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ÁGUAS
DIREITO DE PROPRIEDADE
DIREITO DE PREFERÊNCIA
Sumário
I. A mera declaração, numa escritura pública de compra e venda de um prédio rústico, de que a esse prédio “pertence metade da nascente de água de uma mina existente” num outro prédio rústico, também propriedade dos vendedores, não determina a conclusão de que foi vendida a propriedade dessa água. II. Não sendo os autores/apelantes titulares de um direito de propriedade pleno sobre a metade dessa nascente, não reúnem os pressupostos básicos para o exercício do direito de preferência a que alude o artº 1410º do Código Civil.
Texto Integral
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães
I. Relatório (feito com base na sentença da 1ª instância).
AA e mulher, BB, residentes na Rua ..., ..., intentaram a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum, no Juízo de Competência Genérica de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, contra CC e marido DD, residentes na Rua ..., ... e EE e mulher, FF, residentes na Rua ..., em ..., pedindo a condenação destes a reconhecer os autores como donos e legítimos proprietários do prédio identificado no artigo 1.º da p.i; reconhecer que enquanto proprietários do prédio rústico denominado “...”, são comproprietários, na proporção de metade, da água que brota da nascente existente na “...” e, nesta qualidade assiste-lhes o direito de preferência na aquisição da parte da água da referida nascente que os 1.ºs réus venderam ao 2.º réu, através de contrato de compra e venda, titulado por escritura pública outorgada no dia 15.10.2015, tendo o direito a substituir-se ao 2.º réu, na compra da água sobrante da nascente da mina existente no prédio rústico “...”, pelo preço que o tribunal determinar, seguindo juízos de equidade; sejam os réus condenados a permitir que os autores a expensas suas constituam no prédio rústico, “...”, uma servidão de aqueduto, em tubo PVC subterrâneo com o diâmetro suficiente para conduzir a água que lhe pertencer, desde a boca da mina até ao caminho público a sul, numa extensão de cerca de 80 metros.
Subsidiariamente, para o caso de se entender não assistir aos autores o invocado direito de preferência, devem os 1.ºs e 2.ºs réus ser condenados a proceder à divisão do caudal de água que brota da nascente da mina, localizada na “...” a efectuar em conformidade com o respectivo título; a conjuntamente com o autor executarem junto à boca da mina, as obras que se tornarem necessárias para efectuar a pretendida divisão de águas, sob a orientação de um perito, na proporção de metade, uma vez que lhe pertence metade da água e metade para os réus; a permitir que os autores a expensas suas constituam na “...” uma servidão de aqueduto em tubo de PVC subterrâneo com o diâmetro suficiente para conduzir a água que lhe pertencer, desde a boca da mina até ao caminho público a sul, numa extensão de cerca de 80 metros.
Alegaram para o efeito que através de escritura pública outorgada em 05 de Agosto de 2011, adquiriram aos 1.ºs réus, o prédio rústico denominado “...”, sito no lugar ..., freguesia ..., ..., pelo preço real de 14.000,00€ e não 7.000,00€, como declarado, o qual foi integralmente pago, através de cheque entregue à 1.ª ré. Nessa escritura ficou a constar que ao prédio rústico denominado “...”, pertence metade da nascente de água de uma mina existente num prédio rústico que também é propriedade dos 1.ºs réus, denominado “...”.
Mais alegaram que o agora denominado ..., fez parte integrante do prédio “...” e só se tornou um prédio autónomo quando foi separado fisicamente pela abertura da EM ...28, nos anos 90. Enquanto fez parte integrante da “...” e o demais terreno junto à casa de habitação da 1.ª ré, sempre foi irrigado com a água proveniente da nascente existente na ... e por incúria da 1.ª ré, deixou de ser irrigado.
Alegaram ainda que o reconhecimento por parte dos 1.ºs réus do direito à parte da água da nascente da mina localizada na ..., foi condição imposta pelo autor para celebrar o contrato de compra e venda, pois, caso assim não fosse, não compraria o terreno, condição com a qual os 1.ºs réus concordaram.
Invocaram ainda que em finais de Novembro de 2015 tiveram conhecimento que os 1.ºs réus venderam aos 2.ºs réus, por escritura pública outorgada em 15.10.2015, pelo preço global de 15.000,00€, 2/3 indivisos da “...” e o prédio rústico “Quinta ...”. Nessa escritura as vendedoras declararam que no prédio “...” existe uma nascente de água já explorada e conduzida para a habitação das vendedoras, reservando estas a referida água para si, única e exclusivamente para uso doméstico, ficando as sobras a pertencer na íntegra ao comprador que a poderá aproveitar junto à nascente do prédio.
Deste modo, enquanto proprietários do prédio rústico “...” e comproprietários da água proveniente da nascente da mina existente na “...” assiste-lhes o direito de preferir na água que as 1.ªs rés venderam aos 2.ºs réus.
Regularmente citados os réus apresentaram contestação.
Os réus, CC e marido e GG invocaram que no contrato de compra e venda celebrado com os autores, estes compraram única e exclusivamente o prédio rústico “...”.
Pese embora na escritura de compra e venda conste “que a este prédio pertence metade da nascente de água de uma mina situada no prédio pertença dos primeiros outorgantes denominado ..., inscrito na matriz sob o artigo ...76 da citada freguesia ...” (sic), tal declaração não configura, nem pode configurar, nenhuma disposição ou alienação de uma água ou de parte de uma nascente de água, uma vez a transmissão do direito de propriedade ou a constituição de uma servidão sobre metade da nascente de água de uma mina situada na ... só ocorreria se essa água fosse objecto do negócio outorgado entre os autores e os 1ºs réus, o que não sucedeu.
Alegam ainda que a 1ª ré não teve consciência, ou sequer conhecimento, da declaração inserta na escritura de compra e venda da ... relativa à água da ... ou a qualquer água.
Mais alegaram que a ... nunca utilizou ou beneficiou da água ou de parte da água da nascente da ..., aproveitando antes, de forma exclusiva, a água do Campo ..., represada nas ... e de .... Desde tempos que escapam à memória dos vivos, junto à estrema ..., prédio rústico que compõe a Quinta ..., hoje propriedade dos 2ºs réus, e situado a cerca de 300m a Norte da ..., existem duas Poças conhecidas por ... e por ..., construídas pelos antigos proprietários dos terrenos inferiores no intuito de nelas represarem as águas nascidas nesse prédio de molde a conduzi-las depois para os seus prédios situados a nível inferior e com o objectivo de os irrigar.
A partir dessas poças e respeitando a orientação Norte-Sul, rasgaram os antigos um rego em terra batida e colocaram um tudo subterrâneo através do qual fluíam as águas aí represadas com destino aos vários prédios que por elas passaram a ser irrigados. Assim, respeitando os usos e costumes e as regras da divisão por dias e horas estabelecidas pelos quatro consortes e proprietários dos terrenos inferiores, sempre a ... aproveitou a dita água das ... e de ..., de forma exclusiva.
Sucede que, sobretudo nos últimos 15 anos, os consortes das águas das ... e de ... foram sucessivamente descuidando a limpeza e conservação das poças e do rego atrás referidos e com a abertura da EM ...28, a ... ficou a uma cota superior, facto que provocou o recuo da água das poças do Campo .... Uma vez diminuída a capacidade das ... e de ... e agravada a dificuldade de condução das suas águas para a ..., a anterior proprietária e mãe das 1ªs rés, em meados dos anos 90, deixou de aproveitar tal água para irrigar o seu prédio.
Após o contrato celebrado no dia 5 de Agosto de 2011 continuaram os 1ºs réus a ser os únicos e exclusivos proprietários de tal prédio e da água que nele nasce, fruindo do direito ao seu uso pleno e sem qualquer limitação, só deixando de o ser quando celebraram o contrato de compra e venda com os 2ºs Réus.
Já os 2.ºs réus alegaram que não se mostram verificados os pressupostos para o exercício do direito de preferência dos autores, pois que a água não foi autonomizada do prédio “...”, nem registada pelos transmitentes nem sobre ela se constituiu descrição autónoma, pelo que a declaração ínsita na escritura pública que titulou a compra e venda da ..., não tem, nem teve a virtualidade de transmitir aos autores um direito sobre a água.
Alegaram ainda que na escritura outorgada em 15 de Outubro de 2015, os primeiros réus transmitiram aos 2.ºs as sobras da água da nascente sita na ..., o qual só existe se o proprietário da nascente não quiser utilizar a totalidade da água.
Os autores exerceram o contraditório quanto à matéria de excepção deduzida nas contestações, pugnado pela sua improcedência e concluindo como na p.i.
Foi proferido despacho saneador, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo: “VI. DECISÃO Pelo exposto, e decidindo: Julgo a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência: 1) Condeno os Réus a reconhecer os autores AA e esposa, BB como donos e legítimos proprietários do prédio rústico, denominado “...”, situado no lugar ..., freguesia ..., concelho ..., a confrontar do norte com a Estrada Municipal ...28, do sul e nascente com HH e do poente com o mesmo HH e caminho público, inscrito na matriz respectiva sob o art.º ...79º, ao tempo, omisso na Conservatória do Registo Predial, actualmente descrito sob o n.º ...98, condenando os réus 2) No mais, absolvo os réus do restante peticionado. 3) Custas pelos autores –art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC. 4) Custas do incidente de litigância de má-fé, que se fixam em 1 (uma) UC para autores e 1.ºs RR – art. 527.º do CPC e art. 7.º do RCP. Registe e notifique.”
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Inconformados com esta decisão, os autores, dela interpuseram recurso, na sequência do qual veio a ser proferido acórdão, por este Tribunal da Relação, que anulou a sentença recorrida tendo em vista a ampliação da matéria de facto, bem como o esclarecimento de uma contradição.
Realizado novo julgamento, veio a ser proferida nova sentença, com o seguinte dispositivo: “VI. DECISÃO Pelo exposto, e decidindo: Julgo a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência: 1) Condeno os Réus a reconhecer os autores AA e esposa, BB como donos e legítimos proprietários do prédio rústico, denominado “...”, situado no lugar ..., freguesia ..., concelho ..., a confrontar do norte com a Estrada Municipal ...28, do sul e nascente com HH e do poente com o mesmo HH e caminho público, inscrito na matriz respectiva sob o art.º ...79º, ao tempo, omisso na Conservatória do Registo Predial, actualmente descrito sob o n.º ...98, condenando os réus 2) No mais, absolvo os réus do restante peticionado. 3) Custas pelos autores –art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC. 4) Custas do incidente de litigância de má-fé, que se fixam em 1 (uma) UC para autores e 1.ºs RR – art. 527.º do CPC e art. 7.º do RCP. Registe e notifique.”
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Novamente irresignados, apelaram os autores, terminando com as seguintes conclusões (que se transcrevem): CONCLUSÕES 1º- Contrariamente ao consignado na douta sentença, a declaração constante da escritura pública, referida em 1 dos factos provados, na qual as 1ºs Rés declararam, expressamente, que ao prédio rústico denominado “ ...”, que venderam ao Autor marido ( aqui recorrente) pertence metade da nascente de água de uma mina existente num prédio rústico que também era, como é, propriedade dos 1ºs Réus, denominado “ ...”, situado no Lugar do mesmo nome, teve a virtualidade de transmitir aos AA., ora apelantes, e naquela escritura pública de compra e venda compradores, um direito real pleno ( direito de propriedade) que teve por objecto a referida água. II- As 1ºs Rés ao declararem que ao referido prédio rústico denominado “ ...”, que venderam ao apelante marido, pertence metade da nascente de água da mina existente no prédio rústico, também delas propriedade, denominado “ ..., reconheceram que tal caudal de água é parte componente da “...”. III- O objecto do aludido contrato de compra e venda integra expressamente tal caudal de água, pelo que, por efeito do contrato, transmitiu-se para os apelantes, como alías ficou provado na parte “ factos provados”, ponto 7, por efeito do contrato e da vontade manifestada e provada em sede de discussão e julgamento, o direito de propriedade, foi transmitido aos Autores, ora apelantes. IV- Mas ainda que possa não ser considerado, por via daquela declaração, foi constituído um direito real pleno sobre o caudal de água a favor dos ora apleantes, na qualidade de titulares do direito de propriedade plena que incide sobre o aludido prédio rústico denominado “ ...”. V- As 1ºs Rés, apeladas, por via daquele reconhecimento confessaram não serem titulares de tal caudal de água, reconhecendo a propriedade do mesmo aos ora apelantes, na qualidade de proprietários da “ ...” pelo que carece de sentido que, por via da douta sentença, tal caudal permanecesse, ou permaneça, na titularidade das 1ºs Rés apeladas e que, posteriormente, por via da escritura pública o pudessem transmitir a terceiros. VI- No uso do mesmo critério de aplicação e interpretação da lei, de que o Tribunal se serviu, também os 2ºs RR., não são titulares de qualquer direito de propriedade sobre qualquer caudal de água, uma vez que, na escritura de compra e venda celebrada em 15 de Outubro de 2015, entre as 1ºs Rés e o recorrido EE se usa a expressão “ficando as sobras a pertencer na integra ao comprador, que as poderá aproveitar junta à nascente do prédio”. VII- Da aplicação e interpretação pelo Tribunal “a quo”, do direito aplicável, resulta que os compradores, como é da experiência comum, fiquem gravemente prejudicados patrimonialmente porquanto, no preço peço, se inclui, de acordo com o critério do homem médio, e tal como se deu como provado em sede de sentença, o preço da água, in casu, pertencente à “...”. VIII- Não podem pois, restar quaisquer dúvidas de que o direito de propriedade à aludida água, por via da supracitada escritura pública de compra e venda, pertence à “ ...”, encontrando-se compreendido acto de alienação deste prédio, alieanação essa que ocorreu por via de contrato de compra e venda, reduzido a escritura pública. IX- Tanto mais que se no caso de alienação de um prédio que tem direito a águas que brotam noutro prédio, tal direito ficará a pertencer ao adquirente ( ainda que no título de venda não se faça referência à agua).- como ensina Guilherme Moreira- por maioria de razão tal pertença, se deverá encontrar compreendida no acto de alienação, quando, expressamente, as partes intervenientes no contrato de compra e venda, expressis verbis, o reconheçam. X- Ainda que porventura, se considere que, através da outorga da dita escritura pública, não foi transmitido para os ora apelantes o direito de propriedade que incide sobre o caudal de água referido na declaração efectuada pelos 1ºs Rés na dita escritura pública de compra e venda celebrada no ano de 2011, com o apelante marido, sempre teria ocorrido, por via de tal declaração, a constituição de um direito real de servidão de uso sobre o dito caudal de que os ora apelantes de afirmam comproprietários. XI- Consequentemente, mesmo que a declaração dos referidos vendedores constituísse, por razões formais, acto nulo ou anulável, para efeitos de transmissão para os apelantes do direito de propriedade sobre o referido caudal de água, sempre, por efeito do disposto no artigo 293º do Código Civil, deveria tal negócio converter-se no negócio do tipo e com o mesmo conteúdo- compra e venda-, porquanto, contém os requisitos essências de substância e de forma, visto o fim prosseguido pelas partes, permitir supor que elas o teriam querido, se tivessem previsto a ilegalidade. XII- Com a devida vénia, o Tribunal “ a quo” deveria ter aplicado a situação, sub judice, o disposto nos artigos 369º,nº1, 371º,nº1, 372º, 393º, nº1 e 2º, 394º,nº1, 408º, nº1, 882º, 875º, nº2, 1316º, 1389º, 1390º, todos do Código Civil, que a douta sentença violou e que, no entender dos ora apelantes, se devidamente aplicados e interpretados conduziram, como deverão conduzir, à procedência da acção e dos pedidos nela formulados, quer a título principal, quer a título subsidiário. XIV- Sendo este, no entendimento dos recorrentes, o sentido com que tais normas deveriam ter sido aplicadas e interpretadas. Consequentemente, deve a douta sentença ser revogada e substituída por douto Acordão que reconheça aos ora apelantes o direito de propriedade plena sobre o supracitado caudal de água, que constitui parte componente, acessória ou integrante da “...”, ou que a favor dos mesmos foi constituído um direito real de uso ( servidão) sobre o caudal de água referido no ponto 7 dos factos provados, declarando-se a integral procedência da acção e dos pedidos nela formulados, quer a título principal, quer a título subsidiário, condenando-se os RR, nos pedidos formulados, a título principal, ou se assim não for entendido, a título subsidiário. ASSIM VEXAS. DECIDINDO, COMO DE HÁBITO, SE FARÁ BOA E SÃ JUSTIÇA.”
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Os primeiros réus apresentaram contra-alegações, terminando as mesmas com as seguintes conclusões, que se transcrevem: “CONCLUSÕES: I – Analisada a prova produzida nos autos e o julgamento da matéria de facto, afirma-se liminarmente que não existe qualquer erro na aplicação e interpretação das normas que fundamentam a decisão do Tribunal a quo; II – Contrariamente ao alegado pelos Recorrentes, a douta decisão recorrida faz uma correcta aplicação do direito ao caso sub judicie, não tendo violado – antes respeitado pontualmente – as disposições legais indicadas pelos Recorrentes; III – Desde logo, arvoram os Recorrentes que, através da escritura de compra e venda que outorgaram em 2011, os ora Recorridos lhes transferiram o direito de propriedade sobre o dito caudal de água por este ser parte componente, acessória ou integrante da “...” ou, se assim se não entender, constituíram um direito real de uso do mesmo caudal a favor do prédio denominado “...”; IV – Trata-se, contudo, de questões – a aquisição do direito de propriedade plena sobre o referido caudal de água por este ser parte integrante da “...” e/ou a constituição de um direito real de uso do mesmo caudal a favor da “...” – que não foram articuladas ou suscitadas na primeira instância e, não o tendo sido, sempre serão questões novas nesta instância de recurso; V – Assim, não podendo o tribunal de recurso conhecer de questões não invocadas nem decididas no tribunal recorrido, deve o presente recurso improceder com as legais consequências; VI – De toda a forma e quando assim não se entenda, a declaração inserta no contrato de compra e venda da ... (“A este prédio pertence metade da nascente de água de uma mina situada no prédio pertença dos primeiros outorgantes denominado ..., inscrito na matriz sob o artigo ...76 da citada freguesia ...”) não tem a virtualidade de transmitir aos ora Recorrentes qualquer direito real (pleno ou limitado) sobre a referida água; VII – Do contrato de compra e venda realizado no dia 5 de agosto de 2011 resulta, única e exclusivamente, a aquisição do prédio rústico “...”, VIII – Uma vez que os Recorrentes não são comproprietários da água da “...”, não lhes assiste o exercício do direito de preferência na alegada aquisição de parte da água aos 2ºs Réus; IX – Sucede que sempre soçobrará o exercício do invocado direito de preferência por parte dos Recorrentes: primeiro porque ficou provado que toda a água da ... está canalizada e é aproveitada pelos ora Recorridos; segundo, porque no contrato celebrado entre os 1ºs e 2ºs Réus não foi vendida qualquer água; X – É ainda certo que a água da “...” não faz (nem nunca fez) parte deste imóvel; parte integrante dum prédio é “toda a coisa móvel ligada materialmente ao prédio com carácter de permanência” (art. 204º, nº 3 do CCiv.); XI – Sendo a água da “...” um bem imóvel e, como tal, suscetível de um direito real distinto do direito de propriedade sobre o prédio onde nasce, a sua alienação ou a constituição sobre ele de uma servidão a favor do prédio adquirido pelos Recorrentes, sempre obrigaria à constituição de um direito real sujeito a escritura pública e registo, facto que não ocorreu; XII – Assim, o direito a uma água nascida em prédio alheio tanto pode constituir um direito de propriedade, como um mero direito de servidão (art. 1.390º nº 1 do CCiv.); XIII – No caso em apreço, não foi alegado nem ficou provado que os Recorrentes tenham adquirido um qualquer direito real, pleno ou restrito, sobre a dita água da ...; XIV – Quando a situação se coloque em termos de propriedade, conforme os Recorrentes invocam, então estar-se-á perante um direito pleno e, em princípio, ilimitado sobre tal água, que envolve a possibilidade do mais amplo aproveitamento de todas as utilidades que a mesma possa prestar, independentemente do fim a que se destine; XV – Nesse caso, se os Recorrentes tivessem adquirido um direito de propriedade sobre a dita água, o que não se concebe nem concede, não careciam de estabelecer qualquer nexo ou relação de ónus/benefício entre os prédios ..., onde a referida água nasce, e ...; XVI – E caso se tratasse de um mero direito de servidão, então os Recorrentes, enquanto titulares do respetivo direito, apenas teriam a possibilidade de efetuar o tipo de aproveitamento da água previsto no título constitutivo e na estrita medida das necessidades do prédio dominante; XVII – De qualquer forma, dado que os apelantes não deduziram qualquer pedido subsidiário, prevenindo a eventual improcedência da sua pretensão em termos de direito de propriedade e salvaguardando, dessa forma, o provável reconhecimento de um direito de servidão sobre a dita água, o único desfecho possível para a presente ação, atento o disposto no art. 609º do CPCiv., é a sua total improcedência. Nestes termos, deve negar-se provimento ao presente recurso, mantendo-se a douta sentença recorrida. Assim decidindo, far-se-á a esperada JUSTIÇA!”.
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Os segundos réus também apresentaram contra-alegações, terminando as mesmas com as seguintes conclusões, que se transcrevem: “Conclusões 1ª Resulta da matéria de facto a inexistência de sobras de água da nascente sita na .... Logo, não foi vendida qualquer porção de água aos segundos réus. Não tendo havido venda de água aos segundos réus não se coloca sequer a possibilidade de exercício do direito de preferência por parte dos primeiros réus, sejam eles comproprietários ou não de metade da água da nascente. 2ª Perante as declarações exaradas nas escrituras aludidas nos autos facilmente se intui que nem aos apelantes foi transmitido qualquer direito real (pleno ou limitado; de propriedade plena ou de servidão) nem aos segundos réus “foi vendido” qualquer direito de propriedade sobre a água que nasce no prédio (...). 3ª Os apelantes não adquiriram qualquer direito real sobre metade da água pela simples razão de que a água não nasce no prédio rústico que adquiriu (...); Só no caso de a água brotar na ... é que era admissível a construção jurídica feita pelos recorrentes considerando a água parte componente. 4ª Nos termos do disposto no artº 204º, nº3 do CCivil, “É parte integrante toda a coisa móvel ligada materialmente ao prédio com carácter de permanência”. O nº 1 alínea b) do mesmo artigo e diploma estabelece que “ são coisas imóveis: as águas”. Logo, sendo as águas classificadas como coisas imóveis jamais poderiam considerar-se parte integrante de um prédio. 5ª Antes da celebração do negócio entre as primeiras rés e os apelantes não existiam quaisquer relações jurídicas que relacionassem a ... e a água da .... 6ª A eventual existência de quaisquer direitos reais limitados, de servidão, por exemplo, a onerar a água da ... seria uma impossibilidade jurídica porque a noção legal de servidão – artigo 1543º do CCivil – estabelece uma relação benefício/encargo entre prédios pertencentes a donos diferentes. 7ª Se os apelantes não são titulares de um direito de propriedade pleno sobre a metade da nascente de água da ... não reúnem os pressupostos básicos para o exercício do direito de preferência a que alude o artº 1410º do CCivil. 8ª Não sendo os recorrentes proprietários de qualquer porção de água da ... não lhes assiste o direito de exigir a divisão da água. 9ª Os segundos réus também não são titulares de qualquer direito real sobre a água da nascente da .... 10ª A utilização das sobras, se elas existissem, das águas vertentes, sobejas ou supérfluas pelos prédios sitos a jusante da nascente não reveste a natureza de um direito real. Trata-se antes de uma mera faculdade ou poder legal exercido sobre as águas escoadas naturalmente dos prédios superiores. 11ª O uso das sobras de água configura um exercício com carácter precário, podendo sempre o dono da nascente dar-lhe novo uso ou aproveitá-la totalmente que esse comportamento não constitui violação de qualquer direito, como resulta da lei; se não há direito, jamais se poderá conceber a violação de um direito que não existe. 12ª Se não houve na venda firmada entre as primeiras rés e os segundos réus a transmissão de qualquer direito real sobre a água da nascente da ..., independentemente de os recorrentes serem ou não comproprietários dessa água, não há lugar ao exercício do direito de preferência sancionado no artº 1410º do CCivil. Termos em que, sempre com o douto suprimento de que de Vossas Excelências se espera, Ilustrados Desembargadores, deve ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se, na íntegra, a douta sentença recorrida assim se fazendo JUSTIÇA!”.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito devolutivo.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.
Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam, à apreciação deste Tribunal consistem em saber se:
1. os autores são comproprietários, na proporção de ½, da nascente da água, sita no prédio rústico denominado “...”;
2. pela escritura pública outorgada em 15.10.2015, os réus CC e marido DD e GG venderam aos réus EE e FF, além do mais, a água que brota da nascente existente no prédio rústico “...”.
3. em caso de resposta afirmativa às duas questões anteriores, saber se os autores/apelantes têm direito de preferência na aquisição das águas que brotam da nascente existente no prédio rústico “...”;
4. em caso de não existir direito de preferência, saber se os autores, enquanto comproprietários das referidas águas, têm direito ao solicitado no pedido subsidiário.
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III. Fundamentação de facto.
Os factos que foram dados como provados na sentença sob recurso são os seguintes: “Factos Provados: 1. Por contrato de compra e venda, titulado por escritura pública, outorgada no dia 05 de Agosto de 2011, no Cartório Notarial ..., sito na Rua ..., Edifício ..., ..., perante a respectiva Notária Licenciada II, o A. AA comprou aos 1ºs RR. CC, casada com DD, no regime de comunhão de adquiridos e GG, divorciada, o prédio rústico, denominado “...”, situado no lugar ..., freguesia ..., concelho ..., a confrontar do norte com a Estrada Municipal ...28, do sul e nascente com HH e do poente com o mesmo HH e caminho público, inscrito na matriz respectiva sob o art.º ...79º, ao tempo, omisso na Conservatória do Registo Predial, actualmente descrito sob o n.º ...98. 2. O prédio referido em 1) ficou a pertencer às 1ªs RR. mulheres por óbito da sua mãe, JJ, falecida no dia ../../2009, da qual, são as únicas e universais herdeiras, conforme consta da escritura de habilitação de herdeiros, outorgada no dia 14 de Setembro de 2009, no Cartório Notarial .... 3. No contrato de compra e venda referido em 1), a Ré CC outorgou por si e na qualidade de procuradora da sua irmã GG, munida de procuração com poderes especiais para o acto, a qual foi arquivada pela Sr.ª Notária. 4. O R. DD, marido da Ré CC, interveio no referido contrato de compra e venda para prestar o necessário consentimento para a validade do acto. 5. O preço real desta venda, acordado entre o A. AA e a Ré CC nas negociações prévias, não foi o declarado de 7.000,00 € (sete mil euros), mas sim, o preço de 14.000,00 € (catorze mil euros), o qual, foi integralmente pago pelo A. aos RR. no ato da celebração da escritura pública de compra e venda. 6. O A. AA emitiu e entregou à Ré, CC o cheque nº ...67, sacado sobre o Banco 1..., no montante de 14.000,00€ (catorze mil euros), que o recebeu e depositou na sua conta de depósitos aberta no Banco 2..., agência de .... 7. No mencionado contrato de compra e venda, as vendedoras e 1ªs RR. declararam, expressamente, que, ao prédio rústico denominado “ ...”, que venderam ao A., pertence metade da nascente de água de uma mina existente num prédio rústico, que também é propriedade dos 1ºs RR., denominado “...”, situado no lugar do mesmo nome, freguesia ..., concelho ..., inscrito na respectiva matriz rústica sob o artigo ...76º, ao tempo, omisso no Código do Registo Predial. 8. Por contrato de compra e venda titulado por escritura pública, outorgada no Cartório Notarial ..., no dia 15 de Outubro de 2015, pelo preço global de 15 000.00€ (quinze mil euros) as Rés CC, com o consentimento do R. marido e a irmã GG venderam ao 2º R. EE, NIF ...47, casado no regime de comunhão de adquiridos com FF, residente na Rua ...., em ..., os seguintes bens imóveis: a. - A) 2/3 indivisos do prédio rústico denominado “...”, pinhal, eucaliptal e mato, com a área de 11 600 m2, situado no lugar da ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz respectiva sob o art. ...76º, pelo valor atribuído de 4 000.00€ (quatro mil euros). b. Prédio rústico denominado “Quinta ...”, composto de pinhal, ..., mato e pastagem, sito no lugar ..., freguesia ..., concelho ..., com a área de 23 170 m2, inscrito na matriz respectiva sob o art. ...78º pelo valor atribuído de 11 000.00€ (onze mil euros) 9. Na escritura pública referida em 8) vendedoras CC e GG declararam que: “(…) Neste prédio (...), existe uma nascente de água já explorada e conduzida para a habitação das vendedoras, reservando estas a referida água para si, única e exclusivamente para uso doméstico, ficando as sobras a pertencer na íntegra ao comprador, que a poderá aproveitar junto à nascente do prédio. 10. Em 05/08/2011, toda a água da nascente sita no prédio rústico ... estava canalizada, em tubo de PVC, desde a nascente até ao prédio rústico, composto de casa de habitação e terreno, sito na Rua ..., da freguesia ..., pertença dos réus CC, DD e GG. 11. E aí era utilizada para consumo doméstico, lavagem de roupas e rego do logradouro anexo à habitação. 12. Com a escritura pública outorgada em 15/10/2015, os réus CC, DD e GG transmitiram aos réus EE e FF apenas as sobras da água da nascente sita no .... 13. Os 1.ºs réus não deram conhecimento aos autores do projecto da venda e demais cláusulas do contrato celebrado com os 2.ºs réus em 15.10.2015. 14. Bem como do preço que atribuíram à água.”.
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Foram dados como não provados os seguintes factos: “Não se provou que: a) O reconhecimento pelos réus CC, DD e GG, na escritura pública outorgada em 05/08/2011, no Cartório Notarial sito na Rua..., Edifício ..., ..., em ..., do direito a parte da água da nascente localizada no ... foi condição imposta pelo autor para celebrar o inerente negócio de compra e venda. b) O qual não aceitava, e muito menos o preço de €14.000,00, se assim não fosse. c) Os réus CC, DD e GG concordaram com essa condição. d) O prédio referido em 1) tem a área de 1.509,16 m2. e) A ré CC não teve consciência nem conhecimento da declaração inserta na escritura pública outorgada em 05/08/2011: «a este prédio pertence metade da nascente de água de uma mina situada no prédio pertença dos primeiros outorgantes denominado “...” (…)». f) Com tal declaração, pretenderam os autores e a ré CC referir-se apenas ao direito de aproveitar a metade da água a favor do prédio rústico denominado .... g) O prédio rústico denominado “...” sempre foi irrigado com a água proveniente da nascente existente no ..., sobrante da que era utilizada para consumo doméstico e lavagem de roupas. h) Até aos anos 90, o prédio rústico “...” fez parte integrante do prédio misto denominado “...”. i) Nas circunstâncias descritas em 10) uma parte da água era canalizada para a casa de habitação dos 1.ºs RR. j) A outra parte da água corria, sem ser aproveitada, no prédio rústico .... k) Em 15/10/2015, o réu EE sabia que os réus CC, DD e GG tinham transmitido aos autores metade da nascente de água da mina localizada no ... e tinha conhecimento dos termos em que foi concretizado o negócio efectuado através da escritura pública outorgada em 05/08/2011.”.
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IV. Reapreciação de direito.
Pretendem os autores/apelantes desde logo que, os réus sejam condenados a reconhecê-los como donos e legítimos proprietários do prédio rústico denominado “...”, e nessa medida, comproprietários, na proporção de metade, da água que brota da nascente existente na “...”:
Entendem também que, nesta qualidade, lhes assiste o direito de preferência na aquisição da parte da água da referida nascente que os 1.ºs réus venderam ao 2.º réu, através de contrato de compra e venda, titulado por escritura pública outorgada no dia 15.10.2015, tendo o direito a substituir-se ao 2.º réu, na compra da água sobrante da nascente da mina existente no prédio rústico “...”, pelo preço que o tribunal determinar, seguindo juízos de equidade.
O direito legal de preferência é «um direito real sobre um imóvel, em virtude do qual a pessoa em benefício de quem se dá tem a faculdade, em face do proprietário, de compra preferente, quer dizer, que, no caso de venda de imóvel a um terceiro, o titular pode fazer com que mediante uma declaração dirigida ao proprietário, este seja obrigado a transmitir-lhe o imóvel, ficando obrigado, por seu lado, o titular ao pagamento do preço convencionado com o terceiro» Vaz Serra, BMJ 76, pág. 245.
O direito legal de preferência existe antes de efectuada a alienação, radica-se no seu titular no momento desta e não é prejudicado por quaisquer ocorrências posteriores a ele – artigo 1410º, nº 2, do C.C ex vi art. 1380º nº 4, ambos do Código Civil.
Vem sendo o direito de preferência qualificado como um direito real de aquisição, um poder que se manifesta na faculdade de adquirir a coisa alienada, tanto por tanto, em caso de alienação a terceiro e de a exigir a quem quer que a tenha adquirido (sequela).
O exercício do direito de preferência, conduzindo à substituição ex tunc do adquirente pelo preferente, pressupõe a existência de um contrato de alienação válido.
Esse direito real de aquisição torna-se possível em consequência da violação pelo obrigado à preferência do vínculo obrigacional de oferecer a coisa ao beneficiário do direito preferente, dever de comunicação comum a todos os direitos legais de preferência – artigos 416º, nº 1, 1117º, nº 2, 1380º, nº 4, 1409º, nº 2, 1507º, nº 1, 1535º, nº 2 e 2130º todos do Código Civil.
Da natureza híbrida da relação legal de preferência resulta que o exercício desse direito por via de acção assenta num facto ilícito do obrigado – violação do dever de comunicação. Por isso, não só o preferente se pode substituir ao adquirente na titularidade da coisa, como o alienante violador do dever legal de informação pode ser compelido a indemnizar pelos prejuízos causados, quer o preferente, quer o adquirente, como decorre da aplicação do princípio da boa fé – artigos 227º e 762º do Código Civil.
O que se pretende com as chamadas acções reais de preferência é que o réu largue mão de determinado prédio e que o mesmo passe para o domínio do autor, sabendo-se que o reconhecimento através delas do direito de preferência tem efeito retroactivo ao momento da alienação, sendo o adquirente substituído pelo preferente com eficácia ex tunc. Por virtude do exercício do direito de preferência o nome do preferente substitui-se com todos os direitos referentes ao momento da transmissão, tudo se passando juridicamente como se por um erro de escrita o nome do adquirente tivesse de ser rectificado judicialmente. A alienação não é nula e, antes, produz todos os seus efeitos, operando-se apenas a substituição por outro de um dos sujeitos do contrato (Pinto Loureiro, Manual dos Direitos de Preferência, Volume 2, pág. 309).
Já no que diz respeito ao direito de propriedade sobre a água os Profs. Pires de Lima e A. Varela (in C. Civil Anotado) e relativamente ao art. 1390ºdo Código Civil, depois de afastarem a doutrina que o Prof. Guilherme Moreira havia sustentado no seu estudo sobre as Águas (II nº3) e que fez escola (no sentido de que o direito a uma água que nasce em prédio alheio é sempre um direito de propriedade e nunca o um direito de servidão - cfr. Prof. Pires de Lima, anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 24.05.1940 in RLJ ano 73º, pag. 300) consideram que “o direito à água que nasce em prédio alheio, conforme o título da sua aquisição, pode ser um direito ao uso pleno da água, sem qualquer limitação, e pode ser apenas o direito de a aproveitar noutro prédio, com as limitações inerentes, por conseguinte, às necessidades deste. No primeiro caso, a figura constituída é a da propriedade da água; no segundo, é a de servidão. A constituição dum direito de propriedade depende da existência de um título capaz de a transferir; a constituição de uma servidão da existência de um dos meios referidos no art. 1547: contrato, testamento, usucapião, destinação do pai de família, sentença e decisão administrativa”; acrescentando mais à frente que “foi esta a doutrina que acabou por ser legislativamente consagrada, ao prever-se expressamente a possibilidade de constituição de qualquer dos dois direitos na parte final do nº1”. (cfr. ob cit., vol. III pag. 276).
A respeito das águas das nascentes escreveu-se no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 12.07.2011, disponível in www.dgsi.pt, que não são estas res nullius se, emergindo à superfície das profundidades do solo, o proprietário do prédio delas se apodera quando assim brotam, como primeiro ocupante delas, beneficiando relativamente a elas como que do direito de preferência de primeiro ocupante.
Ao invés, as águas - e a respectiva nascente – são porções do solo de onde emergem, pars fundi, inserindo-se no direito de propriedade deste; logo, a propriedade do solo importa necessariamente a propriedade da nascente e das águas que nela surgem (cfr. Tavarela Lobo, Manuel de Direito de Águas, vol II p.8)
No mesmo aresto ainda se acrescenta que “o direito sobre as águas das fontes ou nascentes “está compreendido no direito de propriedade sobre o prédio, mas pode destacar-se deste, constituindo de per si objecto do direito de propriedade”, citando Guilherme Moreira, I, p. 501.
Assim, “enquanto não forem desintegradas da propriedade superficiária, por lei ou negócio jurídico, as águas são partes componentes dos respectivos prédios” e “quando desintegradas adquirem autonomia e são consideradas de per si imóveis” (cfr. Ac. do STJ de 31.05.2011 disponível in www.dgsi.pt).
A separação e desintegração das águas do domínio do prédio pode verificar-se na sequência de título de aquisição do direito à água (ou ao uso da água) a favor de terceiro, desde logo, porque o art. 1389º do Código Civil depois de reconhecer ao proprietário do prédio a faculdade de se servir da água de fonte ou nascente nela existente e dela dispor livremente, ressalva as restrições previstas na lei “e os direitos que terceiro haja adquirido ao uso da água por título justo” (cfr. neste sentido Ac. STJ de 21.06.2012, disponível in www.dgsi.pt., que temos vindo a seguir de perto, no que a esta matéria respeita).
E a respeito dos títulos de aquisição estatui o art. 1390º nº1 do Código Civil que “considera-se título justo de aquisição da água das fontes e nascentes conforme os casos, qualquer meio legítimo de adquirir a propriedade de coisas imóveis ou de constituir servidões.”
Ou seja: quanto aos meios de aquisição da propriedade das águas, a lei não se afastou dos princípios gerais que regem a aquisição de coisas imóveis, categoria em que as águas se integram, nos termos do artigo 204º, nº1, b) do Código Civil. Mas acrescenta aquele normativo que constitui título justo do uso e aproveitamento da água qualquer dos meios legítimos de constituição das servidões prediais, previstos no artigo 1547.º do Código Civil, consagrando-se, assim, por via legal, a possibilidade de constituição de servidão predial que tenha por objecto a água existente em prédio alheio.
Como bem se assinala no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.01.2010, “existe, porém, uma profunda diferença entre estes dois direitos, tanto no seu conteúdo como na sua dimensão ou extensão: no primeiro caso há um direito pleno e, em princípio, ilimitado, sobre a coisa, que envolve a possibilidade do mais amplo aproveitamento, ao serviço de qualquer fim, de todas as utilidades que a água possa prestar; o segundo apenas possibilita ao seu titular efectuar o tipo de aproveitamento da água previsto no título constitutivo e na estrita medida das necessidades do prédio dominante”.
No caso dos autos, como se disse já, pretendem os autores/apelantes desde logo que, os réus sejam condenados a reconhecê-los como donos e legítimos proprietários do prédio rústico denominado “...”, e nessa medida, comproprietários, na proporção de metade, da água que brota da nascente existente na “...”:
Entendem também que, nesta qualidade, lhes assiste o direito de preferência na aquisição da parte da água da referida nascente que os 1.ºs réus venderam ao 2.º réu, através de contrato de compra e venda, titulado por escritura pública outorgada no dia 15.10.2015, tendo o direito a substituir-se ao 2.º réu, na compra da água sobrante da nascente da mina existente no prédio rústico “...”, pelo preço que o tribunal determinar, seguindo juízos de equidade.
A questão de saber se os autores são ou não comproprietários da água que brota da nascente existente na “...”, é essencial para se apurar se existe para estes direito de preferência na venda celebrada entre os réus.
Pretendem os autores fazer valer o seu alegado direito de propriedade (compropriedade) sobre a água captada em prédio actualmente pertencente aos segundos réus, donde se lhes impor o ónus de alegação e prova dos respetivos factos constitutivos (cfr. art. 342.º n.º 1 do Código Civil).
Resulta do disposto pelos arts. 203º e 204 do Código Civil que as águas são coisas imóveis.
Estas poderão ser públicas ou particulares, sendo que estas últimas estão sujeitas ao regime previsto no art. 1385.º e segs do mesmo diploma legal.
No caso dos autos, porque nasce em prédio rústico particular (reconhecidamente pertencente aos segundos réus), a água de que aqui cuidamos é inquestionavelmente particular (cf. art. 1386.º, n.º 1, a) do Cód. Civil).
Embora à partida se considere que a água é parte integrante do prédio em que nasce, legitimando que o dono do prédio se sirva dela, no exercício do direito de propriedade, “salvas as restrições previstas na lei e os direitos que terceiro haja adquirido ao seu uso por título justo” (cf. art. 1389.º), a verdade é que nada impede que a mesma se possa destacar do prédio em que se insere, podendo ser objeto de aquisição como coisa autónoma.
De facto, a propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e não seja desintegrado do domínio, por lei ou negócio jurídico (art. 1344º nº1 do Código Civil).
Nesta medida, como se disse já, "enquanto não forem desintegradas da propriedade superficiária, por lei ou negócio jurídico, as águas são partes componentes dos respectivos prédios, tal como a terra, as pedras, etc. Quando desintegradas, adquirem autonomia e são consideradas, de per si, imóveis" (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed., pág. 196).
De acordo com o disposto pelo art. 1390º nº 1 do Código Civil, os títulos legítimos de aquisição da água das fontes e nascentes, conforme os casos é qualquer meio legítimo de adquirir a propriedade de coisas imóveis ou de constituir servidões. Contudo, nos termos dispostos pelo nº 2 do mesmo preceito legal, a usucapião, porém, só é atendida quando for acompanhada da construção de obras, visíveis e permanentes, no prédio onde exista a fonte ou nascente, que revelem a captação e a posse da água nesse prédio.
Por seu lado, dispõe o art. 1316º do Código Civil que os meios legítimos de aquisição do direito de propriedade são: o contrato; a sucessão por morte; a usucapião; a ocupação; a acessão e demais modos previstos na lei.
A aquisição por contrato, como forma de aquisição derivada e considerando que a água se trata de coisa imóvel, deve respeitar as exigências de forma, sendo necessário, para produzir efeitos relativamente a terceiros de boa fé, a sua inscrição no registo (cfr. art. 875º do Código Civil e arts. 2º nº 1 al. a), 5º nº 1 e 4 do C. R. Predial e Ac. do STJ de 26.05.2015, na CJ/STJ 2015-II-91).
Acresce que, se o direito alienado é um “direito de propriedade às águas de nascente”, na dúvida, deve entender-se que o caudal alienado é o caudal existente à data do negócio jurídico (cfr. Durval Ferreira, Águas Subterrâneas e de Nascentes, Almedina, pág. 46).
Contudo, como se afirmou já, este direito de propriedade das águas não se confunde com o direito de servidão das águas.
É que, para além da possibilidade de o proprietário do prédio alienar o seu direito de propriedade sobre as águas existentes no seu prédio, mantendo-se como proprietário do prédio, poderá constituir-se um direito de servidão ao uso da água a favor de um prédio pertencente a terceiro.
E enquanto que o direito de propriedade sobre a água significa que o seu titular a pode captar num prédio e dela dispor livremente, alienando-a ou usando-a sem subordinação ou vínculo a um prédio determinado, podendo “dispor delas livremente, neste ou naquele prédio, para qualquer fim, até industrial, pode aliená-las separadamente. Já o dono do prédio onde se situa a nascente não pode utilizar as águas desse prédio, não pode efectuar outra cessão etc. (como se as águas se separassem do solo e não mais lhe pertencessem)” (cf. Ac. TRG de 27.04.2017, disponível em www.dgsi.pt), pelo contrário, o direito de servidão de águas existe quando “o direito à água estiver limitado a determinado prédio ou prédios. (…) Neste caso, o proprietário do prédio dominante (do prédio que tem o direito de usar as águas), só no interesse exclusivo desse prédio poderá usar as águas, na satisfação das necessidades ou de certas necessidades desse mesmo prédio (…). Já o dono do prédio serviente (do prédio onde a água é captada) pode usar livremente a água do seu subsolo, com a condição de não prejudicar a servidão constituída, i. é, desde que não diminua o caudal da água afecta à servidão” (cfr. o já citado Ac. do TRG de 27.04.2017).
No caso dos autos, os autores/apelantes apenas invocam a escritura pública de compra e venda da “...”, no qual ficou a constar que “ao prédio rústico denominado “ ...”, que venderam ao A., pertence metade da nascente de água de uma mina existente num prédio rústico, que também é propriedade dos 1ºs RR., denominado “...”, situado no lugar do mesmo nome, freguesia ..., concelho ..., inscrito na respectiva matriz rústica sob o artigo ...76º, ao tempo, omisso no Código do Registo Predial.”.
Entendem os autores apelantes que, dessa declaração, resulta a venda de metade da água da referida nascente.
Não nos parece caber-lhes razão.
Com efeito, em momento algum da referida escritura de compra e venda da ..., declaram os réus vender aos autores a água em causa. Tendo o proprietário do prédio o direito de dispor das águas de natureza particular que nele existam, como sejam as águas que nascem nesse prédio, pretendendo vendê-las, tal deveria resultar de forma clara da escritura em causa, o que se não verifica.
Igualmente não indicam em momento algum o valor da referida água, que estaria a ser “vendida” aos autores.
A tal acresce que, o que foi afirmado na escritura é que metade da água pertence “ao prédio rústico denominado “...”, que venderam ao A.”, donde resulta que o eventual direito à água está limitado àqueleprédio, o que, como acima exposto, não é compatível com o direito de propriedade sobre a água.
Para além disso, não resulta igualmente que a água tenha sido autonomizada do prédio “...”, que tenha sido registada pelos transmitentes ou que sobre ela se constituiu descrição autónoma.
Entendemos assim que, da escritura celebrada, não resulta de forma alguma a transferência para os autores/apelantes do direito à propriedade de metade da água existente no prédio.
Ora, se os autores/apelantes não são titulares de um direito de propriedade pleno sobre a metade da nascente de água da ... não reúnem os pressupostos básicos para o exercício do direito de preferência a que alude o artº 1410º do Código Civil, conclusão que dispensa o conhecimento das restantes questões suscitadas, todas elas dependentes desta primeira questão.
Só uma achega final para dizer que, a agora invocada constituição de “um direito real de uso (servidão) sobre o caudal de água referido no ponto 7 dos factos provados”, constitui matéria nova, não invocada na acção, nem conhecida pelo Tribunal a quo, o que desde logo impediria este Tribunal de recurso de a conhecer. Para além disso, tal constituiria uma alteração do pedido e da causa de pedir (não admissíveis nesta fase processual), desde logo porque a invocação do direito de propriedade sobre a água que nasce em prédio alheio tem como pressuposto a sua desintegração da respectiva propriedade superficiária, sendo que no direito de servidão, a água continua a pertencer ao dono do prédio alheio onde nasce.
Improcede, pois, a apelação.
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Sumário (ao abrigo do disposto no art. 663º, n.º 7 do CPC):
I. A mera declaração, numa escritura pública de compra e venda de um prédio rústico, de que a esse prédio “pertence metade da nascente de água de uma mina existente” num outro prédio rústico, também propriedade dos vendedores, não determina a conclusão de que foi vendida a propriedade dessa água.
II. Não sendo os autores/apelantes titulares de um direito de propriedade pleno sobre a metade dessa nascente, não reúnem os pressupostos básicos para o exercício do direito de preferência a que alude o artº 1410º do Código Civil.
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VI. Decisão.
Perante o exposto, acorda este Colectivo da 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar a apelação totalmente improcedente, confirmando, em consequência, a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.