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PRESUNÇÃO LEGAL
MEIO DE PROVA
Sumário
I - Dispõe o artigo 9º da Lei 5/02 de 11 de janeiro que, sem prejuízo da consideração pelo tribunal, nos termos gerais, de toda a prova produzida no processo, pode o arguido ilidir a presunção legal e provar a origem lícita dos bens referidos no n.º 2 do artigo 7.º da mesma lei, sendo admissível qualquer meio de prova válido em processo penal, sendo a prova oferecida em conjunto com a defesa. II - Em certas circunstâncias e perante evidências suficientes da origem licita de bens, a prova dessa origem, para contrariar a presunção legal constante do nº 1 do artigo 7º da referida lei, pode ser oferecida a todo o tempo, mediante o expediente previsto no artigo 178º nº 7 e 8 do CPP.
Texto Integral
PROC. N.º 775/20.0JAPRT-B.P1
Sumário:
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Acordam em Conferência na 1ª secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
1 Relatório
Nos autos nº 775/20.0JAPRT-B.P1, que correm os seus termos na Comarca do Porto, Juízo de Instrução Criminal do Porto, Juiz 2 foi proferido o seguinte despacho:
“Veio o arguido AA requerer a fls. 5435-9 a restituição dos bens apreendidos, concretamente, envelope de Banco 1... contendo 34 notas de valor facial de 500€, totalizando o valor global de 17.000€, guarda joias contendo artigos de ourivesaria e a chave do cofre bancário n.º 27 da agência do Banco 2...; e ainda a revogação da medida de prestação de caução no valor de 100.000€.
O MºPº opôs-se ao deferimento de tal pretensão, mantendo a oposição mesmo depois da análise dos argumentos que o requerente aduziu no requerimento de 5/12.
O Arguido refere que não foi confrontado com quaisquer outros factos que não sejam aqueles com os quais foi confrontado aquando da sua inquirição perante juiz, decorridos dois anos e que as joias pertencem à família.
Como resulta dos autos, o arguido AA encontra-se indiciado pela prática do crime de tráfico de armas, previsto pelo art.º 87.º, n.º 1 da Lei n.º 5/06, de 25.02, o qual é punido com pena de 2 a 10 anos de prisão.
Concordamos que as exigências cautelares e os perigos que determinaram a sujeição do arguido a tal medida de coação permanecem, tendo sido até reforçadas com as posteriores diligências de inquérito.
Igualmente concordamos que “no que concerne à restituição dos bens apreendidos, cabe desde logo referir que, tendo em conta que o crime indiciado é um crime de catálogo do art.º 1.º, n.º 1 da Lei n.º 5/02, de 11.01, foi determinada a realização de investigação patrimonial e financeira do arguido AA e da sua companheira, a arguida BB, tendo-se apurado uma vantagem da atividade criminosa no valor de 214.339,98€ - cfr. apenso B. Acresce que existem fortes suspeitas que os artigos e quantia monetária apreendidos constituem produto ou vantagem resultantes dos factos ilícitos em investigação nestes autos”.
Assim, considerando que o MºPº é o titular do inquérito e nesta fase “dominus da investigação”, indefere-se o pedido de restituição formulado pelo arguido, mantendo-se a caução aplicada”
Inconformado, veio o arguido interpor recurso, tendo concluído mesmo nos seguintes termos:
a) Veio o Arguido AA a fls.5435-9 requerer a restituição dos bens apreendidos, e ainda a revogação da medida da prestação da caução no valor de 100.000 (cem mil euros), tudo com a devida fundamentação que aqui damos por integralmente reproduzida para os devidos efeitos legais.
b) O MP opôs-se ao deferimento de tal pretensão, e tal como menciona no despacho que ora se reclama: “mantendo a oposição mesmo depois da análise dos argumentos que o requerente aduziu no requerimento de 5/12”
c) Refere o douto tribunal no despacho com referência 155127132: (…) Fazendo assim, o tribunal ora recorrido, tábua rasa dos argumentos apresentados pelo Arguido, o que motivou a interposição do presente recurso.
d) O Arguido pronunciou-se, demonstrando a sua realidade económica, nomeadamente que advém de família de classe alta, tendo herdado um valor superior a 1.000.000,00 (um milhão de euros), herança esta constituída por aplicações e por diversas peças de ouro existentes num cofre (cofre bancário n.º 27 da agência o banco Banco 2...), reiterando que tal resulta da prova documental existente nos autos- auto de abertura do cofre, declaração de Imposto de selo.
e) O Arguido nunca foi confrontado com os alegados resultados da investigação patrimonial e financeira e da alegada vantagem de 214.339,98 (duzentos e catorze mil, trezentos e trinta e nove euros e noventa e oito cêntimos).- nem sequer estava indiciado de alegada atividade destas proporções, valores estes que negou, e que não podem resultar da alegada investigação patrimonial e financeira do Arguido, porque jamais -a mera intervenção em 4 vendas de armas se poderá traduzir numa vantagem patrimonial de 214.339,98 (duzentos e catorze mil, trezentos e trinta e nove euros e noventa e oito cêntimos), quando dos autos resulta que a vantagem patrimonial não ultrapassa 1000 (mil euros).
f) O Arguido juntou ao processo inúmeras fotografias ao longo dos anos da sua mãe, onde esta usava as peças de joalharia que foram apreendidas ao abrigo dos presentes autos. O douto tribunal, reitere-se, fez tábua rasa à prova documental trazida aos autos pelo Arguido.
g) Aliás, das fotografias juntas ao processo podemos verificar que no cofre se encontrava a aliança dos seus pais, com respetiva gravação.
h) O Arguido juntou aos autos um auto de abertura de cofre aquando do falecimento da sua mãe e declaração de imposto de selo, documentos dos quais resulta inequívoco que estes bens foram herdados pelo que não podem existir fortes suspeitas que os artigos apreendidos constituem produto ou vantagem resultantes dos factos ilícitos em investigação nestes autos
i) O arguido referiu e apresentou prova suficiente e bastante que aqui se deverá dar como integralmente reproduzida e conforme supramencionado de que as peças apreendidas joalharia - já se encontravam no cofre quando o mesmo foi aberto há longa data por óbito da mãe do arguido.
j) O Arguido requereu que fosse realizada uma diligência de prova- confrontar as fotografias juntas ao processo, com as peças apreendidas nos presentes autos. - O tribunal não o fez, tendo inclusive mantido a decisão de que existem sérios indícios que estas peças “são produto do crime”, quando existe prova suficiente de que tais peças pertenciam à mãe do arguido.
k) As peças de joalheria já estão na posse da família há décadas, eram da mãe do Arguido e por esta utilizadas repetidamente, conforme resulta das fotos que aqui se juntam.
l) que urge a análise da prova produzida e a produção de uma decisão que reestabeleça a equidade e verdade no presente processo, dessa prova resulta à saciedade que estes bens, mormente as peças em ouro não constituem produto ou vantagem resultantes dos factos ilícitos em investigação nestes autos.
Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser admitido e julgado procedente por provado, e em consequência ser revogada a decisão ora recorrida e substituída por outra que que:
A) Ordene a restituição ao Arguido dos seguintes bens apreendidos nos autos, nomeadamente o Guarda joias contendo artigos de ourivesaria; A chave do cofre bancário n.º 27 da agência o banco Banco 2....
Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de 1ª Instância tendo pugnado pelo não provimento do recurso.
Neste Tribunal o Digno Procurador Geral Adjunto teve vista nos autos e emitiu parecer no mesmo sentido.
Deu-se cumprimento ao disposto no artigo 417º nº 2 do CPP.
Foram os autos aos vistos e procedeu-se à Conferência.
Cumpre assim apreciar e decidir.
2 Fundamentação.
Como é pacífico, é pelas conclusões do recurso que se delimita o seu objeto – tudo sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Ora, e não obstante o despacho recorrido ter decidido manter a medida de coação fixada ao recorrente, em bom rigor o objeto deste recurso não é esse, sendo claro o peticionado pelo recorrente a este Tribunal e que é tão somente o saber se as joias e a chave do cofre apreendidas ao mesmo devem ou não manter-se sob esse registo.
Assim a única questão que importa apreciar neste recurso é o saber se os referidos objetos devem ou não manter-se apreendidos à ordem destes autos.
Vejamos então.
Conforme resulta dos autos está o recorrente indiciado de ter cometido um crime de tráfico de armas.
Como bem diz a Digna Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de 1ª Instância, a Lei n.°5/02, de 11.01, veio consagrar medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira, estabelecendo nomeadamente um regime especial de recolha de prova, quebra do segredo profissional e perda de bens a favor do Estado, incluiu no seu âmbito de aplicação o crime de tráfico de armas - cfr. art.° 1.°, n.° 1, c) da referida Lei.
No que à perda de bens concerne, dispõe o art.° 7° da referida Lei n.° 5/02, de 11.01, que: "1 - Em caso de condenação pela prática de crime referido no artigo 1.°, e para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de atividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento licito. 2 - Para efeitos desta lei, entende-se por «património do arguido» o conjunto dos bens: a) que estejam na titularidade do arguido, ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício, à data da constituição como arguido ou posteriormente; b) transferidos para terceiros a titulo gratuito ou mediante contraprestação irrisória, nos cinco anos anteriores à constituição como arguido; c) recebidos pelo arguido nos cinco anos anteriores à constituição como arguido, ainda que não se consiga determinar o seu destino. 3 - Consideram-se sempre como vantagens de atividade criminosa os juros, lucros e outros benefícios obtidos com bens que estejam nas condições previstas no artigo 111° do Código Penal".
Contudo, não é possível ignorar o que dispõe o artigo 9º dessa mesma lei: “Artigo 9.º Prova 1 - Sem prejuízo da consideração pelo tribunal, nos termos gerais, de toda a prova produzida no processo, pode o arguido provar a origem lícita dos bens referidos no n.º 2 do artigo 7.º 2 - Para os efeitos do número anterior é admissível qualquer meio de prova válido em processo penal. 3 - A presunção estabelecida no n.º 1 do artigo 7.º é ilidida se se provar que os bens: a) Resultam de rendimentos de atividade lícita; b) Estavam na titularidade do arguido há pelo menos cinco anos no momento da constituição como arguido; c) Foram adquiridos pelo arguido com rendimentos obtidos no período referido na alínea anterior. 4 - Se a liquidação do valor a perder em favor do Estado for deduzida na acusação, a defesa deve ser apresentada na contestação. Se a liquidação for posterior à acusação, o prazo para defesa é de 20 dias contados da notificação da liquidação. 5 - A prova referida nos n.os 1 a 3 é oferecida em conjunto com a defesa.”
Significa isto que pode o arguido fazer prova da origem licita dos bens e valores apreendidos, sendo tal prova oferecida com a defesa.
A ilação que decorre da lei, possibilidade de ilidir a presunção, embora seja procedimento a ter em sede posterior dos autos, (em sede de contestação do arguido), tem o mérito de nos fazer compreender a possibilidade de tal presunção ser ilidida em momento anterior, nomeadamente e como será o caso, mediante o expediente previsto no artigo 178º nº 7 do CPP.
Requereu o arguido o levantamento da apreensão das joias contidas dentro de um “guarda joias” – que alega serem da sua falecida mãe - e das chaves de um cofre bancário, (sendo só este o objeto do recurso, conforme acima referimos).
Juntou prova – fotografias da sua falecida mãe a usar as joias -, e registos das visitas ao referido cofre, pedindo a sua apreciação.
O despacho recorrido não se pronunciou sobre as provas oferecidas, limitando-se a aludir ao momento processual em curso e que “existem fortes suspeitas que os artigos e quantia monetária apreendidos constituem produto ou vantagem resultantes dos factos ilícitos em investigação nestes autos”.
Ora, com o devido respeito, o despacho recorrido, no que ao cofre e ao “guarda joias” se refere haveria de se ter pronunciado com mais clareza, aceitando-se até que tal matéria fosse remetida para apreciação posterior tal como parece indicar o artigo 9º nº 5 da Lei 5/2002.
O que não é possível fazer, como foi feito pelo tribunal recorrido é ignorar totalmente a prova indicada pelo recorrente, até porque, e a se confirmar o alegado, pelo menos as alianças em ouro gravadas, certamente não serão objetos adquiridos com as vantagens do crime.
Tem o recorrente direito a que seja apreciada a sua argumentação e a prova que ofereceu e requereu e a conhecer a decisão do tribunal sobre essa mesma prova, o que é incompatível com uma fundamentação genérica e, diríamos mesmo, padronizada.
Assim, haverá que revogar parte do despacho proferido, sendo o mesmo aproveitado somente quanto ao indeferimento da revogação da medida de coação fixada, e indeferimento do levantamento da apreensão das notas do BCE no montante de 17.000,00€, devendo o M. Juiz de Instrução proferir novo despacho onde decida sobre a origem licita das joias apreendidas e chave do cofre.
3 Decisão
Pelo exposto, julga-se o recurso provido e consequentemente decide-se revogar parcialmente o despacho recorrido, mantendo-se o mesmo quanto à permanência da medida de coação fixada e quanto ao indeferimento do levantamento da apreensão das notas do BCE, devendo ser proferido novo despacho – após a produção da prova indicada pelo recorrente – que se pronuncie sobre a origem dos objetos existentes no “guarda joias” e da chave do cofre, e se decida em conformidade.
Sem custas
Porto, 19 de junho de 2024
Raul Esteves
Amélia Catarino
Nuno Pires Salpico