ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
CONCEITO
CONSEQUÊNCIAS
Sumário

I - A desconsideração de meios de prova com base em putativas regras da experiência que não o são, pois envolvem preconceções indemonstráveis, defluindo numa afirmada dúvida conducente à absolvição que é irrazoável, constitui, a nível procedimental, um erro na apreciação da prova.
II - A fundamentação da decisão de facto, com a ablação daquelas considerações insustentáveis, tornar-se-ia insuficiente para o sentido do decidido, o que, perante o estatuído no n.º 2 do art.º 374.º e 379.º, n.º 1, al. a) do C.P.P., acarretaria a nulidade da sentença e determinaria a prolação de nova decisão, expurgada do apontado vício.
III - Porém, a nulidade da sentença perde autonomia perante o vício mais amplo previsto no art.º 410.º, n.º 2, al. c) do C.P.P. e, sendo assim, por efeito do art.º 426.º do mesmo diploma legal e na impossibilidade de decisão da causa, impõe-se o reenvio para novo julgamento relativamente à totalidade do objeto do processo.

(da responsabilidade do Relator)

Texto Integral

Processo n.º 298/20.8GAILH.P1





Acordam em conferência na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto




I.
Nos autos de processo comum n.º 298/20.8GAILH, que correu termos no Juízo de Competência Genérica de Ílhavo – Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, por sentença de 11.12.2023 decidiu-se, além do mais:

(…)
1. Proceder à alteração da qualificação jurídica do crime de ameaça agravada imputado ao arguido, definindo a sua previsão legal como inserta nos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. c), ambos do Código Penal, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. l), do Código Penal e já não no artigo 348.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, e artigo 152.º, n.º 1, al. a) e 3, do Código da Estrada.
2. Absolver o arguido AA, em autoria material, da prática de um crime de desobediência, p. e p. pelos artigos 69.º, n.º 1, al, c) e 348.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, e artigo 152.º, n.º 1, al. a) e 3, do Código da Estrada.
3. Absolver o arguido AA, em autoria material, da prática de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. c), ambos do Código Penal, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. l), do Código Penal.
(…)

*

I.1
Inconformado, veio o Ministério Público interpor o recurso ora em apreciação (Ref.ª 15652776) referindo, em conclusões, o que a seguir se transcreve:
1/ Respeitante à matéria de facto, o presente recurso visa a sentença proferida nestes autos que absolveu o arguido da prática do crime de desobediência, p. e p. pelos artigos 69.º, n.º 1, al, c) e 348.º, n.º 1, al. b), ambos do Código Penal, e artigo 152.º, n.º 1, al. a) e 3, do Código da Estrada e do crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153.º e 155.º, n.º 1, al. a) do mesmo diploma legal, de que vinha acusado pelo Ministério Público.
2/ Ressalvando sempre melhor opinião, na sentença recorrida fez-se uma errada apreciação da prova produzida em audiência de julgamento, verificando-se os vícios de erro de julgamento e de erro notório na apreciação da prova, nos termos do artigo 412.º, n.ºs 2, al. c) e n.º 3 do Código de Processo Penal, com notória influência na aplicação do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
3/ Tal convicção terá resultado, essencialmente, de sérias dúvidas que se levantaram ao tribunal acerca da verificação dos factos constantes da acusação, em face da tese invocada pela defesa no sentido de que o militar autuante terá, aquando da sua abordagem ao arguido, de imediato o insultado, sem qualquer motivo e que foram adoptados procedimentos abusivos por parte da autoridade policial, incluindo a gravação de um vídeo, assim colocando em causa a credibilidade dos depoimentos prestados militares inquiridos,
4/ Sucede que tal tese da defesa advém do teor da queixa formulada pelo arguido contra os referidos militares e que deu lugar ao Inquérito n.º 301/20.1GAILH que correu termos na 1.ª secção do DIAP de Aveiro e no qual foi proferido despacho de arquivamento por falta de indiciação suficiente de que os factos aí denunciados ocorreram, após feita a necessária investigação sobre a factualidade reportada.
5/ Apesar de sobre tal decisão não ter recaído qualquer requerimento de abertura de instrução ou reclamação hierárquica, cristalizando-se os seus efeitos, a defesa tentou, nesta sede, mais uma vez, ressuscitar tal tese, com o fito – aliás, alcançado – de (re)criar um véu de suspeição
sobre os aludidos militares, denegrindo a sua actuação e desvirtuando o objecto do processo, afastando o tribunal do cerne da questão: se o arguido praticou ou não os crimes de que vem acusado.
6/ E em face da prova produzida, dúvidas não há que os praticou, porquanto as testemunhas militares inquiridas depuseram de forma objectiva, clara, consentânea e congruente, ao contrário da única testemunha presencial dos factos por banda da defesa, o irmão do arguido, BB, que prestou um depoimento totalmente inverosímil e descabido, sendo que o arguido nem sequer prestou declarações sobre os factos, optando por se remeter ao silêncio, e a sua filha, CC a nada assistiu de relevante no que concerne à prática dos factos suceptíveis de configurar a prática dos crimes em apreço.
7/ Destarte, a prova carreada pela defesa em nada abala os factos que resultam da demais prova produzida em audiência de julgamento que convergem no sentido de que os factos descritos na acusação sucederam.
8/ Divergindo da sentença recorrida, o facto de constar o militar DD como colega de patrulha do autuante não constitui uma disparidade que afecte a validade do ali noticiado na medida em que tal corresponde à realidade, uma vez que este iniciou o turno pelas 00:00 horas e foi quem afinal se deslocou ao local e acompanhou aquele em todos os procedimentos.
9/ De igual modo, a ausência da assinatura das testemunhas militares ou o motivo subjacente à não assinatura do expediente por parte do arguido, não afecta a idoneidade e autenticidade do documento em causa, tanto mais porque não há dúvida sobre os militares que comparecerem no local e da total falta de colaboração do arguido, que resulta do próprio teor do auto de notícia.
10/ Do depoimento do militar autuante EE resulta, de forma linear e muito clara, como os factos ocorreram: seguia sozinho na viatura policial quando deu ordem de paragem ao arguido ao avistar uma condução anómala por parte deste; solicitou-lhe os documentos e que efectuasse o teste qualitativo, o que o mesmo fez, acusando uma TAS 2,15 g/l; após este resultado e sabedor das consequências, o arguido logo tornou-se avesso a qualquer colaboração, recusando ser transportado ao posto para efectuar teste quantitativo, o que determinou que o senhor militar autuante, depois de o advertir que incorria na pratica de um crime de desobediência, lhe desse voz de detenção.
11/ E tanto assim foi que após a chegada de reforços, o arguido agravou ainda a sua conduta perante os demais militares, tendo de ser utilizadas manobras de extração para ser retirado do seu veículo, a cujo volante se agarrou afincadamente, após ter ludibriado o militar DD, dizendo-lhe que então iria ao posto mas que necessitava de fechar os vidros do seu
carro, aproveitando a anuência deste para tentar se colocar em fuga do local, arrancando com o veículo, apenas não o conseguindo mercê da actuação rápida deste militar que colocou o braço dentro de veículo e desligou a ignição, retirando a chave.
12/ Este comportamento é, por si, elucidativo da personalidade e do comportamento do
arguido, de total desconformidade com o dever ser jurídico-penal no seu todo, sendo também congruente com a elevada taxa de alcoolemia que possuía e que justificou a sua conduta de tentar evadir-se a qualquer fiscalização policial, tanto mais com antecedentes criminais que já contava, incluindo pela prática de crimes de condução de veículo em estado de embriaguez.
13/ Assim, os depoimentos dos militares EE e DD, porque presenciais e desinteressados, deveriam ter merecido toda a credibilidade do tribunal, porquanto, limitaram-se
a executar as suas funções com zelo, sendo de notar o cuidado da patrulha parar a casa do arguido, aproveitando que esta ficava em caminho, quando este já seguia detido, dando conta
aos familiares do que havia sucedido.
14/ Não era exigível que o militar autuante fotografasse o resultado do teste qualitativo de álcool uma vez que este não poderia adivinhar o comportamento totalmente anómalo do arguido que se sucederia, tendo feito, no entanto, o que lhe competia: chamou reforços após ter
dado voz de detenção ao arguido e ante a total falta de colaboração deste.
15/ O facto de este militar estar sozinho com o arguido aquando da sua abordagem não põe em crise o seu depoimento, na medida em que o por si relatado é crível, congruente e compaginável com as regras do normal acontecer, ao contrário do depoimento de BB, única testemunha presencial dos factos, arrolada pela defesa.
16/ Desde logo, é totalmente implausível e inverosímil que o militar autuante tenha intercetado o arguido e, do nada, sem qualquer motivo subjacente, lhe tivesse apodado de “malandro” e “porco”, solicitando de seguida, os seus documentos e que perante esta situação, este nada dissesse ou nem reagisse, como referiu a testemunha BB.
17/ Como igualmente não é crível que, estando o arguido a ser alvo de uma acção arbitrária e déspota por parte da autoridade policial, naqueles termos, com consequências eventualmente gravosas, este lhe tivesse pedido para ir embora e esta testemunha o acatasse relaxadamente, deixando-o ali sozinho, como fez, sem qualquer receio.
18/ Note-se que esta testemunha afirmou que quando o arguido foi interceptado ambos vinham de uma merenda, onde o arguido esteve a beber vinho tinto, até cerca das 23:00 horas, o que é compatível com a taxa de alcoolemia que acusou no teste qualitativo: 2,15g/l, assim se
justificando todas as manobras de recusa que utilizou para se furtar a uma efectiva fiscalização, enfatizando-se os antecedentes criminais com que já contava por crimes de condução de veículo em estado de embriaguez.
19/ Por fim se refira que o militar EE não conhecia sequer o arguido pois nunca o tinha visto, pelo que razão nenhuma teria para o abordar naqueles termos, o que foi corroborado por esta testemunha que relatou que nenhum dos intervenientes se conheciam.
20/ Destarte, o tribunal recorrido deveria ter conferido credibilidade ao depoimento dos militares inquiridos, por claros e consentâneos com as regras da experiência e do normal acontecer, com o teor do auto de notícia e demais prova documental; e não às declarações do
irmão e filha do arguido, por parciais e incongruentes, sendo que esta última nem sequer presenciou os factos em questão que se reconduzem ao objeto do processo.
21/ Não antevemos, pois, quaisquer incongruências capazes de abalar a solidez da prova
produzida, mormente a credibilidade das testemunhas inquiridas e que ora transcrevemos, quando manifestamente retrataram os factos de forma coerente e objectiva; outrossim, entendemos que todos os elementos de prova produzidos em audiência convergem entre si para evidenciar, sem qualquer dúvida, que os factos ocorreram e que a sua autoria pertence ao arguido.
22/ Pelo exposto, a decisão recorrida violou as normas dos artigos 410.º, n.º 2, al. c) e n.º 3 e 127.º do Código de Processo Penal, respectivamente, ao errada e notoriamente ter apreciado a prova produzida em julgamento, contrariando as regras da experiência comum e a normalidade do acontecer.
23/ Nestes termos deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, alterar-se a decisão recorrida em conformidade com o alegado, dando-se como provados todos os factos descritos na acusação e, em consequência, condenando o arguido pela prática do crimes de desobediência, p. e p. pelos artigos 69.º, n.º 1, al, c) e 348.º, n.º 1, al. b), ambos do Código Penal, e artigo 152.º, n.º 1, al. a) e 3, do Código da Estrada e do crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153.º e 155.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, de que foi acusado.
No entanto, Vossas Excelências, como sempre, doutamente decidirão, assim fazendo a costumada JUSTIÇA.
*
I.2
Admitido o recurso, por tempestivo e legal, o arguido apresentou articulado de resposta (Ref.ª 15844768), pugnando pela improcedência do recurso e a consequente preservação do decidido, referindo, em conclusão:

Tendo impugnado a decisão recorrida sobre a matéria de facto, o recorrente não deu cumprimento ao ónus de especificação dos concretos pontos de facto incorrectamente julgados e das concretas provas que impusessem decisão diversa, incumprindo o disposto no n.º3 do artigo 412º do CPP.

O tribunal recorrido fez uma correcta aplicação do princípio da livre apreciação da prova e do disposto no artigo 127º do CPP.

O auto de notícia não foi corroborado por nenhuma testemunha, inclusive pelo militar autuante.

Ainda que se considerassem provados os factos da acusação, o que não se admite, o arguido sempre deveria ser absolvido do único tipo de crime de que vinha acusado, de desobediência, previsto e punível pelo artigo 348º, n.º1, al. b), do Código Penal, por ilegitimidade da ordem.

A sentença recorrida não merece reparo, pelo que deve ser confirmada e integralmente mantido o seu teor.
Nestes termos e demais de direito que V. Exas. Doutamente suprirão, deve ser julgado improcedente, por não provado e falta de fundamentos legais, o recurso apresentado pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, mantendo-se a sentença recorrida, com o que será feita sã e integral JUSTIÇA!!
*
I.3
Neste Tribunal o Digno Procurador-Geral Adjunto teve vista nos autos, tendo emitido parecer (Ref.ª 17932184) no sentido do provimento do recurso, aderindo aos fundamentos expressos pelo recorrente em primeira instância.
*
I.4
Deu-se cumprimento ao disposto no art.º 417.º n.º 2 do C.P.P., não tendo sido exercido o contraditório.
*
II.
Questões a decidir:
Conforme jurisprudência recorrente e pacífica, o âmbito de qualquer recurso é delimitado pelas conclusões que sobrevêm às alegações do recorrente, sem prejuízo do conhecimento, ainda que oficioso, dos vícios da decisão a que se alude no n.º 2 do art.º 410.º do C.P.P. (cfr. art.ºs 119.º, n.º 1, 123.º, n.º 2 e 410.º, n.º 2, als. a) a c) do C.P.P. e Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, de 19.10).
No caso, vistas as conclusões apresentadas em sede recursória, constitui objeto do presente recurso apreciar:
a) Dos vícios da decisão
b) Do erro de julgamento
c) Do preenchimento dos elementos do tipo e da condenação do arguido.
*

III.

III.1
Da sentença recorrida
Por facilidade de exposição atente-se no teor da sentença alvo de impugnação, na parte relevante:
(…)

II – Fundamentação:
1. Fundamentação de facto:
1.1. Dos Factos Provados:
1. No dia 15 de novembro de 2020, cerca das 00h10m, o arguido AA conduzia o veículo de matrícula ..-SL-.., na Rua ..., em ..., quando foi intercetado pelo militar da Guarda Nacional Republicana EE.
2. Por razões que se não logrou apurar, o militar EE informou o arguido que o iria acompanhar até ao Posto Territorial ..., ao que aquele recusou, por razões que não se logrou apurar.
3. O militar EE solicitou, via telefone, reforços, tendo aí comparecido o militar DD e FF.
4. Após, decorrida ação que se não pôde deslindar, mas estando o arguido sentado no lugar do condutor, apesar das várias advertências que lhe foram dirigidas pelos senhores militares no sentido de sair da mesma.
5. Perante tal recusa, os senhores militares tiveram que recorrer à força para retirar o arguido do interior da viatura, enquanto este se mantinha agarrado ao volante da mesma.
6. E, depois de passarem pela sua casa, conduziram-no até ao Posto Territorial ..., e já no seu interior o arguido, exaltado e em voz elevada, vociferava dirigindo-se ao militar EE expressões cujo teor se não logrou apurar.
7. O arguido tem os seguintes antecedentes criminais:

- por sentença, datada de 02.06.2010, transitada em julgado a 14.02.2011, por factos praticados a 23.06.2007, o arguido foi condenado na pena única de 360 dias de multa, à razão diária de 6,00€, pela prática de dois crimes de ofenda à integridade física simples, um crime de detenção de arma proibida e de três crimes de ameaça;
- por sentença, datada de 21.07.2011, transitada em julgado a 30.09.2011, por fatos praticados a 21.07.2011, o arguido foi condenado na pena de 45 dias multa à taxa diária de 5,00€, e, bem assim, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de três meses, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez;
- por sentença, datada de 10.10.2017, transitada em julgado a 10.11.2017, por fatos praticados a 08.01.2017, o arguido foi condenado na pena de 90 dias multa à taxa diária de 5,00€, e, bem assim, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de seis meses, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez.
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1.2. Dos não Factos Provados:
Com relevância para a boa decisão da causa, não se demonstraram os seguintes factos:
A. Nas circunstâncias descritas em 1), uma patrulha da Guarda Nacional Republicana, composta pelos militares EE e DD, encontrava-se a desenvolver uma ação de fiscalização de trânsito na Rua ..., em ..., que se encontravam no exercício das suas funções de autoridade pública, devidamente uniformizados.
B. Durante essa ação de fiscalização, foi dada ordem de paragem ao arguido AA a quem foi solicitada a realização do teste qualitativo de pesquisa de álcool no ar expirado, através do aparelho Drager, o que aquele fez, tendo o resultado sido de 2,15 g/l de sangue.
C. Foi então solicitado ao arguido pelos senhores militares da GNR que os acompanhasse ao Posto Territorial ..., para aí efetuar o teste quantitativo de despistagem de álcool no sangue.
D. Nesse momento o arguido ficou nervoso e disse: “Não me fodam a vida! Eu sou amigo dos polícias de ...!”.
E. O arguido foi então advertido por um dos elementos policiais que a sua recusa em se submeter ao referido teste de pesquisa de álcool o faria incorrer na prática de um crime de desobediência, tendo em seguida o mesmo militar solicitado de novo ao arguido que os acompanhasse ao Posto.

F. O arguido recusou, novamente, submeter-se ao teste de pesquisa de álcool no sangue, através da análise do ar expirado, dizendo: “Façam o que quiserem, eu não saio daqui nem faço teste nenhum, levem-me preso se quiserem!”.
G. Perante nova recusa do arguido, foi-lhe dada voz de detenção.
H. O arguido persistiu na sua recusa em acompanhar os senhores militares durante cerca de uma hora, momento em que anuiu apenas solicitando que o deixassem ir junto do seu veículo para fechar os vidros e trancar o mesmo.
I. Em seguida, o arguido entrou na sua viatura, colocou a chave na ignição ligando-a e arrancou com a mesma, percorrendo cerca de cinco metros.
J. Ao aperceber-se de que o arguido pretendia abandonar o local apesar de anteriormente lhe ter sido dada voz de detenção, o senhor militar DD conseguiu alcançar a viatura por aquele tripulada e retirar a chave da ignição, desligando-a.
K. Já no interior da viatura policial, o arguido dirigiu ao militar EE a seguinte expressão: “Eu vou-te foder a vida e cortar-te o pescoço! Vou-te tirar essa farda!”.
L. O que repetiu no interior do Posto Territorial ....
M. No interior do Posto Territorial ..., o arguido continuou a dirigir ao militar EE, por diversas vezes, a expressão supra transcrita.
N. O arguido agiu com vontade de desobedecer à ordem de se submeter a exame de pesquisa de álcool no sangue, não obstante saber que as várias ordens que lhe foram dirigidas nesse sentido eram substancial e formalmente legítimas, tinha sido emanadas por autoridade competente e lhe foram regularmente comunicadas, uma vez que era o seu exclusivo destinatário, facto que não ignorava.
O. O arguido agiu, ainda, de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito conseguido de provocar, como provocou, medo e inquietação, ao militar EE, limitando, com essa sua atuação, a liberdade de determinação deste e, não obstante, manteve a sua conduta de molde a convencê-lo que era capaz de levar a cabo o propósito de o atingir na sua integridade física e/ou vida.
P. Agiu, pois, o arguido de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
*

1.3. Motivação da matéria de facto:
O Tribunal formou a sua convicção na análise crítica de toda a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e constante dos autos, quando concatenadas com as mais elementares regras da experiência e do normal suceder, salientando-se, desde já, que o arguido, lançando mão do direito adjetivo inserto no artigo 345.º, n.º 1, última parte do Código de Processo Penal, não quis prestar qualquer declarações, quer quanto aos factos quer quanto às condições pessoais, económicas, familiares e profissionais por si vivenciadas, o que, nunca o poderá desfavorecer, nem por si só favorecer.
É, pois, salvo o devido respeito na dicotómica relação entre o princípio do acusatório e o princípio da presunção de inocência que iremos percorrer o caminho do raciocínio probatório deste tribunal e que, em bloco, determinou a fixação da matéria de facto tal se julgou provada ou não provada, respetivamente.
Não olvidando que o arguido se remeteu ao silêncio, neste caminho – que, desde já, apelidamos de muito nubloso e tumultuoso –, foi relevante a análise do teor dos depoimentos das testemunhas EE (cuja razão de ciência se centrou na circunstância de ter sido o único militar da GNR que, nas circunstâncias descritas em 1), intercetou o veículo conduzido pelo arguido com o fito de o fiscalizar); de DD e FF (cuja razão de ciência se centrou na circunstância de serem os militares da GNR que, a solicitação da primeira testemunha, se deslocaram ao local para os auxiliar na ação em curso); da testemunha GG (cuja diminuta razão de ciência se centrou no pequeno contacto que, já no posto da GNR ..., teve com a situação que envolvia o arguido, avistando-o); de BB (cuja razão de ciência se centrou na circunstância de ser irmão do arguido e, outrossim, no momento descrito em 1., o acompanhar, tendo presenciado, nessa medida, parte da intervenção policial em discussão nestes autos, da qual o arguido foi objeto); de HH (cuja razão de ciência se centrou na circunstância de na qualidade de filha do arguido, e, à data dos factos, advogada em exercício de funções nesta comarca, se ter deslocado ao posto da GNR ... para assistir o seu pai, depois da sua mãe lhe ter ligado porque tinham estado à sua porta dois carros da GNR, que tinham o seu pai no interior), quando concatenada com as mais elementares regras da experiência e do normal suceder.
Ora, se calcorrearmos a prova que se produziu, num primeiro momento e sem grande esforço hermenêutico, verificamos que se perfilam duas versões sobre a descrição e o desenvolvimento da ação subjacente aos factos em presença, uma pro arguido e outra contra o arguido – apesar de, como é por demais, evidente desconhecermos a sua concreta versão – sendo que, numa terceira asserção, nenhuma delas decalca aquela que é a versão exposta e narrada no libelo acusatório.
Neste particular, corroborando a versão contra arguido e mais consentânea com os factos insertos na acusação pública, apresentam-se-nos os depoimentos das testemunhas EE, DD e FF, na estrita medida da razão de ciência acima apresentada, que, em traços gerais, confirmaram a inicial abordagem protagonizada pela primeira testemunha ao arguido; a sujeição do arguido ao teste qualitativo de álcool; a presença da testemunha BB (irmão do arguido) no local; a solicitação do pedido de reforços por parte do militar EE e a Comparência póstuma no local dos militares DD; a recusa do arguido em acompanhá-los ao posto territorial da GNR; as manobras de extração protagonizada pelos militares EE e DD para retirar o arguido do interior da viatura e os consequentes ferimentos físicos no corpo daquele; a simulação pelo arguido de prostração e desmaio; a introdução do arguido no interior da viatura caracterizada da GNR; a deslocação dos militares da GNR a casa do arguido para chegarem à fala com um familiar para explicar a sua ida ao posto da GNR; e a interação do arguido já no interior do posto da GNR ....
Por sua vez, corroborando a versão a favor do arguido apresentam-se-nos os depoimentos das testemunhas BB e de HH, na estrita medida, da razão de ciência acima aventada, sendo que a primeira confirmou que, no local da primeira abordagem, em momento algum, o arguido ou saiu da viatura que conduzia ou presenciou o irmão a ser submetido a qualquer teste de deteção de álcool no sangue; garantindo que a abordagem o Sr. Militar EE foi de imediata afronta ao seu irmão, a quem dirigiu diversos insultos – que densificou –, exortando-o a acompanhá-lo ao posto, que o arguido sempre recusou, mas que esta testemunha nunca percebeu o motivo dessa imposição, tendo abandonado o local, a pedido do arguido.
Já a segunda testemunha HH afiançou que teve conhecimento de que o arguido, seu pai, se encontrava a ser objeto de uma intervenção policial, quando a sua mãe lhe ligou a informar que tinham comparecido na sua residência dois carros caracterizados da polícia, com o pai no interior, a comunicar – sem mais – que iriam conduzir o seu pai até ao posto, onde se dirigiu de imediato; ali chegada e ainda no portão esteve a falar com o militar EE que, em jeito de preanuncio, lhe transmitiu que iria ouvir do seu pai uma história que não correspondia à verdade dos factos e que apresentava alguns ferimentos, cuja realização havia sido necessária para a respetiva imobilização, porque havia recusado não só a fazer o teste de álcool como a acompanhar os militares ao posto; seguindo na direção do interior do posto falou com outro militar, que ao que pôde identificar seria o militar DD, que assumira a autoria dos arranhões no corpo do seu pai, e, então, lhe mostrou um vídeo, onde pôde ver o seu pai de barriga para baixo, prostrado no chão, com o fito de demonstrar que o seu pai simulava um desmaio; preocupada, dirigiu-se para junto do seu pai, que logo que transmitiu a forma insultuosa como havia sido inicialmente abordado pelo militar EE e que, em momento, algum tinha feito qualquer teste de despistagem de álcool no sangue; não presenciou que o pai tivesse dirigido qualquer expressão ameaçadora ou injuriosa na direção, além do mais, do militar EE, ou a causar qualquer tumulto que impedisse a regular elaboração do expediente; garantindo que o seu pai não se recusou a assinar qualquer expediente, o que sempre seria uma impossibilidade, já que abandonou o local na companhia do seu pai sem que o respetivo expediente estivesse concluído, apenas com a menção de que na segunda feira seguinte teriam que estar presentes, pelas 10h00m, nas instalações do hospital de ...; por fim acrescentou que na segunda feira seguinte quando chegou ao seu escritório apercebeu-se que o posto na GNR ..., lhe tinha ligado pelas 00h07m.
Ao contrário do que sucede neste último, verificamos que no interior do primeiro núcleo probatório apresentado – contra arguido – existem em si mesmo contradições que, na minha perspetiva – e desde já adiantando – se nos afiguram impassíveis de ultrapassar:
- quanto à disparidade do narrado pelo militar EE e o por si vertido no auto de notícia por si elaborado, ao que disse, no próprio dia da verificação dos factos em presença – cfr. fls. 2 a 3 –, no que concerne à forma e à composição de abordagem dirigida ao arguido;
- quanto à colocação e presença da testemunha BB no local da abordagem dirigida ao arguido;
- quanto ao motivo que determinou a detenção do arguido e imposição de se deslocar ao posto, se para a realização de teste de álcool, se pela já cristalizada recusa em fazê-lo; quanto à necessidade de manobras de extração e a apregoada paralela conversão protagonizada entre o militar FF e o irmão do arguido BB, quando todas as outras testemunhas garantiram que este, nesse momento, ali não se encontrava presente.
E estas contradições ganham maior expressividade quando concatenadas com as mais elementares regras da experiência e do normal suceder, desmoronando a versão trazida a este pleito pela acusação, pelas seguintes ordens de razão:
- pela implausibilidade do militar EE não ter registado, pelo menos, fotograficamente, o resultado do teste qualitativo de pesquisa de álcool, por antever – como garantiu – a forma como a sua abordagem se iria desenvolver, necessidade essa incrementada por não ter consigo qualquer testemunha presencial;
- pela incompreensível, despropositada e desadequada decisão dos srs. militares da GNR em, àquela hora, antes de conduzirem o arguido ao posto da GNR, se dirigem primeiramente à casa do arguido, para, como o aparato de um intervenção policial, avisarem, acalmando-os, os seus familiares, que nem podendo chegar à fala deste, apenas o avistaram no interior daquela viatura;
- pelo repúdio do sr. Militar EE ter preparado, ao portão do posto da GNR, a testemunha CC, para a forma como iria encontrar o seu pai, colocando a tónica nos ferimentos que apresentava, como se veio a suceder, credibilizando as suas palavras;
- pelo repúdio de qualquer um dos referidos militares ter efetuado um vídeo das manobras de extração do arguido da viatura em que se encontrava, e respetiva exibição a CC, quando o que esta vira, foi precisamente o ponto que sempre se quis salientar, a queda do arguido, mascarada num simulado desmaio, credibilizando as suas palavras;
- pela uníssona perceção das testemunhas GG e de FF de que, já no posto da GNR, o arguido estaria exaltado, mas não acima da média, não pondo em causa o regular funcionamento do posto ou a execução pelo Guarda EE do expediente que lavava a cabo, descredibilizando as suas palavras;
- pela incompreensível disparidade, como já se disse, do narrado pelo militar EE e o por si vertido no auto de notícia por si elaborado no próprio dia da verificação dos factos em presença – cfr. fls. 2 a 3;
- pela falta de indicação pelo militar autuante do motivo pelo qual o arguido não assinou o expediente, nomeadamente, o auto de libertação; e a aposição da assinatura do militar da GNR que ali figura como testemunha, que, apesar de não ser obrigatório, sempre se imporia, atentas as especiais características e melindres da situação que ali se desenvolvia, permitindo-nos questionar se aquele já se encontrava pronto no momento em que o arguido abandonou o posto;
- pela disparidade na verificação da realização pelo arguido do teste de despistagem de álcool no sangue.
- pela perceção íntima de que nenhuma das narrativas apresentadas se nos apresentou linear, perfilando-se qualquer uma delas faciosa, apaixonada e interessada, ou como forma de evitar a responsabilidade criminal ou como forma de evitar a responsabilidade disciplinar.
Terminado este caminho, acabamos como começamos.
E concatenando todos os elementos de prova descritos cremos que os mesmos se nos afiguram insuficientes para fundamentarem uma condenação de carácter penal.
Não obstante as coincidências indiciárias, em nosso entendimento, permanecem por aferir os factos que permitam imputar com a absoluta certeza, que é exigida na valoração probatória em processo penal, a autoria destes factos ao arguido, inexistindo, nessa medida, uma cadeia ininterrupta de prova, consubstanciando-se em meras conjeturas, suspeitas, suposições, plausibilidades e considerações que extrapolam os factos.
Permanece frágil a prova produzida quanto aos elementos ora em discussão.
Desta feita e sem mais delongas, quanto aos factos constantes da matéria de facto indemonstrada e densificando o princípio do in dubio pro reo – que se apresenta como o corolário primeiro do valor constitucionalmente consagrado da presunção de inocência do arguido até trânsito em julgado de uma sentença condenatória (artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa) –, havemos de concluir que este Tribunal, face à debilidade da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, mantém uma dúvida razoável sobre a sua verificação, pelo que, se imporá considerá-los não provados.
O Tribunal considerou ainda o certificado de registo criminal junto aos autos sob a refª. eletrónica n.º 15101552.
É, pois, esta a convicção deste Tribunal.
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(…)
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III.2
Dos vícios da decisão
Insurgindo-se o recorrente contra a absolvição do arguido - esta decorrente da não consideração, como provados, dos factos fundantes da sua responsabilidade criminal – refere, o que aqui se aprecia em primeira linha, a existência do vício a que alude o art.º 410.º, n.º 2, al. c) e 3 do C.P.P., “ao errada e notoriamente ter apreciado a prova produzida em julgamento, contrariando as regras da experiência comum e a normalidade do acontecer”.
Vejamos.
A verificação, mesmo oficiosa, dos vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P., a denominada revista alargada, a proceder, deflui na realização de um novo julgamento, total ou parcial, apenas excecionalmente o podendo fazer o próprio tribunal superior (art.ºs 426.º, n.º 1, 430.º, n.º 1, e 431.º, als. a) e c), do C.P.P.).
Nesse caso, o substrato para a verificação do(s) vício(s) deverá colher-se no (e bastar-se com o) texto da própria decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, sem recurso a elementos externos (designadamente probatórios) concretizando-se na (i) insuficiência dos factos provados para suportar a correlativa decisão de direito (o que não pode confundir-se com uma putativa insuficiência das provas para alicerçar a decisão de facto, património da impugnação alargada), na (ii) contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (entre os factos provados e não provados, entre si ou uns com os outros, ou entre aqueles e a motivação, ou ainda nesta mesma) e (iii) o erro notório na apreciação da prova (ante o padrão do homem médio e evidente a partir do escrutínio do texto da decisão) (cfr. art.º 410.º, n.º 2, als. a), b) e c) do C.P.P.), vício que, neste contexto, não se verifica quando a fonte da discordância resultar, tão só, da não conformação com a versão acolhida pelo Tribunal que, aos olhos do recorrente, deveria ter sido distinta.
Em síntese, no caso da denominada impugnação restrita, tendo por fundamento os vícios decisórios, apenas se consente o escrutínio da sentença na sua literalidade e sob o espartilho apontado supra.
Tendo em conta os sobreditos conceitos, agora em análise especificamente dirigida ao caso vertente, situa o recorrente a sua pretensão recursória, neste segmento, sob o enfoque dos vícios da decisão (impugnação restrita).
Vejamos da existência dos repontados vícios.
Nos termos do art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P. «Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova».
Assim e como decorre expressamente da letra da lei, qualquer um dos elencados vícios tem de dimanar da complexidade global da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto e como já se disse, a quaisquer elementos que à dita decisão sejam exógenos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução, ou até mesmo no julgamento, salientando-se também que as regras da experiência comum “não são senão as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece” [Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, pág. 338/339], isto é, qualquer um dos referidos vícios tem de existir «internamente, dentro da própria sentença ou acórdão» [Germano Marques da Silva, op. cit., pág. 340].
No caso específico do vício decisório prevenido na al. a), a indicada insuficiência determina a formação incorreta de um juízo porque a conclusão ultrapassa as premissas. A matéria de facto (não os meios de prova que a sustêm) é insuficiente para fundamentar a solução de direito correta, legal e justa, estando, pois, associado à insuficiência da matéria de facto para a decisão.
No segundo caso, o da “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. b), este consiste na incompatibilidade, de inviável ultrapassagem através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Tal vício ocorre quando um mesmo facto, obviamente com interesse para a decisão da causa, seja julgado como provado e não provado, simultaneamente e logicamente anulando-se, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode prevalecer, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Por fim, o “erro notório na apreciação da prova”, prevenido no inciso da al. c) e aqui expressamente invocado, ocorre quando um homem, medianamente sagaz, no caso revertendo ao crivo referencial de um jurista médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente intui e percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou que efetuou uma apreciação notoriamente errada, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou inverosímeis.
De igual sorte, aponta-se a ocorrência de erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis [cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 5.ª edição, pág. 61 e ss.].
Trata-se, no caso, de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia pela simples leitura da decisão, e que consiste, basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido [cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, op. cit., pág. 74], não se verificando se a discordância resulta apenas da forma como o tribunal aprecia a prova produzida, por desconforme àquela que, na ótica do recorrente, deveria ter sucedido.
Revertendo ao caso em apreço e lida a decisão recorrida, do seu teor objetivo, não se lobriga (excetuando, como se verá infra, numa eventual reversão do decidido, quanto às condições pessoais do agente) a existência dos vícios prevenidos nas sobreditas als. a) e b).
Detenhamo-nos, então, no invocado erro notório.
Na perspetiva recursória o vício em causa surpreende-se a partir das afirmações, constantes da sentença posta em crise, não (apenas) na sua literalidade, mas (também) em conjugação com a prova produzida e com as passagens invocadas que imporiam entendimento diverso.
Efetivamente afirma o Ministério Público que “(…) a apreciação da prova feita pelo tribunal recorrido contraria frontal e notoriamente as regras da experiência comum e a normalidade do acontecer, merecendo-nos fortes reservas, uma vez que os depoimentos supra identificados conjuntamente apreciados à luz das regras da experiência comum e da normalidade do acontecer e, ainda, conjugados com os demais elementos de prova produzidos, seguramente permitem esclarecer como ocorreram os factos, não suscitando dúvidas quanto à sua verificação e autoria pelo arguido.”.
Retendo, então, que o erro notório deverá isolar-se a partir do texto da própria decisão, por si e de acordo com as regras da lógica e da experiência, sem recurso, portanto, aos trechos dos depoimentos convocados pelo recorrente e tendo presente que a existência dos vícios a que alude o art.º 410.º do C.P.P. se expressa em vícios formais referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão e que são obstativos do pronunciamento de mérito, apreciemos da existência da predita falta.
A decisão recorrida deu como não provados os factos que potencialmente fundariam a responsabilidade criminal do arguido. Fê-lo por afirmação da existência de dúvida, resolvida em desfavor da acusação, por execução material do princípio in dubio pro reo, não reconhecendo credibilidade ou verosimilhança a nenhuma das versões.
Introduziu a anunciada dúvida com a adjetivação de “muito nubloso” e “tumultuoso” ao iter valorativo, esclarecendo que se confrontaram duas versões, uma “pro arguido” e outra “contra o arguido”, nenhuma diretamente sobreponível à versão da acusação.
Quanto aos meios de prova disponíveis e valorados, desde logo o Tribunal se confessou privado de qualquer esclarecimento por parte do arguido porquanto este, no uso de prorrogativa legal, não prestou quaisquer declarações, inclusivamente nada tendo dito acerca das suas condições pessoais.
Assim o Tribunal, seguindo o texto da decisão, considerou, por um lado, os depoimentos de EE, DD e FF, militares da G.N.R. e que terão “corroborado a versão contra o arguido e mais consentânea com os factos insertos na acusação pública”, sendo a sua razão de ciência, o primeiro, adveniente do facto “de ter sido o único militar da GNR que, nas circunstâncias descritas em 1), intercetou o veículo conduzido pelo arguido com o fito de o fiscalizar” e, os restantes, “na circunstância de serem os militares da GNR que, a solicitação da primeira testemunha, se deslocaram ao local para os auxiliar na ação em curso”.
Seguindo o texto da motivação, refere-se na decisão recorrida que os militares, em traços gerais, “confirmaram a inicial abordagem protagonizada pela primeira testemunha ao arguido; a sujeição do arguido ao teste qualitativo de álcool; a presença da testemunha BB (irmão do arguido) no local; a solicitação do pedido de reforços por parte do militar EE e a comparência póstuma no local dos militares DD; a recusa do arguido em acompanhá-los ao posto territorial da GNR; as manobras de extração protagonizada pelos militares EE e DD para retirar o arguido do interior da viatura e os consequentes ferimentos físicos no corpo daquele; a simulação pelo arguido de prostração e desmaio; a introdução do arguido no interior da viatura caracterizada da GNR; a deslocação dos militares da GNR a casa do arguido para chegarem à fala com um familiar para explicar a sua ida ao posto da GNR; e a interação do arguido já no interior do posto da GNR ....”.
Em contraponto e “corroborando a versão a favor do arguido”, foram considerados os depoimentos das testemunhas BB (irmão do arguido) e HH (filha do arguido). O primeiro seguiria no veículo aquando da interceção e terá afirmado que em momento algum o arguido terá efetuado o teste de despistagem (qualitativo), garantindo que “a abordagem o Sr. Militar EE foi de imediata afronta ao seu irmão, a quem dirigiu diversos insultos – que densificou –, exortando-o a acompanhá-lo ao posto, que o arguido sempre recusou, mas que esta testemunha nunca percebeu o motivo dessa imposição, tendo abandonado o local, a pedido do arguido”. A segunda testemunha “afiançou que teve conhecimento de que o arguido, seu pai, se encontrava a ser objeto de uma intervenção policial, quando a sua mãe lhe ligou a informar que tinham comparecido na sua residência dois carros caracterizados da polícia, com o pai no interior, a comunicar – sem mais – que iriam conduzir o seu pai até ao posto, onde se dirigiu de imediato; ali chegada e ainda no portão esteve a falar com o militar EE que, em jeito de preanuncio, lhe transmitiu que iria ouvir do seu pai uma história que não correspondia à verdade dos factos e que apresentava alguns ferimentos, cuja realização havia sido necessária para a respetiva imobilização, porque havia recusado não só a fazer o teste de álcool como a acompanhar os militares ao posto; seguindo na direção do interior do posto falou com outro militar, que ao que pôde identificar seria o militar DD, que assumira a autoria dos arranhões no corpo do seu pai, e, então, lhe mostrou um vídeo, onde pôde ver o seu pai de barriga para baixo, prostrado no chão, com o fito de demonstrar que o seu pai simulava um desmaio; preocupada, dirigiu-se para junto do seu pai, que logo que transmitiu a forma insultuosa como havia sido inicialmente abordado pelo militar EE e que, em momento, algum tinha feito qualquer teste de despistagem de álcool no sangue; não presenciou que o pai tivesse dirigido qualquer expressão ameaçadora ou injuriosa na direção, além do mais, do militar EE, ou a causar qualquer tumulto que impedisse a regular elaboração do expediente; garantindo que o seu pai não se recusou a assinar qualquer expediente, o que sempre seria uma impossibilidade, já que abandonou o local na companhia do seu pai sem que o respetivo expediente estivesse concluído, apenas com a menção de que na segunda feira seguinte teriam que estar presentes, pelas 10h00m, nas instalações do hospital de ...; por fim acrescentou que na segunda feira seguinte quando chegou ao seu escritório apercebeu-se que o posto na GNR ..., lhe tinha ligado pelas 00h07m.”.
No primeiro núcleo probatório assinalado afirmou o Tribunal a quo que existem contradições impossíveis de ultrapassar.
Elencando as contradições refere-se a disparidade do narrado pelo militar autuante com o que fez consignar no auto de notícia, no que concerne “à forma e à composição de abordagem dirigida ao arguido”, mais se referindo a existência de contradição “quanto à colocação e presença da testemunha BB no local da abordagem” e “quanto ao motivo que determinou a detenção do arguido e imposição de se deslocar ao posto, se para a realização de teste de álcool, se pela já cristalizada recusa em fazê-lo” e “quanto à apregoada paralela conver[sa]são protagonizada entre o militar FF e o irmão do arguido”.
Assinaladas estas contradições, afirma-se na decisão recorrida que as mesmas “ganham maior expressividade quando concatenadas com as mais elementares regras da experiência e do normal suceder, desmoronando a versão trazida a este pleito pela acusação (sublinhado nosso) pelas ordens de razão que foram elencadas e que, na perspetiva do decidido, conferem implausibilidade àqueles meios de prova, ou seja:
(i) – o facto de “o militar EE não ter registado, pelo menos fotograficamente, o resultado do teste qualitativo de pesquisa de álcool, por antever – como garantiu – a forma como a sua abordagem se iria desenvolver, necessidade essa incrementada por não ter consigo qualquer testemunha presencial”;
(ii) – “pela incompreensível, despropositada e desadequada decisão dos srs. militares da GNR em, àquela hora, antes de conduzirem o arguido ao posto da GNR, se dirigem primeiramente à casa do arguido, para, com o aparato de um intervenção policial, avisarem, acalmando-os, os seus familiares, que nem podendo chegar à fala deste, apenas o avistaram no interior daquela viatura”;
(iii) – “pelo repúdio do sr. Militar EE ter preparado, ao portão do posto da GNR, a testemunha CC, para a forma como iria encontrar o seu pai, colocando a tónica nos ferimentos que apresentava, como se veio a suceder, credibilizando as suas palavras;”;
(iv) – “pelo repúdio de qualquer um dos referidos militares ter efetuado um vídeo das manobras de extração do arguido da viatura em que se encontrava, e respetiva exibição a CC, quando o que esta vira, foi precisamente o ponto que sempre se quis salientar, a queda do arguido, mascarada num simulado desmaio, credibilizando as suas palavras”;
(v) – “pela uníssona perceção das testemunhas GG e de FF de que, já no posto da GNR, o arguido estaria exaltado, mas não acima da média, não pondo em causa o regular funcionamento do posto ou a execução pelo Guarda EE do expediente que lavava a cabo, descredibilizando as suas palavras;”;
(vi) – “pela incompreensível disparidade, como já se disse, do narrado pelo militar EE e o por si vertido no auto de notícia por si elaborado no próprio dia da verificação dos factos em presença – cfr. fls. 2 a 3;”;
(vii) – “pela falta de indicação pelo militar autuante do motivo pelo qual o arguido não assinou o expediente, nomeadamente, o auto de libertação; e a aposição da assinatura do militar da GNR que ali figura como testemunha, que, apesar de não ser obrigatório, sempre se imporia, atentas as especiais características e melindres da situação que ali se desenvolvia, permitindo-nos questionar se aquele já se encontrava pronto no momento em que o arguido abandonou o posto;”;
(viii) – “pela disparidade na verificação da realização pelo arguido do teste de despistagem de álcool no sangue.”;
(ix) – “pela perceção íntima de que nenhuma das narrativas apresentadas se nos apresentou linear, perfilando-se qualquer uma delas faciosa, apaixonada e interessada, ou como forma de evitar a responsabilidade criminal ou como forma de evitar a responsabilidade disciplinar.”.
No que concerne a um identificado “núcleo” de meios de prova que alinharão em abono da “versão a favor do arguido”, apontam-se os depoimentos de BB e HH, respetivamente irmão e filha do arguido. A primeira, como já dito, “(…) confirmou que, no local da primeira abordagem, em momento algum, o arguido ou saiu da viatura que conduzia ou presenciou o irmão a ser submetido a qualquer teste de deteção de álcool no sangue; garantindo que a abordagem o Sr. Militar EE foi de imediata afronta ao seu irmão, a quem dirigiu diversos insultos – que densificou –, exortando-o a acompanhá-lo ao posto, que o arguido sempre recusou, mas que esta testemunha nunca percebeu o motivo dessa imposição, tendo abandonado o local, a pedido do arguido.”. A segunda “(…) afiançou que teve conhecimento de que o arguido, seu pai, se encontrava a ser objeto de uma intervenção policial, quando a sua mãe lhe ligou a informar que tinham comparecido na sua residência dois carros caracterizados da polícia, com o pai no interior, a comunicar – sem mais – que iriam conduzir o seu pai até ao posto, onde se dirigiu de imediato; ali chegada e ainda no portão esteve a falar com o militar EE que, em jeito de preanuncio, lhe transmitiu que iria ouvir do seu pai uma história que não correspondia à verdade dos factos e que apresentava alguns ferimentos, cuja realização havia sido necessária para a respetiva imobilização, porque havia recusado não só a fazer o teste de álcool como a acompanhar os militares ao posto; seguindo na direção do interior do posto falou com outro militar, que ao que pôde identificar seria o militar DD, que assumira a autoria dos arranhões no corpo do seu pai, e, então, lhe mostrou um vídeo, onde pôde ver o seu pai de barriga para baixo, prostrado no chão, com o fito de demonstrar que o seu pai simulava um desmaio; preocupada, dirigiu-se para junto do seu pai, que logo que transmitiu a forma insultuosa como havia sido inicialmente abordado pelo militar EE e que, em momento, algum tinha feito qualquer teste de despistagem de álcool no sangue; não presenciou que o pai tivesse dirigido qualquer expressão ameaçadora ou injuriosa na direção, além do mais, do militar EE, ou a causar qualquer tumulto que impedisse a regular elaboração do expediente; garantindo que o seu pai não se recusou a assinar qualquer expediente, o que sempre seria uma impossibilidade, já que abandonou o local na companhia do seu pai sem que o respetivo expediente estivesse concluído, apenas com a menção de que na segunda feira seguinte teriam que estar presentes, pelas 10h00m, nas instalações do hospital de ...; por fim acrescentou que na segunda feira seguinte quando chegou ao seu escritório apercebeu-se que o posto na GNR ..., lhe tinha ligado pelas 00h07m.”.
Conclui-se na decisão recorrida que, ao contrário do que sucede neste “grupo” de depoimentos, no primeiro, “contra o arguido”, existem contradições impossíveis de ultrapassar.
Fixado, no essencial, o texto da motivação da decisão de facto, com base naqueles elementos, deu-se como provado que:
1. No dia 15 de novembro de 2020, cerca das 00h10m, o arguido AA conduzia o veículo de matrícula ..-SL-.., na Rua ..., em ..., quando foi intercetado pelo militar da Guarda Nacional Republicana EE.
2. Por razões que se não logrou apurar, o militar EE informou o arguido que o iria acompanhar até ao Posto Territorial ..., ao que aquele recusou, por razões que não se logrou apurar.
3. O militar EE solicitou, via telefone, reforços, tendo aí comparecido o militar DD e FF.
4. Após, decorrida ação que se não pôde deslindar, mas estando o arguido sentado no lugar do condutor, apesar das várias advertências que lhe foram dirigidas pelos senhores militares no sentido de sair da mesma.
5. Perante tal recusa, os senhores militares tiveram que recorrer à força para retirar o arguido do interior da viatura, enquanto este se mantinha agarrado ao volante da mesma.
6. E, depois de passarem pela sua casa, conduziram-no até ao Posto Territorial ..., e já no seu interior o arguido, exaltado e em voz elevada, vociferava dirigindo-se ao militar EE expressões cujo teor se não logrou apurar.
Correspetivamente deu-se como não provado que foi realizada a operação de fiscalização de trânsito, que os militares se encontravam no exercício das suas funções de autoridade pública, devidamente uniformizados, que foi dada ordem de paragem ao arguido e que este realizou o teste qualitativo de pesquisa de álcool, que recusou a ida ao posto para realizar o teste quantitativo ante o resultado indiciariamente positivo, que lhe foi dada voz de detenção, que tenha proferido expressões de conteúdo intimidatório e que o arguido tenha agido com a vontade de desobedecer à ordem de se submeter ao teste qualitativo ou de provocar medo ou inquietação no militar EE, fazendo-o de forma livre e sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
Vejamos, pois, tendo por objeto o texto da decisão.
Como é consabido e sobre a questão da convicção do julgador, esta tem, na sua génese, o fenómeno irrepetível da oralidade e da imediação, património único da primeira instância, no que tange à credibilidade a conferir aos meios de prova. Cumulativamente, a valoração dos diferentes meios de prova, considerando as idiossincrasias que necessariamente os afetam e, até, potenciais contradições e imprecisões, far-se-á de acordo com o teor objetivo dos depoimentos (a sua verosimilhança e lógica), a razão de ciência invocada, a ausência de razões para a incredulidade (designadamente o posicionamento face aos intervenientes e ao objeto da causa, a ausência de animosidade), o teor de outros meios de prova concordantes ou infirmantes, a concatenação de todos, sob o espetro da análise crítica e com apoio nas regras da lógica e da experiência. Neste percurso o julgador atua livremente, não no sentido de que decide de acordo com a sua vontade íntima, mas não objetivável, conducente ao arbítrio, mas no sentido de que não existem, em princípio, provas tarifadas e que a prevalência a conferir a determinados meios de prova, em detrimento de outros, é escolha do julgador, conquanto essa escolha possa ser motivável e se ancore em critérios de normalidade.
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/06/2000 [Colectânea de Jurisprudência, ac. STJ, tomo 2, pág. 228], sobre a livre convicção, «tais princípios não comportam apreciação arbitrária nem meras impressões subjectivas incontroláveis, antes têm, sempre, de nos remeter, objectiva e fundadamente, ao exame em audiência, com critérios da experiência comum e da lógica do homem médio supostos pela ordem jurídica, das provas aí validamente produzidas, visando a descoberta da verdade prático-jurídica e não a verdade transcendente, inalcançável, fruto de especulação projectada para fora do domínio da racionalidade prática, sem suporte em concretos argumentos e elementos de prova objectivos».
Destarte, a liberdade consentida pelo princípio contido no art.º 127.º do C.P.P. não é absoluta ou inquestionável, estando condicionada pela prudente convicção do julgador e temperada pelas regras da lógica e da experiência e, também, pela dimensão ética do descomprometimento e equidistância que se reconhecem ao julgador.
No caso vertente, pelo seu conteúdo, foram desconsiderados os depoimentos dos militares da G.N.R., repontando as contradições elencadas e a contrariedade do afirmado a pretensas regras da lógica e da experiência que, no confronto com meios de prova de sinal contrário, trazidos pela defesa e sobre os quais se aponta a ausência de contradições, defluiu na afirmação da não dissipação de dúvidas quanto às circunstâncias em que os factos ocorreram e importando, pois, na consideração, como não provados, dos factos fundantes da pretendida responsabilização criminal.
No percurso e ante o silêncio do arguido, não foram dados como provadas quaisquer circunstâncias atinentes às suas condições pessoais o que, em caso de reversão do sentido da decisão na sequência da impugnação alargada (que também constitui objeto do recurso) sempre daria lugar ao reenvio, ainda que parcial, para aferir das mesmas, ante o vício da insuficiência contido na al. a) do n.º 2 do art.º 410.º do C.P.P. Efetivamente o arguido goza do direito ao silêncio, do privilégio da não autoincriminação, como decorrência da presunção de inocência. Porém, tal direito não é absoluto ou ilimitado, pois incide sobre os factos imputados e sobre o conteúdo das declarações que sobre eles eventualmente prestar (art.º 61.º, n.º 1, al. d) do C.P.P.), sobre a factualidade integradora da acusação e sobre a questão da culpabilidade, comportando, à margem disto (a eventual incriminação), exceções, como a contida no art.º 61.º, n.º 6, al. b) do C.P.P., resultando das decisões do TEDH que o privilégio contra a autoincriminação, decorrente dos princípios do processo equitativo e da presunção de inocência da CEDH, se refere aos diversos meios de obtenção de prova incriminatória contra a vontade do acusado, não sendo as condições pessoais, em princípio, componentes desse núcleo de conteúdo incriminatório. Mesmo numa interpretação maximalista, então, na falta de “colaboração” do arguido, teria o Tribunal de, oficiosamente, em cesure pura e afirmada a sua culpabilidade, procurar averiguar de tais condições, porquanto sempre as mesmas se revelariam necessárias para, em caso de reversão, aferir convenientemente da pena a aplicar e/ou determinação da taxa diária de uma putativa pena de multa.
Retomando a análise, referiu o Tribunal que corroborando a versão contra o arguido e mais consentânea com os factos insertos na acusação pública apresentaram-se os depoimentos dos militares EE, DD e FF que “em traços gerais, confirmaram a inicial abordagem protagonizada pela primeira testemunha ao arguido; a sujeição do arguido ao teste qualitativo de álcool; a presença da testemunha BB (irmão do arguido) no local; a solicitação do pedido de reforços por parte do militar EE e a Comparência póstuma no local dos militares DD; a recusa do arguido em acompanhá-los ao posto territorial da GNR; as manobras de extração protagonizada pelos militares EE e DD para retirar o arguido do interior da viatura (…)”.
Em contraponto, e como já se disse, coexistiu uma versão “a favor” do arguido (não necessariamente a versão do arguido, porquanto essa não se conhece, ante o uso do direito constitucional e legal ao silêncio), protagonizada pelo irmão e pela filha do arguido.
Para a não credibilização do depoimento dos militares referiu-se a desconformidade com o teor do auto de notícia (aqui tendo em conta a identificação da composição da patrulha aquando da abordagem), algumas contradições/imprecisões não concretizadas, uma exigível linearidade de depoimentos e supostas regras da lógica e da experiência que tornaram inverosímil, aos olhos do Tribunal, a versão por aqueles sufragada (e coincidente, em “traços gerais”, com a acusação) e que a seguir analisamos e, finalmente, a contra motivação indiciária trazida pelos depoimentos do núcleo de meios de prova identificados como benévolos para a posição do arguido.
Fazendo a predita análise das regras da experiência.
Temos por incontestado que o arguido, naquele fim de noite/madrugada, exercia a condução automóvel e foi intercetado pelo militar da G.N.R. EE que tripulava um carro-patrulha daquela corporação.
Neste contexto e segundo o próprio texto da decisão, considerando o por si afirmado, aquele militar terá realizado o teste qualitativo de pesquisa de álcool no sangue e, face ao resultado positivo, terá solicitado ao arguido que se deslocasse ao posto a fim de ser submetido ao teste quantitativo, procedimento que, aliás, se coaduna com o estatuído nos art.ºs 1.º, n.º 1 e 2.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 18/2007, de 17.05 e 152.º, n.º 1 al. a) do C.E.
Sendo o aparelho SD2 meramente de despiste, não estando homologado para efeitos quantificadores da concreta TAS, exige-se ao condutor a submissão a teste quantitativo, sob pena de desobediência, conforme estatuem os art. ºs 152.º, n.º 3 do C.E. e 348.º, n.º 1, al. a) do C.P., procedimento e obrigatoriedade que é presumivelmente conhecido por todos os condutores legalmente habilitados e especialmente pelo arguido, até porque, à data dos factos, já havia sofrido duas condenações pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez.
Nesta medida e até aqui, nenhuma entorse às regras da experiência ou procedimento esdrúxulo se surpreende na versão do agente autuante.
Em contraponto e com potencial assumido pelo Tribunal recorrido para criar uma dúvida que, a final, foi resolvida em desfavor da acusação, foi convocado o depoimento da testemunha BB (irmão do arguido) que, a par do depoimento prestado pela testemunha HH e contrariamente aos depoimentos prestados pelos militares, foi referenciado como isento de contradições (e, por isso, com potencialidade para influenciar a convicção da julgadora).
Segundo o texto da decisão, a testemunha BB terá referido que em momento algum o arguido foi submetido a teste de pesquisa de álcool no sangue e que a abordagem do militar foi de “imediata afronta ao seu irmão, a quem dirigiu diversos insultos – que densificou -, exortando-o a acompanhá-lo ao posto, que o arguido sempre recusou, mas que esta testemunha nunca percebeu o motivo dessa imposição, tendo abandonado o local, a pedido do arguido”.
Neste caso, tratando-se do irmão do arguido, não constituindo esta estreita ligação familiar uma espécie de capitis diminutio, imporia, certamente, cautelas acrescidas na valoração desse depoimento, sendo o seu teor, este sim, ao contrário do procedimento apontado e censurado ao militar, pouco consentâneo com as regras da experiência e do normal acontecer.
Efetivamente, sem que seja repontada uma relação, interação, inimizade ou mesmo que autuante e arguido se conhecessem de todo, a menos que o militar da G.N.R. sofresse de grave perturbação psicológica ou clara inaptidão para o exercício da função, é inverosímil, de acordo com as invocadas regras da experiência, que a primeira abordagem a um condutor se faça, sem mais, através de “imediata afronta” e de vários insultos e se exija um enigmático acompanhamento ao posto, sem qualquer explicação, sendo este anormal comportamento, ainda para mais, patenteado perante testemunhas. Acresce que, ante tão anómalo e violento procedimento, também não seria crível que a testemunha BB se retirasse, abandonando o local, deixando o seu irmão “à sua sorte” e na disposição de um agente com tão grave, bizarro e inusitado comportamento.
Nesta medida e em termos de plausibilidade, verosimilhança e alinhamento com as regras da experiência, que devem nortear a formação da convicção e que são a matriz da livre convicção, parece-nos mais consentâneo com tais pressupostos a identificada abordagem com o fito da realização de teste de pesquisa e, ante um resultado positivo, a solicitação de acompanhamento ao posto para a realização do teste quantitativo.
Da mesma forma e dando-se como provado em 2. que o militar solicitou que o arguido o acompanhasse ao posto e que o arguido recusou, que na presença já de três militares o arguido permaneceu no interior da viatura recusando sair da mesma (4.) e que aqueles tiveram que recorrer à força para o extrair (5.) não encontra respaldo nas regras da experiência, nem se vislumbra razão para a afirmada dúvida sobre se a detenção/extração visava a condução do arguido ao posto para a realização do teste ou já a consequência do flagrante delito, dada a afirmada desobediência na recusa de exame. Tratando-se de militares integrantes de patrulha e com competência para ações de fiscalização de trânsito, pressupondo-se o conhecimento dos procedimentos de fiscalização, aquela ação apenas se compreende para a concretização do segundo momento. O regime legal instituído, cujo conhecimento é pressuposto por agentes fiscalizadores e condutores, dá ao cidadão, objeto de fiscalização, total liberdade de não querer efetuar o exame de pesquisa de álcool, no fundo a liberdade individual, «de ir livre e conscientemente para o Inferno», na expressão do Prof. Figueiredo Dias, incorrendo neste caso em desobediência, não se compreendendo, à luz destas regras, que a extração e detenção pudessem ter por fito sujeitar o condutor, à força, a teste quantitativo.
Por fim e sendo o depoimento dos militares valorado para a afirmação de que o arguido, já no posto, estava exaltado e “vociferava” dirigindo-se ao militar EE, não se compreende a afirmação da impossibilidade da determinação do teor das expressões, já que vociferar pressupõe falar com cólera e gritando.
Foram, é certo, convocadas pretensas regras da experiência para a descredibilização da versão dos militares, pelo menos na parte essencial da solicitação do exame e consequente recusa.
Quanto a nós, salvo o devido respeito, o não registo fotográfico do resultado do SD2 é a manifestação do procedimento normal e não a concretização de qualquer omissão que transmita “implausibilidade” ao procedimento. A lei e a prática – ou uma pretensa regra de sentido comum que é pressuposta pelo Tribunal a quo – não obrigam ou aconselham a documentação fotográfica de tal registo, que é apenas momentâneo no visor e que nem sequer tem de ser transmitido quantitativamente ao condutor (dado que não faz prova da TAS, apenas indiciando o estado de influenciado pelo álcool). O que a lei exige ao O.P.C. é a elaboração de auto de notícia (art.º 243.º do C.P.C.), ante a eventual prática de crime a que assista e não uma “documentação” com o uso de telemóvel.
Também a decisão de, no trajeto para o posto, passar pela casa do arguido, dando conta à família da detenção, não nos parece que constitua indício de inverosimilhança para, como se diz na decisão recorrida, “concatenadas com as mais elementares regras da experiência e do normal suceder”, tenha, como efeito, o “desmoronar” da versão trazida pela acusação.
No mesmo sentido vai a conversa que terá sido mantida entre o agente autuante e a testemunha CC ou a realização de um vídeo. Aqui, para além de ser pouco percetível o sentido da afirmação “pelo repúdio de qualquer um dos referidos militares ter efetuado um vídeo das manobras de extração do arguido da viatura em que se encontrava, e respetiva exibição a CC, quando o que esta vira, foi precisamente o ponto que sempre se quis salientar, a queda do arguido, mascarada num simulado desmaio, credibilizando as suas palavras”, é paradoxal considerar-se que a não documentação fotográfica do resultado do SD2 é motivo de implausibilidade e desconfiança e, ao mesmo tempo, a documentação de um procedimento de imobilização constitua motivo para essa mesma implausibilidade, sendo que aqui, dadas as consequências que podem advir de potenciais lesões e da recorrente afirmação, pelos detidos, de que foram vítima de violência física (estando até em estudo o uso de camaras de vídeo corporais por parte dos agentes de autoridade, em uso noutras latitudes), o procedimento é muito mais compreensível do que a julgada incompreensível não documentação fotográfica do resultado do teste de despistagem.
Por fim, a insinuação de que os depoimentos dos militares poderiam visar evitar responsabilidade disciplinar (e, quanto a nós, criminal, dado que passaria pela prestação de falso depoimento, injúria, abuso de autoridade e falsificação de documento – auto de notícia) foi inconsequente e, para o que essencialmente se relata, desprovida da necessária ligação aos critérios da lógica e da experiência, dado que a ação fiscalizadora e a imputada desobediência não traz um risco conatural de responsabilidade disciplinar, exceto se a versão trazida pelo irmão do arguido fosse (o que não se concede) coerente com uma regra de sentido comum e, no caso, envolveria a comparticipação dos restantes militares numa atuação claramente abusiva, ilegal e despropositada do autuante.
Finalmente, o depoimento da testemunha HH, na lógica interna da motivação, não teria a virtualidade de infirmar o passado nesse dia a montante da sua chegada (dado que a sua razão de ciência advém da comparência no posto depois da ocorrência dos factos narrados na acusação) e contém, quanto àquele momento, uma versão indireta, relatada pelo arguido que, em audiência, se remeteu ao silêncio.
Ora, desconsiderando os elementos elencados na decisão posta em crise para tornar implausíveis os depoimentos dos militares, nos moldes supra analisados, - pois não decorrem de qualquer máxima da experiência que não envolva preconceções indemonstráveis, - a fundamentação da decisão de facto, com a ablação daquelas considerações, tornar-se-ia insuficiente para o sentido do decidido, o que, perante o estatuído no n.º 2 do art.º 374.º e 379.º, n.º 1, al. a) do C.P.P., acarretaria a sua nulidade e determinaria a prolação de nova decisão, expurgada do apontado vício.
Mais do que isso, porém, pelo que acabamos (também) de assinalar e tendo em conta a incorreta utilização de pretensas regras da experiência para a não valoração dos depoimentos dos militares, criando uma afirmada dúvida sobre o efetivamente sucedido que defluiu na consideração, como não provados, da generalidade dos factos, constitui, a nível procedimental, um evidente erro na apreciação da prova cujo conceito começamos por definir.
Como tal, entendemos que a nulidade da sentença perde autonomia perante o vício mais amplo previsto no art.º 410.º, n.º 2, al. c) do C.P.P. e, sendo assim, por efeito do art.º 426.º do mesmo diploma legal e na impossibilidade de decisão da causa, determinar-se-á o reenvio para novo julgamento relativamente à totalidade do objeto do processo, com a nova competência para o efeito estabelecida no art.º 426.º-A do C.P.P., ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões aduzidas no recurso (art.º 660.º do C.P.C., ex vi art.º 4.º do C.P.P.).
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IV.
Decisão:
Por todo o exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em:
- julgar verificado o vício da al. c) do n.º 2, do art.º 410.º do C.P.P., determinando, em consequência, o reenvio do processo para novo julgamento, a incidir sobre toda a matéria constante da acusação deduzida nos autos, a ser efetuado nos termos do art.º 426º-A do C.P.P.;
- julgar prejudicada a apreciação da restante argumentação do recurso interposto pelo Ministério Público.
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Sem tributação.
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Porto, 19 de junho de 2024
José Quaresma (Relator)
Nuno Pires Salpico (1.º Adjunto)
Raúl Esteves (2.º Adjunto)