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MAIOR ACOMPANHADO
INTERESSE EM AGIR
AUTORIZAÇÃO JUDICIAL
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
INCAPACIDADE ACIDENTAL
Sumário
O direito à ação, com força constitucional, exige que se concedam os meios judiciais necessários para que as pessoas possam fazer valer os seus direitos e só quando esta defesa se mostra desnecessária, sem conteúdo prático, é que se deve julgar verificada a exceção da inutilidade da lide.
Texto Integral
Relatório
Apelantes e Autores: AA e ..., representados por BB Apelada e Ré:CC
Apelação em ação declarativa com processo comum I.- Relatório
Os Autores pediram, na sua petição inicial, que seja “declarada a anulação do contrato de compra e venda celebrado entre os Autores e a Ré, tendo por objeto o imóvel sito em ..., com fundamento, sucessivamente considerado, em incapacidade dos autores (artigo 154.º), incapacidade acidental (artigo 257.º), conflito de interesses (artigos 150.º e 261.º) e dolo (artigo 253.º), todos do Código Civil, que afetaram a vontade dos Autores. Subsidiariamente, pediram que o mesmo contrato seja declarado “anulável por existir reserva mental da Ré, nos termos e para os efeitos do artigo 244.º do código civil.”
Mais solicitaram o cancelamento do registo predial e o registo da presente ação junto da Conservatória do Registo Predial.
Alegaram em síntese, que a Ré e os Autores celebraram um contrato de compra e venda, pelo qual os segundos venderam à primeira, com reserva do usufruto, da sua casa de morada, em dia ../../2022. No entanto, por sentenças transitadas em julgado em 8 de abril de 2022 e em 17 de maio de 2023 foi determinado o acompanhamento do Autor e da Autora, tendo sido fixada a data a partir da qual as medidas de acompanhamento se tornaram convenientes: em 2019 e em 2011, respetivamente. À data do negócio, os autores já não tinham condições para compreender o contrato que estavam a fazer, muito menos para organizarem a realização de um negócio – compra e venda – pelo qual não obtiveram qualquer pagamento.
A filha dos Autores apenas teve conhecimento do que havia sucedido quanto, em janeiro de 2023, procurou identificar os bens dos pais e por isso pediu, nos processos de maior acompanhado, que a ré fosse afastada da sua condição de acompanhante, ao que a ré respondeu apresentando um pedido para que o ato fosse revogado.
Foi exigida autorização judicial para que a filha dos Autores, embora sua legal representante e ainda que com o objetivo de recuperar património dos seus pais, pudesse revogar tal ato.
As partes contratantes não tiveram qualquer intenção e/ou vontade de celebrar o aludido negócio, sendo vontade manifestada pela R. que o aludido negócio seja revogado e para tal contactaram dois notários, mas não foi possível esse desiderato, porque lhes foi exigida autorização judicial para que a filha dos autores, embora sua legal representante e ainda que com o objetivo de recuperar património dos seus pais, pudesse praticar tal ato notarial.
Citada a Ré, não deduziu contestação.
Os Autores foram notificados para se pronunciarem quanto à verificação da exceção dilatória a que alude a alínea d) do artigo do artigo 577º do Código de Processo Civil, por falta de autorização da representante para propor a presente ação, nos termos do artigo 1938º. nº 1, alínea e), do Código de Processo Civil e sobre a eventual verificação da exceção dilatória inominada de falta de interesse em agir.
Os autores responderam, salientando, em súmula, que o processo foi iniciado para evitar que corresse o prazo de um ano sobre a data da sua outorga, atento os prazos de caducidade e que esta possibilidade resulta da previsão da línea e), do número 1 do artigo 1938.º do Código Civil, pelo que tal previsão não é aplicável aos autos, devendo o processo prosseguir. A Autora não tem nenhuma garantia de que, voluntariamente, a ré se mantenha disponível para outorgar o ato de distrate e que a autora não pode deixar consolidar no ordenamento jurídico um negócio eivado dos graves vícios que foram descritos na petição inicial.
Foi proferida a decisão:
- quanto à legitimidade da Requerente, entendeu que estavam reunidas as condições para que fosse ordenada a suspensão da instância, até que fossem obtidas as autorizações de que dependem a instauração da presente ação, mas que se impunha aferir da eventual procedência de outras exceções dilatórias que tornariam tal suspensão inútil;
-- quanto à falta de interesse em agir, entendeu que o recurso à instância jurisdicional deve ser tido como último recurso, como mecanismo inevitável perante a impossibilidade de resolução do caso concreto por meio de instrumentos de natureza extrajudicial. Porque da relação material controvertida, tal como configurada pela A. e descrita no seu articulado inicial, não se extraem os elementos fácticos que permitam concluir por essa inevitabilidade, absolveu a Ré da instância pela verificação da exceção dilatória de falta de interesse em agir.
É desta decisão que os Autores apelam. Terminam as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
“i. Os recorrentes peticionam a declaração de anulação de um contrato de compra e venda que teve por objeto um imóvel e respetivo cancelamento do registo. ii. O pedido de anulação tem como fundamento a verificação de vícios na manifestação da vontade dos recorrentes. iii. Foi proferida sentença que julgou inexistir interesse em agir da parte dos recorrentes, absolvendo a recorrida da instância, tendo-se ainda pronunciado quanto à necessidade de a representante dos recorrentes obter autorização judicial para intentar o processo. iv. De acordo com a alegação dos recorrentes, o negócio celebrado em ../../2022, que se pretende por em causa, é anulável. v. Tendo em conta o tempo entretanto decorrido, parece aos recorrentes que o início do identificado processo sempre seria um dos casos que, claramente, caberia no âmbito da salvaguarda do artigo 1938.º, n.º 1, alínea e) do Código Civil. vi. O argumento da sentença recorrida é o de que não há litígio a resolver entre os recorrentes e a recorrida, não sendo por isso necessária a intervenção do tribunal. vii. É verdade que a recorrida, através do seu advogado, manifestou interesse em reverter o negócio, mas tal não se concretizou ainda, não podendo os recorrentes ficar na dependência da boa vontade de quem já os enganou. viii. O negócio cuja anulação se pediu não pode ser desfeito, revogado ou anulado apenas com base na não oposição da recorrida: é necessário que sejam praticados atos para esse efeito e, consequentemente, é fundamental que o registo predial a favor da recorrida seja cancelado. ix. É também verdade que a recorrida não apresentou contestação nos presentes autos: tal, no entanto, tem apenas os efeitos previstos no artigo 566.º do Código do Processo Civil, ou seja, os factos alegados pelo autor que sejam suscetíveis de confissão, consideram-se confessados. x. Ainda que não haja litígio entre as partes (se não há), os recorrentes não conseguem regularizar a situação da propriedade do imóvel que foi ilicitamente transmitido sem a intervenção do tribunal: daí advém a sua necessidade em iniciar e fazer seguir os presentes autos.” II- Objeto do recurso
O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Por outro lado, se se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação do pedido este tribunal deve conhecer do mesmo no acórdão em que revogar a decisão recorrida, se dispuser dos elementos necessários, nos termos do artigo 665º, nº 2, do Código de Processo Civil.
Destarte, face às conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a conhecer neste acórdão:
1- se se verifica a exceção dilatória inominada da falta de interesse em agir;
2- se a ação deve ser suspensa por falta de obtenção de autorização para a dedução da presente ação;
3- no caso de se entender negativamente, verificar se se verificam os pressupostos para a anulação do contrato.
III- Fundamentação de Facto
A matéria de facto para o conhecimento do mérito das questões adjetivas conhecidas na sentença é de natureza exclusiva processual e foi já relatada supra;
Quanto à matéria de facto invocada na petição inicial, atentos os documentos juntos e a revelia operante da ré, consideram-se provados os seguintes factos:
1. Os autores AA e DD são casados um com o outro no regime da comunhão geral de bens,
2. Por sentença transitada em julgado em 8 de abril de 2022, foi determinado o acompanhamento do autor AA, sendo fixada como data a partir da qual as medidas de acompanhamento se tornaram convenientes em 2019 e tendo a filha de ambos, sido designada como sua acompanhante, com poderes de representação geral.
3. Nessa sentença lavrou-se que o mesmo “6) não é autónomo para as atividades de vida instrumentais tais como cozinhar, gerir património e questões administrativas, fazer compras, seguir prescrições médicas, entre outros, pelo que necessita de supervisão permanente de terceira pessoa.”
4. Por sentença transitada em julgado em 17 de maio de 2023, foi determinado o acompanhamento da autora DD, sendo fixada como data a partir da qual as medidas de acompanhamento se tornaram convenientes a partir de 21 de maio de 2011, e tendo a filha de ambos, sido designada como sua acompanhante, com poderes de representação geral.
5. A residência habitual dos autores, até terem sido admitidos na residência sénior onde atualmente estão, era no imóvel sito na Estrada ..., ..., na freguesia ..., concelho ....
6. O imóvel é composto de ... com garagem e ... andar, sito em ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...67 da união de freguesias ... e ..., com o valor patrimonial de € 19.711,30, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...49.
7. O imóvel foi adquirido pelos autores, tendo depois, por eles, sido construído o imóvel, em 1990,
8. Os autores tinham a sua residência em ..., enquanto que a sua única filha tinha e tem residência em ..., no concelho ....
9. Em 2021 os sinais de desorientação dos Autores intensificaram-se, tendo sido encontrados sozinhos ou acompanhados um pelo outro, a circular pelas ruas da aldeia sem destino, por vezes não vestidos de acordo com as necessidades do clima.
10. Em 20 de maio de 2021, o Ministério Público veio propor ação especial de acompanhamento de maior relativamente a cada um dos ora autores em termos semelhantes uma à outra, alegando que os mesmos necessitavam de medidas de representação geral.
11. No âmbito dos referidos processos e para sua instrução, a ré foi ouvida como acompanhante: no dia 27 de outubro de 2021, nos processos em que eram beneficiários os autores, sendo que era sua vizinha.
12. A Ré tinha conhecimento que os Autores apresentavam dificuldades cognitivas e já não tinham capacidade para se reger autonomamente, necessitando de um acompanhante.
13. Apesar disso, subscreveu o documento escrito, datado de ../../2022, no qual consta como parte compradora, num contrato de compra e venda e os autores como vendedores, tendo ficado a constar que os Autores declararam vender à Ré o imóvel onde residiam pelo preço de € 17.247,39, dando os autores a quitação.
14. O contrato previa a constituição de usufruto vitalício a favor dos autores.
15. Foi lavrado termo de autenticação deste contrato por EE, Solicitador.
16. A filha dos autores apenas teve conhecimento do que havia sucedido quanto, em 6 janeiro de 2023, procurou identificar os bens dos pais.
17. Tendo pedido, nos processos de maior acompanhado, que a ré fosse afastada da condição de acompanhante dos seus pais, ora autores.
18. Em resposta a esse pedido, a ora ré veio dar conta de que (1) não tinha pago preço nenhum pela alegada compra do imóvel e (2) que “nunca quis realizar tal ato, foi o Sr. AA quem contratou o Sr. Solicitador e veio a sua casa para ela aceitar aquelas condições, para ele era uma forma de lhe agradecer o que ela tinha feito por eles ao longo dos anos” e requer a anulação do ato.
19. Por sugestão da ré, foram contactos dois notários para praticarem o ato que fosse suscetível.
20. Tal não foi possível de concretizar, tendo-se exigido autorização judicial para que a filha dos autores, embora sua legal representante e ainda que com o objetivo de recuperar património dos seus pais, pudesse praticar tal ato notarial.
21. Embora a autorização para a prática dos atos tenha sido solicitada em cada um dos processos de maior acompanhado dos autores – junta-se o documento 13 que aqui se tem por integral e fielmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos – tal autorização não foi ainda concedida.
22. Não foi permitido às partes que celebrassem um contrato de revogação do contrato sem prévia autorização do tribunal.
23. À data do negócio, os autores já não tinham condições para compreender o contrato que estavam a fazer, muito menos, para organizarem a realização de um negócio – compra e venda – mas sem que tal implicasse qualquer pagamento.
24. Antes dessa data já a Ré e demais vizinhos sabiam que os autores não se governavam sozinhos.
25. Os autores não tiveram a noção do contrato que celebraram nem tomaram nenhuma iniciativa para praticar esse ato.
26. A ré conhecia perfeitamente o estado de confusão em que os autores estavam e tratou de encontrar um solicitador disposto a deslocar-se a casa dos autores para deles obter uma assinatura num documento que estes não estavam em condições de compreender.
27. A Ré não tinha, ela própria, vontade de celebrar o negócio; a ré não pretendeu declarar que comprava o imóvel identificado nos autos, nem pagou nada por ele.
IV- Fundamentação de Direito
.1- Da exceção dilatória inominada da falta de interesse em agir
O interesse em agir está ligado à utilidade prática que emana do recurso aos meios jurisdicionais e é a questão central nestes autos.
O interesse em agir traduz-se na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a ação e constitui um pressuposto processual inominado. A sua ausência conduz à absolvição da instância, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 493º, nº 2, e 288º, nº 1, alínea e), ambos do Código de Processo Civil.
O autor tem interesse processual, quando a situação de carência, em que se encontre, necessite da intervenção dos tribunais.
Com este pressuposto visa-se exigir que o sistema de justiça seja utilizado de forma racional, imperando o princípio da economia processual, impedindo a utilização dos meios processuais sem que desta se possa obter qualquer utilidade prática. Limita o direito de ação às situações carecidas de tutela jurisdicional, para garantir a eficácia e o prestígio dos tribunais.
No entanto, há que ter em conta o direito fundamental do acesso ao direito e à justiça, que pode ser posto em causa quando se nega ao Autor a dedução da ação.
Assim, há que procurar sempre uma solução equilibrada, por proporcional e adequada, que não vede o acesso necessário ou útil nem permita o acesso supérfluo e inútil.
Só quando a lide não tenha qualquer consequência prático-jurídico favorável para o Autor ou para o direito ou interesse que se pretendeu tutelar é que se deve impedir o titular do direito de o exercer, mormente quando se fala de um direito potestativo.
Há que distinguir as situações em que a parte pretende exercer um direito potestativo daquelas em que a mesma pretende apenas a simples declaração da existência ou inexistência dum direito ou dum facto. Quanto a este segundo caso tem-se entendido que não basta qualquer situação subjetiva de dúvida ou incerteza acerca da existência do direito ou do facto, para que haja interesse processual na ação. Em consequência, «só quando a situação de incerteza, contra a qual o autor pretende reagir através da ação de simples apreciação, reunir os dois requisitos postos em destaque – a objectividade, de um lado; a gravidade, do outro – se pode afirmar que há interesse processual» (in Manual de Processo Civil”, 2ª edição, Coimbra, 1985, p. 187)
Por isso, o Supremo Tribunal de Justiça concluiu já que “Não se justifica a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, quando aquela tem utilidade ainda que mínima” (cfr acórdão de 05/08/2013, no processo 813/09.8YXLSB.S1).
Seguimos Antunes Varela (obra cit., p. 179 e ss) com uma perspetiva generosa deste pressuposto, quanto à “necessidade de tutela judiciária”: “relativamente ao autor, tem-se entendido que a necessidade de recorrer às vias judiciais, como substractum do interesse processual, não tem de ser uma necessidade absoluta, a única ou a última via aberta para a realização da pretensão formulada. Mas também não bastará para o efeito a necessidade de satisfazer um mero capricho (de vindicta sobre o réu) ou o puro interesse subjectivo (moral, científico ou académico) de obter um pronunciamento judicial. O interesse processual constitui um requisito a meio termo entre os dois tipos de situações. Exige-se, por força dele, uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a ação – mas não mais do que isso».
Esta apreciação não é feita com base em critérios subjetivos, mas de forma objetiva, verificando se a demanda se mostra necessária e de utilidade para a tutela das pretensões formuladas.
Importa sempre atentar que não é possível coartar o direito que as pessoas têm a obter a tutela jurídica dos seus interesses relevantes, visto que o direito à ação tem, além do mais, cobertura constitucional e é um direito fundamental, havendo que verificar se a questão submetida à apreciação dos tribunais é séria e atual, por um lado, mas por outro que não pode ser o tribunal a coartar a autonomia dos sujeitos na escolha dos diversos tipos de ações e na conformação da sua pretensão.
São exemplos de escola, em que não se verifica este interesse, mas estes nada têm em comum com o presente caso: o pedido de condenação em obrigação periódica vincenda que nada faz presumir que não seja paga, a dedução de ação de condenação quando o autor já é portador de título executivo, a dedução de uma ação de simples apreciação sem que exista qualquer fundamento para que se possa presumir que o direito é posto em causa por alguém, nos casos em que este não precisa de ser declarado, nem está sujeito a prazos de caducidade.
Como se escreveu no acórdão proferido no processo nº 6141/15.2T8GMR.G1, de 06/29/2017: “O interesse em agir do autor, verificar-se-á quando a situação de carência em que se encontra necessite de intervenção dos tribunais, sendo que, a necessidade do autor recorrer á acção judicial não tem de ser absoluta, única para a realização do interesse que se pretende acautelar, mas também não pode estar em causa um interesse remoto, vago ou subjectivo (moral científico ou académico) de obter uma decisão judicial. II- O interesse processual terá de consistir num estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, por isso se tornando legítima a sua pretensão a conseguir, por via judiciária o bem que a ordem jurídica lhe reconhece.” Concretização
Nos presente autos os Autores, representados pela sua acompanhante, vêm pedir que seja retirada toda a eficácia ao contrato de compra e venda que apresentam, onde constam como partes vendedoras, alegando que a ré não pagou o preço, como ali declarado e ainda que embora sabedora da sua incapacidade para se determinarem, a Ré não se coibiu de o celebrar, em prejuízo daqueles.
Mais afirmam que quando foi confrontada a Ré acedeu em celebrar contrato revogando o ato, mas tal não foi possível por lhes ter sido exigida autorização para o efeito, que não lograram ainda obter.
Por fim, salientam que a ação de anulação está sujeita a prazos de caducidade e não podem ficar dependentes da vontade da Ré no âmbito de uma questão desta importância, sendo que não sabem se esta a mantém.
Cumpre apreciar.
Como vimos, o direito à ação, com força constitucional, exige que se concedam os meios judiciais necessários para que as pessoas possam fazer valer os seus direitos e só quando esta defesa se mostra desnecessária, sem conteúdo prático é que se deve julgar verificada a exceção da inutilidade da lide.
Nos casos em que as partes são titulares de um direito potestativo que querem exercer, consistente na anulação de um contrato, o sistema judicial deve conceder-lhe meios para o colocar em prática, sem que a pessoa dele titular seja obrigada a ficar dependente da boa vontade da contraparte em celebrar negócio desfazendo o anterior, mais a mais quando o primeiro que celebrou, com conhecimento, não foi lícito, por ter sido praticado com pessoas que sabia incapazes, prejudicando o seu património e ter faltado à verdade (não tendo pago o preço que declarou ter pago).
É certo que não se sabe em que circunstâncias tal pode ter ocorrido (se convencida pelos próprios incapazes, como a Ré afirmou no requerimento supra reproduzido) e que a mesma não contestou a ação, mas não se deve obrigar os autores, cujo património ficou diminuído de forma gravosa, mediante contrato que não tinham capacidade para celebrar, a escolher como meio para se defender a celebração de um contrato que fica dependente da boa vontade da Ré em aceder a dar sem efeito o anteriormente praticado.
De qualquer forma, a declaração de nulidade ou anulação de um contrato – tudo se passando como se o mesmo não tivesse existido, pode ter efeitos diferentes da revogação, que em regra não tem efeitos retroativos ou mesmo da resolução, que sofre restrições à equiparação, como decorre do disposto no artigo 433º do Código Civil.
Ora, no presente caso não é possível dizer que não há interesses opostos entre os Autores e a Ré, visto que vigora na ordem jurídica um contrato que beneficia a segunda em claro detrimento dos primeiros e que é anulável em beneficio destes.
O facto de a Ré ter pedido em sede de ação de acompanhamento de maior que o tribunal se pronuncie sobre matéria que escapa à matéria daqueles autos (a revogação de um concreto ato), sendo uma simples posição subjetiva, não permite que se impeça os beneficiários da nulidade ou da anulação de exercerem o seu direito de a verem declarada pelo competente meio processual.
Da mesma forma, o facto de a mesma não ter contestado apenas permite concluir que aceita a veracidade dos factos invocados, nada mais (sob pena de se entender, em todas as ações não contestadas, que se verificava a falta de litígio que exigia a absolvição da instância.)
Tudo visto, sabendo-se os efeitos que o simples registo predial tem no nosso direito decorrido determinado período, conclui-se que o prejuízo grave que os Autores estão a sofrer, com o registo de um contrato nulo e anulável relativo ao imóvel que foi a sua casa de morada de família, do qual ficaram despojados sem receber qualquer contrapartida, por não ter sido tida em conta a sua evidente incapacidade para o celebrar, há que concluir que os mesmos necessitam da tutela do seu direito de o expurgar da ordem jurídica, não podendo ficar na dependência da continuação da boa vontade da Ré.
Não é adequado nesta situação afirmar-se que os Autores não necessitam da tutela dos tribunais e desta concreta ação para exercer o seu direito, pelo que há que conclui pela verificação do pressuposto inominado relativo ao interesse em agir.
.2- da suspensão da ação por falta de obtenção de autorização para a sua dedução
Quanto ao âmbito e conteúdo do acompanhamento, dispõe o artigo 145.º do Código Civil, nos nºs 1, 4 e 5, que o acompanhamento se limita ao necessário e que quando seja determinada representação legal, esta segue o regime da tutela, com as adaptações necessárias, podendo o tribunal dispensar a constituição do conselho de família. Mais impõe que à administração total ou parcial de bens aplica-se, com as adaptações necessárias, o disposto nos artigos 1967.º e seguintes.
Assim, o exercício de poderes de representação legal convoca a aplicação do regime da tutela, o que significa que aos atos realizados pelo acompanhante se aplicam os artigos do Código Civil.
Quando lhe tenham sido atribuídos poderes gerais de representação legal, o acompanhante não pode realizar os atos prescritos no artigo 1937.º do Código Civil (entre os quais adquirir, diretamente ou por interposta pessoa, ainda que seja em hasta pública, bens ou direitos do acompanhado) e fica dependente de autorização ou confirmação (artigo 1941.º do Código Civil) quanto aos atos prescritos no artigo 1938.º do Código Civil.
A alínea e) do n.º 1 do art. 1938.º do Código Civil impõe a este representante a obtenção de autorização do tribunal para “intentar acções, salvas as destinadas à cobrança de prestações periódicas e aquelas cuja demora possa causar prejuízo”.
Este normativo não caracteriza este prejuízo como irreparável ou “dificilmente reparável,” à semelhança do que ocorre com outras normas, como as referentes aos procedimentos cautelares. No entanto, porque a demora uma ação trará em regra algum prejuízo o mesmo tem que ter densidade e seriedade, não se bastando com a mera manutenção da situação de indefinição.
Quando seja necessário pedir a aludida autorização do tribunal, haverá que lançar mão do processo de jurisdição voluntária previsto no art. 1014.º do Código de Processo Civil, sendo o pedido dependência/apenso do processo de acompanhamento de maior (cf. n.º 4 deste artigo, na redação introduzida pela Lei n.º 49/2018, de 14-08; cf. também o art. 2.º, n.º 2, parte final, do Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13-10).
Não obtida, quando necessária, tal autorização, verifica-se uma exceção dilatória – cf. art. 577.º, al. d), do Código de Processo Civil - sanável, conforme resulta do disposto nos art. 1940.º, n.º 3, do Código Civil e nos artigos 6.º e 29.º do Código de Processo Civil. (cf, neste sentido, acórdão de 03 de dezembro de 2020, no processo º 23/19.6T8MTA.L1-2, o qual também adotou uma posição menos restrita quanto ao prejuízo exigido no normativo que ora se discute).
No presente caso está em causa, o pedido de anulação de um ato, sujeito a prazos de caducidade, assim como de cancelamento de um registo de transmissão da propriedade, o qual, como é sabido, acaba no nosso direito poder ter efeitos substantivos.
Dúvidas não temos, pois, que a demora da presente ação pode causar prejuízo aos Autores.
Com efeito, a necessidade de obter prévia autorização do tribunal para intentar determinada ação visa obstar a que sejam deduzidas ações que não têm motivos sérios que as sustentem, visto que a sua demora não causa prejuízo ao representado, impondo ao representante uma câmara prévia pela qual tem que passar para os casos em que tal beneficio não é evidente. Tal não é obviamente o presente caso, em que é claro que a demora da ação vai consolidando os efeitos do contrato e do registo e que a sua demora pode pôr seriamente em causa os direitos dos Autores.
Desta forma, entendendo-se preenchido o disposto no artigo alínea e) do n.º 1 do artigo 1938.º do Código Civil, parte final, há que determinar o prosseguimento dos autos.
.3- do mérito da ação
No presente caso, vem provado que a Ré, que figura como compradora no contrato de compra e venda cuja nulidade se pretende seja declarada, tinha conhecimento que os Autores, que nele surgem como vendedores, nesse momento já apresentavam dificuldades cognitivas e já não tinham capacidade para se reger autonomamente, necessitando de um acompanhante e que estes não tiveram a noção do contrato que celebraram, nem tomaram nenhuma iniciativa para praticar esse ato.
Atento o pedido formulado, há que verificar se os mesmos se encontravam, à data, capazes para a prática do ato e todos os demais pressupostos que permitem a sua anulação com base em tal incapacidade, visto que então ainda não havia sido declarado o regime de acompanhamento de que vieram a beneficiar.
O artigo 154º do Código Civil estabelece que os atos praticados pelo maior acompanhado que não observem as medidas de acompanhamento decretadas ou a decretar são anuláveis: quando posteriores ao registo do acompanhamento ou, se mostrem prejudiciais ao acompanhado, quando praticados depois de anunciado o início do processo. Aos atos anteriores ao anúncio do início do processo aplica-se o regime da incapacidade acidental, explicita o nº 3.
Assim, atenta a data do contrato, anterior ao processo, há que aplicar o regime da incapacidade acidental, previsto no artigo 257º do Código Civil.
Este, sob a epígrafe “incapacidade acidental”, determina que: «1- A declaração negocial feita por quem, devido a qualquer causa, se encontrava acidentalmente incapacitado de entender o sentido dela ou não tinha o livre exercício da sua vontade é anulável, desde que o facto seja notório ou conhecido do declaratário», acrescentando o nº 2 que «o facto é notório, quando uma pessoa de normal diligência o teria podido notar».
“Daqui decorre que a anulação da declaração negocial por incapacidade acidental depende da verificação dos seguintes requisitos cumulativos: “a) Que o autor da declaração, no momento em que a fez, se encontrava, ou por anomalia psíquica (art.º 150.º), ou por qualquer outra causa (embriaguez, estado hipnótico, droga, etc.), em condições psíquicas tais que não lhe permitiam o entendimento do acto que praticou ou o livre exercício da sua vontade;
b) Que esse estado psíquico era notório ou conhecido do declaratário” cf acórdão do Supremo Tribunal de Justiça no processo de 06/04/2021, no processo n.º 2541/19.7T8STB.E1.S1.
A incapacidade acidental traduz-se na inaptidão para, no caso concreto, "entender ou querer" no instante em que manifestou a sua vontade.
Por outro lado, exige-se um requisito adicional para tutelar a confiança do declaratário e da segurança do comércio jurídico: a notoriedade ou o conhecimento da perturbação psíquica pelo declaratário.
Mercê da falta de contestação não há dúvidas que se provaram ambos os requisitos deste instituto: os autores sofriam de dificuldades cognitivas e não conseguiam reger autónoma e livremente as suas pessoas no momento da celebração do contrato de tal forma que autores não tiveram a noção do contrato que celebraram, nem tomaram nenhuma iniciativa para praticar esse ato e tal a Ré, à data do contrato, conhecia o estado mental dos Autores.
Há, pois, que ter por certo que contrato em questão é inválido e anulável, nos termos do artigo 257º do Código Civil, porque os autores estavam incapacitados de entender o que faziam, o que a Ré sabia.
Procede a pretensão dos Recorrentes, impondo-se a anulação do contrato e o cancelamento do respetivo registo.
V- Decisão
Por todo o exposto, julga-se totalmente procedente a apelação e em consequência revoga-se a decisão recorrida, e em sua substituição, declara-se a ação procedente e:
- anula-se o contrato de compra e venda datado de ../../2022 celebrado entre a Ré e os autores relativo ao imóvel composto de ... com garagem e ... andar, sito em ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...67 da união de freguesias ... e ..., com o valor patrimonial de € 19.711,30, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...49 e
- determina-se o cancelamento do respetivo registo predial, a que corresponde a apresentação nº ..., de 2022/09/23,
- bem como o registo da presente ação, com as necessárias diligências a efetuar na 1ª instância.
Custas da ação e do recurso pela Ré e Recorrida (artigo 535º nº 2 alínea a) do Código de Processo Civil a contrario sensu e 527º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil).
Guimarães, 19-09-2024
Sandra Melo Elisabete Coelho de Moura Alves José Manuel Flores