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ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Sumário
1- O dano biológico pode ter, quer consequências patrimoniais, quer não patrimoniais: pode atingir imediata ou mediatamente o património do lesado e bem assim, simultaneamente, a sua pessoa na esfera da sua vida pessoal, do seu bem-estar, nos seus direitos de personalidade, de conteúdo não diretamente patrimonial. 2- Na determinação do dano patrimonial originado pelo dano biológico, no que toda à diminuição da capacidade de ganho, há que ter em atenção em que medida as lesões reduzem as capacidades profissionais do lesado: se limitam de forma séria a sua possibilidade de encontrar uma atividade remunerada, se impedem o exercício da sua atividade profissional habitual ou se (apenas) se lhe impõem esforços acrescidos, valorizando de forma diferenciada estas consequências, o que não é possível pela simples aplicação de fórmulas matemáticas. 3- Para a determinação da indemnização pelos danos não patrimoniais causados por um acidente de viação importam essencialmente as consequências que as lesões têm na vida do lesado, considerada esta em todas as suas dimensões em que se realiza o ser humano, incluindo todos os sofrimentos que o lesado padeceu e previsivelmente padecerá. 4- Desde que, seguindo critérios lógico-jurídicos coerentes, se atendam a todas as consequências originadas pelo evento lesivo e sejam contemplados todos os danos passíveis de indemnização, sem duplicação na sua valoração, é racionalmente admissível e de aceitar diferentes categorização dos danos: estas classificações mais não são que instrumentos de trabalho, de cariz teórico, que auxiliam na fixação e atribuição da indemnização ou da compensação ao lesado, em função das consequências nefastas do ato na esfera patrimonial e pessoal do lesado.
Texto Integral
Autora e Apelante Principal: AA Ré e Apelante subordinada: COMPANHIA DE SEGUROS EMP01..., S.A Autos de:ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
.I- Relatório
A Autora pediu inicialmente a condenação da Ré a pagar-lhe a indemnização global líquida de 769.150,78 €, acrescida de juros de mora vincendos, contados à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da citação, até efetivo pagamento, bem como a indemnização que, por força dos factos alegados nos artigos 426º a 446º da petição inicial, vier a ser fixada em decisão ulterior ou vier a ser liquidada em execução de sentença/Incidente de Liquidação.
Depois de ter conhecimento do teor do relatório pericial, a Autora ampliou o seu pedido de indemnização por danos não patrimoniais para 300.000,00 € e pelo défice funcional permanente da integridade física e psíquica para 600.000,00 €.
Alegou, em resumo, que o acidente de viação que deu origem aos presentes autos ficou a dever-se a culpa, única e exclusiva, da condutora do veículo automóvel ligeiro de passageiros objeto do contrato de seguro celebrado com a Ré e que deste embate resultaram danos para a Autora.
A ré contestou, pugnando pelo exagero da indemnização peticionada.
Foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente o pedido, fixou a indemnização em 636.345,78 € e deduzindo-lhe a quantia já paga de 50.000 €, condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de 586.345,78 €, acrescida de juros de mora.
Distribuiu pelas seguintes parcelas a indemnização que fixou:
-- 200.000,00 € (duzentos mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, contados desde a prolação da presente decisão e até efetivo e integral pagamento;
-- 430.000,00 € (quatrocentos e trinta mil euros) a título de défice funcional permanente da integridade física e psíquica, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, a contar da citação até efetivo e integral pagamento;
-- 6.345,78 € (seis mil, trezentos e quarenta e cinco euros e setenta e oito cêntimos) a título de danos patrimoniais (diferenças salariais), acrescidos de juros de mora, à taxa legal, a contar da citação até efetivo e integral pagamento.
-- indemnização que vier a ser liquidada em execução de sentença relativa aos factos provados que constam dos nºs 180) a 184).
É desta sentença que a Autora apelou, apresentando as seguintes conclusões:
“1. O presente recurso é interposto da douta sentença proferida nos autos, na parte em que julgou parcialmente improcedentes os pedidos formulados pela Autora, e cinge-se à reapreciação da matéria de direito. 2. A indemnização pelo dano corporal deve contemplar não só a indemnização por danos decorrentes da perda de capacidade de ganho, mas também a indemnização por dano biológico, enquanto Tertium Genus, que deve dar origem a rúbrica indemnizatória autónoma. 3. Uma tal interpretação tem fundamento no direito positivo, designadamente, na norma do art. 562.º do Cód. Civil. 4. O Tribunal recorrido fixou a indemnização devida à Autora, para ressarcimento do parâmetro perda de capacidade de ganho, no montante de 430 000,00, valor que se afigura reduzido, face ao quadro factual acima transcrito. 5. A incapacidade para o exercício da actividade profissional habitual (de que a Autora ficou a padecer) implica necessariamente uma interrupção do percurso profissional da Autora e, caso a Autora estivesse em condições de trabalhar (e actualmente não está, pois está reformada por invalidez – cfr. ponto 191 dos factos provados), obrigaria a mesma redefinir a sua carreira profissional e a alterar a as suas perspectivas de vida e, sobretudo, o percurso profissional já iniciado. 6. Esse prejuízo existe e não foi devidamente valorado na douta sentença recorrida. 7. Inexiste definição legal que densifique os critérios a seguir na fixação da indemnização pela incapacidade para o trabalho habitual, ao nível do ressarcimento do dano corporal em sede cível. 8. Em casos análogos (incapacidade para o exercício do trabalho habitual), um dos critérios adoptado pela jurisprudência tem sido o da majoração prevista na legislação dos acidentes de trabalho para os casos de incapacidade habitual, onde se prevê a aplicação de um factor de bonificação de 1,50 sobre a indemnização pela perda de capacidade de ganho, previsto no ponto 5 das Instruções Gerais da Tabela Nacional de Incapacidade para o Trabalho, sempre que haja incapacidade para o trabalho habitual. 9. Está aí em causa um critério objectivo, com consagração legal, que visa ressarcir precisamente o dano emergente da perda de capacidade para o trabalho habitual e que, como tal e à falta de outras bases de sustento ao nível do direito positivo, é um bom ponto de referência para a quantificação da indemnização por esse dano, em sede cível. 10. O Tribunal recorrido, na fixação da indemnização pela perda de capacidade de ganho ou por dano corporal, deveria ter recorrido à aplicação do factor 1,50 para majoração da indemnização encontrada por recurso às habituais fórmuladas de cálculo da indemnização pela perda de capacidade de ganho. 11. Não deveria nem deve ser aplicado qualquer factor de bonificação por antecipação do capital. No limite, a ser fixado, o mesmo nunca deverá exceder o limite de 10 %. 12. Longe vão os tempos de prosperidade, bonança e social que caracterizaram o modus vivendi ocidental e que, associados a baixas taxas de juro e a um crescimento económico reduzido, no mundo desenvolvido, aconselhavam a aplicação de factores de penalização por antecipação do capital. 13. O actual quadro sócioeconómico - caracterizado por uma inflação muito elevada, taxas de juro altas, aumento do custo de vida de dia para dia e um perigo real de ocorrência de cenários macroeconómicos potencialmente devastadores para a economia, quais sejam a guerra em todos os pontos do globo e no próprio continente europeu, a instabilidade social, o excesso de população mundial, a impossibilidade de produção alimentar suficiente para todos os seres humanos, os ciclos migratórios provenientes de países mais pobres (em busca de um estilo de vida que não pode nem deve ser exclusivo das elites ocidentais), o aquecimento global e suas consequências, as alterações dos equilíbrios políticos nas economias mais desenvolvidas, com ressurgimento de ideais mais próximos dos regimes totalitários de outros tempos – é muito distinto do quadro referido no ponto 12 destas conclusões. 14. As razões que justificavam a aplicação de factores de penalização por antecipação do capital já não existem, o que obriga a uma revisão da aplicação da lei, neste contexto, sendo que, do ponto de vista da Recorrente, a aplicação de um factor de penalização por antecipação do capital deve ser eliminada ou, pelo menos, reduzida a montante não superior a 10 %. 15. A indemnização a arbitrar a título de indemnização pela perda de capacidade de ganho, com aplicação de factor de bonificação de 1,50 por incapacidade para o trabalho habitual e, ademais, sem aplicação de factor de penalização por antecipação do capital, deveria ser fixada em montante não inferior a 630 000,00 €. 16. Por outro lado e respeito da indemnização por dano biológico, a Autora parte do pressuposto da consagração do mesmo como um Tertium Genus, ao lado e para além das vertentes tradicionais de indemnização pelo dano corporal, nos termos já expostos em parte prévia desta alegação, realçando que tal entendimento terá sempre cobertura no direito positivo, concretamente, na norma do art. 562.º do Cód. Civil. 17. Partindo desse pressuposto, a indemnização por dano biológico acrescerá à indemnização por perda de capacidade de ganho (ou seja, de retirar rendimento do trabalho, seja por efectiva perda salarial, seja pelo maior esforço despendido para alcançar o mesmo salário) e por danos não patrimoniais e corresponderá a um Tertium Genus, que abrange perda da disponibilidade do uso do corpo para os normais afazeres do dia-a-dia (que não os profissionais) e fixados numa incapacidade geral ou anátomo-funcional/fisiológica e um dano autónomo que não se confunde com o dano patrimonial futuro. 18. O Tribunal recorrido não fixou à Autora indemnização autónoma por dano biológico, incluindo toda a parcela indemnizatória relativamente à incapacidade parcial de que a Autora ficou a padecer numa única rúbrica, que designou como indemnização por perda de capacidade de ganho, que fixou em 430 000,00 €. 19. Tendo presente a factualidade dada como provada, no que diz respeito à indemnização por dano biológico e à indemnização pela rúbrica indemnização por perda de capacidade de ganho, a Autora entende que a mesma deveria ter sido fixada no montante global e único de 700 000,00 €. 20. Nesta parte, a douta sentença recorrida violou, além de outras, as disposições dos arts. 562.º e 564.º, n.º 1, do Cód. Civil, pelo que deve ser revogada, na parte em que condenou a Ré a pagar a quantia de 430 000,00 €, a título de perda de capacidade de ganho, e substituída, nessa parte, por Douto Acórdão que condene a Ré a pagar à Autora, a título de indemnização pela perda de capacidade de ganho e de indemnização por dano biológico, montante não inferior a 700 000,00 € (com o esclarecimento de que os limites decorrentes do princípio do pedido só teriam aplicação se a indemnização total a arbitrar excedesse o valor global do pedido, e já não se excederem os pedidos parcelar). 21. No quadro factual contido na douta sentença recorrida, a fixação da indemnização por danos de natureza não patrimonial em 200 000,00 € peca por defeito. 22. No que diz respeito aos danos de natureza não patrimonial (de elevada monta, como resulta da matéria de facto dada como provada), tendo sempre presente o limite do pedido formulado pela Autora, deveria ter sido fixada indemnização de valor não inferior a 250 000,00 €. 23. A douta sentença recorrida violou, além de outras, as disposições dos arts. 496.º, n.º 1 e 562.º do Cód. Civil, pelo que deve ser revogada, na parte em que condenou a Ré a pagar à Autora quantia de 200 000,00 €, a título de danos de natureza não patrimonial, e substituída, nessa parte, por Douto Acórdão que condene a Ré a pagar ao Autor 250 000,00 €, a título de danos de natureza não patrimonial, acrescidos de juros moratórios. Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente, com a consequente revogação da Douta Sentença recorrida, na parte visada por este recurso, e prolação, em sua substituição, de Douto Acórdão que esteja em conformidade com as conclusões acima formuladas, com o que se fará Justiça!.”
A Ré respondeu e apresentou recurso subordinado, com as seguintes conclusões:
“.1- Considerando os valores jurisprudencialmente fixados - conforme resulta do acórdão supra transcrito e proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em 04 de abril de 2024, processo 347/21.2T8PNF.P1, disponível in www.dgsi.pt, quanto a um caso muito semelhante ao dos presentes autos e que faz alusão a outros casos semelhantes - a idade da Recorrida subordinada à data do acidente, as lesões e sequelas sofridas, as intervenções cirúrgicas e tratamentos, o quantum doloris de grau 6, o dano estético de grau 4, a repercussão permanentes nas actividades desportivas e de lazer de grau 2, a repercussão na actividade sexual no grau 4 e os padrões que têm vindo a ser seguidos pela jurisprudência, sempre se dirá que a indemnização fixada em Eur. 200.000,00 apresenta-se excessiva, tendo em conta a globalidade dos factos, .2- Devendo a indemnização fixada a título de danos não patrimoniais ser reduzida para o montante de Eur. 150.000,00. .3- A sentença em crise violou o disposto nos artigos 496.º, 562.º, 564.º e 566.º do Código Civil.” A Autora contraalegou. II- Objeto do recurso
O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso ou se versarem sobre matéria de conhecimento oficioso, desde que os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.
Face ás conclusões dos recursos e respostas importa verificar:
-- se o montante fixado a título de indemnização se mostra desadequado, por não ter considerado o dano biológico como um terceiro género a acrescer aos demais danos sofridos, por terem sido aplicados fatores corretivos a fórmulas matemáticas, não ter sido majorada a indemnização por danos patrimoniais em função da incapacidade para o trabalho habitual e por ter sido curta ou exagerada a compensação atribuída pelos danos não patrimoniais.
III- Fundamentação de Facto
Segue o elenco da matéria de facto provada a considerar:
Factos provados:
1) No dia ../../2017, pelas 21h30m, ocorreu um acidente de trânsito, na Rua ..., na União de Freguesias ..., ..., ... e ..., concelho ....
2) Junto ao estabelecimento comercial denominado “EMP02...”.
3) Tendo em conta o sentido ..., ou seja, ....
4) Nesse acidente, foram intervenientes:
1º– o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula ..-..-HI, propriedade de BB;
2º– e o peão AA, Autora na presente ação.
5) E, na altura da ocorrência do acidente de trânsito que deu origem à presente ação, o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-HI era conduzido por CC, residente na Praça ..., ... concelho ....
6) A CC conduzia o referido veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-HI em consequência de empréstimo que o supra-referido BB lhe havia, previamente, concedido.
7) Na altura da ocorrência do acidente de trânsito que deu origem à presente ação, a CC conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-HI, à ordem, com conhecimento, com autorização, por conta, no interesse e sob a direção efetiva do suprarreferido BB.
8) A Rua ..., no local da deflagração do acidente de trânsito que deu origem à presente ação, configura um sector de reta.
9) Com um comprimento superior a cento e setenta metros.
10) A faixa de rodagem da Rua ... tinha uma largura de 7,50 metros. 11) O seu piso era pavimentado a asfalto.
12) Na altura da ocorrência do acidente de trânsito que deu origem à presente ação, o tempo estava bom e seco.
13) E o pavimento asfáltico da faixa de rodagem da Rua ... encontrava-se limpo, seco e em bom estado de conservação.
14) A faixa de rodagem da Rua ..., no preciso local da deflagração do acidente de trânsito que deu origem à presente ação, era dividida em duas hemiafaixas de rodagem distintas.
15) A hemi-faixa de rodagem da Rua ..., situada do lado Sul, é destinada ao trânsito automóvel que desenvolve a sua marcha no sentido ..., ou seja, ....
16) A hemi-faixa de rodagem da Rua ..., situada do lado Norte, é destinada ao trânsito automóvel que desenvolve a sua marcha no sentido ..., ou seja, ....
17) Pela sua margem esquerda, tendo em conta o sentido ..., ou seja, ..., a faixa de rodagem da Rua ... apresentava, à data da deflagração do acidente de trânsito que deu origem à presente ação, uma berma.
18) Pela margem direita, tendo em conta o sentido ..., ou seja, ..., a faixa de rodagem da Rua ... não apresentava, à data da deflagração do acidente de trânsito que deu origem à presente ação, qualquer berma, destinada ao trânsito de peões.
19) Sendo certo que, no preciso local da deflagração do acidente de trânsito que deu origem à presente ação, existia, à data do sinistro que está na génese dos presentes autos, o estabelecimento comercial denominado “EMP02...”.
20) O local da deflagração do acidente de trânsito que deu origem à presente ação configura-se como uma localidade.
21) Na altura da ocorrência do acidente de trânsito que deu origem à presente ação, eram 21h30m, do ../../2017.
22) O tempo estava seco, sem nevoeiro e sem neblina.
23) Pelas duas margens da faixa de rodagem da Rua ..., existiam candeeiros da iluminação pública.
24) Implantados em postes de suporte, a uma distância não superior a trinta metros uns dos outros.
25) A A. conhecia, perfeitamente, o local onde eclodiu o acidente a que a presente ação se reporta.
26) E a condutora do veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-HI – CC – passava no local da deflagração do acidente de trânsito que deu origem à presente ação, no desempenho da atividade da condução automóvel, todos os dias e, até, mais do que duas vezes ao dia.
27) No dia ../../2017, pelas 21h30m, imediatamente antes do acidente de trânsito que deu origem à presente ação, a Autora procedia do interior do edifício onde funciona o estabelecimento comercial “EMP02...”.
28) A Autora saiu para o exterior do referido “EMP02...”.
29) Pois, pretendia proceder ao atravessamento da faixa de rodagem da Rua ..., no sentido Sul-Norte, ou seja, da esquerda para a direita, tendo em conta o sentido ...: ....
30) Logo que saiu do espaço correspondente ao estabelecimento comercial “EMP02...”, a Autora imobilizou a sua marcha.
31) Sobre a berma empedrada situada na margem esquerda da Rua ..., tendo em conta o sentido ..., ou seja, ....
32) A Autora pretendia proceder ao atravessamento da faixa de rodagem da Rua ....
33) No sentido Sul-Norte.
34) Da esquerda para a direita, tendo em conta o sentido de marcha ... – ....
35) Em direção ao espaço destinado ao estacionamento e aparcamento de veículos automóveis, situado do lado Norte (em relação à faixa de rodagem da Rua ...), na margem direita da referida via.
36) Tendo em conta o sentido ..., onde se encontrava o seu veículo automóvel.
37) E que margina, pelo lado exterior, a hemi-faixa de rodagem do lado direito da Rua ..., tendo em conta o sentido ....
38) A Autora pretendia dirigir-se, a pé, para o seu veículo automóvel. 39) Que se encontrava estacionado no espaço destinado ao estacionamento e aparcamento de veículos automóveis, situado do lado Norte da faixa de rodagem da Rua ..., na margem direita da referida via – Rua ..., tendo em conta o sentido ....
40) Em frente e do lado oposto da faixa de rodagem da Rua ..., em relação ao local onde se situa o estabelecimento comercial “EMP02...”.
41) A Autora, em passo firme, ligeiro e determinado.
42) Iniciou e desenvolveu o atravessamento da faixa de rodagem da Rua ..., no sentido Sul-Norte.
43) Da esquerda para a direita, tendo em conta o sentido ....
44) A Autora percorreu, sem parar e sem hesitação, toda a largura – de 1,60 metros - correspondente à berma empedrada situada na margem esquerda da Rua ..., tendo em conta o sentido ....
45) Ato contínuo e sem parar, percorreu, sem hesitação, toda a largura – de 3,75 metros - da hemi-faixa de rodagem do lado esquerdo – Rua ..., tendo em conta o sentido ....
46) A Autora percorreu, depois, uma largura de 3,55 metros, correspondente à largura da hemi-faixa de rodagem do lado direito da referida via – Rua ..., tendo em conta o sentido ....
47) Quando a Autora foi embatida pelo veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-HI.
48) Tripulado pela supra-referida CC.
49) Nas referidas circunstâncias de espaço e tempo, o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-HI transitava pela Rua ..., na União de Freguesias ..., ..., ... e ..., da cidade e concelho ....
50) O veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-HI desenvolvia a sua marcha, no sentido ..., ou seja, ....
51) A condutora do veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-HI, CC, não se apercebeu da presença da Autora.
52) A condutora do veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-HI – CC, não levou a efeito qualquer manobra de evasão ou de salvação.
53) Não reduziu a velocidade que imprimia ao veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-HI.
54) A CC foi embater com o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-HI contra o corpo da Autora.
55) Esse embate ocorreu totalmente sobre a metade direita da faixa de rodagem da Rua ..., tendo em conta o sentido ....
56) A uma distância de apenas 0,20 metros – vinte centímetros - da linha delimitativa do lado direito, da metade direita da faixa de rodagem da Rua ..., tendo em conta o sentido ....
57) Essa colisão verificou-se entre a parte frontal direita, ao nível do canto e do farol do mesmo lado, do veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-HI e o corpo da Autora.
58) Com o embate, o corpo da Autora foi projetado para sua frente – para a frente do veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-HI, no sentido Poente, em direção a ....
59) Ao longo de uma distância de 16,59 metros.
60) Até que ficou, prostrado, no solo.
61) Sobre a metade direita da faixa de rodagem da Rua ..., tendo em conta o sentido ..., ou seja, ....
62) O veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-HI, após o embate, prosseguiu a sua marcha.
63) Ao longo da distância de 74,05 metros.
64) Até que se imobilizou.
65) A condutora do veículo automóvel não tinha noção de que havia atropelado uma pessoa.
66) A Ré Companhia de Seguros “EMP01... COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.”, logo após a deflagração do acidente de trânsito que deu origem à presente ação, através dos seus serviços técnicos, levou a efeito as pertinentes averiguações, com vista ao apuramento das causas que estão na génese do sinistro.
67) A Ré Companhia de Seguros “EMP01... COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.” concluiu que a culpa na produção do sinistro que está na génese da presente ação é única e exclusivamente imputável à condutora do veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-HI – CC.
68) Assumiu a responsabilidade pelas consequências danosas decorrentes do acidente de trânsito que deu origem à presente ação.
69) E, em conformidade, prestou assistência médica e medicamentosa à Autora, nos seus serviços clínicos.
70) Pagou, à Autora, quantias diversas relativas a despesas por ela suportadas com assistência médica, medicamentosa e transportes.
71) E pagou, também, à Autora, diversas quantias relativas a diferenças salariais por esta sofridas em consequência do acidente de trânsito que deu origem à presente ação, das lesões sofridas e das sequelas delas resultantes.
72) Consequência direta e necessária do acidente e da queda que se lhe seguiu, resultaram, para a A. as seguintes lesões corporais: politraumatismos, traumatismo crânio-encefálico grave, traumatismos da coluna lombar, dorsal e cervical, traumatismo torácico, contusão da face, otorrogia bilateral, fratura dos ossos temporais direitos, com atingimento do canal auditivo, com hemotímpano e ar intercerebral, contusões hemorrágicas temporais esquerdas, contusões hemorráias temporais direitas, hematoma subdural direito, pequeno subdural esquerdo, fratura da apófise transversa direita de C3 e da pars articular, fratura da clavícula direita, fratura da omoplata direita, fratura da sétima costela direita, fratura da asa do ilíaco direito, fratura do prato tibial esquerdo, fratura do perónio esquerdo, fratura alinhada da asa do sacro direita, hematoma subdural à direita, contusões hemorrágicas, hematoma subdural do lado esquerdo, edema cerebral, fratura da coluna cervical, escoriações e hematomas espalhados pelo corpo todo.
73) A Autora foi transportada, de ambulância do INEM, para o Hospital ..., de concelho ..., EPE.
74) Foram-lhe, aí, prestados os primeiros socorros, no respetivo Serviço de Urgência.
75) Dada a gravidade das lesões sofridas, a Autora foi, de imediato, transferida para o Hospital ....
76) Em coma induzido.
77) A Autora manteve-se internada, no Hospital ..., desde o dia ../../2017 até ao dia ../../2017.
78) No Hospital ..., a Autora fez TAC.
79) A qual revelou agravamento marcado das lesões endocranianas traumáticas, com destaque para o volumoso hematoma subdural agudo direito, com efeito de massa muito marcado, desvio de linha média e herniação sub-facial.
80) A Autora foi transferida para o Bloco Operatório do Hospital ....
81) Foi-lhe, aí, ministrada uma anestesia geral.
82) E foi submetida a uma intervenção cirúrgica ao crânio, no dia 4 de Abril de 2017.
83) Consubstanciada em Craniotomia Descompressiva Emergente.
84) Com drenagem do Hematoma Subdural.
85) E controlo da Hemorragia craniana.
86) Foram-lhe ministradas quatro transfusões de sangue.
87) Após a realização da supra-referida intervenção cirúrgica, a Autora fez nova TAC cerebral.
88) A qual revelou drenagem praticamente total do hematoma subdural, hemisfério direito, menor desvio esquerdo da linha média, com algum encerramento do corno temporal do ventríloco lateral direito e redução significativa do efeito de massa.
89) Após a sujeição à supra-referida intervenção cirúrgica, a Autora foi transferida para a Unidade de Cuidados Intensivos Polivalente, do Hospital ....
90) Para medidas de neurointensivismo.
91) Entubada.
92) Com respiração assistida.
93) E alimentação nasogástrica.
94) A Autora permaneceu na Unidade de Cuidados Continuados do Hospital ... ao longo de um período de tempo de dez dias.
95) A Autora manteve-se entubada até ao dia ../../2017.
96) Data em que foi extubada.
97) A Autora continuava a apresentar Edema Artnaoideu Bilateral, com SDR importantes e estridor de má resposta à terapêutica.
98) A Autora foi reintubada.
99) Até ao dia ../../2017.
100) Data em que foi extubada.
101) A Autora apresentava quadro de SIRS.
102) Foi-lhe ministrada amoxicilina-clauvulanato, 2 D.
103) Com início em D6, escalado para ceftriaxone, com cobertura meníngea.
104) Durante o internamento, no Hospital ..., a Autora manteve estabilidade hemodinâmica.
105) Com necessidade de suporte vasopressor (Noradrenalina), até D4 para PPC > 60 mmHg.
106) Durante o internamento, no Hospital ... e após ser extubada, a Autora passou a fixar o olhar.
107) Passou a parecer compreender as mensagens.
108) Mas não cumpria ordens.
109) Tolerou a dieta entérica.
110) Normoglicémica e Normotérmica.
111) Fez um pico febril em 11 de Abril de 2017.
112) E apresentou parâmetros inflamatórios em perfil descendente. 113) No dia ../../2017, a Autora apresentava Haemophilus Influenzae w MSSA (resistente a amoxicilina e ácido clavulánico) no aspirado brônquico.
114) Fez tratamento conservador, no Hospital ..., às fraturas dos ossos:
- temporais direitos;
- da coluna cervical;
- da apófise transversa direita de C3 e da pars articular;
- da clavícula direita;
- da omoplata direita; - sétima costela à direita; - da asa do ilíaco direito.
115) Com manutenção do uso do colar cervical.
116) Em consequência da fratura dos ossos da coluna cervical.
117) No dia 14 de Abril de 2017, a Autora foi transferida para a Unidade de Cuidados Intensivos de Neurocríticos.
118) Na Unidade de Cuidados Intensivos de Neurocríticos, a Autora apresentou evolução favorável.
119) Após o que foi transferida, para continuação de cuidados, na Enfermaria de Neurocirurgia.
120) Na admissão, na Enfermaria de Neurocirurgia, a Autora apresentava-se vigil.
121) Mas com resposta muito escassa.
122) No dia 17 de Abril de 2017, a Autora acordou do estado de Coma.
123) No dia 24 de Abril de 2017, a Autora regressou ao Bloco Operatório do Hospital ....
124) Foi-lhe, aí, ministrada uma anestesia geral.
125) E foi sujeita a uma intervenção cirúrgica.
126) Consubstanciada na redução da fratura do joelho esquerdo: Prato Tibial Lateral e Cabeça do Perónio.
127) No dia 8 de Maio de 2017, a Autora regressou ao Bloco Operatório do Hospital ....
128) Foi-lhe, aí, ministrada uma anestesia geral.
129) E foi submetida uma terceira intervenção cirúrgica, à região craniana.
130) Consubstanciada em Cranioplastia, com cimento.
131) No dia ../../2017, a Autora obteve alta do Hospital ....
132) E regressou, para continuação dos tratamentos e para convalescença, à casa de residência dos seus pais.
133) Onde se manteve, acamada, ao longo de:
a) um período de tempo de nove meses – de 16/05/2017 a 18/02/2018;
b) sendo duas semanas – de 16/05/2017 a 01/06/2017, acamada;
c) sendo quatro semanas - de 01/06/2017 a 02/07/2017, em cadeira de rodas;
d) sendo duas semanas – de 03/07/2017 a 17/07/2017, ora com uma, ora com um par de canadianas.
134) A Autora viu-se na necessidade de se manter na casa de habitação dos seus pais ao longo do período de tempo de nove meses.
135) Com necessidade diária de acompanhamento, ajuda e auxílio de uma terceira pessoa – a sua mãe.
136) Ao fim do referido período de tempo de nove meses, de permanência na casa de habitação dos seus pais, a Autora regressou à sua própria residência.
137) Com crises diárias de tonturas.
138) E com tendência para quedas.
139) Após a sua alta hospitalar, a Autora passou a frequentar o Hospital ..., no regime de Consulta Externa, da Especialidade de Neurocirurgia.
140) A partir do dia 2 de Junho de 2017, a Autora passou a frequentar o Hospital ... da cidade ..., por conta e a expensas da Ré Companhia de Seguros “EMP01... COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.”.
141) No dia 2 de Junho de 2017, a Autora teve uma consulta médica, no Hospital ..., da cidade ....
142) Na sequência da qual lhe foi prescrito tratamento de Medicina Física e Reabilitação (MFR) – Fisioterapia.
143) Que a Autora cumpriu, na EMP03..., Lda., ao longo de trezentas e dez sessões, desde o dia 6 de Junho de 2017 ao dia 1 de Fevereiro de 2019.
144) No dia 21 de Setembro de 2017, a Autora foi internada no Hospital ..., da cidade ....
145) Permaneceu internada ao longo de um período de tempo de dois dias, até ao dia 22 de Setembro de 2019.
146) Foi-lhe ministrada uma anestesia geral.
147) E foi submetida a uma intervenção cirúrgica ao ouvido direito.
148) Com vista à recuperação da audição, ao nível desse ouvido.
149) No dia 10 de Janeiro de 2018, a Autora foi internada no Hospital ..., da cidade ....
150) Ao longo de um período de tempo de dois dias, até ao dia 11 de Janeiro de 2018.
151) Foi-lhe ministrada uma anestesia geral.
152) E foi submetida a uma segunda intervenção cirúrgica aos ossos do joelho esquerdo.
153) Para extração dos parafusos que lhe haviam sido aplicados na primeira intervenção cirúrgica ao joelho esquerdo.
154) No dia 15 de Fevereiro de 2018, a Autora foi internada no Hospital ..., da cidade ....
155) Ao longo de três dias, até ao dia ../../2018.
156) Foi-lhe ministrada uma anestesia geral.
157) E foi submetida a uma segunda intervenção cirúrgica ao ouvido direito.
158) No Hospital ..., da cidade ..., a Autora foi consultada, seguida a tratada, nas seguintes Especialidades:
a) Ortopedia – Dr. DD;
b) Otorrinolaringologia – Dr. EE;
c) Estomatologia – Dr. FF;
d) Cirurgia Plástica – Dr. GG;
e) Oftalmologia – Dra. HH;
f) Dermatologia – Dr. II;
g) Psiquiatria – Dr. JJ;
h) Neurologia;
i) Neurocirurgia – Dr. KK;
j) Medicina Geral – Dra. LL.
159) No dia 16 de Novembro de 2019, a Autora foi internada no Hospital ....
160) Ao longo de um período de tempo de sete dias, até ao dia 22 de Novembro de 2019.
161) E foi submetida a uma segunda intervenção cirúrgica ao crânio.
162) No dia 28 de Novembro de 2019, a Autora regressou ao Hospital ..., no Serviço de Cirurgia.
163) E foram-lhe extraídos os pontos de sutura.
164) A partir dessa data, a Autora continuou a frequentar o Hospital ....
165) Os serviços clínicos da Ré Companhia de Seguros “EMP01... COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.”, à data da propositura da ação, ainda não haviam dado alta clínica à Autora.
166) A Autora, em consequência do acidente de trânsito que deu origem à presente ação, das lesões sofridas e das sequelas delas resultantes, ainda se encontrava, à data da propositura da ação, na situação de doença, com Incapacidade Temporária Absoluta para o trabalho – Repercussão Temporária da Atividade Profissional Total.
167) Como queixas das lesões sofridas, a A. apresenta:
1. A nível funcional, compreendendo este nível as alterações das capacidades físicas ou mentais (voluntárias ou involuntárias), cateterísticas de um ser humano, tendo em conta a sua idade, sexo e etnia, que surgem na sequência das sequelas orgânicas e são influenciadas, positiva ou negativamente, por fatores pessoais (como a idade, o estado físico e psíquico anterior, a motivação e o esforço pessoal de adaptação) e do meio (como as barreiras arquitetónicas, as ajudas técnicas ou as ajudas humanas), refere:
- Postura, deslocamentos e transferências: dificuldade em caminhar longos períodos (mais de 20 minutos), referindo dor ao nível da anca, joelho esquerdo e tornozelo direito (refere que usa uma palminha especial no pé direito) ao final desse tempo; dificuldade em subir e descer escadas, mais a descer; não consegue correr por sentir dor com o impacto ao nível das áreas anatómicas referidas previamente; dificuldade em permanecer na posição de acocorada ou ajoelhada;
- Manipulação e preensão: refere notar os movimentos da cintura escapular "mais presos"; dificuldade em transportar pesos devido às queixas álgicas a nível cervical: nega outras alterações; .
- Comunicação: dificuldade na audição com o ouvido direito, não sabendo a percentagem de audição com que ficou; refere zumbido constante "irrita-me profundamente acordo e adormeço com ele, ainda não me consegui habituar a tal coisa";
- Cognição e afetividade: dificuldade na concentração, perda de memória "dizem-me que eu faço uma pergunta, respondem-me, daí a 5 min sou capaz de fazer a mesma pergunta": irritabilidade fácil, principalmente com barulhos; "sempre fui uma pessoa de estar em convívio ... e agora não suporto ou ir várias pessoas a falar ao mesmo tempo, os barulhos ... "; refere que se assusta com barulhos no carro, não tem pesadelos com o acidente; refere ter desenvolvido um quadro depressivo após o evento, em relação com as limitações sequelares que sente, encontrando-se medicada com Sertralina (antidepressivo, lx/dia), Fluoxetina (antidepressiv o, lx/ dia e Bromalex (ansiolítico, em SOS) .
- Sexualidade e procriação: refere que deste o acidente nunca mais teve parceiros sexuais, "nunca mais tive apetite sexual", "antes não era assim, depois ficou tudo apagado;
- Fenómenos dolorosos: tipo "moedeira" na região cervical, que agravou com os esforços; gonalgía esquerda e queixas álgícas ao nível do tornozelo direito, que surgem com alguns movimentos e esforços; crises de enxaqueca duas a três vezes por mês, que duram cerca de 3 dias e que não cedem à toma de medicação analgésica (refere que nao tinha antes); - Outras queixas a nível funcional: refere tonturas, mais frequentes quando está deitada e faz alguns movimentos, "tonturas" essas que induzem o vómito "como se tivesse a andar num baloiço duram alguns segundos só mas deixam-me de rastos"; .
2. A nível situacional, compreendendo este nível a dificuldade ou impossibilidade de uma pessoa efetuar certos gestos necessários à sua participação na vida em sociedade, em consequência das sequelas orgânicas e funcionais e de fatores pessoais e do meio, refere:
- Atos da vida diária: dificuldades na condução pela lentificação de raciocínio "noto que não tenho a mesma agilidade mental ... a mesma capacidade de reação ... ". "eu achava que não me deixavam conduzir porque me podiam falhar as pernas ... agora percebo que era pela cabeça ... "; dificuldade em limpar vidros e mudar os lençóis devido as queixas álgicas a nível cervical; dificuldade em transportar sacos de compras mais pesados; dificuldade em colocar a roupa na máquina por ter de permanecer baixada; .
- Vida afetiva, social e familiar: praticava ginásio cerca de 3 a 4 vezes por semana, refere ter tentado a retoma ao ginásio após ter terminado a fisioterapia, frequentando mais a hidroginástica, no entanto depois surgiu a pandemia COVID-19 e seguidamente as questões monetárias fizeram-lhe abandonar esta prática; esporadicamente fazia trilhos com grupos de amigos e abandonou devido às queixas álgicas ao nível do tornozelo e joelho; .
- Vida profissional ou de formação: escolaridade: 12° ano completo, no ramo de administração; previamente ao acidente desempenhava tarefas de administrativa numa Empresa de Produtos para Padaria e Pastelaria, desde há cerca de 2 anos; após o acidente esteve de baixa médica até abril de 2020, pensão provisória até setembro de 2020 e seguidamente foi-lhe atribuída uma "pensão de invalidez relativa" a partir de 03-04-2021, explicando que terá sido observada em junta médica na Segurança Social. Refere que não retomou a atividade profissional porque foi entretanto despedida (não tinha contrato efetivo) e por não se sentir capaz de exercer a mesma profissão a tempo inteiro, devido às dificuldades na concentração e perda de memória "dizem-me que eu faço uma pergunta, respondem-me, daí a 5 min sou capaz de fazer a mesma pergunta". Refere ter vontade de ter uma atividade profissional, por se sentir de momento "uma inválida", explicando, no entanto, que ainda não procurou trabalho. .
168) Como sequelas das lesões sofridas, a A. apresenta:
- Crânio: na região parietal e temporal direitas, presença de uma cicatriz arcifonne com concavidade anterior, com 31 cm de comprimento, sem áreas de alopécia cicatricial associadas e que se encontra recoberta pelos fios de cabelo; .
- Face: na região frontal direita, anteriormente à linha de implantação capilar, presença de urna área cicatricial hipocrómica, de contornos irregulares, com 7 por 4 centímetros de maiores dimensões, que tapa com a franja do cabelo, sendo que quando está para trás se torna percetível a urna distância social (refere que lhe incomoda muito) .
- Pescoço: presença de várias áreas cicatriciais irregulares eucrómícas dispersas pela face posterior do pescoço, a maior das quais linear com 2,5 cm de comprimento, que ocupam urna área com 7 por 6 cm de maiores dimensões: mobilidade cervical conservada apesar de referida como dolorosa nos últimos graus do movimento:
- Ráquis: mobilidades conservadas;
- Membro superior direito: na face dorsal da articulação ínterfalangica proximal do 5° dedo, presença de uma cicatriz hipocrómica infracentimétrica: arcos de movimento do ombro conservados, sem dor referida à mobilização do mesmo; .
- Membro inferior direito: sem alterações da mobilidade ou dor referida à mobilização da articulação coxo-femoral, sem dor a palpação; na face anterior do joelho, presença de uma área cicatricial irregular hípocrómíca com 4 por 2,5 cm de maiores dimensões; defesa no movimento de inversão do tornozelo, mobilidades conservadas; articulação tíbiotásíca/ pé em posição de inversão, ligeira rigidez nos últimos arcos do movimento, referidos como dolorosos;
- Membro inferior esquerdo: na face medial da coxa, presença de tuna cicatriz hipocrômica linear com 3 cm de comprimento; na face anterior do joelho, presença de uma área cicatricial irregular hipocrórnica com 3,5 por 3 cm de maiores dimensões: na face anterolateral e lateral do terço superior da perna, presença de uma cicatriz linear curvilínea com concavidade posterior, e vestígios de pontos, com 11 cm de comprimento, visível a distância social; mobilidades do joelho conservadas mas referidas como dolorosas, testes Iigamentares e meniscais negativos, sem atrofias musculares: força muscular conservada
169) A Autora contava, à data do acidente de trânsito que deu origem à presente ação, trinta e quatro anos de idade, pois nasceu no dia ../../1982.
170) A Autora obteve a sua consolidação médico-legal, no dia 21 de dezembro de 2020.
171) O período de défice funcional temporário total é fixável em 239 dias.
172) O período de défice funcional temporário parcial é fixável em 1120 dias.
173) O período de repercussão temporária na atividade profissional total é fixável em 1359 dias.
174) O quantum doloris é fixável no grau 6/7.
175) O défice funcional permanente da integridade física e psíquica é fixável em 73 pontos.
176) As sequelas descritas são impeditivas do exercício da sua atividade profissional habitual, bem como de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional.
177) O dano estético permanente é fixável no grau 4/7.
178) A repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer é fixável no grau 2/7.
179) A repercussão permanente na atividade sexual é fixável no grau 4/7.
180) A A. vai necessitar, no futuro, de ajudas medicamentosas, tratamentos médicos regulares, nomeadamente de Medicina Física e de Reabilitação, ajudas técnicas, adaptação do domicílio e do veículo.
181) Na sua casa de banho, a A. terá de adquirir uma barra de apoio para duche, um assento para duche e um tapete antiderrapante, até realizar as obras de adaptação necessárias.
182) A Autora vai carecer, ao longo de toda a sua vida, de colocar palmilhas no calçado do pé direito, com apoio do arco interno.
183) A Autora vai carecer, ao longo de toda a sua vida, de próteses auditivas para o seu ouvido direito.
184) A Autora vai carecer, ao longo de toda a sua vida, de comprar máquina de lavar e secar roupa, limpa-vidros elétrico, com cabo extensível, robot aspirador, robot de cozinha multifunções (triturar, amassar, bater, liquidificar, ralar, picar, cozinhar).
185) A Autora, na altura da deflagração do acidente de trânsito que deu origem à presente ação, exercia a profissão de Assistente Administrativa, por conta da sociedade “EMP04..., LDA.”, com sede na Rua ..., 2ª Fase, Lote ...4, ... ..., concelho ....
186) A A. auferia o salário ilíquido de 840,00 €.
187) Até ao dia ../../2019, a Segurança Social Portuguesa pagou à Autora as quantias correspondentes ao subsídio de doença.
188) E a Ré Companhia de Seguros “EMP01..., S.A.”, com referência a essa data de ../../2019, pagou as respetivas diferenças salariais, à Autora.
189) A partir do dia 1 de abril de 2019, a Segurança Social Portuguesa continuou a pagar à Autora, as quantias relativas ao subsídio de doença, no valor de 570,30 €, por mês.
190) No dia 2 de abril de 2020, a Autora atingiu o período máximo de concessão de subsídio de doença.
191) Passou-lhe a ser concedida uma pensão provisória de invalidez, a partir de 3 de abril de 2020, no valor de 211,79 €.
192) A partir da data de ../../2019, a Ré Companhia de Seguros “EMP01..., S.A.” não pagou quaisquer quantias a título de diferenças salariais.
193) Até ../../2020, a A. recebeu da Segurança Social, a título de subsídio de doença e a título de pensão provisória de invalidez, a quantia total de 8.114,34 €.
194) Para a Ré, Companhia de Seguros “EMP01... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.”, estava transferida a responsabilidade civil por danos a terceiros do veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-HI, identificado nos autos como causador do acidente de trânsito que deu origem à presente ação, através de contrato, titulado pela apólice nº ...61, válido, eficaz e em vigor à data da deflagração do acidente.
195) A Ré já pagou à A., por conta da indemnização, a quantia de 50.000 €, em 12/02/2021.
2. Factos não provados:
Não resultaram provados quaisquer outros factos com interesse para a justa decisão da causa.
Nomeadamente, não resultaram provados os seguintes factos:
I. Antes da ocorrência do sinistro, a Autora desempenhava atividades domésticas, ao longo de um período de tempo de quatro horas por dia.
II. Cujo rendimento/valor não pode computar-se em menos de (5,00 €/hora x 4 horas = 20,00 €/dia x 30 dias) 600,00 €, por mês.
III. A Autora efetuou as seguintes despesas, ainda não reembolsadas pela Ré: consultas médicas e obtenção do Relatório médico junto aos autos 410,00 €; . deslocações múltiplas, relacionadas com o acidente, 250,00 €.
IV. A A. viu danificadas e inutilizadas as seguintes peças de vestuário e de calçado: 1 par de calças de licra, 2 camisolas, toda a roupa interior e 1 par de botas de cabedal, no valor de 145,00 €.
V. A Autora ajustou com a sua mãe pagar-lhe a quantia mensal de 600,00 €, pelo fornecimento de cama, alimentação, companhia e todos os serviços que esta lhe prestou durante o período de tempo em que permaneceu na sua casa.
IV- Fundamentação de Direito
Porque têm sido seguidos diversos critérios para determinar um valor indemnizatórios que abarque todos os danos, há que verificar, em primeiro lugar o critério utilizado na sentença e as razões de discordância apresentadas pelas partes quanto aos mesmos.
Desde que, seguindo critérios lógico-jurídicos coerentes, se atendam a todas as consequências originadas pelo evento lesivo e sejam contemplados todos os danos passíveis de indemnização, sem duplicação na sua valoração, é racionalmente admissível e de aceitar diferentes categorizações dos danos: estas classificações mais não são que instrumentos de trabalho, de cariz teórico, que auxiliam na fixação e atribuição da indemnização ou da compensação ao lesado em função das consequências nefastas delas.
Os conceitos de dano patrimonial e dano não patrimonial estavam, há muito, em termos mais ou menos estáveis, clarificados na jurisprudência e na doutrina. O dano patrimonial mede-se por uma diferença: a diferença entre a situação real atual do património do lesado e a situação hipotética em que ele se encontraria se não fosse o facto lesivo; dentro do dano patrimonial cabe, não só o dano emergente, ou perda patrimonial, como o lucro cessante ou lucro frustrado. A obrigação de indemnizar tem, neste tipo de dano, como fim essencial, nos termos do artigo 562º do Código Civil, a reconstituição da situação que existiria, se o facto não se tivesse verificado (princípio da reposição natural).
No entanto, há outros prejuízos (como as dores físicas, os desgostos morais, os vexames, a perda de prestígio ou de reputação, os complexos de ordem estética) que, sendo insuscetíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização. São os danos morais ou não patrimoniais. A gravidade destes mede-se por um padrão objetivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de fatores subjetivos. A sua gravidade aprecia-se em função da tutela do direito: o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado. A reparação destes danos obedecerá a juízos de equidade, como impõem os artigos 496º nº 4 e 494º do Código Civil.
-- o dano corporal e o dano material, o dano patrimonial e o dano não patrimonial, o dano biológico e a fixação da indemnização
Importa realçar o que se pretende alcançar no âmbito desta ação: encontrar os danos que a Autora sofreu por causa do acidente e atribuir-lhe uma indemnização justa e equilibrada pelas consequências que este teve na sua esfera jurídica, seja de natureza patrimonial, seja não patrimonial, sem desrespeito do principio da igualdade.
Existem, como é sabido, diversas formas de categorizar os danos de forma a encontrar-se de forma mais lógica e com base em critérios mais uniformes a indemnização adequada. Importante é que se sigam critérios lógico-jurídicos coerentes e se atendam a todas as consequências originadas pelo evento lesivo, de forma a que o lesado seja adequadamente compensado por todos os padecimentos que o direito entende terem importância e dignidade suficiente para obter ressarcimento, atenta a multiplicidade de vertentes em que se estende a vida humana.
O dano biológico, originado numa lesão corporal, traduz-se na afetação da capacidade funcional de uma pessoa, declarada pela atribuição de um determinado grau de incapacidade físico-psíquica.
A jurisprudência italiana, por força da limitação ao ressarcimento de danos não patrimoniais que encontrava naquele direito, criou a ideia de um terceiro tipo de dano, que não seria patrimonial, nem não patrimonial, onde incluiu o dano biológico, onde integrava a lesão da integridade psicofísica do sujeito.
Este conceito teve a virtualidade de abrir a jurisprudência portuguesa a um novo conceito de dano, realçando que não está apenas em causa a perda da capacidade de ganho, ou limitações a essa capacidade, mas todas as demais vertentes que a vida humana alcança através do corpo, na sua vertente pessoal, com ou sem repercussões patrimoniais (afetiva, familiar, social, cultural, recreativa, desportiva, intelectual, sexual, etc, ou, noutra perspetiva, dano de afirmação pessoal ou dano à vida de relação; dano estético; dano psíquico; dano sexual; dano à capacidade laboral genérica, onde se incluem, pela sua importância pessoal, e de não menor relevo, as tarefas de cariz puramente individual, de higiene e auto preservação, sem a quais a independência e liberdade do ser humano fica limitada), havendo que ter atenção as perdas acopladas a cada situação em que o lesado se vê portador de uma determinada incapacidade permanente, privado de um conjunto de funções que lograva desempenhar.
O conceito de dano biológico conduziu ao alargamento da compreensão do âmbito dos prejuízos efetivamente sofridos pelas vítimas de lesões no seu corpo e saúde passiveis de indemnização, mas estas consequências podem ter resposta adequada na estrutura tradicional de divisão dos danos em duas classes, a patrimonial e a não patrimonial, sem necessidade de ruturas nas categorizações já estabelecidas, as quais trazem complexidade ao sistema, abrem a porta à possibilidade de repetição de indemnização dos mesmos danos e dificultam a análise jurisprudencial por trazerem uma multiplicidade de critérios.
Têm sidos discutidos os raciocínios a utilizar para a fixação da indemnização da diminuição da capacidade funcional da pessoa originada nas lesões corporais que sofreu.
Uns entendem que deve fixar-se uma indemnização autónoma para este dano, sem recorrer á classificação danos patrimoniais e não patrimoniais, outros que estes devem ser considerados apenas como danos patrimoniais; outros que podem ser considerados, conforme os casos, no âmbito de um destes dois critérios; outros, ainda, que este pode determinar simultaneamente consequências patrimoniais e não patrimoniais.
Por nós, entendemos que o dano biológico não deve ser um terceiro género face á classificação dos danos como patrimoniais e não patrimoniais, mas uma outra categorização, fundada no facto que o origina e não nas suas consequências na esfera jurídica do lesado (patrimonial ou não patrimonial): opõe-se ao dano material, originado por estragos provocados em coisas.
Assim, também o dano biológico pode ter quer consequência patrimoniais, quer não patrimoniais: pode atingir imediata ou mediatamente o património do lesado, nomeadamente a sua capacidade de ganho ou laboral e bem assim, simultaneamente, a sua pessoa na esfera da sua vida pessoal, do seu bem-estar, nos seus direitos de personalidade, de conteúdo não diretamente patrimonial.
“Há que reconhecer que, no contexto da doutrina e da jurisprudência portuguesas, a adoção do dano biológico enquanto dano autónomo, não apenas não foi efetuada, como provavelmente não precisará de o ser. Em primeiro lugar porque não se procedeu à construção dogmática pela qual se faça equivaler, para efeitos indemnizatórios, o dano biológico, que é um dano-evento, aos danos-consequência que, estes sim, são ponderados no cálculo da indemnização pecuniária… Em segundo lugar porque, ainda que se pretendesse enveredar por essa via, os instrumentos técnico-jurídicos que em Itália conduziram às conclusões da sentença da Corte Costituzionale de 14 de Julho de 1986 não encontram equivalente no direito português... A título de exemplo, refira-se o Acórdão do STJ de 14/09/2010 (SOUSA LEITE)(44 ), no qual, sem qualquer referência a dano biológico, se têm em conta as seguintes modalidades de dano não patrimonial: dano estético, prejuízo de afirmação pessoal, prejuízo da saúde e da longevidade, pretium juventude e pretium doloris. Por outras palavras, a vantagem da introdução da concepção de dano biológico seria a de ampliar os componentes de dano real a ter em conta; para, num segundo plano, determinar, de forma mais justa, a indemnização devida pelo lesante, em regra quanto às consequências de natureza não patrimonial”, como reconhece Maria da Graça Trigo, concluindo de forma que temos por rigorosa: “O dano biológico, sendo um dano real ou dano-evento, não deve, em princípio, ser qualificado como dano patrimonial ou não patrimonial, mas antes como tendo consequências de um e/ou outro tipo; e também por isso, em nosso entender, o dano biológico não deve ser tido como um dano autónomo em relação à dicotomia danos patrimoniais/danos não patrimoniais” in “Adopção do Conceito de “Dano Biológico” pelo Direito Português”, na revista da Ordem dos Advogados pag. 22 (exposição esta citada pela Recorrente principal).
Assim, é sempre necessário ter em atenção as concretas consequências do acidente na vida pessoal e na esfera patrimonial do lesado.
Por fim, há que salientar que o princípio da igualdade justifica o estudo da jurisprudência nacional, a fim de encontrar uma bitola comum que não seja arbitrária.
A simples análise da jurisprudência demonstra que para efeito de determinação das consequências futuras do dano biológico (quer na vertente patrimonial, quer na não patrimonial), importam essencialmente as consequências das lesões na atividade desenvolvida pelo lesado, mais do que a consideração abstrata dos pontos atribuídos ao Défice Funcional Permanente da Integridade Física.
No que toca aos critérios jurisprudenciais, por outro lado, a diferente qualificação dos danos dificulta muitas vezes o apuramento de uma linha condutora; importante é, essencialmente, a final, tentar encontrar um valor equilibrado quanto ao montante global a atribuir (distribuído pelas várias parcelas).
Postas estas considerações teórico-práticas, desde logo resulta que não podemos seguir o primeiro entendimento expresso nas alegações do recurso principal: a Autora entende que o dano biológico, enquanto Tertium Genus, deve dar origem a rúbrica indemnizatória autónoma; nós entendemos que são as consequências nefastas desse dano no património e na qualidade de vida da Autora que devem ser indemnizadas.
Da perda da capacidade de ganho
Entende-se que as lesões corporais que se repercutem na saúde e capacidade pessoa têm consequências nefastas, em regra, quer no seu património, nomeadamente por diminuição da sua capacidade de trabalho (mais ou menos mediatamente) quando o lesado se dedicava ou podia dedicar a desenvolver atividade com vista a obter rendimentos, quer noutros bens e direitos, sem conteúdo imediatamente económico.
No que concerne á consideração deste dano na sua vertente patrimonial, se o dano na saúde do lesado atinge imediatamente o seu património, por diminuir ou impedir totalmente o rendimento proveniente do trabalho que o lesado realizava, é clara a ressarcibilidade deste prejuízo, de valor diretamente económico.
A questão é mais sensível quando não é tão direta essa repercussão no património.
A diminuição da capacidade de labor de uma pessoa no trabalho que exerce (e que é capaz de exercer), mesmo que só traduzida no consumo de maior esforço para resultado semelhante, tem necessariamente consequências patrimoniais, seja na possibilidade de vir a obter outras fontes de rendimento, na progressão na carreira, seja na reconversão profissional futura. Deve ser considerada indemnizável autonomamente a incapacidade permanente que exija esforços acrescidos no desempenho da atividade profissional habitual do lesado, visto que tal incapacidade implica um esforço acrescido, consumidor de recursos do lesado (finitos por natureza), que, não sendo esse esforço necessário, poderiam ser canalisados para atividade produtiva, simultânea ou subsequente.
Por outro lado, há que distinguir, aquando da fixação da indemnização, a gravidade dos casos em que o lesado fica impedido do exercício da atividade a que normalmente se dedicava (ou de outras a que se poderia dedicar), daqueles em que mantém tal capacidade, mas para a desenvolver tem que recorrer a esforços acrescidos.
Enfim, é em concreto, face à pessoa do lesado e ás consequências das lesões na sua concreta capacidade de ganho que a indemnização tem que ser apurada.
Assim, o recurso a fórmulas ou tabelas matemáticas, é apenas um auxiliar para encontrar a compensação adequada para o dano biológico, sempre sujeita a fatores de correção com base na equidade
As fórmulas ou tabelas terão em vista essencialmente o cálculo de indemnização devidas por incapacidades com repercussão/rebate, direto e proporcional, sobre a capacidade de ganho, mas nem sempre se encontra esta proporcionalidade direta entre a perda da capacidade biológica e a perda da capacidade de ganho.
Importa sempre, também, atender a valores jurisprudenciais que têm vindo a ser estabelecidos, com vista a uma uniformização de critérios, por imposição do princípio da igualdade e credibilização da aplicação da justiça, embora as especificidades de cada caso e a diferente categorização dos danos a que recorrem as decisões (ora só em sede patrimonial, ora também em sede não patrimonial, ora em ambas) possam não tornar fácil este desiderato. Embora estes sejam, evidentemente, representativos da gravidade da lesão, não terão necessariamente os mesmos efeitos danosos para diferentes pessoas, quer em termos profissionais, quer em termos pessoais.
Enfim, os critérios previstos no artigo 496º, n.º 3 do Código Civil, embora referentes ao dano não patrimonial, têm também aqui ampla aplicação, fixando-se esta indemnização por recurso à equidade, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º deste diploma, designadamente o grau de culpabilidade do agente, a situação económica do lesante e a do lesado.
A autora põe em causa o montante apurado para indemnizar a perda da capacidade de ganho, entendendo que o mesmo peca por reduzido: a sentença avaliou-o em 430 000,00 €, mas julga que o deveria ter fixado em 700 000,00 €.
Salienta que ocorreu uma interrupção do percurso profissional da Autora, que está reformada por invalidez e que se estivesse em condições de trabalhar e redefinir a sua carreira profissional e alterar a as suas perspetivas de vida, mas que este prejuízo não foi devidamente valorado na sentença. Defende a aplicação de uma majoração de 1,5, prevista na legislação dos acidentes de trabalho para os casos de incapacidade habitual, realçando que este critério é objetivo e tem consagração legal e que se não justifica a aplicação de fatores de penalização por antecipação do capital, (pelo menos em valor superior a 10%) atenta a inflação elevada e taxas de juros altas.
No entanto, não se lhe pode dar razão quanto à aplicação de uma taxa de bonificação, porquanto, como acabámos de explanar, os critérios a atender em sede laboral ou na presente jurisdição são muito dispares, não se podendo na presente matéria fazer um cálculo puramente aritmético.
A bonificação aludida na alínea a) do n.º 5 da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidente de Trabalho ou Doenças Profissionais aprovada pelo Decreto-lei n.º 352/2007, de 23 de outubro, que no rigor, se emprega no apuramento do coeficiente de incapacidade a atender e não ao valor indemnizatório apurado, não se aplica aos casos de acidente de viação, em que se fixa a indemnização pela perda de capacidade de ganho.
Ali a indemnização resulta exclusivamente da relação laboral, com critérios diferentes do que aqui se aplicam, visto que em sede de responsabilidade civil por atos ilícitos se consideram todos os danos causados ao lesado, nomeadamente considerando-se todo o tempo previsível de vida do lesado e não só a sua idade profissionalmente ativa.
A sentença recorreu a fórmulas matemáticas, diretamente considerando o tempo previsível de vida da Autora, o rendimento mensal da Autora e o défice de que ficou afetada.
Diga-se, desde já, que não há que apreciar da invocada errónea aplicação de fator de bonificação por antecipação do capital, a qual não se mostra aplicada.
Entende-se, no entanto, que o facto de as sequelas serem impeditivas do exercício da sua atividade profissional habitual, bem como de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional tem que ser valorado. Mais do que isso, há que considerar que as debilidades que a Autora apresenta dificultam sobremaneira o re-acesso à vida profissional, pelo que a consideração cega da sua limitação de 72 pontos no cálculo matemático do que previsivelmente perdeu na sua capacidade de ganho não contempla o efetivo peso que as suas lesões corporais lhe trouxeram nesse campo.
Entende-se pois adequado subir neste aspeto a indemnização para 530.000€.
Este valor tem correspondência no âmbito da jurisprudência em que se decidiu que “tendo o autor, com 58 anos de idade, à data do acidente, ficado totalmente incapaz para o seu trabalho habitual ou para qualquer outro, padecendo de um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 72 pontos e de uma taxa de incapacidade permanente global de 80% atribuída pelo Instituto de Segurança Social, considera-se adequada uma indemnização por danos patrimoniais futuros no valor de 165.000,00, para um salário mensal médio de 990 euros por mês, a receber durante 20 anos de esperança média de vida.”, como se decidiu no recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/04/2024, no processo nº 551/19.3T8AVR.P1.S1: apesar da diferença nos vencimentos, veja-se a disparidade na esperança de vida, que no presente caso é de 50 anos, não 20.
Dos danos de natureza não patrimonial
O artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil, que regula a fixação da indemnização quanto aos danos não patrimoniais no âmbito da responsabilidade por factos ilícitos prevê que se atendam àqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
Os danos como as dores físicas, os desgostos morais, os vexames, a perda de prestígio ou de reputação, os complexos de ordem estética que, sendo insuscetíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens que não integram o património do lesado (como a saúde, o bem-estar, a liberdade, a beleza, a perfeição física, a honra ou o bom nome), apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização.
São os danos morais ou não patrimoniais. A gravidade destes mede-se por um padrão objetivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de fatores subjetivos. A sua gravidade aprecia-se em função da tutela do direito: o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado.
Por último, a reparação destes danos obedecerá a juízos de equidade, avaliando as circunstâncias concretas de cada caso, como se depreende da remissão que aquela norma (no seu nº 4) faz para o artigo 494º do Código Civil. Atende-se, desde logo, à gravidade do dano (nomeadamente a natureza e numero de lesões sofridas, os tratamentos médicos suportados, os períodos de internamento ou imobilização, a natureza e extensão das sequelas consolidadas, o quantum doloris, o dano estético), e ainda, entre as “demais circunstâncias do caso”, ao grau de culpa do agente e à situação económica deste e a do lesado, tendo em vista a função reparadora da indemnização, em termos de proporcionar ao lesado uma quantia pecuniária que que permita saciar utilidades que extingam ou aplaquem o sofrimento causado pela lesão.
Importa ainda recorrer à jurisprudência, como meio auxiliar para a fixação da indemnização, buscando critérios e uniformização, dentro do possível, por respeito ao princípio da igualdade.
Afirma a Autora que a sentença não considerou todos os demais danos de natureza não patrimonial provenientes do seu dano corporal, mas padece de razão, visto que considerou a repercussão deste nas atividades que a Autora exercia, resumindo: “as lesões que se deixaram descritas, a dor física, a angústia, o transtorno, os tratamentos, a fisioterapia, os períodos de incapacidade e o défice funcional sofrido, demandam o seu ressarcimento no plano dos danos não patrimoniais” e por tudo fixando o valor em 200.000,00 €.
O sofrimento da Autora no presente caso é inimaginável: a Autora foi atropelada, sendo projetada e vindo a cair distância de 16,59 metros. Apresentou politraumatismos: traumatismo crânio-encefálico grave, traumatismos da coluna lombar, dorsal e cervical, traumatismo torácico, contusão da face, otorrogia bilateral, fratura dos ossos temporais direitos, com atingimento do canal auditivo, com hemotímpano e ar intercerebral, contusões hemorrágicas temporais esquerdas, contusões hemorráias temporais direitas, hematoma subdural direito, pequeno subdural esquerdo, fratura da apófise transversa direita de C3 e da pars articular, fratura da clavícula direita, fratura da omoplata direita, fratura da sétima costela direita, fratura da asa do ilíaco direito, fratura do prato tibial esquerdo, fratura do perónio esquerdo, fratura alinhada da asa do sacro direita, hematoma subdural à direita, contusões hemorrágicas, hematoma subdural do lado esquerdo, edema cerebral, fratura da coluna cervical, escoriações e hematomas espalhados pelo corpo todo.
Atento o rol de padecimentos, supra efetuado em sede de fixação da matéria de facto provada, salientam-se alguns dos mais relevantes, demonstrativos da especialidade deste caso: esteve entubada por várias vezes, com alimentação nasogastrica, foi sujeita a inúmeras intervenções cirúrgicas, com anestesia geral, a diversas partes do corpo (incluindo a região craniana, joelho esquerdo, ouvido direito), tendo que habitar durante 9 meses com os seus pais, ora acamada, ora em cadeira de rodas, ora com canadianas, teve crises diárias de tonturas e tendência para quedas, efetuou 310 sessões de fisioterapia, desde o dia 6 de Junho de 2017 ao dia 1 de Fevereiro de 2019. Tudo somado, foram 1120 dias de défice funcional temporário parcial, 239 dias de défice funcional temporário total, o quantum doloris foi fixado grau 6/7.
Em termos de sofrimentos futuros, decorrentes da lesão biológica e incapacidades de que passou a padecer, também muito há a realçar: o dano estético permanente com diversas cicatrizes, fixável no grau 4/7; sofreu um corte profundo na sua vida sexual, fixável no grau 4/7 e passou a estar impedida de muitas atividades do dia a dia, por dificuldades na locomoção por tempo superior a 20 minutos e em permanecer em determinadas posições, a que acresce a dificuldades na concentração e perda de memória.
Como é sabido, o princípio da igualdade implica que se busquem na jurisprudência casos semelhantes, a fim de se tentar uma mesma bitola que se aplique a todos os lesados. Na comparação há que ter em conta que há decisões que separam algumas vertentes não patrimoniais do dano biológico, entendendo este como um terceiro género e outras em que se entende não o fazer. Haverá, sempre, que adaptar a indemnização a cada caso concreto, em obediência à equidade.
De qualquer forma, olhando a jurisprudência em casos semelhantes, verificamos que a sentença não cometeu desvio na fixação desta indemnização por imoderação, seja por excesso, nem por carência.
Vejamos:
No acórdão de 04 de abril de 2024, no processo 347/21.2T8PNF.P1, a um lesado com 46 anos que sofreu um défice funcional permanente de 72 pontos, sofreu dores, com um quantum doloris de 7/7, um dano estético de 5/7, uma repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer fixada no grau 6/7 e a repercussão permanente na atividade sexual no grau 5/7, precisando para sempre da ajuda de uma terceira pessoa e sem mobilidade própria, amarrado a uma cadeira de rodas, fixou-se em 150.000, 00 € os danos não patrimoniais e em 150.000,00 € a indemnização pelo dano biológico na vertente não patrimonial; Veja-se, em contraposição com o nosso caso, a superior idade do lesado, implicando, em teoria, menor tempo de sofrimento (ou que gozou mais tempo com saúde), mas também que ficou com muito menor mobilidade que a Autora, dependente de terceiros, embora com semelhantes pontos percentuais na fixação da incapacidade;
No processo 551/19.3T8AVR.P1.S1, de 10 de abril de 2024, manteve-se (embora por força da dupla conforme) a indemnização a título de danos não patrimoniais no valor de € 200.000,00 fixada no Tribunal da Relação do Porto (que a reduzira de 240.000 € para esse montante) a um lesado de 58 anos de idade, padecendo de um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 72 pontos e de uma taxa de incapacidade permanente global de 80% atribuída pelo Instituto de Segurança Social e que também ficou a necessitar de auxílio de terceiro para quase todas as atividades da vida diária.
No processo 21244/17.0T8PRT.P1.S1, no acórdão de 06/02/2024, a um lesado de 23 anos que sofreu lesões físicas ás quais foi atribuída uma IPG de 61 pontos, com um grau de quantum doloris associado de 6 numa escala de 7, que viriam a demandar até à sua consolidação médico legal um período de cerca de dois anos e meio, atribuiu-se o valor de € 175.000,00 a título de danos não patrimoniais.
Entende-se, assim, adequado o valor encontrado, nem excessivo, nem a pecar por defeito.
V- Decisão
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a apelação principal e improcedente a apelação subordinada, e em consequência, mantendo-se todo o demais decidido, altera-se o valor da parcela indemnizatória fixada na sentença a título “de défice funcional permanente da integridade física e psíquica, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, a contar da citação até efetivo e integral pagamento” de 430.000,00 para 530.000,00 € (quinhentos e trinta mil euros), passando o valor global da condenação resultante da soma das diversas parcelas, com a dedução do já pago também efetuado na sentença, a ser de 686.345,78 € (seiscentos e oitenta e seis mil, trezentos e quarenta e cinco euros e setenta e oito cêntimos), que a Ré vai condenada a pagar.
Custas dos recursos por ambas as partes na proporção do decaimento.
Guimarães, 19-09-2024
Sandra Melo Paula Ribas Elisabete Coelho de Moura Alves