-HV-.. outros membros desta excursão.”
Estão cumpridos minimamente os ónus do citado art. 640º, nº 1, do C.P.C..
O que a Ré pretende não é, verdadeiramente, um julgamento da matéria do item 6. mas uma porta de entrada para uma nova versão dos factos que, alegadamente, vai de encontro à sua tese.
Todavia, no que toca ao mérito da impugnação, os elementos de prova pessoal citados não relevam para os efeitos pretendidos.
Por um lado, inexiste qualquer correspondência entre o que se pretende ver julgado e aquilo que decorre dos depoimentos citados pela Apelante, bastando para tal sua simples leitura.
Não existe na mesma suporte para a negativa da afirmação essencial desse ponto: Vários membros da excursão, procederam, então, ao atravessamento apeado da Rua…
Há, inclusive, uma testemunha que afirma que haviam “pessoas” (além das referidas 4) a atravessar, quer para um lado, quer para o outro, sem identificar a sua proveniência, é certo, mas sem o excluir.
Por outro lado, a Recorrente ignora por completo a restante prova produzida e toda a crítica que sustentou a decisão do Tribunal de primeira instância, abstendo-se assim de rebater, de forma suficiente e explícita, a apreciação crítica da prova feita no tribunal a quo.
Improcede portando a pretendida modificação do facto assente em 6..
No que toca, à versão positiva e distinta, que se pretendia ver registada, mencionada em H. e I., constitui matéria nova, não alegada pelas partes e, ainda que possa ter relevo instrumental, não tem de constar do rol dos factos julgados ou ser alvo de um juízo probatório específico, podendo ser relevada secundariamente (cf. art. 607º, nº 4, do C.P.C.) se resultar da decisão recorrida, nomeadamente da sua fundamentação[11]. Na lógica do Código de Processo Civil de 2013, os factos instrumentais puramente probatórios não têm de ser alegados pelas partes, cabendo a estas apenas alegar os factos essenciais (Artigos 552º, nº 1, alínea d), “Expor os factos essenciais que constituam a causa de pedir” e 572º, alínea c), “Expor os factos essenciais em que se baseiam as excepções deduzidas”), bem como alegar os factos complementares, os instrumentais nos casos em que estes integram a causa de pedir ou a excepção e os atinentes a excepções probatórias.[12]
Com defende António Santos Abrantes Geraldes,[13] debruçando-se sobre os factos que podem sustentar presunções judiciais, como é o caso - por conseguinte, relativamente aos factos que apenas sirvam de suporte à afirmação de outros factos por via de presunções judiciais, para além de não se mostrar necessária a sua alegação (art. 5º) e de poderem ser livremente discutidos na audiência final (cfr. os arts. 410º e 516º), nem sequer terão de ser objecto de um juízo probatório específico. Em regra, bastará que sejam revelados na motivação da decisão da matéria de facto, no segmento em que o juiz, analisando criticamente as provas produzidas, exterioriza o percurso lógico que o conduziu à formulação do juízo probatório sobre os factos essenciais ou complementares. O importante é que o juiz exponha com clareza os motivos essenciais que o determinaram a decidir de certa forma a matéria de facto controvertida contida nos temas de prova, garantindo que a parte prejudicada pela decisão (com a aludida sustentação) possa sindicar, perante a Relação, o juízo probatório formulado relativamente a tal factualidade, designadamente na medida em que foi sustentada em factos instrumentais e nas regras de experiência que foram expostas. Em tais circunstâncias a Relação, em sede de apreciação do recurso sobre a matéria de facto, tendo acesso a todos os meios de prova que foram produzidos e aos que foram prestados oralmente (que, por isso, foram gravados, nos termos do art. 155º, nº 1), estará apta a reapreciar a decisão e o correspondente juízo probatório formulado relativamente aos factos principais.
Acresce que, como se afirma em arresto deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 1.3.2018, relatado pela Des. Maria João Matos[14], a jurisprudência veio precisar que a impugnação da decisão de facto não se justifica a se, de forma independente e autónoma da decisão de mérito proferida, assumindo antes um carácter instrumental face à mesma. “Com efeito, a «impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, consagrada no artigo 685.º-B [do anterior C.P.C.], visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorrectamente julgados. Mas, este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu; ou seja, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada. O seu efectivo objectivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante» (Ac. da RC, de 24.04.2012, António Beça Pereira, Processo nº 219/10.6T2VGS.C1, com bold apócrifo). Logo, por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto «quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente», convertendo-a numa «pura actividade gratuita ou diletante» (conforme Ac. da RC, de 27.05.2014, Moreira do Carmo, Processo nº 1024/12.0T2AVR.C1). Por outras palavras, se, «por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for, "segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito", irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a actividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente. Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação não for susceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 137.º e 138.º.» (Ac. da RC, de 24.04.2012, António Beça Pereira, Processo nº 219/10.6T2VGS.C1, com bold apócrifo. No mesmo sentido, Ac. da RC, de 14.01.2014, Henrique Antunes, Processo nº 6628/10.3TBLRA.C1, onde se lê que, de «harmonia com o princípio da utilidade a que estão submetidos todos os actos processuais, o exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto da 1ª instância só se justifica se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa (artº 137 do CPC de 1961, e 130 do NCPC)», pelo que se «o facto ou factos cujo julgamento é impugnado não forem relevantes para nenhuma das soluções plausíveis de direito da causa é de todo inútil a reponderação da decisão correspondente da 1ª instância»; e isso «sucederá sempre que, mesmo com a substituição, a solução o enquadramento jurídico do objecto da causa permanecer inalterado, porque, por exemplo, mesmo com a modificação, a factualidade assente continua a ser insuficiente ou é inidónea para produzir o efeito jurídico visado pelo autor, com a acção, ou pelo réu, com a contestação»).”
No caso, esta matéria, para além de estar bem esclarecida na fundamentação da decisão recorrida, que não foi devidamente rebatida aqui, não é determinante ou indispensável para as várias soluções plausíveis da lide, pelo que não se justifica o seu conhecimento e/ou aditamento (cf. art. 662º, nº 2, al. c), do C.P.C.).
Nesta medida, ao abrigo do disposto nos arts. 2º, nº 1, 6º e 130º, do Código de Processo Civil, decide-se não conhecer desta particular impugnação (H. e I.).
Além disso, a Ré impugna a decisão dos itens 9 e 10 dos factos julgados assentes, que pretende ver julgados não provados e, também aqui, tem o propósito de ver julgada positivamente outra matéria de facto (U. e V.).
Nesses pontos 9 e 10 ficou assente:
9- O trânsito que circulava na Rua ... encontrava-se imobilizado, para ceder a passagem aos peões que efectuavam a travessia dessa via a passo. 10- Nas circunstâncias referidas em 9, o 1.º Autor e a sua falecida esposa iniciaram a travessia da Rua ..., ..., também a passo.
Pretende-se ainda o aditamento da seguinte matéria: O trânsito que circulava na Rua ... encontrava-se imobilizado, para ceder a passagem aos peões que efectuavam a travessia através da passadeira aí existente; O Autor, a sua esposa e as testemunhas FF e GG iniciaram foram os primeiros a iniciar a travessia da rua, a 19 metros da passadeira mais próxima, para abreviar o caminho até ao WC e café existente do outro lado da estrada.
Estão aqui também cumpridos minimamente os ónus do citado art. 640º, nº 1, do C.P.C..
Foi a este propósito citada prova pessoal/testemunhal e documental que, porém, também aqui não confere o propósito da Recorrente no que contende com o julgamento negativo dos itens 9. e 10.: não resulta da mesma que estes factos não tenham ocorrido, acrescendo que a mesma se abstém aqui igualmente de analisar de forma completa o juízo crítico fundador da decisão impugnada, v.g., quanto ao relevo e credibilidade a conferir a testemunho de II.
Nesse conspecto, note-se que a decisão recorrida salientou a existência de depoimentos que apontam nesse sentido, que não vamos aqui citar exaustivamente porque isso era ónus da Recorrente (se quisesse verdadeiramente rebatê-los), de que são exemplo; o de FF, quando afirma que, sic, “tendo saído muitas pessoas, mais de 50, estando outro autocarro mais atrás e uma fila de carros parada, porque eram muitas pessoas a sair” (…) “havia uma fila parada de trânsito, porque estava muita gente a atravessar, não eram só eles os quatro”; GG, quando afirma que “o trânsito estava parado” (…) “Nesse momento, estavam umas 10 ou 12 pessoas a atravessar a via, no momento em que o carro o carro arrancou e o primeiro Autor e a esposa caíram.” (…) “havia lá muita gente e mais autocarros”.
Adicionalmente, recorde-se que o que está assente em 16., dos factos provados, e não foi aqui contestado pela Recorrente!
Improcede, portanto, esta impugnação.
No que toca aos novos factos que se pretendem aditar (U. e V.), renovamos aqui os argumentos mencionados acima para não conhecer de matéria que, para além de ser nova em termos de alegação, não é, na versão adiantada, essencial e indispensável ao desfecho da lide, pelo que é inútil e inadmissível o seu específico julgamento e conhecimento.
Sem prejuízo disso, sempre se dirá que já está em parte registada nos factos a existência da referida passagem de peões (item 12. dos factos provados) e, além disso, não resulta nem da prova citada, nem da que foi globalmente produzida e considerada, que essas pessoas que motivavam a paragem das viaturas estivessem a atravessar a dita rua apenas na referida passagem destinada a peões e/ou que o Autor, a sua esposa e as testemunhas FF e GG, tenham sido as primeiras pessoas a atravessar a rua nessas circunstâncias.
Por fim, a Ré questiona a decisão dos itens 14 e 20, dos factos provados, que qualifica de “completamente falaciosos” e nos quais ficou a constar o seguinte: 14- Durante a travessia da Rua ..., ... Autor e a falecida esposa passaram pela frente do ligeiro de passageiros de matrícula ..-HV-.., marca ..., modelo .... 20- O condutor do HV travou, mas não conseguiu evitar o embate contra o peão AA.
Igualmente neste caso, pretende que seja negativamente julgada essa matéria e, em alternativa, se julgue apurado o que consta do item DD. e EE., ou seja: - No exacto momento em que iniciaram a travessia da Rua ..., ... Autor e a falecida esposa o ligeiro de passageiros de matrícula ..-HV-.., marca ..., modelo ..., iniciou a marcha. - Quando se apercebeu do embate com o 1.º Autor, o condutor do HV travou.
Estão igualmente aqui cumpridos minimamente os ónus do citado art. 640º, nº 1, do C.P.C..
Compulsada a prova citada e toda a que foi considerada e produzida pela primeira instância, julgamos poder afirmar, no mínimo, que não assiste razão à Apelante.
Note-se, desde logo, que resulta do único testemunho referido, que a Recorrente decidiu descontextualizar de toda a restante prova e análise feita pela sentença recorrida para aqui citar, que as vítimas foram atingidas quando passavam à sua “frente”: “eu estou a reparar que um Sr. e a sua esposa estão-se a meter à minha frente, mesmo colados à frente do carro”; “estou a aperceber-me que o Sr. está-se a meter a minha frente”; “eles apareceram-me literalmente a dois centímetros da frente do carro, eles passaram mesmo rentes à frente do carro”
De resto, é isso que é consentâneo com o que resulta do documento autêntico junto com a p.i. e com a contestação, que consubstancia a participação do acidente e do qual resulta que o embate se dá sensivelmente a meio da via, atendendo à posição relativa da viatura e da vítima, aí registadas, quer entre si, quer em relação aos limites laterais de estrada em questão (cf. art. 349º, do C.C.)..
Mais resulta do parecer técnico considerado pelo Tribunal (junto a 2.5.2023), que assenta nesses mesmos dados objectivos, “que o peão demorou entre 2.07 e 2.64 s a realizar a travessia desde o local onde se considerou que um condutor médio e atento dispunha das condições para verificar o início do atravessamento e o local do embate”, resultando também do citado croquis da participação elaborada pela autoridade policial competente que a falecida ficou prostrada a 2.80 metros da berma direita, numa via que tem cerca de 5,05 metros de largura e terá caído e ficado à frente do HV, pura e simplesmente empurrada para a sua frente pela inércia conferida ao corpo do seu marido (pelo choque com HV) projectado contra si (conforme resulta dos testemunhos produzidos), ou seja, terá percorrido quase metade da estrada antes de ser embatida. Deste modo, julgamos que o dado reportado ao documento fotográfico de fls. 80 não é consentâneo nem com a versão do próprio condutor do HV, acima citada, nem com a circunstância de a vitima ter ficado prostrada à frente dessa viatura e não ao lado, como seria lógico se o embate tivesse sido com essa lateral.
No que contende, em particular, com o item 20º, carece igualmente de sustento o pretendido, já que da prova citada não resulta a negativa dessa matéria, em sentido estrito, sendo certo que essa é a versão trazida aos autos pela própria Ré no item 15. da sua contestação. De resto, a cosmética alteração pretendida a esse respeito é impertinente porque se pressupõe do julgado que esse é o sentido da decisão em causa: o condutor do HV travou tentando evitar o embate que percebeu ser eminente
Carece, portanto, de fundamento a pretensão da Apelante quanto a toda esta matéria.
3.2. FACTOS A CONSIDERAR
a) Factos provados.
1- O 1.º Autor foi casado com JJ, desde ../../1971.
2- Os 2.º e 3.º Autores são filhos da referida JJ.
3- Esta última faleceu em ../../2022, deixando como únicos herdeiros os Autores.
4- No dia ../../2021, o 1.º Autor seguiu com sua falecida esposa, numa excursão de autocarro, juntamente com várias dezenas de pessoas.
5- Pelas 16h45m, o autocarro onde seguia o casal estacionou na Rua ..., junto ao ..., em Guimarães.
6- Vários membros da excursão, procederam, então, ao atravessamento apeado da Rua ..., ..., em direcção às cafetarias e WC público que se situam do lado oposto da via, na proximidade do Lar....
7- Nas referidas circunstâncias de tempo e lugar o piso encontrava-se seco.
8- E a Rua ..., ... caracteriza-se por uma recta com várias dezenas de metros, com uma única faixa de rodagem e apenas um sentido.
9- O trânsito que circulava na Rua ... encontrava-se imobilizado, para ceder a passagem aos peões que efectuavam a travessia dessa via a passo.
10- Nas circunstâncias referidas em 9, o 1.º Autor e a sua falecida esposa iniciaram a travessia da Rua ..., ..., também a passo.
11- A falecida esposa do 1.º Autor seguia de braço dado a este.
12- O 1.º Autor e a falecida esposa atravessaram a Rua ... em local situado a menos de 50 metros de uma zona especialmente sinalizada para a passagem de peões.
13- O local onde o 1.º Autor e a sua falecida esposa atravessaram não tem qualquer passagem sinalizada para peões.
14- Durante a travessia da Rua ..., ... Autor e a falecida esposa passaram pela frente do ligeiro de passageiros de matrícula ..-HV-.., marca ..., modelo ....
15- O HV seguia na Rua ..., em Guimarães, em direcção ao Largo ...
16- No momento referido em 14, o HV encontrava-se imobilizado na via, para ceder passagem aos referidos peões.
17- O condutor de tal viatura reiniciou a marcha e embateu no 1.º Autor.
18- Por força do referido em 17, o 1.º Autor perdeu o equilíbrio e tombou, arrastando, na queda, a sua esposa.
19- Esta caiu desamparada, e embateu com o crânio no pavimento da via.
20- O condutor do HV travou, mas não conseguiu evitar o embate contra o peão AA.
21- Quando se deu o embate referido em 17, o HV circulava a menos de 20 km/h.
22- Como consequência da queda sofrida, a falecida esposa do 1.º Autor sofreu traumatismo crânio-encefálico, ficando inanimada, tendo sido socorrida, no local, pelos Bombeiros Voluntários ..., na sequência do que foi transportada, de ambulância, para o Hospital ... – EPE.
23- No Hospital ..., foi realizado, à falecida esposa do 1.º Autor, exame TCCE, que revelou: "Hematoma epicraniano bi-parietal, com extensão occipital direita, subjacente ao qual se encontra fractura linear, alinhada, occipital paramediana, com lateralização para a esquerda até à vertente posterior do côndilo occipital do mesnn lado; ficam dúvidas se poderá existir discreto traço de fractura parietal direito. Múltiplas contusões hemrrágicas interessando o parênquima corticossubcortical fronto-basal, orbitário e anterior bilateral, e ainda, a vertente posterior do hemisfério cerebeloso esquerdo. Sangue subaracnoideu disperso pelos espaços líquor intracranianos supra e infratentoriais, salientando-se ao nível da região temporo-polar, principalrnente à esquerda, onde parecem coexistir focos de contusão parenquimatosa. Hematomas subdurais agudos em topografia parafalcial anterior esquerda e fronto-temporo-parietal direita, que respetivarnente, cerca de 9 e 4mm de espessura máxima e condicionam ligeira moldagem do parênquima cerebral adjacente; identifica-se outra coleção hernática extra-axial aguda hemisférica esquerda, com extensão à tenda do cerebelo, com cerca de 5 mm de espessura máxima região parietal e ligeiro efeito de massa. Conteúdo hemático no IV ventrículo, sem sinais de hidrocefalia. Desvio das estruturas da linha nidia anteriores para a direita em cerca de 4 mm. Sem conflito de espaço no buraco occipital. Sinais de doença microvascular ligeira”.
24- E bem assim, foi ali realizado TC maxilo-facial, que revelou: “Hematoma nos tecidos mes peri-orbitários à esquerda. Não se individualizam traços de fractura óssea recente envolvendo o maciço facial. Solução de continuidade nos ossos próprios do nariz e na apófise frontal da maxila à esquerda de natureza imprecisa (iatrogénica? constitucional?). Sem imagens sugestivas de hemossínus ou hemotímpano. O conteúdo intra-orbitário está íntegro. A mandíbula e as articulações temporo-mandibulares têm morfologia preservada”.
25- Como consequência de tais lesões, a falecida esposa do 1.º Autor ficou ainda a padecer de epilepsia secundária, tendo sofrido crise epilética com paragem cardiorrespiratória em 10.11.2021, por força do que passou a fazer medicação antiepilética.
26- Perante tal quadro clínico, a mesma foi transferida para o Centro Hospitalar ..., onde permaneceu até estabilização, tendo sido transferida, em 30.11.2021, para o Centro Hospitalar ..., EPE, de onde foi transferida para a Santa Casa da Misericórdia ..., onde permaneceu internada, até ../../2022, totalmente dependente de terceiros.
27- Nos períodos de internamento no Centro Hospitalar ... e Centro Hospitalar ..., sofreu ainda diversas infeções bacterianas e virais (klebesiella pneumonia, proteus mirabilis, E. colli e SarsCov2) por força do que foi medicada com antibióticos, isolada e ventilada.
28- Durante todo o período de internamentos, JJ encontrou-se totalmente dependente de terceiros nas actividades da vida diária, alimentada por sonda, afásica, confusa, desorientada, vigil, mas não colaborante, dirigindo o olhar, com diminuta capacidade de mobilização dos membros, sem preensão e sem capacidade de escrita.
29- Durante o internamento, o estado de saúde de JJ foi-se degradando progressivamente, devido às lesões sofridas e às infecções sucessivas, descritas em 22 a 25 e 27.
30- Vindo a mesma a falecer no dia ../../2022, em consequência directa de infecção respiratória (pneumonia).
31- À data do acidente, JJ tinha 71 anos de idade, e era uma mulher activa, com muita alegria de viver.
32- Pelo menos em parte do período de 8 meses compreendido entre a data do acidente e o óbito, JJ encontrou-se consciente, sofrendo diversas crises convulsivas.
33- A mesma sofreu dores no momento da queda e, também, nos períodos de internamento, que se seguiram até à sua morte.
34- Nesse período, a falecida sofreu incómodos resultantes das lesões sofridas, tendo a percepção da progressiva deterioração do seu estado físico e da proximidade da sua morte.
35- Nesse período, a falecida sofreu angústia e medo de morrer.
36- A falecida e o 1.º Autor formavam um casal feliz, com amor, respeito e carinho mútuos, partilhavam as alegrias, tristezas e desafios comuns, auxiliando-se mutuamente, ao longo de 50 anos, tendo criado dois filhos.
37- E partilhavam a intenção de permanecer em vida comum até ao fim dos seus dias.
38- A falecida era uma esposa dedicada, auxiliando o 1.º Autor nas decisões do dia-a-dia, mas, também, nos momentos mais difíceis, sendo um pilar de estabilidade e segurança emocional para aquele.
39- O falecimento da sua esposa causou no 1.º Autor grande desgosto, angústia, desorientação e revolta, vendo aquela a sofrer, totalmente dependente de terceiros.
40- O sofrimento do 1.º Autor foi também muito intenso ao longos dos oito meses seguintes ao acidente, até à morte de JJ, vendo-a definhar em agonia prolongada, apesar das visitas diárias do 1.º Autor, acentuando neste o sentimento de revolta e frustração.
41- À data do acidente, o 1.º Autor era uma pessoa sociável e muito jovial.
42- Actualmente, por força do desaparecimento da sua esposa, o 1.º Autor é uma pessoa triste, amargurada, isolada do convívio com familiares e amigos.
43- Os segundo e terceiro autores eram filhos muito próximos da falecida, a quem eram muito dedicados e por quem tinham e demonstravam muito amor, carinho e respeito.
44- A falecida era uma mãe dedicada, sempre presente na orientação e aconselhamento nas pequenas e grandes decisões das vidas dos 2.º e 3.º Autores e era, por tal motivo, uma referência e um pilar de segurança para os mesmos.
45- Entre o dia do acidente e à data do óbito, os 2.º e 3.º Autores acompanharam a sua mãe, tentando animá-la e reconfortá-la, procurando os melhores tratamentos e soluções para o seu estado, e auxiliando e amparando o seu pai, aqui 1.º Autor.
46- O acidente sofrido pela falecida, as lesões totalmente limitadoras de que a mesmo ficou a padecer, e o sofrimento por que passou, ao longo de todo o período de internamento até à sua morte, causaram nos 2.º e 3.º Autores enorme desgosto, ansiedade, insegurança e revolta.
47- A responsabilidade civil por danos causados a terceiros pela condução do veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-HV-.., marca ..., modelo ... encontrava-se transferida para a Ré, pela apólice n.º ...14.
48- Em 20.04.2022, a Ré comunicou a não assunção de responsabilidade pela reparação dos danos sofridos pela esposa do 1.º Autor, alegando que o atropelamento teria ocorrido por violação culposa, pelos peões, do disposto no art.º 101º, n.º 1, do Código da Estrada.
b) Factos não provados.
Artigo 6.º da Petição Inicial – Na parte em que se diz “Os”.
Artigo 9.º da Petição Inicial – Na parte em que se diz “aproximadamente, a meio do grupo de peões”.
Artigo 13.º da Petição Inicial – Na parte em que se diz “no solo”.
Artigo 14.º da Petição Inicial – Na parte em que se diz “e perfeitamente consciente da presença de grande número de peões a atravessar a via”.
Artigo 28.º da Petição Inicial – Na parte em que se diz “saudável”.
Artigo 36.º da Petição Inicial – Na parte em que se diz “esteve sempre (…) da impossibilidade de recuperação da mobilidade e autonomia”.
Artigo 50.º da Petição Inicial – Na parte em que se diz “diariamente”.
Artigo 9.º da Contestação – Na parte em que se diz “sem se certificarem se aí havia veículos a circular”.
Artigo 13.º da Contestação – “Quando iniciava a curva existente antes do Largo ..., sem que nada o fizesse prever, saltaram para a faixa de rodagem AA e JJ”.
Artigo 14.º da Contestação – Na parte em que se diz “provinham do passeio existente entre a Rua ... e a Rua ..., dirigindo-se do santuário”.
Artigo 16.º da Contestação – Na parte em que se diz “o próprio traçado da via onde ocorreu o acidente dificulta a visibilidade dos automobilistas que seguem no sentido que o condutor do HV seguia”.
Artigo 17.º da Contestação – Na parte em que se diz “o que não permitia ao condutor do HV antever o seu aparecimento na faixa de rodagem”.).
3.3. DO DIREITO APLICÁVEL
Manteve-se inalterada decisão da matéria de facto.
A Ré fazia depender o seu pedido de modificação da decisão recorrida também daquela pretensão instrumental fáctica.
Posto isto, fica inelutavelmente prejudicado o conhecimento da apelação ou da pretendida alteração da decisão de mérito recorrida com base nesse pressuposto, o que aqui se declara (cf. arts. 608º, n.º 2, 663º, n.ºs 2 e 6, ambos do Código de Processo Civil).
3.3.1. Da repartição de culpas
No entender dos Autores, estamos perante um caso de culpa exclusiva do condutor do HV, em virtude do que se conclui em 1. a 9..
Já a Ré, Recorrida, que não respondeu a essa alegação, propugna no seu recurso que, pelas razões referidas em FF. e ss., a culpa exclusiva do sinistro deve ser imputada aos peões ou, subsidiariamente (OO.), deve ser alterada a proporção de culpas, no sentido de imputar a culpa aos peões e ao condutor do HV na proporção de 20% e 80%.
Em resposta, os Recorridos defendem a posição da sentença.
A decisão recorrida, por sua vez, depois de ter considerado que a conduta dos peões também era causal do evento danoso, por violação do disposto no art. 101º, nº 3, do C.E. (Código da Estrada), ponderou, em suma, o seguinte: “E, a esse propósito, importa ter em consideração que que está em causa um choque entre dois corpos sólidos, sendo a massa do veículo muito superior à dos peões. Além disso, o veículo é composto por peças metálicas e outras de idêntica dureza, com grande potencialidade contundente quando o mesmo se desloca no espaço, o que faz a uma velocidade muito mais elevada do que atingida por qualquer ser humano que se desloque apeado e, necessariamente, movido por uma força também muito maior. Assim, resultando o dano do embate entre o veículo e os dois peões e inexistindo qualquer subsequente comportamento dos lesados que tenha agravado esse dano, é de considerar que o contributo causal mais relevante é o que resulta da acção do primeiro. Por outro lado, o grau de culpa do condutor do veículo seguro pela Ré também deve ser considerado superior, já que os deveres de cuidado que impendem sobre os condutores de veículos automóveis, atenta a perigosidade destes, são mais intensos do que aqueles a que se encontram obrigados os peões – basta, para concluir que assim, comparar as molduras sancionatórias das contra-ordenações p. e p. pelos artigos 12.º e 101.º, do Código da Estrada. Tudo ponderado, afigura-se que proporção de responsabilidade do condutor do veículo seguro pela Ré e dos lesados na produção do evento danoso se deve fixar, respectivamente, em 80% e 20%.”
Posto isto, apreciando esta questão, teremos em conta, desde logo, a matéria de facto contida nos itens 4. a 22. dos factos julgados assentes e supra reproduzidos em 3.2.a), que nos abstemos de repetir aqui, por economia.
Ora, na responsabilidade prevista no art. 483º, que aqui está em causa, acresce sempre a necessidade de imputarmos subjectivamente o facto em causa, i.é, de atribuirmos aos intervenientes no acidente a culpa, o juízo de censura ou de reprovação pela acção desencadeada.
Esta culpa é apreciada, em abstracto, com referência ao comportamento de um bonus pater familiae e, em concreto, pela figura real do lesante (cf. art. 487º, nº 2., do Cód. Civil).
Normalmente, nestes casos relacionados com a circulação estradal, quanto inexiste prova directa dessa culpa, faz-se prova de factos que apontam para a mesma no desencadear do acidente em face da violação das regras de cuidado, estradais, como as acima referenciadas.
Essa violação, constitui indício da imputação subjectiva do sinistro.
Como aponta o Ac. da Rel. de Lisboa, de 26/03/92 (in C.J. 1992, T. 2, p.153), citando jurisprudência do S.T.J., em casos destes a regra do nº 1, do art. 487º citado deve ser entendida cum grano salis, sob pena de se lançar sobre o lesado um ónus de prova excessivamente gravoso ou até incomportável.
Há que partir daqueles factos externos para se apurar o facto interno - omissão do dever de cuidado.
Este raciocínio traduz o recurso a uma presunção que a doutrina denomina de simples, natural, judicial ou de experiência, pois baseia-se apenas na experiência, sendo livremente apreciada pelo juiz.
Estas presunções são produtos de regras de experiência - meios lógicos ou mentais de descoberta de factos: o juiz, valendo-se de certo facto e daquelas regras, conclui que aquele denuncia a existência de outro facto - vale-se de uma prova de primeira aparência.
Como refere Dário Martins de Almeida - Em matéria de acidentes de viação, estará sobretudo em causa a omissão daquelas regras ou cautelas de que a lei procura rodear certa actividade perigosa como é a da circulação rodoviária (...) Consequentemente, o dever de diligência terá de atingir então um grau maior em face das circunstâncias ou das exigências do caso concreto (...) (in Manual de Acidentes de Viação, 3ª Ed., p. 78).
Segundo Joahnnes Wessels, a espécie e a medida desse cuidado a ser tomado resultam das exigências que, em uma análise «ex ante» da situação de perigo (...), se devam fazer a um homem prudente e consciencioso, situado na posição concreta e no papel social do autor (...) (Direito Penal, Parte Geral (Tradução), p. 150).
Descendo ao quadro factual que se apurou em concreto neste caso, podemos adiantar que era expectável que ambos tivessem outra reacção/acção.
No caso dos peões, os Autores, assumindo, sem discussão (cf. art. 635º, nº 5, do C.P.C.), a ilicitude que a primeira instância imputou àqueles, nomeadamente por via do disposto no citado art. 101º, nº 3, do C.E., afirmam que, sic: “apesar de inexistir uma passadeira no local, nenhuma negligência ou conduta temerária (e muito menos dolo) lhes pode ser assacada pois a travessia apenas se iniciou porque existiam condições de segurança para tal: o trânsito estava imobilizado para ceder passagem aos peões entre os quais se incluía o casal atropelado. Acresce que, sendo idosos, iniciaram a travessia a passo, e de braço dado, repete-se, com o veículo atropelante imobilizado, e pela frente deste!”
Contudo, desde logo, esse silogismo parte de uma premissa errada, que é a de considerar que não existia uma passadeira no local, quando está demonstrada a sua existência, no item 12. dos factos julgados assentes, a menos de 50 metros do local em que decidiram atravessar a estrada em causa e, repete-se, esquecendo que lhes foi imputada a ilicitude decorrente da desconsideração dessa passagem como única que deviam usar para, licitamente, efectuar essa travessia.
Em face disso e de acordo com o raciocínio acima expendido, a violação dessa regra de cuidado não pode ser ignorada e serve para, positivamente, imputar aos peões em causa a falta de cumprimento de uma regra de cuidado que pode e deve ser subjectivamente relevante para a imputação subjectiva do sinistro em apreço.[15]
O facto de serem idosos ou de o trânsito se encontrar parado no momento em que iniciaram essa travessia, não afasta ou exclui, sem mais, essa ilicitude, nem a culpa que daí resulta.
No campo oposto, a Ré/Recorrente alimenta a ideia de que ocorreu um erro na apreciação das normas dos arts. 12º, nº 1, do C.E., e 570º, do C.C., que, se devidamente interpretadas, em conjugação com a imputação da citada ilicitude da travessia em violação do disposto no art. 101º, do C.E., importam que o condutor seu segurado seja ilibado de qualquer responsabilidade pelo sucedido e sejam os peões consideramos os únicos culpados do evento danoso em causa.
Esse art. 12º, nº 1, estabelece que os condutores não podem iniciar ou retomar a marcha sem assinalarem com a necessária antecedência a sua intenção e sem adoptarem as precauções necessárias para evitar qualquer acidente.
A Recorrente defende, em suma, depois de esgrimir argumentos semânticos (HH.), que no caso que ficou apurado supra, não era aplicável ao condutor do HV esse dever de cuidado.
Discordamos frontalmente dessa interpretação que não tem qualquer cabimento na letra ou espírito da lei ou em qualquer outro factor que, de acordo com a regra geral do art. 9º, do Código Civil, tenha de ser considerada.
Bem pelo contrário!
O veículo em causa circulava nessa altura em via pública (15.) e, no momento que precedeu o choque em causa, encontrava-se “imobilizado” nessa via, tendo a dado instante retomado a sua marcha e, com isso, embatido nos peões em causa (17.).
Ora, no contexto factual apurado, em que se encontravam a atravessar a via diversas pessoas e por isso o trânsito estava ou ia parando (9.), não é difícil de perceber que a um condutor diligente, bom pai de família, se impunha um dever de cuidado ou precaução acrescido na atenção a pessoas e veículos que se encontrassem na via aquando da ocorrida acção de retomar a sua marcha. E isso é tão mais importante no caso em apreço quando estamos perante uma situação em que se encontram pessoas – pões - a atravessar a via, nas circunstâncias em que os referidos peões o fizeram e, ditam as regras da experiência, que o facto de aquele se encontrar imobilizado é um factor de segurança que, se alterado inusitadamente (como aqui sucedeu), viola a confiança que foi legitimamente assumida por essas e outras pessoas que compartilham essa via, risco esse que, de resto, aqui se concretizou de modo fatal.
Em suma, nem existem razões para considerar que o condutor do HV não cometeu o ilícito prevenido no citado art. 12º, nº 1, nem encontramos argumentos para excluir a sua responsabilidade subjectiva pelo evento em causa.
Acresce que, de acordo com a previsão do art. 3º, nº 2, do C.E., as pessoas devem abster-se de actos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança, a visibilidade ou a comodidade dos utilizadores das vias, tendo em especial atenção os utilizadores vulneráveis.
Por sua vez, o art. 11º, nº 1, do C.E., o condutor de um veículo não pode pôr em perigo os utilizadores vulneráveis.
O art. 24º, do C.E., dita, por sua vez, que (1) o condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.
Estas, são entre outras, normas que actualmente, enquadram sistematicamente a interpretação da conduta dos condutores de veículos, como o segurado da Ré, visando, como se afirma no Acórdão do S.T.J. citado supra[16], contribuir para a redução da gravíssima sinistralidade rodoviária e, em concreto, da elevada percentagem de atropelamento de peões, pelas mais diversas razões, algumas vezes imputáveis aos próprios lesados, o ordenamento jurídico nacional, mediante projecção de directivas europeias, foi aperfeiçoado no sentido de tutelar de forma especial os utilizadores vulneráveis[17], em particular os utilizadores de velocípedes e peões, como sejam as crianças, idosos, grávidas, pessoas com mobilidade reduzida ou pessoas com deficiência (art. 11º do Cód. da Estrada).
Isto significa, no caso, tratando-se de peões com idade avançada, nomeadamente a falecida, um dever acrescido de cuidado e, reflexamente, uma maior culpa na sua infracção.
No que diz respeito à crítica ao comportamento dos peões em apreço, voltamos ao raciocínio acima expresso para rebater a conclusão da Apelante (LL. e MM.), sublinhando que pelo facto de a viatura HV se encontrar imobilizada no momento referido em 14., como ficou apurado em 16., dos factos assentes, esse dever de cuidado a ter pelos peões, relacionado com a regra do art. 101º, nº 1[18], do C.E., nunca poderia aqui ter o relevo pretendido (pelo contrário, os mesmos deviam confiar que, nessas circunstâncias, o mesmo teria outro cuidado em retomar a marcha), sendo certo que não ficou sequer provado que tenham violado essa obrigação estradal (tal como decorre da decisão negativa de tal matéria respeitante ao art. 9º, da contestação – cf. supra em b)).
Neste conspecto, ponderando o envolvimento dos utilizadores da via pública em causa, não podemos deixar de concordar com a proporção estabelecida pela primeira instância ao abrigo do disposto no art. 570º, do C.C.[19], aderindo às razões então expressas e acima reproduzidas e acrescentando que a licença de condução de uma viatura automóvel não é, passe a expressão, uma licença para tudo fazer desde que os outros estejam (também) em infracção, regra essa que subjaz ao raciocínio da Ré e que se pode traduzir sumariamente no seguinte: se os peões em causa foram descuidados e atravessaram a via em causa fora da passadeira, tudo é desculpado ao condutor do HV.
Não é esse o nosso entendimento, sendo certo que todos infringiram o C.E. e é necessária sim ponderar o peso de cada responsabilidade para aferir o grau relativo de culpa de cada interveniente. E no caso obviamente que, nas circunstâncias apuradas, num contexto de grande afluência e circulação de peões, no confronto com simples pessoas apeadas e idosas, utentes vulneráveis, o condutor de um veículo automóvel tem à partida uma maior responsabilidade no risco acrescido que a sua actividade perigosa significa, e, por isso, tem de assumir uma maior fatia da culpa. O facto de a travessia ter sido feita, nesse contexto, fora/antes de passagem de peões não afasta a circunstância objectiva de o local estar pejado de peões que faziam essa travessia e que, assim, eram aviso bastante para a condução do HV ser especialmente cautelosa, pelo que decorre, desde logo e também, da norma geral do citado art. 3º, nº 2, do C.E..
Deste modo, deve improceder a Apelação dos Autores e também, nessa parte, a da Ré.
3.3.2. O valor da indemnização por danos não patrimoniais sofridos pelo marido da falecida e pelos seus filhos
Com uma referência genérica ao dispositivo dos arts. 483.º, 494.º, 496.º e 566.º, n.º 3 do Código Civil, e citando diversa jurisprudência, a Ré pede, a modificação do valor dessas indemnizações (PP. e ss.).
No seu entender, deve ser reduzida a 20000 euros o valor da indemnização devida ao cônjuge da falecida e, no caso, dos filhos, o desvalor moral que encontra não ultrapassa também esse montante.
Os lesados, aqui Recorridos, defendem o julgamento da primeira instância esse respeito.
Neste, conforme ficou acima relatado, proferiu-se decisão no sentido de fixar em € 40.000,00 o valor pelos danos sofridos pelo cônjuge e em € 30.000,00 o valor pelos danos sofridos por cada um dos filhos, ponderando os factos apurados e a jurisprudência citada.
Vejamos…
No âmbito deste puro dano moral, a norma que está directamente em causa, o art. 496º, do Código Civil, estipula que (1.) na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. 2 - Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem. (4) O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º; (…).
Por isso, o julgador tem de considerar nesse juízo de equidade, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem, tal como prescreve este última norma[20].
A este respeito permitimo-nos reproduzir o entendimento defendido por Luís Miguel Caldas Ribeiro Silva Amorim [21] - (…) Reconheceu-se, por isso, o dever de compensar e satisfazer o lesado, tanto ao nível da doutrina como da jurisprudência, apesar de tais “danos”, não deixando de o ser, serem de índole exclusivamente moral, não fisicamente mensuráveis. Ora se o quantum atribuído a título de danos não patrimoniais consubstancia uma compensação e satisfação do lesado, capaz «de lhe proporcionar uma satisfação em virtude da aptidão do dinheiro para propiciar a realização de uma ampla gama de interesses, na qual se podem incluir mesmo interesses de ordem refinadamente ideal», parece ser, ao mesmo tempo, a “sanção adequada” a atribuir ao lesante, pois não lhe é «estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente».”
Por outro lado, constitui factualidade que reflecte desvalor não patrimonial, subsumível à previsão do citado art. 496º, do Código Civil, nas palavras de Antunes Varela, a correspondente aos “prejuízos (como as dores físicas, os desgostos morais, os vexames, a perda de prestígio ou de reputação, os complexos de ordem estética) que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens (como a saúde, o bem estar, a liberdade, a beleza, a honra ou o bom nome) que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização.” [22]
Temos assim de começar por sublinhar que os danos em causa foram indiscutivelmente gerados por conduta imputável, em proporção acima assinalada, ao condutor do veículo segurado na Ré, seguradora esta que se presume ter um capital significativo, e que, em sua substituição, nos termos infra expostos, é obrigada a reconstituir a situação anterior ao dano, sabendo nós que a indemnização pecuniária é, em alguns casos, nomeadamente nos danos não patrimoniais, uma compensação demasiado simples que nunca terá, por natureza e de forma completa, o efeito reparador visado nos arts. 562º e 566º, do Código Civil.
Há que ter ainda em atenção, que o condutor do veículo seguro pela Apelante realizou manobra inusitada e cujo desvalor legal é acentuado por estarem em causa os chamados utilizadores particularmente vulneráveis.
Essa conduta traduz um grau de culpa relativamente elevado, que terá que ser considerado não só como referência para o efeito compensador pretendido mas também para o efeito punitivo que esta obrigação pecuniária encerra[23] e que, tal como vem sendo defendido pela doutrina e jurisprudência, está também na génese deste instituto.
Devemos acentuar igualmente que estamos em face de direitos fundamentais dos lesados, previstos no plano constitucional (art. 25º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa), e ordinário (v.g., art. 70º, do Código Civil), atingidos de forma grave, como é o que resulta do falecimento da referida familiar e todo o sofrimento conexo que suportaram desde a ocorrência desse acidente.
Além disso, em particular, há que ter em conta, para além do que reflexamente resulta do demais que ficou apurado (art. 349º, do C.C.) os seguintes factos: 36- A falecida e o 1.º Autor formavam um casal feliz, com amor, respeito e carinho mútuos, partilhavam as alegrias, tristezas e desafios comuns, auxiliando-se mutuamente, ao longo de 50 anos, tendo criado dois filhos. 37- E partilhavam a intenção de permanecer em vida comum até ao fim dos seus dias. 38- A falecida era uma esposa dedicada, auxiliando o 1.º Autor nas decisões do dia-a-dia, mas, também, nos momentos mais difíceis, sendo um pilar de estabilidade e segurança emocional para aquele. 39- O falecimento da sua esposa causou no 1.º Autor grande desgosto, angústia, desorientação e revolta, vendo aquela a sofrer, totalmente dependente de terceiros. 40- O sofrimento do 1.º Autor foi também muito intenso ao longos dos oito meses seguintes ao acidente, até à morte de JJ, vendo-a definhar em agonia prolongada, apesar das visitas diárias do 1.º Autor, acentuando neste o sentimento de revolta e frustração. 41- À data do acidente, o 1.º Autor era uma pessoa sociável e muito jovial. 42- Actualmente, por força do desaparecimento da sua esposa, o 1.º Autor é uma pessoa triste, amargurada, isolada do convívio com familiares e amigos. 43- Os segundo e terceiro autores eram filhos muito próximos da falecida, a quem eram muito dedicados e por quem tinham e demonstravam muito amor, carinho e respeito. 44- A falecida era uma mãe dedicada, sempre presente na orientação e aconselhamento nas pequenas e grandes decisões das vidas dos 2.º e 3.º Autores e era, por tal motivo, uma referência e um pilar de segurança para os mesmos. 45- Entre o dia do acidente e à data do óbito, os 2.º e 3.º Autores acompanharam a sua mãe, tentando animá-la e reconfortá-la, procurando os melhores tratamentos e soluções para o seu estado, e auxiliando e amparando o seu pai, aqui 1.º Autor. 46- O acidente sofrido pela falecida, as lesões totalmente limitadoras de que a mesmo ficou a padecer, e o sofrimento por que passou, ao longo de todo o período de internamento até à sua morte, causaram nos 2.º e 3.º Autores enorme desgosto, ansiedade, insegurança e revolta.
A falecida tinha 71 anos de idade à data do acidente (../../2021).
O seu óbito ocorreu em ../../2022.
Decorreram mais de seis meses entre estes dois factos.
A equidade a consubstanciar com estes factos não prescinde, contudo, passe a repetição, da equalização.
Neste aspecto e como observa KK[24]: “A equidade, todavia, não dispensa a observância do princípio da igualdade; o que obriga ao confronto com indemnizações atribuídas em outras situações: “A prossecução desse princípio implica a procura de uniformização de critérios, naturalmente não incompatível com a devida atenção às circunstâncias do caso (acórdão de 22.01.2009, P. 07B242). Nas palavras do acórdão deste Supremo de 31.01.2012, P. 875/05, “os tribunais não podem nem devem contribuir de nenhuma forma para alimentar a ideia de que neste campo as coisas são mais ou menos aleatórias, vogando ao sabor do acaso ou do arbítrio judicial. Se a justiça, como cremos, tem implícita a ideia de proporção, de medida de adequação, de relativa previsibilidade, é no campo do direito privado e, mais, precisamente, na área da responsabilidade civil que a afirmação desses vectores se torna mais premente e necessária, já que eles conduzem em linha recta à efectiva consagração do princípio da igualdade consagrado no art. 13º da Constituição.”
Relembra-se ainda que, como refere Lopes do Rego “o juízo de equidade das instâncias, essencial à determinação do montante indemnizatório por danos não patrimoniais e também pelo dano biológico sofrido, em casos como o dos autos, assente numa ponderação, prudencial e casuística, das circunstâncias do caso – e não na aplicação de critérios normativos – deve ser mantido sempre que – situando-se o julgador dentro da margem de discricionariedade que lhe é consentida - se não revele colidente com os critérios jurisprudenciais que, numa perspectiva actualística, generalizadamente vêm sendo adoptados, em termos de poder pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade.[25]
Salienta-se ainda que, tal como vem sendo decidido pelos Tribunais em geral, por norma, a indemnização a fixar em juízo deve atender aos factos mais recentes, em cumprimento do disposto no art. 611º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Nesta contextura e em face da singularidade[26] da factualidade exposta, julgamos que o juízo equitativo do Tribunal a quo nãomerece aqui o reparo reclamado pela Apelante, em consonância com o que vem sendo decidido, proporcionalmente, em outros casos similares sobre os quais jurisprudência se vem debruçando (cf. art. 8º, nº 3, do Código de Processo Civil).
Veja-se a título de exemplo:
Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 25-02-2021, no qual ficou dito em suma: (…) V - Tendo em conta os parâmetros seguidos pela jurisprudência deste Supremo Tribunal e a necessidade de uma progressiva actualização dos valores indemnizatórios, considera-se justo e adequado fixar o valor base da compensação pelos sofrimentos próprios do filho da vítima e da pessoa com quem esta vivia em união de facto desde há 6 anos, em € 35 000,00, não se vislumbrando razões para estabelecer, a este nível, qualquer diferenciação entre eles visto resultar claro da matéria provada que ambos mantinham com a vítima laços de afectividade e convivência no âmbito de um mesmo consolidado agregado familiar, admitindo-se, por isso, que terão ficado psicologicamente afectados, em igual medida, pela perda da vítima.[27]
Vide também Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 23-05-2019[28], no qual fixou julgado, em suma: (…) II - Provando-se que a vítima, à data da morte, tinha 72 anos, era uma pessoa activa, gozava de boa saúde, era sociável e alegre, dedicava-se a uma agricultura para consumo familiar, sendo estimado e considerado no meio onde vivia, fazendo parte de uma tuna, e era bom marido, pai e avô, deverá ser fixado em € 70 000,00 o montante (anteriormente fixado em € 60 000,00) pela perda do direito à vida. (…) III - No que respeita aos danos não patrimoniais próprios sofridos pelas recorrentes (mulher e filha) é adequado manter a indemnização arbitrada de € 25 000,00 para cada, porquanto integra perfeitamente os parâmetros adoptados pela jurisprudência mais recente deste tribunal.
Vide ainda Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 19.12.2023[29], no qual se julgou caso de vítima com 56 anos de idade: “Tendo a sentença recorrida fixado, a título de indemnização por danos não patrimoniais próprios, as quantias de €40.000,00 e € 30.000,00, respectivamente para a Autora (viúva do falecido CC) e para o Autor (filho da vítima), se algum reparo pudesse merecer a quantificação desses danos seria pela sua sobrevalorização e não pela sua subvalorização.”
Tenha-se em conta também a jurisprudência que cita a sentença recorrida e a Apelante, na qual se encontram decisões que apontam para valores médios de 25000/35000 euros que, porém, atingem os 40000 euros, sendo aqui de sublinhar que o caso do cônjuge se destacará pela circunstância de ter assistido ao trágico acidente e ter uma longa relação (50 anos) com a falecida, com quem naturalmente manteria a relação mais próxima quotidianamente, assim cessada.
Relembra-se ainda que, como refere Lopes do Rego “o juízo de equidade das instâncias, essencial à determinação do montante indemnizatório por danos não patrimoniais e também pelo dano biológico sofrido, em casos como o dos autos, assente numa ponderação, prudencial e casuística, das circunstâncias do caso – e não na aplicação de critérios normativos – deve ser mantido sempre que – situando-se o julgador dentro da margem de discricionariedade que lhe é consentida - se não revele colidente com os critérios jurisprudenciais que, numa perspectiva actualística, generalizadamente vêm sendo adoptados, em termos de poder pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade.[30]
Em conformidade com o exposto, devem improceder estas conclusões da Apelante Ré e assim, todo o seu recurso.
A custas das apelações são, portanto, devidas pelos Recorrentes (no caso dos autores em partes iguais) – cf. art. 527º, do Código de Processo Civil.
4. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente as apelações em apreço.
Custas dos Recursos pelos respectivos apelantes, sendo, no caso dos Autores, repartido igualmente.
*
Sumário[31]: - Os factos instrumentais puramente probatórios não têm que ser objecto de articulação específica pelas partes, sendo a instrução e julgamento o momento próprio para os mesmos emergirem, cabendo ao juiz atendê-los e valorá-los em sede da fundamentação da convicção quanto fixa os factos provados e não provados (Artigo 607º, nº 4, do Código de Processo Civil; - Não observa o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida o apelante que se abstém de desconstruir toda a apreciação crítica da prova, realizada pelo tribunal a quo na decisão impugnada, limitando-se a assinalar que existe um ou outro meio de prova em sentido diverso do aceite como prevalecente pelo mesmo tribunal; - É adequada a fixação da proporção de culpa pelo sinistro, dos peões idosos e do condutor da viatura automóvel envolvida, na proporção de, respectivamente 20% e 80%, quando estes fizeram a travessia da estrada fora da passagem de peões que ficava a menos de 50 metros de distância confiantes de que o automóvel em causa permaneceria parado, como se encontrava, quando iniciaram a essa travessia; - Fixada indemnização com base na equidade, o Tribunal superior só deve intervir quando os montantes fixados se revelem, de modo patente, em colisão com os critérios jurisprudenciais que vêm a ser adoptados, para assegurar a igualdade. - Revela-se proporcionado aos danos morais próprios do marido e filhos da vítima mortal de acidente de viação o valor de, respectivamente, 40000 e 35000 euros (neste último caso para cada).
* Guimarães, 11-07-2024
[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pp. 106. [2] Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, SimasSantos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13. [3] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 107. [4] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª Ed., p. 155 e ss. [5] Cf. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 19.2.2015, relatado por Maria dos Prazeres Pizarro Beleza :II - A impugnação da decisão de facto, feita perante a Relação, não se destina a que este tribunal reaprecie global e genericamente a prova valorada em 1.ª instância, razão pela qual se impõe ao recorrente um especial ónus de alegação, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação. III - Não observa tal ónus o recorrente que identifica os pontos de facto que considera mal julgados, mas se limita a indicar os depoimentos prestados e a listar documentos, sem fazer a indispensável referência àqueles pontos de facto, especificando os concretos meios de prova que impunham que cada um desses pontos fosse julgado provado ou não provado. IV - A apresentação das transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art. 640.º do NCPC (2013). V - O incumprimento de tais ónus – prescritos para a delimitação e fundamentação do objecto do recurso de facto – impedem a Relação de exercer os poderes-deveres que lhe são atribuídos para o respectivo conhecimento. – in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/83d97510a180fd5f80257df1005b598c?OpenDocument [6] Com se refere no Ac. do Supremo Tribunal de Justiçam, de 27.9.2018, infra citado: “Por outro lado, não basta transcrever os depoimentos que se invocam para alterar as respostas dadas. É necessário dizer porquê. Qual a razão pela qual deve ser num sentido e não noutro. Essa análise crítica também não foi feita pela Recorrente”. [7] In http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/8e86daac001d58518025799f00505946?OpenDocument [8] cf. LUÍS FILIPE SOUSA, in Prova Testemunhal, 2013, pp. 319-330 [9] cf. LUÍS FILIPE SOUSA, in Prova por Presunção no Direito Civil, 2017, 3ª ed., pp. 165-180. [10] Ob.cit., p. 159 [11] Cf. nesse sentido Código de Processo Civil Anotado por Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, vol. I, p. I, p. 744, nota 12. [12] Cf. Ac. de 22.10.2016, in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRL:2016:600.12.6TVLSB.L1.7 [13] In Sentença Cível, Janeiro de 2014, p.14/15. [14] In http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/e59018c01102be3e80258257004d9b55?OpenDocument [15] Note-se que o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, citado pelos Autores, não apreciou caso semelhante ao dos autos, pois, além de mais, envolve uma vítima de 7 anos de idade e uma via em que não existia passagem de peões nas imediações…/ https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/105a2fc9fff56c9b802586b000702f7b?OpenDocument [16] Na nota precedente [17] Conceito definido pelo art. 1º, al. q), do C.E.: «Utilizadores vulneráveis» - peões e velocípedes, em particular, crianças, idosos, grávidas, pessoas com mobilidade reduzida ou pessoas com deficiência; [18] 1 - Os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respectiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente. [19] Veja-se, em caso semelhamte, o que ficou dito em Ac. deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 31.10.2019, em que se repartiu a culpa dos intervenientes de modo aproximado. - https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/f990761167be9d35802584b700587baf [20] Quando a responsabilidade se fundar na mera culpa, poderá a indemnização ser fixada, equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem. [21] in A FUNÇÃO PUNITIVA DA RESPONSABILIDADE CIVIL, p. 20, acessível em https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/34853/1/A%20Funcao%20Punitiva%20da%20Responsabilidade%20Civil.pdf [22] Das Obrigações em Geral, Vol. I, 6ª edição, pág. 571, apud Ac. deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 2.11.2017, no processo APELAÇÃO N.º 1315/14.6TJVNF.G1 [23] Cf. também Vg. o estudo "A INDEMNIZAÇÃO PUNITIVA E OS CRITÉRIOS PARA A SUA DETERMINAÇÃO", de PAULA MEIRA LOURENÇO, p. 11 e ss., que se pode encontrar em http://www.stj.pt/ficheiros/coloquios/responsabilidadecivil_paulameiralourenco.pdf [24] Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 21.1.2021, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/927c50d5c6cb35b88025867b007affa7?OpenDocument [25] Cf. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 3.11.2016, citado infra [26] Cf. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 17.1.2012 - Certo que os precedentes judiciários servem de critério auxiliar do julgador, de linha de orientação na fixação equitativa do quantum indemnizatório, mas importa ter sempre em atenção as semelhanças e dissemelhanças das situações factuais de cada caso, na medida em que são geralmente tais elementos que fundamentam as discrepâncias registadas.
in Revista n.º 4086/18.3T8FAR.E1.S1 - 2.ª Secção - Rosa Tching (Relatora) http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/40beb9fc8d1b128480257afc004b8797?OpenDocument [27] In https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2022/08/danomorte.pdf [28] In Revista n.º 1580/16.4T8AVR.S1 - 6.ª Secção, https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2022/08/danomorte.pdf [29] In https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/4aff98f22991aed180258ab6004ba640?OpenDocument [30] Cf. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 3.11.2016, citado infra [31] Da responsabilidade do relator – cf. art. 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.