CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
CONDIÇÃO
Sumário

I - É obrigatório o condicionamento da suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento da(s) prestação(ões) em falta (pelo menos na parte que a sua perspetiva de cumprimento comporte), especificidade imposta pelo RGIT e que o Tribunal Constitucional tem afirmado, uniformemente, em nada contrariar a lei fundamental, mesmo que aparentemente à margem da condição económica e pessoal do responsável, por não se apresentar com a rigidez que aparenta já que, no caso, vigorará o princípio rebus sic stantibus, só dando lugar à revogação eventual incumprimento se se demonstrar, no caso, uma atuação culposa do obrigado e a ponto de por em causa o juízo de prognose favorável e as finalidades subjacentes à suspensão, conforme decorre dos art.ºs 55.º e 56.º do C.P..
II - No caso, sendo a imposição da condição contestada decorrência do regime legal fixado, tendo em conta que, para efeitos da observância da jurisprudência fixada pelo Acórdão Uniformizador nº 8/2012 de 12 de setembro de 2012, o Tribunal apurou a situação económica do condenado e dilatou o prazo da suspensão como forma de, realisticamente, acomodar a possibilidade de pagamento, nada há a censurar relativamente ao decidido.

Texto Integral

Processo n.º 2825/21.4T9MAI.P1

Acordam em conferência na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I.
I.1
Nos autos de processo comum n.º 2825/21.4T9MAI, que correu termos no Juízo Local Criminal da Maia – Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, por sentença de 17.01.2024 foi julgada parcialmente procedente a pronúncia e, em consequência, decidiu-se, além do mais (transcrição):

3.1. Absolver o arguido AA da prática, em coautoria, na forma consumada e continuada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelos artigos 107.º n.ºs 1 e 2 e 105.º do RGIT, e 30º, nº 2, do Código Penal;
3.2. Condenar o arguido BB pela prática, na forma consumada e continuada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelos artigos 107.º, n.ºs 1 e 2 e 105.º do RGIT, e 30.º, n.º2 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão, que se suspende na sua execução por 4 (quatro) anos;
3.3. Condicionar a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento, no período de 4 (quatro) anos contados do trânsito em julgado, pelo arguido BB das cotizações em falta e respetivos juros de mora (conforme valores especificados em 3.5.);
3.4. Absolver o arguido AA do pedido de indemnização civil contra si formulado pelo Instituto da Segurança Social, I.P.;
3.5. Condenar o arguido BB no pagamento ao Instituto da Segurança Social, I.P. do montante das cotizações em dívida, no total de €49.546,28, acrescido de juros de mora à taxa de juro fixada anualmente pela Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública - IGCP, EPE, até efetivo e integral pagamento, e que ascendiam, em 03-05-2022, ao montante de €11.862,78;
3.6. Condenar o arguido BB no pagamento das custas processuais na parte criminal, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC;
3.7. Condenar a assistente Instituto da Segurança Social, I.P. e o arguido BB no pagamento, na proporção de metade para cada um, das custas processuais na parte cível, sem prejuízo do imediato cumprimento do disposto no artigo 15.º, n.º2 do Regulamento das Custas Processuais.

*
I.2
Inconformado, veio o arguido BB interpor o recurso ora em apreciação (Ref.ª 38164074) referindo, em conclusões, o que a seguir se transcreve:
- O presente recurso tem como objeto a matéria de facto e direito da douta sentença proferida pelo tribunal a quo, o qual condenou o arguido pela prática, na forma consumada e continuada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelos artigos 107º, nºs 1 e 2 e 105º do RGIT, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão, que se suspende na sua execução por 4 (quatro) anos, condicionando a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento das cotizações em falta e respetivos juros de mora no montante de 49.546,28€ acrescido de juros á taxa fixada anualmente pela Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública.
- O tribunal a quo ao consagrar como provado que:
- a gerência de facto da sociedade, no período considerado nos presentes autos, esteve sempre a cargo do arguido BB e que possuía ampla competência decisória ao nível da gestão do património e dos fundos pela mesma gerados.
- o arguido BB, em representação da sociedade arguida, estava obrigado a entregar mensalmente à Segurança Social as folhas de remuneração dos trabalhadores que se encontravam ao seu serviço, bem como os montantes correspondentes às cotizações deduzidas daquelas remunerações.
- o arguido BB reteve as cotizações dos valores das remunerações dos trabalhadores, porém não entregou tais montantes à Segurança Social, no montante global de €49.546,28, correspondente aos períodos de março de 2011 a maio de 2011, de julho de 2011 a fevereiro de 2016, e de maio de 2016 a abril de 2017;
- não procedeu à sua entrega no prazo legal, nem decorridos 90 dias sobre o termo deste prazo.
- O arguido BB desenvolveu a respetiva atividade criminosa num quadro de atuação de um propósito comum inicial de apropriação daquelas quantias de forma homogénea, sempre que as mesmas fossem necessárias para a satisfação de outros compromissos empresariais, propósito esse impulsionado, renovado e mantido pelo contexto de dificuldades financeiras que a empresa atravessava.
- o arguido BB que as quantias retidas nos salários eram pertença da Segurança Social, não ignorando, pois, que, investido na condição de mero depositário, as deveria entregar nos prazos por lei estabelecidos, logrando assim obter, para a sociedade arguida, uma vantagem patrimonial indevida.
- Agiu o arguido BB na qualidade de legal representante da sociedade arguida, em nome e no interesse da mesma, de modo livre, voluntário e consciente, não ignorando que a sua conduta era proibida e punível por lei.
- Conforme decorre da douta sentença, foi consultada a certidão comercial da sociedade A..., embora nos factos provados não conste qualquer referência a quem exercia a gerência no período aqui em causa.
- O Arguido foi gerente da sociedade A..., até 17 de agosto de 2010, data em que renunciou à gerência.
- E nomeado gerente CC, em 17 de agosto de 2010.
- Resulta à saciedade que o não pagamento à Segurança Social, decorreu no período em que a gerência estava atribuída a CC e não ao BB.
- Desde logo, tais factos devem constar dos factos provados o que aqui se requer, por serem relevantes para a descoberta da verdade.
- Pois, o tribunal começa por declarar que a gerência de facto esteve sempre a cargo do Arguido BB, não corresponde à verdade, conforme a prova produzida em audiência de julgamento.
- Inquirida a Exma. Senhora Dra DD, técnica da Segurança Social referiu que apenas teve intervenção na análise documental da dívida.
- E declarou que têm sido efetuados pagamentos regulares mensais…que são efetuados pelo Sr. EE…alguns pagamentos foram para abater à dívida da entidade inicialmente participada.”
- Questionada pelo Exmo. Senhor Procurador da República, se sabia quem era o Sr. CC, a mesma respondeu que é membro do órgão estatutário.
- Refere ainda que há pagamentos mensais regulares, e que o último foi pago em agosto de 2023, e em julho foi de 752€, e que a dívida vai até março de 2011, é interrompida em junho de 2011.
- Não sabe a razão pela qual os meses de junho de 2011 e março de 2016 não constam no mapa da dívida.
- FF, ex trabalhador da A..., iniciou as funções em 2007 e que declarou que quando iniciou funções os seus patrões eram o BB, GG e o AA;
- Esclarecendo o tribunal que o Sr. BB geria a parte da oficina, os clientes…sempre foi assim.
- Também HH, reformado e pintor de automóveis, ex-trabalhador da A..., referiu que os Arguidos eram seus patrões, que o Sr. BB, era ele que tomava conta dos serviços e que entregava os serviços…estava na receção, e o Sr. AA estava no escritório.
- E que nunca negociou o aumento de salários com o Sr. BB, que sempre lidou com ele na oficina, contrariamente ao assente na douta sentença.
- GG, ex sócio gerente da A..., renunciou à gerência em 2008, e até 2008 a gerência era repartida entre a testemunha e o arguido BB.
- A função dele era mais administrativa do que propriamente operacional ou produtiva, contrariamente ao arguido BB, não tinha qualificações para escolher mecânicos, era o BB que percebia dessa matéria, era o gerente mais qualificado;
- No entanto como funciona a gerência, no período em causa desconhece.
- II, antigo trabalhador da sociedade, referiu que os arguidos eram seu Colegas de trabalho na A..., na parte da contabilidade e da oficina.
- O Sr. BB chegou a ser seu patrão antes de haver uma insolvência, e que depois deixou de ser gerente.
- Era o Sr. AA que chamava para assinar os recibos, que estava cá em cima e lá em baixo, as faltas eram com o Sr. BB que estava junto connosco.
- Referiu que após a insolvência foi gerente, CC, que decidia inclusive os aumentos de salário.
- Ora face ao supra declarado pelas testemunhas, não se consegue lograr como o tribunal considerou provado que:
- A gerência de facto da sociedade, no período considerado nos presentes autos, esteve sempre a cargo do arguido BB, e que possuía uma ampla competência decisória ao nível da gestão do património e dos fundos pela mesma gerados.
- Desde o gerente GG, que tem uma ampla experiência de gestão até aos trabalhadores, todos foram unânimes em referir que o Arguido BB estava na oficina, que recebia os clientes na receção, que organizava o trabalho da oficina.
- Mais referiram que quem escolhia os mecânicos era o BB, e que o ex gerente GG tratava das questões administrativas, porque como bem referiu as questões operacionais ou produtivas estavam a cargo do BB.
- Ninguém lhe atribuiu qualquer função de gerência administrativa.
- Todos foram unânimes nessa questão.
- Repara-se que nos dias de hoje o Dr. GG é gestor e o Arguido BB, continua a ser mecânico.
- Da prova produzida em audiência de julgamento, só pode dar-se como provado que o Arguido BB foi gerente de direito até 2010, nada mais.
- A A... foi declarada insolvente, e na sequência, é nomeado gerente um credor, CC.
- Que, pelo menos até à data da inquirição como testemunha da técnica da Segurança Social, vê a sua reforma penhorada mensalmente como revertido, por ser gerente da A...!
- No entanto no procedimento criminal, o tribunal, entende que é o Arguido BB o gerente de facto da referida sociedade, embora a mesma tenha um gerente de direito, que nem sequer veio negar que o fosse!
- O Arguido BB, no período aqui em causa, não representava a sociedade arguida, nem de facto, nem de direito, nem administrativamente, pelo que não lhe competia entregar mensalmente à Segurança Social as folhas de remuneração dos trabalhadores que se encontravam ao serviço da A..., bem como os montantes correspondentes às cotizações deduzidas daquelas remunerações.
- O arguido BB não reteve as cotizações dos valores das remunerações dos trabalhadores, e não tinha quaisquer poderes decisórios quanto à entrega ou pagamento das cotizações aqui reclamadas.
- É certo e consabido que existe alguma relutância em alterar a matéria de facto dado como provada, quando a mesma resulta essencialmente da prova testemunhal.
- Na fixação da matéria de facto provada e não provada o tribunal socorre-se das regras da experiência e a livre convicção do tribunal, confrontando-se a prova documental com a prova oral.
- A apreciação da prova produzida em audiência, suscetível de contribuir para a formação da convicção do tribunal, rege-se pelo princípio da livre apreciação da prova, acolhido expressamente no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
- Essa convicção existirá quando se possa afastar de toda a dúvida razoável.
- O que aqui não aconteceu.
- Não foi provado que o Arguido BB exercia qualquer controlo na parte administrativa da sociedade, nem antes de 2008, mas precisamente o oposto.
- E muito menos, após a renúncia à gerência.
- O tribunal deu como provado que estudou até ao 7º ano de escolaridade, razão pela qual não se compreende que dê também como provado que o mesmo possui ampla competência decisória ao nível da gestão do património.
- Não cabia ao arguido decidir do pagamento de salários, aos fornecedores ou das contribuições.
- A testemunha II, foi clara, após a declaração de Insolvência o aumento dos salários era da responsabilidade do Sr. CC, Gerente da referida sociedade, e credor logo interessado na gestão da mesma.
- Se assim não fosse, qual a razão para permitir a penhora, que ainda se mantém.
- Deve considerar-se não provado que:
- a gerência de facto da sociedade, no período considerado nos presentes autos, esteve sempre a cargo do arguido BB;
- que o Arguido BB possuía ampla competência decisória ao nível da gestão do património e dos fundos gerados pela A...;
- o Arguido BB, em representação da sociedade arguida, estava obrigado a entregar mensalmente à Segurança Social as folhas de remuneração dos trabalhadores que se encontravam ao seu serviço, bem como os montantes correspondentes às cotizações deduzidas daquelas remunerações;
- o Arguido desenvolveu a atividade criminosa num quadro de atuação de um propósito comum inicial de apropriação daquelas quantias de forma homogénea, sempre que as mesmas fossem necessárias para a satisfação de outros compromissos empresariais, propósito esse impulsionado, renovado e mantido pelo contexto de dificuldades financeiras que a empresa atravessava.
- Sabia o arguido BB que as quantias retidas nos salários eram pertença da Segurança Social, não ignorando, pois, que, investido na condição de mero depositário, as deveria entregar nos prazos por lei estabelecidos, logrando assim obter, para a sociedade arguida, uma vantagem patrimonial indevida.
- o arguido BB agiu na qualidade de legal representante da sociedade arguida, em nome e no interesse da mesma, de modo livre, voluntário e consciente, não ignorando que a sua conduta era proibida e punível por lei.
- Devendo tais factos serem aditados aos Factos Não Provados, porque toda a prova produzida em Audiência de Julgamento terá obrigatoriamente que levar à Absolvição do Arguido BB.
- Ou em última análise lançar mão, do princípio do in dubio pro reo, princípio aplicado ao outro arguido e ao Gerente de Direito CC.
- Não esquecendo que na gerência bipartida entre o Dr. GG e BB, antes de 2010, cabia a gestão financeira àquele, e a este a operacional, e relacionamento com os trabalhadores da Oficina.
- Pelo que dúvidas não restam que há nulidade de sentença por falta de exame crítico das provas;
- E erro de julgamento quanto aos pontos dos factos provados 2.1.1 a 2.1.9., violando os artigos 355º, nº 1 3 34º do CPP.
- Foi o Arguido BB condenado, pelo crime de abuso de confiança contra a Segurança Social p.p. artigo 107.º, n.ºs 1 e 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT).
- Tal regime, impõe às entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores o montante das contribuições por estas legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n.ºs 1 e 5 do artigo 105.º, aplicando-se o disposto nos n.ºs 4 e 7 do artigo 105.º do mesmo diploma.
- Desde logo, o Arguido BB não era o gerente de facto nem de direito da entidade obrigada a proceder à entrega à Segurança Social das contribuições;
- Pelo que desde logo está afastado um dos elementos objetivos do tipo legal de crime aqui em análise.
- Nem subjetivo, pois em momento algum ficou provada a intenção, o dolo na referida apropriação, e a intenção de não entrega das mesmas.
- Ao não apreciar a Prescrição suscitada pelo Arguido AA, absolvido nos presentes autos, demitiu-se da obrigação de apreciar a alegada prescrição do procedimento criminal.
- Efetivamente verificou-se no quadro de dívida apresentado, houve uma interrupção quanto aos períodos dos anos de março de 2011 a abril de 2017, com um interregno de dois meses (junho de 2011 e março de 2016).
- O conhecimento da prescrição é oficioso, e não tem limite temporal, por tal se revelar um princípio basilar dos direitos de defesa dos Arguidos.
- Pelo que a sentença da nulidade de omissão de pronúncia, prevista na alínea c) do n.º 1 do art. 379.º do CPP.
- O tribunal a quo aplicou ao arguido a pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão, que se suspende na sua execução por 4 (quatro) anos, condicionando a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento das cotizações em falta e respetivos juros de mora no montante de 49.546,28€ acrescido de juros á taxa fixada anualmente pela Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública com a qual respeitosamente e salvo melhor entendimento – s.m.o, não se conforma o arguido, por considerar a pena aplicada excessiva e desproporcional.
- O recorrente não pode, de modo algum, conformar-se com a sentença proferida, mesmo que se admitisse a condenação, o que só se admite por mero exercício académico, a medida da pena aplicada foi desproporcional, em face das circunstâncias concretas apuradas nos autos, que determinariam a diminuição da sua culpa.
- Por outro lado, a condição imposta para a suspensão da pena de prisão, ao fazer dela depender a obrigação do pagamento pelo recorrente, no prazo de suspensão da pena, da quantia de 49.546,28€ acrescido de juros á taxa fixada anualmente pela Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública é uma condição impossível para o recorrente de cumprir, uma vez que aufere 900,00€ mensais, pouco acima do SMN.
- O tribunal, ao fazer depender a suspensão da pena de prisão dessa condição acabou por, na realidade, condenar o aqui recorrente a uma pena de prisão efetiva, tal é a impossibilidade de o mesmo cumprir com esse ónus, o que redunda na inconstitucionalidade da decisão, condenando-se o arguido primário, numa pena efetiva de prisão, devido ao não pagamento da suposta dívida.
- Ora, in casu, não atendeu o tribunal às condições pessoais do agente e a sua situação económica em referência ao art.º 71º nº 2 al. d) e e) do C.P.
- Pelo que deverão V. Exas. revogar a decisão do tribunal a quo, substituindo-a por outra que será sempre em primeira linha a absolvição, na aplicação de uma multa, ou se se entender na aplicação de uma pena de prisão, a mesma ser suspensa, sem qualquer condição.
- Os critérios gerais a atender na fixação da medida concreta da pena são os que se prendem com a prevenção e a culpa do agente, refletindo a primeira a necessidade comunitária da punição do caso concreto e constituindo a segunda, dirigida ao agente do crime, o limite às exigências de prevenção e, portanto, o limite máximo da pena.
- Como tal, a medida da pena terá de resultar da medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos no caso concreto, ou seja, da tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada – prevenção geral positiva ou de integração - e da necessidade de prevenção especial, constituindo a culpa o limite inultrapassável da pena.
- Regressando ao caso dos autos e tendo em conta tal limite da pena, associado à culpa do agente, uma das críticas a efetuar à sentença recorrida prende-se com incorreta avaliação dessa mesma culpa, principalmente em face do contexto em que os factos sucederam e dos quais decorre uma franca diminuição da culpa do recorrente, que teria em abstrato, sido colocado perante uma situação desesperada, em face da Insolvência.
- Além disso, o Arguido é primário, não tem averbado no seu registo criminal qualquer crime, e atualmente é mecânico de profissão, por conta de outrem, pelo que as exigências de prevenção especial são reduzidas, atenta a completa inserção social do arguido e a ausência de antecedentes criminais.
- O crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto nos artigos 105.º, n.º 1 e 107º, n.ºs 1 e 2 do Regime Geral das Infrações Tributárias é punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
- Ora a condenação do Arguido na pena de prisão de dois anos e dois meses aproxima-se do máximo da pena, ultrapassando e muito o limite mínimo.
- Parecendo-nos, s.m.o e devido respeito que o Tribunal “a quo” deu maior relevo as razoes de prevenção geral, preterindo as de prevenção especial.
- Assim, para que se justifique a aplicação de uma pena é necessário ter em consideração “A pena como instrumento de prevenção geral, (…) O denominador comum das doutrinas de prevenção geral radica na concepção da pena como instrumento politico-criminal destinado a actuar (psiquicamente) sobre a generalidade dos membros da comunidade, afastando-os da prática de crimes através da ameaça penal estatuída pela lei, da realidade da sua aplicação e da efetividade da sua execução”, JORGE DE FIGUEIREDO DIAS in “Direito Penal – Parte Geral – Tomo I – Questões Fundamentais a Doutrina Geral do Crime”, Coimbra Editora, 2ª Edição, 2011, p. 50 (cinquenta);
- Também, “A pena como instrumento de prevenção especial ou individual – As doutrinas da prevenção especial ou individual Têm por denominador comum a ideia de que a pena é um instrumento de actuação preventiva sobre a pessoa do delinquente com o fim de evitar que, no futuro, ele cometa novos crimes. Neste sentido se deve falar de uma finalidade de prevenção da reincidência.”, JORGE DE FIGUEIREDO DIAS in “Direito Penal – Parte Geral – Tomo I – Questões Fundamentais a Doutrina Geral do Crime”, Coimbra Editora, 2ª Edição, 2011, p. 54 (cinquenta e quatro).
- Sem prescindir sempre se diga que, face à matéria dada como provada, impõe-se a ABSOLVIÇÃO do Arguido, sendo que caso não se entenda, o período de 2 anos e 2 meses de prisão aplicado é manifestamente excessivo e desproporcional.
- Razão pela qual V. Exas. deverão revogar a douta sentença substituindo-a por outra que ABSOLVA o Arguido, e caso assim não se entenda, condene o arguido numa pena de multa.
- E deve ser, por força dessa ABSOLVIÇÃO que se impõe, ser absolvido do pedido.
- Sem prescindir, a Assistente não fez prova que as quantias peticionadas se mantenham em dívida, atento o depoimento da técnica da Segurança Social.
- O Gerente CC, tem efetuado pagamentos que não foram contabilizados.
- Deve o Demandado ser absolvido do pedido civil contra si formulado.
TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO, DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE E, EM CONSEQUÊNCIA:
I – Absolver o Arguido do crime de que vem acusado.
II - Absolver do pedido de indemnização civil formulado.
II - Se assim não se entender, o que só por mero exercício académico se consente, reduzir a pena aplicada, ao mínimo legal.
III - Revogação a condenação na obrigação de pagamento das quantias em dívida à Segurança Social, como condição de suspensão da pena de prisão aplicada.
FAZENDO-SE, ASSIM, A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA
*
I.3
Admitido o recurso, o Ministério Público apresentou articulado de resposta (Ref.ª 38413347), manifestando-se pela preservação da peça impugnada a cujos fundamentos adere e sem que se demonstre qualquer erro de julgamento, referindo que o recorrente tinha (também) poderes decisórios.
Inexiste qualquer nulidade da sentença, adveniente da fundamentação ou da omissão de pronúncia, sendo que a pena aplicada se afigura adequada e proporcional, podendo o recorrente satisfazer a condição imposta em virtude de uma eventual melhoria da sua situação económica.
*
I.4
Neste Tribunal o Digno Procurador-Geral Adjunto teve vista nos autos, tendo emitido parecer no sentido do não provimento do recurso, atentas as razões aí explanadas e que por razões de economia processual se dão por reproduzidas (Ref.ª 18050500).
*
I.5
Deu-se cumprimento ao disposto no art.º 417.º n.º 2 do C.P.P., não tendo sido exercido contraditório.
Foram os autos aos vistos e procedeu-se à conferência, importando, pois, apreciar e decidir.
*
II.
Questões a decidir:
Conforme jurisprudência recorrente e pacífica, o âmbito de qualquer recurso é delimitado pelas conclusões que sobrevêm às alegações do recorrente, sem prejuízo do conhecimento, ainda que oficioso, dos vícios da decisão a que se alude no n.º 2 do art.º 410.º do C.P.P. (cfr. art.ºs 119.º, n.º 1, 123.º, n.º 2 e 410.º, n.º 2, als. a) a c) do C.P.P. e Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, de 19.10).
No caso, vistas as conclusões apresentadas em sede recursória, constitui objeto do presente recurso, apreciar:
a) Da nulidade da sentença por violação do dever de fundamentação e omissão de pronúncia;
b) Da existência de erro de julgamento;
c) Da adequação da pena aplicada ao recorrente;
d) Da condicionante imposta à suspensão da execução da pena;
e) Do pedido de indemnização civil.
*
III.
Apreciando.
III.1
Por facilidade de exposição, retenha-se o teor da sentença recorrida, nas partes relevantes para o conhecimento do objeto do recurso:
(…)

2.1. Factos provados
2.1.1. A sociedade A... Lda. era uma sociedade por quotas cujo objeto social se traduzia na gestão de negócios nacionais e internacionais, prestação de serviços, estudos de mercado, representação, exportação e comercialização de material e equipamento técnico, reparação auto.
2.1.2. A gerência de facto da sociedade, no período considerado nos presentes autos, esteve sempre a cargo do arguido BB, possuindo este ampla competência decisória ao nível da gestão do património e dos fundos pela mesma gerados.
2.1.3. O arguido BB, em representação da sociedade arguida, estava obrigado a entregar mensalmente à Segurança Social as folhas de remuneração dos trabalhadores que se encontravam ao seu serviço, bem como os montantes correspondentes às cotizações deduzidas daquelas remunerações.
2.1.4. No exercício da respetiva atividade, o arguido BB reteve as cotizações dos valores das remunerações dos trabalhadores, porém não entregou tais montantes à Segurança Social, no montante global de €49.546,28, conforme a seguir se discrimina:
Mês/Ano Total de remuneração Taxa Cotizações retidas e não pagas
Março de 2011 €5.735,00 34,75% €630,85
Abril de 2011 €5.735,00 34,75% €630,85
Maio de 2011 €5.735,00 34,75% €630,85
Julho de 2011 €7.394,55 34,75% €813,40
Agosto de 2011 €8.209,64 34,75% €903,06
Setembro de 2011 €7.609,36 34,75% €837,03
Outubro de 2011 €6.458,64 34,75% €710,45
Novembro de 2011 €8.984,73 34,75% €988,32
Dezembro de 2011 €10.982,09 34,75% €1.208,03
Janeiro de 2012 €7.559,91 34,75% €831,59
Fevereiro de 2012 €7.234,55 34,75% €795,80
Março de 2012 €7.222,36 34,75% €794,46
Abril de 2012 €6.872,00 34,75% €755,92
Maio de 2012 €5.735,00 34,75% €630,85
Junho de 2012 €5.988,00 34,75% €658,68
Julho de 2012 €8.344,09 34,75% €917,85
Agosto de 2012 €7.984,45 34,75% €878,29
Setembro de 2012 €6.859,27 34,75% €754,52
Outubro de 2012 €5.734,55 34,75% €630,80
Novembro de 2012 €7.859,55 34,75% €864,55
Dezembro de 2012 €9.219,09 34,75% €1.014,10
Janeiro de 2013 €5.908,64 34,75% €649,95
Fevereiro de 2013 €5.908,64 34,75% €649,95
Março de 2013 €5.908,64 34,75% €649,95
Abril de 2013 €5.506,27 34,75% €605,69
Maio de 2013 €5.153,82 34,75% €566,92
Junho de 2013 €5.841,27 34,75% €642,54
Julho de 2019 €6.599,18 34,75% €725,91
Agosto de 2013 €7.383,55 34,75% €812,19
Setembro de 2013 €7.398,91 34,75% €813,88
Outubro de 2013 €5.898,91 34,75% €648,88
Novembro de 2013 €8.033,64 34,75% €883,70
Dezembro de 2013 €8.018,55 34,75% €882,04
Janeiro de 2014 €5.908,64 34,75% €649,95
Fevereiro de 2014 €5.908,36 34,75% €649,92
Março de 2014 €5.908,64 34,75% €649,95
Abril de 2014 €5.466,18 34,75% €601,28
Maio de 2014 €5.082,91 34,75% €559,12
Junho de 2014 €5.081,36 34,75% €558,95
Julho de 2014 €6.788,27 34,75% €746,71
Agosto de 2014 €8.403,45 34,75% €924,38
Setembro de 2014 €5.890,73 34,75% €647,98
Outubro de 2014 €5.535,27 34,75% €608,88
Novembro de 2014 €6.776,64 34,75% €745,43
Dezembro de 2014 €9.016,36 34,75% €991,80
Janeiro de 2015 €5.908,55 34,75% €649,94
Fevereiro de 2015 €5.903,91 34,75% €649,43
Março de 2015 €7.410,36 34,75% €815,14
Abril de 2015 €5.279,27 34,75% €580,72
Maio de 2015 €5.384,00 34,75% €641,74
Junho de 2015 €5.908,64 34,75% €649,95
Julho de 2015 €8.023,27 34,75% €882,56
Agosto de 2015 €8.019,09 34,75% €882,10
Setembro de 2015 €5.895,73 34,75% €648,53
Outubro de 2015 €5.910,91 34,75% €650,20
Novembro de 2015 €7.408,64 34,75% €814,95
Dezembro de 2015 €8.643,55 34,75% €950,79
Janeiro de 2016 €5.044,73 34,75% €554,92
Fevereiro de 2016 €4.466,45 34,75% €491,31
Abril de 2016 €3.711,64 34,75% €408,28
Maio de 2016 €3.711,64 34,75% €408,28
Junho de 2016 €3.649,18 34,75% €401,41
Julho de 2016 €5.617,91 34,75% €617,97
Agosto de 2016 €5.077,00 34,75% €558,47
Setembro de 2016 €3.702,00 34,75% €407,22
Outubro de 2016 €3.711,64 34,75% €408,28
Novembro de 2016 €5.149,18 34,75% €566,41
Dezembro de 2016 €5.458,27 34,75% €600,41
Janeiro de 2017 €3.578,00 34,75% €393,58
Fevereiro de 2017 €3.237,64 34,75% €356,14
Março de 2017 €3.687,55 34,75% €405,63
Abril de 2017 €3.688,36 34,75% €405,72
Total €454.132,37 €49.546,28

2.1.5. Não obstante no período em referência ter efetuado as retenções relativas ao montante devido a título de contribuições obrigatórias à Segurança Social, o arguido BB não procedeu à sua entrega no prazo legal, nem decorridos 90 dias sobre o termo deste prazo.
2.1.6. Os arguidos, notificados nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º4 e n.º6 do artigo 105.º do RGIT, não pagaram as quantias em dívida e respetivos acréscimos, no prazo de 30 dias.
2.1.7. O arguido BB desenvolveu a respetiva atividade criminosa num quadro de atuação de um propósito comum inicial de apropriação daquelas quantias de forma homogénea, sempre que as mesmas fossem necessárias para a satisfação de outros compromissos empresariais, propósito esse impulsionado, renovado e mantido pelo contexto de dificuldades financeiras que a empresa atravessava.
2.1.8. Sabia o arguido BB que as quantias retidas nos salários eram pertença da Segurança Social, não ignorando, pois, que, investido na condição de mero depositário, as deveria entregar nos prazos por lei estabelecidos, logrando assim obter, para a sociedade arguida, uma vantagem patrimonial indevida.
2.1.9. Agiu o arguido BB na qualidade de legal representante da sociedade arguida, em nome e no interesse da mesma, de modo livre, voluntário e consciente, não ignorando que a sua conduta era proibida e punível por lei.
Mais se provou que:
2.1.10. Os arguidos não têm antecedentes criminais.
2.1.11. Em 19-03-2003, o arguido AA foi nomeado gerente da sociedade comercial B..., Lda. com o NIPC ..., tendo sido destituído em 04-05-2005.
2.1.12. Desde 12-03-2001, AA também foi gerente da sociedade comercial C..., Lda., com o NIPC ..., tendo renunciado a essa gerência em 02-09-2005.
2.1.13. A sociedade C..., Lda. tinha uma quota de € 7.500,00 na sociedade B..., Lda., que lhe havia sido cedida por JJ, mulher, à data, do arguido AA.
2.1.14. Em 25-11-05, as quotas da sociedade B..., Lda. foram transmitidas, havendo redenominação, passando a chamar-se aquela sociedade A..., Lda., tendo sido nomeados gerentes GG e BB.
2.1.15. O arguido AA esteve inscrito na Segurança Social enquanto trabalhador por conta da sociedade arguida desde setembro de 2005 até fevereiro de 2016, tendo em março de 2016 feito inscrição no Centro de Emprego e de Formação Profissional, I.P. e frequentado, durante o ano de 2016, formações em língua inglesa (atendimento), língua inglesa (atendimento no serviço de pós-venda), língua inglesa (gestão de stocks), língua inglesa (vendas), processador de texto e folha de cálculo, cada um deles com 50 horas.
Prouvou-se ainda que:
2.1.16. BB estudou até ao 7.º ano de escolaridade.
2.1.17. Vive em casa da mãe, que paga €200,00 por mês por se tratar de habitação camarária.
2.1.18. Trabalha como mecânico por conta de outrem, auferindo € 900,00 por mês.
2.1.19. Despende cerca de € 200,00 por mês em prestação de alimentos dos filhos, que têm 21 e 23 anos.
2.1.20. A mãe é reformada, auferindo € 280,00 por mês.
*
2.2. Factos não provados
2.2.1. A gerência de facto da sociedade, no período considerado nos presentes autos, também esteve a cargo do arguido AA, que possuía ampla competência decisória ao nível da gestão do património e dos fundos pela mesma gerados.
2.2.2. O arguido AA estava obrigado a entregar mensalmente à Segurança Social as folhas de remuneração dos trabalhadores que se encontravam ao seu serviço, bem como os montantes correspondentes às cotizações deduzidas daquelas remunerações.
2.2.3. No exercício da respetiva atividade, o arguido AA reteve as cotizações dos valores das remunerações dos trabalhadores, mas não entregou tais montantes à Segurança Social, nos montantes e períodos referidos em 2.1.4..
2.2.4. Não obstante no período em referência em 2.1.4. ter efetuado as retenções relativas ao montante devido a título de contribuições obrigatórias à Segurança Social, o arguido AA não procedeu à sua entrega no prazo legal, nem decorridos 90 dias sobre o termo deste prazo.
2.2.5. O arguido AA desenvolveu a respetiva atividade criminosa num quadro de atuação de um propósito comum inicial de apropriação daquelas quantias de forma homogénea, sempre que as mesmas fossem necessárias para a satisfação de outros compromissos empresariais, propósito esse impulsionado, renovado e mantido pelo contexto de dificuldades financeiras que a empresa atravessava.
2.2.6. Sabia o arguido AA que as quantias retidas nos salários eram pertença da Segurança Social, não ignorando, pois, que, investido na condição de mero depositário, as deveria entregar nos prazos por lei estabelecidos, logrando assim obter, para a sociedade arguida, uma vantagem patrimonial indevida.
2.2.7. Agiu o arguido AA na qualidade de legal representante da sociedade arguida, em nome e no interesse da mesma, de modo livre, voluntário e consciente, não ignorando que a sua conduta era proibida e punível por lei.
2.2.8. Enquanto trabalhador da sociedade arguida nunca o arguido AA assinou qualquer ficha bancária dessa sociedade.
2.2.9. Nunca assinou qualquer documento interno ou externo referente a atos de gestão.
2.2.10. Nunca possuiu qualquer procuração que lhe permitisse vincular a sociedade em situação alguma.
2.2.11. Nunca participou em qualquer reunião da empresa ou mesmo em qualquer Assembleia.
2.2.12. Nunca decidiu o pagamento ou o não pagamento de qualquer matéria prima, serviço, salário, imposto ou contribuição.
2.2.13. Nunca contratou nenhum trabalhador.
2.2.14. Na qualidade de trabalhador da sociedade arguida, AA fazia conferência e lançamento de faturas, conversão de orçamentos em faturas, serviços externos, como idas aos D... a título de exemplo, entregava toda a documentação contabilística a uma entidade externa, processava notas de pagamento, recibos de salários e, efetuou por diversas vezes, o pagamento destes aos trabalhadores.
*
Consigna-se que não se levou ao elenco dos factos provados/não provados matéria conclusiva, sem interesse para o objeto do processo ou de direito.
*
2.3. Motivação
Facto provado 2.1.1.:
Alicerçou-se o tribunal na consulta da certidão permanente da sociedade arguida, de 25-05-2023.
Factos provados 2.1.2. a 2.1.9.:
Na sempre difícil tarefa de deslindar quem, numa determina sociedade - que tem gerência “de direito”, mas em que serão outras pessoas efetivamente a geri-la no seu dia a dia - são, “de facto”, os seus gerentes, a prova que mais sobressai, na ausência de prova documental cabal, é sem dúvida a prova testemunhal ou por declarações. Com efeito, quando está colocada em causa a gerência de direito, que é definida no pacto social ou por alterações posteriores a este, se inexistirem documentos que atestem quem, afinal, era o “verdadeiro” gerente da sociedade, restarão os depoimentos das testemunhas que melhor conheceriam o quotidiano da sociedade e as declarações dos arguidos.
Ora, neste nosso caso, tendo os arguidos optado por se remeterem ao silencio, FF (mecânico que trabalhou na sociedade arguida entre 2007 e 2017) e HH (pintor automóvel, que trabalhou na sociedade arguida entre 2006 e 2015/2016), em depoimentos que se nos afiguraram espontâneos, ainda que por vezes menos circunstanciados e precisos, afirmaram que, da sua vivência de trabalhadores, entendiam que eram seus patrões quer o arguido BB (enquanto responsável pela parte da oficina/operacional) como o arguido AA (como responsável pela parte administrativa). HH detalhou que negociou o seu contrato, em 2006, com os arguidos AA e BB e com o então gerente GG, mas, em síntese, que era com BB que tratava de quase tudo no que respeitava à execução do respetivo contrato de trabalho. Quanto a FF, relatou que tanto recebia ordens do arguido BB, como do arguido AA, mas quem lhe dava instruções de como realizar o seu trabalho era o arguido BB, por ser o responsável da oficina. Por último, e com relevo também precisou que tanto marcava férias com o arguido AA, como com o arguido BB. A contrastar, em certa medida, com estes depoimentos, GG, gerente da sociedade arguida entre 2005 e 2008, afiançou que, nesse período, gerente de facto era apenas ele e BB, e que o arguido AA apenas tinha funções administrativas. No mesmo sentido foi o depoimento de KK, contabilista, que não sendo TOC da sociedade arguida, estabeleceu contactos permanentes com aquela até agosto de 2010, e que foi perentória em afirmar que, no período subsequente à alteração da denominação da sociedade arguida (que coincidiu com a alteração de toda a estrutura de participações sociais) – ou seja, no final do ano de 2005 - AA passou a ser um administrativo, com quem falava frequentes vezes por motivos burocráticos ligados à contabilidade da sociedade, mas que era com a testemunha GG ou com o arguido BB que reunia para tomar decisões e prestar informações sobre a situação contabilística. Por fim, II, chapeiro (que trabalhou na sociedade arguida até à insolvência), veio afirmar que o seu “patrão” era BB, arredando dessa qualidade AA e especificando que era com aqueloutro arguido que falava quando precisava de tratar de qualquer assunto, como marcar férias.
Aqui chegados, concitados estes depoimentos aqui sumariados, e não se logrando tributar de mais credíveis uns do que outros, já que todos assentaram, em parte, numa perspetiva pessoal do que observaram e do que conheceram em dado período de vida da empresa, não deixamos de ficar com dúvidas sobre a efetividade da gerência por parte de AA no período de cerca de 6 anos a que se referem as cotizações em falta. Explicando, se é certo que, por exemplo, GG e KK apenas tiveram contacto com a sociedade arguida em momentos anteriores ao hiato temporal que interessa ao objeto da pronúncia, não deixaria de ser normal (ou seja, adequado às regras da experiência comum aplicadas ao caso concreto) que o status quo narrado por aquelas testemunhas, que nos pareceram mais informadas sobre a vida societária da empresa numa perspetiva de gestão, se mantivesse. Depois, se todos os trabalhadores não hesitaram em apontar BB como patrão, II não referiu que AA seria também gerente de facto e mesmo FF apresentou alguma hesitação, no termo do seu depoimento, sobre os seus efetivos conhecimentos sobre a gestão da sociedade arguida por parte de AA.
Em suma, se existe alguma prova indireta no sentido de que AA poderia ser gerente de facto, porquanto tinha passado como sócio e gerente de direito (ainda que, então, a sociedade contasse com denominação distinta) e se manteve nela a trabalhar mesmo depois da destituição (o que, convém notar, não é uma situação muito habitual), os depoimentos sobre o seu papel na sociedade arguida antes (mas após a destituição) e durante o período que interessa ao objeto destes autos, tanto podem levar à conclusão que era gerente de facto, como um funcionário administrativo, afigurando-se, por tudo, que não pode o tribunal afirmar aquela versão em detrimento desta. Quanto à prova documental junta pelo arguido AA para demonstrar que deixou de exercer quaisquer funções na sociedade arguida desde fevereiro de 2016, nomeadamente o extrato de remunerações da Segurança Social, com os descontos declarados junto da Segurança Social enquanto TCO da sociedade arguida, a declaração de situação desemprego com referência ao mês subsequente (março de 2016) e o Passaporte Qualifica (com registo de certificação de frequência de unidades de formação em várias disciplinas ao longo do ano de 2016), não relevando autonomamente para corroborar a versão de que aquele arguido se trataria de um mero funcionário da sociedade arguida, servem, todavia, para reforçar as dúvidas sobre o seu concreto papel na gestão dos destinos da sociedade arguida ao longo dos anos 2011 a 2017, na medida em que AA não se limitou a inscrever-se no centro de emprego, como frequentou várias formações durante o ano de 2016, o que surge como um contraindício da sua atuação enquanto gerente de facto da sociedade arguida quer nesse ano, quer por arrastamento, nos anos anteriores.
Depois, nenhuma das referidas testemunhas que trabalhavam ao serviço da sociedade arguida alguma vez se apercebeu que o sócio gerente “de direito” no período em causa, CC, tivesse contactado com eles ou ordenado o que quer que fosse, o que numa sociedade de pequena dimensão como a sociedade arguida, leva à conclusão que nunca chegou a assumir de facto as funções para as quais estava nomeado.
Já no que tange a BB, de toda a prova conjugada, dúvidas não se nos suscitam que, pelo menos ele, era responsável pelos destinos da sociedade arguida e, entre o mais, por assegurar que as cotizações descontadas e retidas nos salários dos trabalhadores no período em relevo, a quem pagava, eram, depois, remetidas à Segurança Social.
No que concerne às cotizações em dívida, mostram-se atestadas no mapa de dívida de fls. 146, emitido pela Segurança Social, sendo certo que o valor correspondente ao mês de março de 2016 viria a ser anulado na sequência do seu pagamento com o valor atribuído à Segurança Social no rateio final ocorrido no processo de insolvência n.º 1104/17.6T8STS, conforme informação também prestada pela Segurança Social com o requerimento de 30-10-2023, na sequência do depoimento de DD em que procurou esclarecer a diferença entre aquele mapa de dívida e o que foi apresentado com o pedido de indemnização civil, a fls. 521.
A notificação dos arguidos nos termos do disposto no artigo do disposto na alínea b) do n.º4 e n.º6 do artigo 105º do RGIT emerge dos originais dessas notificações de fls. 282 e 353, concretizadas pela Segurança Social.
Os factos respeitantes ao elemento subjetivo e ao conhecimento da ilicitude pelo arguido BB afloram do restante quadro factual provado, evidenciando-se que só um comportamento querido, livre e propositado justifica a falta de cumprimento da obrigação de entrega das cotizações à Segurança Social ao longo de cerca de seis anos. Por fim, é importante notar que é do conhecimento generalizado da população e, em concreto, de qualquer empresário, que a falta de entrega de cotizações da Segurança Social, previamente retidas, constitui um crime público.
Factos provado 2.1.10.:
Demonstrado pelos certificados de registo criminal dos arguidos.
Factos provados 2.1.11. a 2.1.14.:
Estribou-se o tribunal na cópia do registo comercial dos atos societários respeitantes à sociedade arguida (antes B..., Lda.) de fls. 69 a 72, e na cópia da certidão permanente junta com a contestação, referente à sociedade C..., Lda.
Factos provados 2.1.15.:
Com sustento no extrato de remunerações da Segurança Social do arguido AA, na declaração da IEFP, I.P. de 04-05-2016 e no “Passaporte Qualifica”, tudo documentos juntos com a contestação daquele arguido, cuja autenticidade e fidedignidade não foi colocada em crise.
Factos provados 2.1.16. a 2.1.20.:
Relevaram-se as declarações do arguido BB sobre essa matéria, que se nos afiguraram suficientemente credíveis.
Factos não provados 2.2.1. a 2.2.7.:
Remete-se para a motivação dos factos provados 2.1.2. a 2.1.9..
Factos não provados 2.2.8. a 2.2.14:
Na falta de declarações pelo arguido AA, nenhuma outra prova testemunhal ou documental foi produzida que demonstrasse quais as suas específicas funções dentro da sociedade arguida – além de genericamente serem qualificadas como de administrativas – nem os factos negativos 2.2.8. a 2.2.13..
*
2.4. Enquadramento jurídico-penal
O crime de abuso de confiança contra a Segurança Social é tipificado pelo artigo 107.º, n.ºs 1 e 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), que estabelece que as entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros de órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n.ºs 1 e 5 do artigo 105.º, aplicando-se o disposto nos n.ºs 4 e 7 do artigo 105.º do mesmo diploma.
O n.º 4 do artigo 105.º estipula que a não entrega das deduções à Segurança Social apenas será punível se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação e se a prestação em dívida não for paga, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
Por fim, o n.º7 dispõe que os valores a considerar para efeito de desconto são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.
O bem jurídico protegido com o crime de abuso contra a segurança social é a garantia do recebimento pelo Estado-Segurança Social das contribuições que lhe são devidas.
Os elementos do tipo objetivo são: (1) obrigação legal do agente a entregar à Segurança Social a contribuição que deduziu, (2) a não entrega de tal prestação ou prestações, total ou parcialmente, (3) passados que estejam 90 dias sobre o termo legal de entrega da prestação e (4) o não pagamento voluntário no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito.
Importa, neste segmento, sublinhar a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão n.º8/2010, de 23 de setembro e que determina que: “A exigência do montante mínimo de (euro) 7500, de que o n.º 1 do artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias - RGIT (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, e alterado, além do mais, pelo artigo 113.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro) faz depender o preenchimento do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal, não tem lugar em relação ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto no artigo 107.º, n.º 1, do mesmo diploma.”
Por outro lado, note-se que as normas citadas não exigem, para preenchimento do tipo, que o agente se aproprie, à semelhança do abuso de confiança comum, dos valores correspondentes às deduções dos vencimentos declarados, bastando a não entrega dos valores para que haja inversão do título de posse, ou seja, a designada apropriação contabilística (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 03/10/2001, relatado pelo Desembargador Teixeira Mendes, Proc. n.º 0140535, disponível em www.dgsi.pt.).
Quanto ao tipo subjetivo, trata-se de um crime exclusivamente doloso, sendo necessário que o agente saiba que está obrigado a entregar as contribuições e que, mesmo assim, não cumpra esse dever.
Por último, do artigo 6.º, n.º1 do RGIT resulta que, “quem agir voluntariamente, como titular de um órgão, membro representante de uma pessoa coletiva, sociedade, ainda que irregularmente constituída, ou de mera associação de facto, ou ainda em representação legal ou voluntária de outrem, será punido mesmo quando o tipo lega exija: a) Determinados elementos pessoais e estes só se verifiquem só se verifiquem na pessoa do representado; b) Que o agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante atue no interesse do representado.”
Os pressupostos do crime continuado, previsto no artigo 30.º n.º 2 do Código Penal são: - a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico; - execução por forma essencialmente homogénea; - no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
No caso, tendo ficado provado que o arguido BB, em representação da sociedade arguida, descontou, mas não entregou à Segurança Social, cotizações referentes aos períodos dos anos de março de 2011 a abril de 2017, com um interregno de dois meses (junho de 2011 e março de 2016) num valor total de € 49.546,28, comportamento que se manteve nos 90 dias após o prazo legal de entrega (que deveria ser feita até 20.º dia do mês seguinte àquele a que respeita a cotização – cf. artigo 43.º da Lei n.º110/2009, de 16 de setembro) e nos 30 dias subsequentes à notificação para pagamento voluntário, tendo atuado de modo livre, consciente e voluntário, conclui-se que se encontram preenchidos, quanto a si, enquanto gerente de facto da sociedade A..., Lda., tanto o elemento objetivo como subjetivo do tipo de ilícito em causa, na sua forma continuada.
De facto, do exposto, dúvidas não restam que o arguido BB, sendo quem geria de facto a sociedade arguida e que nessa qualidade, estava obrigado a realizar aqueles descontos, realizou múltiplas vezes o mesmo tipo de crime (de abuso de confiança contra a Segurança Social), de forma essencialmente homogénea (através da não entrega mensal à Segurança Social das quantias correspondentes aos descontos dos trabalhadores) e no quadro da solicitação do mesmo fator exterior (o acesso que tinha às quantias em dinheiro a serem entregues à Segurança Social, conjugada com um quadro de facilitismo gerado pela não atuação do Estado perante os primeiros ilícitos observados), beneficiando, por isso, do regime mais favorável do crime continuado, previsto no artigo 30.º do Código Penal.
Em suma, o arguido BB cometeu um crime continuado de abuso de confiança contra a segurança social, na modalidade de dolo direto, previsto e punível pelos artigos 107.º, n.ºs 1 e 2 e 105.º, n.ºs 1, 4 e 7 do Regime Geral das Infrações Tributárias, com referência ao artigo 6.º daquele diploma, e ao artigo 30.º, n.º2 do Código Penal.
No que concerne ao arguido AA, por não se mostrarem preenchidos o elemento objetivo e subjetivo do ilícito em apreço, deverá ser absolvido, motivo pelo qual fica prejudicado o conhecimento da eventual prescrição do procedimento criminal, na medida em que o conhecimento de tal questão dependia, em primeiro lugar, da demonstração que aquele arguido cessou funções como gerente de facto na sociedade arguida em fevereiro de 2006, e nem sequer se demonstrou que exerceu tais funções no período que mediou entre 2011 e 2017.
*
2.5. Escolha e medida da pena
Ao abrigo do disposto nos artigos 105.º, n.º 1 e 107º, n.ºs 1 e 2 do Regime Geral das Infrações Tributárias, o crime de abuso de confiança contra a segurança social é punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
Dispõe o artigo 70.º do Código Penal que “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa de liberdade e pena não privativa de liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades de punição”.
As finalidades de punição são a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (artigo 40.º, n.º1 do Código Penal).
A finalidade de proteção de bens jurídicos equivale à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, correspondendo às necessidades de prevenção geral positivas. Já a reintegração do agente na sociedade resume o outro polo que justifica a necessidade de aplicação da pena, doutrinalmente designado de prevenção especial positiva.
Acresce que não há pena sem culpa e a medida da pena não pode ultrapassar a da culpa (artigo 40.º, nº 2, do Código Penal).
E estabelece, ainda, o artigo 71.º, n.º2, do Código Penal que na determinação da medida concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.
Por fim dispõe o artigo 13.º do Regime Geral das Infrações Tributárias que: “Na determinação da medida da pena atende-se, sempre que possível, ao prejuízo causado pelo crime.”
No caso, verifica-se que as exigências de prevenção geral são assaz elevadas, atenta a proliferação deste tipo de ilícito, com prejuízo para o Estado-Segurança Social, que cada vez se encontra mais depauperado pela inversão da pirâmide etária (que resulta na dramática diminuição da população ativa e no progressivo aumento dos pensionistas), mas também pela prática recorrente deste tipo de ilícitos.
É importante, por esse motivo, transmitir à sociedade que as contribuições da Segurança Social não estão ao dispor das entidades empregadoras para a realização de jogos de contabilidade, ou para acorrer a necessidades de tesouraria; e importa alertar, também, que as contribuições da Segurança Social são elas próprias uma parte importantíssima da garantia de que o Estado de Direito Social terá um futuro apoiado na coesão e equilíbrio entre as várias camadas da sociedade.
Por outro lado, contra o arguido, deve considerar-se:
- O grau elevado da ilicitude do facto, consubstanciado no período de cerca de 6 anos em que o arguido BB persistiu na conduta criminosa e no valor global das deduções não entregues, que é alto;
- O dolo direto na prática do ilícito;
A favor do arguido resulta:
- Encontrar-se socialmente inserido;
- A ausência de antecedentes criminais;
- Ter apresentado postura correta em julgamento.
Pelo exposto, tudo considerado, opta-se pela aplicação de uma pena de prisão ao arguido BB, que neste caso concreto se impõe por motivos de prevenção geral – já que não seria compreendido pela comunidade a aplicação de uma pena de multa num caso em que a gravidade da ilicitude já se mostra elevada, quer pelo valor não entregue, quer pelo tempo em que perdurou a conduta criminosa – fixando-se a mesma em 2 anos e 2 meses de prisão.
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2.6. Substituição da pena de prisão
De acordo com o disposto no artigo 50.º, n.º1 do Código Penal, não se mostrando necessária a execução da pena de prisão aplicada para prevenir o cometimento de futuros crimes e se for entendido que a ameaça da prisão e a censura do facto bastarão para afastar o agente de novos ilícitos, a pena de prisão que não supere os 5 anos poderá ser suspensa, devendo, nesse juízo de prognose, ter-se em consideração a personalidade do agente, as condições da sua vida, a conduta anterior e posterior ao crime e as circunstâncias deste.
No caso dos autos, não tendo o arguido registo de outros antecedentes criminais, encontrando-se socialmente inserido, entendemos que a suspensão da pena de prisão será o melhor remédio punitivo.
No que respeita ao período em que deva vigorar a suspensão, nos termos do disposto no artigo 50.º, n.º5 do Código Penal, dada a gravidade do ilícito e de modo a controlar o comportamento futuro do arguido, nomeadamente para se apurar se voltou a delinquir e dar-lhe oportunidade de cumprir com a obrigação de pagamento das contribuições em falta que se imporá, parece-nos necessário, adequado e proporcional suspender a pena de prisão por 4 anos.
À luz do disposto no artigo 14.º, n.º1 do RGIT, que dispõe que - a suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa – fica a suspensão da pena de prisão condicionada ao pagamento, pelo arguido BB, das cotizações em falta e respetivos juros de mora.
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2.7. Pedido de indemnização civil
O pedido de indemnização civil deduzido pelo Instituto da Segurança Social, I.P. alicerça-se em responsabilidade civil extracontratual.
Nos termos do artigo 129.º do Código Penal “A indemnização por perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.”.
Dispõe o artigo 483.º do Código Civil que “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”.
Constituem pressupostos da responsabilidade civil extracontratual: o facto voluntário, a ilicitude, o nexo de imputação do facto ao lesante (ou a conduta culposa), os prejuízos e o nexo de causalidade entre o evento e os prejuízos.
O facto voluntário é o facto ou ato dominável ou controlável pela vontade do agente.
A ilicitude consiste na ofensa de interesses que a lei tutela, na contrariedade às normas da ordem jurídica.
O nexo de imputação do facto ao lesante (ou a conduta culposa) consiste na ligação, em termos de causalidade adequada entre o facto e uma conduta do agente merecedora de reprovação ou censura do direito. Consiste no agir de certo modo, que atenta a sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, podia e devia ter agido de outro modo.
Esse juízo de censura pode assumir as formas de dolo ou mera culpa.
Os prejuízos traduzem-se no prejuízo in natura que o lesado sofre nos interesses materiais ou espirituais que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar.
O nexo de causalidade do facto para produzir o evento danoso existe quando este é consequência normal e necessária daquele.
No que concerne à culpa, há que recorrer ao critério do “bonus paeter familiae” consagrado no artigo 487.º n.º 2 do Código Civil, cabendo, in casu, ao lesado provar a culpa do autor da lesão, nos termos do n.º 1 do referido preceito legal.
Dada a dificuldade com que muitas vezes se depara o lesado em provar a culpa do lesante, sobretudo nos casos de responsabilidade civil extracontratual, segundo Vaz Serra, in BMJ n.º 68, página 87 “Basta para provar a culpa que o prejudicado possa estabelecer factos que, segundo os princípios da experiência geral, tornem verosímil a culpa (…).”.
Descendo ao caso concreto, impendia sobre o demandado BB a obrigação legal (a obrigação jurídica contributiva) - que nasce no ato de pagamento dos salários aos trabalhadores - de proceder ao desconto e entrega das cotizações devidas à Segurança Social, circunstancialismo esse que não se verificou, porquanto pese embora tenha procedido a tal desconto, retendo as referidas quantias, depois não as entregou à Segurança Social.
Dessa não entrega resultou, pois, a violação ilícita do direito da assistente a receber no prazo fixado por lei os montantes das cotizações descontadas nos salários dos trabalhadores, com o inerente prejuízo para aquele, que hoje se cifra no montante de €49.546,28.
E não resultam dúvidas acerca da culpabilidade do demandado BB, porquanto a sua conduta é censurável seja qual for o prisma por que a mesma se analise, configurando, como se observou, um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social.
Na realidade, BB, em representação efetiva da sociedade arguida, podia e devia ter agido de modo diverso, entregando as quantias retidas, que não lhe pertenciam e cujo direito de recebimento assistia e assiste à Segurança Social.
Deste modo, e por os prejuízos resultarem diretamente da conduta perpetrada pelo demandado BB, deve este ser condenado no pagamento desses danos à assistente, nos termos dos artigos 562.º, 563.º n.º 1 e 564.º e 566.º nº 1 do Código Civil, reconstituindo assim a situação que existiria caso não tivesse existido a violação do direito da assistente a receber a quantia em apreço.
Em face do exposto e, sem mais considerações por despiciendas, cumpre concluir que a assistente terá direito ao pagamento por parte do arguido BB da quantia peticionada, no valor de €49.546,28.
Peticiona ainda a assistente o pagamento de juros vencidos e vincendos sobre as quantias em dívida, que já computou, à data de 03-05-2022, em € 11.862,78.
Nos termos do artigo 805.º n.º 1 do Código Civil, o devedor só fica constituído em mora, depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir.
Porém, o n.º 2 do mesmo normativo legal estabelece exceções à regra geral enunciada no n.º 1 e, assim, nos termos da alínea b), há mora do devedor independentemente de interpelação, se a obrigação tiver prazo certo.
A obrigação das demandadas entregarem à assistente as quantias deduzidas nos salários dos trabalhadores e dos membros dos órgãos estatutários tinha, como resulta dos factos provados, prazo certo, marcado pela lei.
Trata-se, pois, de obrigações cujo crédito é líquido e certo.
São, por isso, devidos juros de mora sobre as prestações em dívida, a partir do primeiro dia imediatamente a seguir ao do termo do prazo para a sua entrega à assistente.
No caso de incumprimento da relação jurídica contributiva perante a Segurança Social, o regime indemnizatório da respetiva obrigação pecuniária, encontra-se, desde a entrada em vigor da Lei n.º110/2009 de 16 de setembro, que instituiu o “Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social”, definida nos artigos 211.º e 212.º desse diploma, verificando-se, em matéria de juros, remissão para as demais dívidas do Estado, sendo contabilizados por cada mês de calendário ou fração.
A taxa de juros de mora e a sua aplicação por dívidas ao Estado estão estabelecidas no Decreto-Lei n.º 73/99 de 19/03, com as subsequentes alterações, encontrando-se o valor da taxa de juro fixado anualmente pela Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública - IGCP, EPE, e que, no ano de 2020 foi de 4.786 % (Aviso n.º 366/2020, de 9 de janeiro), no ano de 2021 foi de 4,705 % (Aviso n.º 369/2021, de 7 de janeiro), no ano de 2022 foi de 4,510 % (Aviso n.º 396/2022, de 7 de janeiro) e no ano de 2023 é de 5,997 % (Aviso N.º 177/2022, de 4 de janeiro).
Assim sendo, deverá ser o demandado condenado no pagamento à assistente dos juros de mora calculados àquelas taxas desde o vencimento das prestações contributivas, que ocorreu no dia seguinte àquele em que deveriam ter sido entregues (dia 21 do mês subsequente àquele a que respeitavam) e que, com respeito à data de 03-05-2022, ascendiam a € 11.862,78.
Termos em que deverá proceder totalmente o pedido de indemnização civil deduzido pela assistente no que respeita ao demandado BB, improcedendo, todavia, quanto ao demandado AA, considerando que não ficou demonstrado que praticou o ilícito de abuso de confiança que esteve na origem do prejuízo da Segurança Social.
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(…)
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III.2
Das nulidades da sentença
III.2.1
Da violação do dever de fundamentação
Neste segmento do objeto do recurso afirma o recorrente que “Pelo que dúvidas não restam que há nulidade da sentença por falta de exame crítico das provas”. Fá-lo na sequência da apreciação que fez da prova produzida em audiência e que, a seu ver, deveria ter defluído na absolvição do recorrente, pelo menos ao abrigo do princípio in dubio pro reo.
Apreciando.
Condensando os argumentos do recorrente e ante a invocação do estatuído no art.º 379.º, n.º 1, al. a) do C.P.P., dispõe tal preceito que É nula a sentença: (a) que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374º (…).
Por sua vez e visto o preceito destinatário da remissão operada, sob a epígrafe Requisitos da sentença, verifica-se que a fundamentação de facto daquela peça se divide em duas componentes: (i) a enumeração dos factos provados e não provados, e a (ii) exposição concisa dos motivos que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Decompondo o inciso legal, a decisão deve expor o porquê da opção tomada nesta matéria, dando a conhecer as razões pelas quais foram valoradas ou não valoradas as provas, a forma como foram interpretadas, explicando os motivos que levaram o julgador a considerar uns meios de prova credíveis e outros nem tanto, numa exposição lógica e fundamentada dos critérios utilizados na apreciação que efetuou.
Porquê?
Dispõe o art.º 205.º da C.R.P. que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei cumprindo-se, por esta via e em regra, duas funções [cfr. acórdão do Tribunal Constitucional 55/85, disponível em www. tribunalconstitucional.pt]: - Uma, de ordem endoprocessual, que visa impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da sua própria decisão, permitindo ulteriormente às partes – face à decisão assim proferida - exercitar o direito ao recurso, designadamente no questionamento do raciocínio expresso pelo julgador e facilitando, ao Tribunal de recurso, a construção de um juízo concordante ou divergente.
A outra função, já de ordem extraprocessual, possibilita o controlo externo e geral sobre a fundamentação lógica e jurídica da decisão visando, nas palavras de Michele Taruffo, garantir a transparência do processo e da decisão [vd. Note sulla garantizia constituzionale della motivazione, in Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, vol. LV (1979), pág. 29 e ss.].
Também o art.º 20.º, n.º 4, da Lei Fundamental, ao proclamar que todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo pressupõe, quanto à equitatividade, um efetivo direito à motivação das decisões judiciais em ordem a garantir a proibição do arbítrio, a interdição da discriminação e a obrigação de diferenciação que o princípio da igualdade, decorrente dos art.ºs 13.º da C.R.P. e 14.º da C.E.D.H. também impõem.
A jurisprudência do T.E.D.H. valoriza o direito à motivação, como decorrência do direito a um processo justo e equitativo que o art.º 6.º da C.E.D.H. afirma, transportando para o domínio do processo penal questões de ética relacionadas com a função estadual punitiva, com natural efeito na concordância prática a operar quanto aos interesses em confronto, já que a liberdade pessoal é um valor supremo que apenas poderá ser comprimido como consequência da prática de um facto com relevância criminal, cujo substrato demonstrativo se sedimentou, mediante um procedimento contraditório e garantístico, em resultado do qual se erigiu a verdade processual, desejavelmente próxima da verdade ontológica.
Nesta sequência, a descoberta da verdade não é um valor absoluto, porquanto aquela verdade terá que ser objetivável e motivada, obtida a coberto de uma noção de fair trail compatível com a preservação da integridade constitucional de um Estado que se funda sob o axioma ético da inviolabilidade da dignidade da pessoa humana.
O dever de fundamentação é, assim, uma garantia integrante do conceito de Estado de Direito Democrático e um instrumento, pela sua probidade, de legitimação da decisão judicial e potenciador de um efetivo direito ao recurso.
Em poucas palavras e trabalhando sobre a ideia expressa por LL [A imparcialidade do juiz de julgamento, Revista do Centro de Estudos Judiciários, 2021-I] o juiz, depois de convencido, terá, por via da fundamentação, que convencer e se estiver em causa – como no caso sucede – uma sentença condenatória, não podem sobejar dúvidas sobre as razões de facto e de direito pelas quais se condena e em que medida se condena.
Revertendo ao caso em apreço.
O recorrente afirma que a sentença posta em crise não fez uma análise crítica da prova, defluente em nulidade, sem que proceda a uma avaliação individualizada sobre o repontado vício cuja arguição, como se disse, surge após análise efetuada ao iter valorativo seguido na decisão posta em crise e que deveria ter produzido, na lógica argumentativa do recorrente, um resultado líquido diverso, no caso defluente na sua absolvição.
Sem razão, adianta-se.
O que é relevante no caso - conferindo substância ao constitucionalmente exigido dever de fundamentação e à correspetiva possibilidade de sindicância através do recurso - é que o destinatário da obrigação de motivação – o julgador - através da análise decomposta, combinada e crítica daqueles elementos enunciados, dê a conhecer aos intervenientes no processo (e à comunidade em geral) o seu processo interno de valoração e de formação da convicção, o que surge adiante através da denominação escolhida de “Motivação” e que deveria permitir, no caso ao arguido, o conhecimento da perceção daquele e a razão pela qual determinados factos se provaram. Numa palavra, a forma como foi percecionada e interpretada a prova com arrimo para a realidade reconstruída. Esse desiderato foi conseguido e o resultado apresentado (certamente de uma forma que o recorrente legitimamente discute, manifestando a sua discordância) é percetível e habilitante desse desvendar do iter interno, acomodando a efetivação do direito ao recurso, aliás profusa e proficientemente utilizada.
A demonstração do cumprimento do proclamado dever de fundamentação é a circunstanciada discussão, glosa e afirmações de contundente dissídio que o recorrente dirige ao critério do julgador, não porque o não tenha percebido mas, tão só, porque não se conforma com o modo e com as razões por este elencada para afirmar a realidade do evento naturalístico. Só que isso, salvo o devido respeito, transporta-nos para outro plano e outra dimensão de escrutínio – da impugnação da matéria de facto – a analisar ulteriormente infra.
A completude do dever legal de fundamentação não compele o juiz a exarar o conteúdo textual e intacto de todos os depoimentos prestados em audiência (ao jeito de assentada, quando o próprio legislador apela à concisão), estando a integralidade de tais depoimentos registada em gravação e disponível para consulta e confirmação, despistando qualquer desvirtuamento. O visto e analisado dever legal de fundamentação não impõe ao julgador a consignação, exaustiva, de todos os elementos alinhados para a formação da sua convicção, a incidir especificamente sobre cada um dos factos.
A lei, com expressão no art.º 374.º, n.º 2 do C.P.P., de forma caraterizada como “tanto quanto possível completa, mas concisa”, exige a indicação das provas e o seu exame crítico com o fito de desvelar o processo de formação da convicção, o que, no plano concreto e substancial, foi conseguido. Efetivamente e tendo em conta o aspeto fulcral da discussão, a sentença mostra-se profusamente fundamentanda, revelando a razão pela qual se acolheu, quanto ao recorrente, a versão trazida pela pronúncia, responsabilizante para este, elencando as razões para tanto.
Assim, no caso vertente, o Sr. Juiz referiu a prova que alicerçou o seu convencimento, a credibilidade que lhe mereceu, estando o acervo factual provado sustentado, extraindo-se, de forma percetível - atenta a análise crítica realizada - as razões pelas quais foram dados como provados os factos alinhados (e não provados outros).
Se aquele resultado da valoração da prova é correto, incorreto, ou se foram valorados elementos que deveriam ter sido desconsiderados, subvalorizados ou sobrevalorizados outros, é questão diversa da propalada nulidade da sentença por falta ou insuficiência de fundamentação, cuja existência não se lobriga.
Efetivamente, basta reler a fundamentação de facto, vertida na sentença, para se surpreender uma linha lógica no raciocínio e as razões pelas quais se atribuiu maior credibilidade a uns meios de prova em detrimento de outros, num relato sequencial, conforme às regras da experiência, justificando as razões pelas quais o julgador acreditou (ou não) em determinado depoimento, o fundamento do descrédito e os motivos pelos quais obteve o resultado que sedimentou, apreciando a prova, de forma singular e conjunta.
Claro que, no processo do convencimento, em sede de motivação, foram emitidos juízos que o recorrente critica, mas que foram expostos de forma percetível, denotativos das razões subjacentes à credibilização ou à não credibilização, e que permitem a qualquer pessoa acompanhar o iter lógico da formação da convicção, não coartando o direito ao recurso que, na verdade, pôde exercitar, contrapondo a falta de acerto de tal juízo e justificando a dissonância, respigando o que as testemunhas disseram (ou não disseram) e que poderia ter sido valorado de outra forma.
Em bom rigor, a discordância do recorrente deverá ser decidida em sede de impugnação da matéria de facto e não da putativa nulidade da sentença que, nesta medida, não existe, o que se declara, improcedendo, nesta parte, o recurso.
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III.2.2
Da nulidade por omissão de pronúncia
Refere o recorrente, nesta parte do objeto do recurso, que:
O Arguido AA, absolvido nos presentes autos, suscitou a prescrição do procedimento criminal.
Efetivamente verificou-se no quadro de dívida apresentado, houve uma interrupção quanto aos períodos dos anos de março de 2011 a abril de 2017, com um interregno de dois meses (junho de 2011 e março de 2016).
Ora o tribunal, como absolveu o referido Arguido, demitiu-se da obrigação de apreciar a alegada prescrição do procedimento criminal, mais precisamente quanto ao arguido BB, aqui recorrente.
O conhecimento da prescrição é oficioso, e não tem limite temporal, por tal se revelar um princípio basilar dos direitos de defesa dos Arguidos.
Pelo que a sentença da nulidade de omissão de pronúncia, prevista na alínea c) do n.º 1 do art. 379.º do CPP.
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Transcritas as linhas de argumentação, apreciando e decidindo.
Nos termos do art.º 379.º, n.º 1, al. c) é nula a sentença quando o tribunal “deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”, configurando a primeira situação a denominada “omissão de pronúncia”, traduzindo-se a segunda no seu excesso.
Em jeito introdutório dir-se-á, também, que a apontada nulidade por omissão de pronúncia se detém a questões, e não a razões ou a todos os argumentos invocados pela parte ou pelo sujeito processual em defesa do seu ponto de vista. A omissão de pronúncia, como é jurisprudência superior, só se verifica quando o juiz deixa de pronunciar-se sobre questões que lhe tenham sido submetidas pelas partes ou de que deva conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir e não os simples argumentos, opiniões ou doutrinas expendidas pelas partes na defesa das teses em presença [cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.07.2008, proc. 08P1312, Rel. Simas Santos, disponível em www.dgsi.pt].
A propósito da nulidade da sentença por omissão de pronúncia, o Prof. Alberto dos Reis ensinava que “São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzido pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” [Código de Processo Civil anotado, Vol. V, pág. 143].
No caso vertente o arguido AA, a final absolvido, terá invocado, em sede de contestação, a prescrição do procedimento criminal.
Em sede de sentença refere-se que “No que concerne ao arguido AA, por não se mostrarem preenchidos o elemento objetivo e subjetivo do ilícito em apreço, deverá ser absolvido, motivo pelo qual fica prejudicado o conhecimento da eventual prescrição do procedimento criminal, na medida em que o conhecimento de tal questão dependia, em primeiro lugar, da demonstração que aquele arguido cessou funções como gerente de facto na sociedade arguida em fevereiro de 2006, e nem sequer se demonstrou que exerceu tais funções no período que mediou entre 2011 e 2017.”.
Do acabado de referir resulta que o Tribunal não desconsiderou a questão apreciada, demitindo-se do seu conhecimento, a que estaria vinculado e sob a cominação do vício da omissão.
O que sucedeu foi que o Tribunal enunciou a questão colocada por este arguido, afirmou que o conhecimento da questão – para aferição dos momentos relevantes para o cômputo do prazo prescricional – dependia da demonstração de ter cessado funções como gerente de facto em fevereiro de 2006, o que não ocorreu, concluindo que ficaria prejudicada a questão por aquele arguido exclusivamente suscitada e enformada na sua situação concreta e irrepetível.
Note-se, aliás, que a questão já havia sido apreciada e decidida negativamente pelo Mm.º JIC, aquando da prolação do despacho de pronúncia (Ref.º 441193350).
Não há, assim, a nosso ver, qualquer omissão de pronúncia.
Só assim não seria se qualquer questão suscitada por um coarguido, em moldes adaptados à sua situação concreta, vinculasse o Tribunal a equacionar obrigatoriamente a mesma questão, mesmo que tivesse perdido acuidade para o impetrante originário, agora sob a perspetiva dos restantes arguidos não arguentes. Na lógica argumentativa do recorrente essa obrigatoriedade existe, na perspetiva do Ministério Público não existe, referindo-se, a este propósito e em sede de resposta que:
Não existe qualquer omissão de pronúncia (o que ditaria a nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal) quanto à questão da prescrição do procedimento criminal suscitada pelo arguido AA, porquanto que tal questão só suscitada por este arguido, ficou prejudicada em função da sua absolvição, por se ter considerado não ser gerente de facto da sociedade indicada nos autos. É certo que a prescrição é de conhecimento oficioso pelo Tribunal.
Todavia, o Tribunal apenas o terá que consignar em sede de sentença se concluir pela verificação da mesma, o que não sucede in casu, já que entendemos existir um único crime que é de execução permanente (aqui sim uma ligeira discordância com a sentença sindicada).”.
Embora, pelo que se referiu, a decisão recorrida não padeça do vício apontado e se entender que o facto de o seu conhecimento ser oficioso não impõe que se afirme a não verificação da causa extintiva (sendo a sua utilidade reservada aos casos em que efetivamente o procedimento se extinguiu por efeito da prescrição) – sob pena de, a entender-se o contrário, se tornar vinculativo que em todas as decisões o julgador se tenha de pronunciar, detalhada e especificamente, sobre a “não ocorrência” de prescrição – o certo é que, no caso em apreço, pelo menos em sede de recurso, vem o recorrente invocar novamente, pelo menos indiretamente, a questão, pese embora não forneça qualquer argumento válido para concluir por uma eventual prescrição. Substancialmente só faria sentido insurgir-se contra uma putativa omissão da prescrição invocada por outro arguido, entretanto absolvido, se dessa questão pudesse emergir qualquer efeito útil para o recorrente.
Assim, e assumindo que “nas questões a apreciar pelo tribunal [de recurso], incluem-se as de conhecimento oficioso e as questões submetidas à apreciação do tribunal pelos intervenientes processuais, desde que sobre elas não esteja legalmente impedido de se pronunciar. A prescrição do procedimento criminal é uma questão, no sentido supra exposto, e é oficioso o seu conhecimento.” [acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 07.03.2018, proc. 1633/08.2PBCBR.C1, Rel. Vasques Osório, acedido em www.dgsi.pt], apreciemos perfunctoriamente a questão suscitada.
A prescrição tem sido entendida como um instituto de natureza mista, processual e substantiva, tratando-se de uma renúncia do Estado ao ius puniendi e, como tal, sujeita ao regime de aplicação da lei penal mais favorável ao arguido (art.º 2.º, n.º 4 do C.P.) e não ao da aplicação imediata da lei processual penal.
O art.º 119.º do C.P. estabelece que o prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se consumou, sendo que nos crimes continuados (sendo esse o enquadramento assumido na sentença recorrida), o prazo de prescrição só corre desde o dia da prática do último ato criminoso.
O art.º 5.º, n.º 2, do R.G.I.T. estabelece que as infrações tributárias omissivas se consideram praticadas na data em que termine o prazo para cumprimento dos respetivos deveres tributários, considerando o art.º 21.º do mesmo diploma legal que o procedimento criminal por crime tributário se extingue, por efeito de prescrição, logo que sobre a sua prática sejam decorridos cinco anos, sem prejuízo de consideração dos prazos gerais de prescrição constantes do C.P. quando a pena aplicável ao crime tributário for igual ou superior a 5 anos, acrescentando, às causas de interrupção e suspensão previstas na lei geral, as específicas contidas nos art.ºs 42.º, n.º 2 e 47.º do R.G.I.T.
No caso vertente e segundo os factos considerados na sentença, as últimas contribuições não entregues reportam-se a abril de 2017 (sem considerar os prazos constantes do n.º 4 do art.º 105.º do R.G.I.T.), sendo o prazo prescricional de 5 anos. Tal prazo interrompeu-se, pelo menos, com a constituição de arguido, com a notificação da acusação e com a notificação do despacho que designou dia para a audiência de julgamento, sendo que, entre tais factos interruptivos não decorreu, evidentemente, aquele período de 5 anos.
Além disso, verificam-se igualmente as causas de suspensão prevenidas na als. b e e), do n.º 1 e 2, do art.º 120.º do C.P., a primeira por um período de 3 anos, pelo que, manifestamente, desde a prática do último ato não decorreu o período normal da prescrição (5 anos), acrescido de metade (2 anos e 6 meses), o que apenas ocorreria em outubro de 2024, se inexistissem causas de suspensão, sendo a primeira, como se referiu, vigente por um período de 3 anos a desconsiderar naquele.
É manifesta, pois, a não verificação da causa extintiva do procedimento criminal.
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III.3
Do erro de julgamento
Neste segmento da peça em apreciação alega o recorrente, essencialmente, que o Tribunal a quo fez uma errada valoração da prova disponível já que a mesma, se devidamente apreciada, produziria resultado diverso e, no caso, conducente à sua absolvição.
Em sustento refere que se surpreende a existência de erro de julgamento na afirmação de que a gerência da sociedade recorrente era exercida pelo arguido já que, efetivamente, a gerência era exercida por CC, (que, aliás, tem a sua reforma penhorada por esse motivo) conforme resulta da certidão comercial da sociedade “A...”.
As testemunhas inquiridas – no caso DD, FF, HH, GG e II – nenhuma delas, atento o teor dos respetivos depoimentos, permitia afirmar que o recorrente exercia, no período relevante, a gerência de facto da empresa, razão pela qual tal facto não poderia ter sido dado como provado e, assim sendo, nenhuma obrigação declarativa ou de pagamento sobre si impendida, tornando-o elegível para a prática do crime.
Por esse motivo, devem ser dados como não provados – in extremis por aplicação do princípio in dubio pro reo - os factos que elenca e de cuja demonstração positiva resultou a sua condenação.
Vejamos então.
Como é consabido, o julgamento da matéria de facto, em primeira instância, é efetuado segundo o princípio da imediação – possibilitando o contacto direto e pessoal entre o julgador e a prova, tangível ao (e próprio do) juiz a quo – sendo (…) as provas apreciadas por quem assistiu à sua produção, sob a impressão viva colhida nesse momento e formada através de certos elementos ou coeficientes imponderáveis, mas altamente valiosos, que não podem conservar-se num relato escrito das mesmas provas [Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português – Do Procedimento, Univ. Católica Ed., pág. 212]. Além disso, o julgamento da matéria de facto far-se-á segundo o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.º 127.º do C.P.P., interpretado, não num sentido que desonere o julgador de justificar o seu raciocínio e percurso interior para chegar à afirmação do facto ou à sua desconsideração – caso em que falaríamos de arbítrio - mas, apenas, no sentido de que o valor a atribuir a determinado meio de prova não é tarifado ou vinculado (salvo as exceções consignadas na lei), orientando-se o julgador de acordo com os ditames da lógica e da experiência, podendo, por exemplo, atribuir relevância a um depoimento em detrimento de vários e mais numerosos de sinal contrário, desde que o justifique, já que, na esteira do afirmado por Bacon, os depoimentos não se contam, pesam-se.
A convicção do Tribunal é, reforça-se, formada livremente, de acordo com as regras de experiência, enquanto postulados decorrentes da observação social e dos conhecimentos da técnica e da ciência. A afirmação positiva dos factos deverá fazer-se, não por razões ou argumentos puramente subjetivos e insindicáveis, mas sim concluindo-se através de uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, permitindo “objetivar a apreciação” [Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, Verbo 1993, pág. 111 a propósito da definição do conceito de livre apreciação da prova.].
Destarte, se a decisão do Tribunal recorrido se ancorar numa fundamentação compreensível, com as naturais opções próprias efetuadas com permissão da razão e das regras da experiência comum, cumprir-se-á o necessário dever de fundamentação e não se detetará o pressuposto erro de julgamento. Será, tão só, a afirmação motivada do convencimento do Tribunal que, naturalmente, se sobreporá a outras avaliações subjetivas concorrentes, maxime a do arguido.
Neste percurso, note-se, não raras vezes louvar-se-á o julgador em elementos indiciários/probatórios obtidos por via indireta, consequentemente envolvendo presunções obtidas por via judicial sendo até, amiúde, o único meio de chegar ao esclarecimento de um facto criminoso e à descoberta dos seus autores, ou para a afirmação e exteriorização do conhecimento e intenção que, à falta de confissão, são do foro íntimo do agente.
Como se escreve no acórdão desta Relação de 18.03.2015 [proc. n.º 400/13.6PDPRT.P1, Rel. Neto de Moura, acedido em www.dgsi.pt], a propósito do papel preponderante, da atendibilidade e da valoração da prova indireta, “I – Quer a prova direta, quer a prova indireta são modos, igualmente legítimos, de chegar ao conhecimento da realidade (ou verdade) do factum probandum. II – Em processo penal são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (art. 125.º do Cód. Proc. Penal), pelo que não pode ser excluída a prova por presunções (art. 349.º do Cód. Civil), em que se parte de um facto conhecido (o facto base ou facto indiciante) para afirmar um facto desconhecido (o factum probandum) recorrendo a um juízo de normalidade (de probabilidade) alicerçado em regras da experiência comum que permite chegar, sem necessidade de uma averiguação casuística, a um resultado verdadeiro. III – O sistema probatório alicerça-se em grande parte neste tipo de raciocínio (indutivo) e, para certos factos, como sejam os relativos aos elementos subjetivos do tipo (doloso ou negligente), não havendo confissão, a sua comprovação não poderá fazer-se senão por meio de prova indireta. IV – A prova indiciária é suficiente para determinar a participação no facto punível se da sentença constarem os factos-base (requisito de ordem formal) e se os indícios estiverem completamente demonstrados por prova direta (requisito de ordem material), os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e, sendo vários, devem estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência.”.
Em síntese, neste capítulo, a prova indireta, que contém momentos de presunção ou inferência, pode igualmente justificar certeza bastante para fundar uma convicção positiva do Tribunal, desde que se assegure, na formação dessa convicção, uma valoração conjugada e coerente dos vários elementos indiciários a considerar, de forma motivada, objetivável e numa leitura que se afigure consentânea com as regras da experiência.
Naturalmente, qualquer dos sujeitos processuais destinatários da decisão poderá discordar do juízo valorativo assim firmado e nela contido. Ou porque entende que outro meio de prova se sobreporia, ou porque outro, que foi valorado, seria, para si, de credibilidade questionável mas, lembre-se, o poder de valorar a prova e de se determinar de acordo com essa avaliação pertence ao ente imparcial e constitucionalmente designado para a função de julgar: - o Tribunal.
Aqui chegados, a decisão da matéria de facto – com a qual os recorrentes expressam forte dissídio – só pode ser sindicada, em sede de recurso, por duas vias distintas:
- Por verificação, mesmo oficiosa, dos vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P., a denominada revista alargada que, a proceder, deflui na realização de um novo julgamento, total ou parcial, apenas excecionalmente o podendo fazer o próprio tribunal superior (art.ºs 426.º, n.º 1, 430.º, n.º 1, e 431.º, als. a) e c), do C.P.P.);
- Através da impugnação ampla, prevista no art.º 412.º, n.ºs 3, 4 e 6 do C.P.P., com eventual correção do decidido pelo tribunal superior (cfr. art.º 431.º, al. b), do C.P.P.).
No primeiro caso, o substrato para a verificação do(s) vício(s) deverá colher-se no (e bastar-se com o) texto da própria decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, sem recurso a elementos externos (designadamente probatórios) concretizando-se na (i) insuficiência dos factos provados para suportar a correlativa decisão de direito (o que não pode confundir-se com uma putativa insuficiência das provas para alicerçar a decisão de facto), na (ii) contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (entre os factos provados e não provados, entre si ou uns com os outros, ou entre aqueles e a motivação, ou ainda nesta mesma) e (iii) o erro notório na apreciação da prova (ante o padrão do homem médio e evidente a partir do escrutínio do texto da decisão) (cfr. art.º 410.º, n.º 2, als. a), b) e c) do C.P.P.), vício que, neste contexto, não se verifica quando a fonte da discordância resulta, tão só, da não conformação com a versão acolhida pelo Tribunal que, aos olhos do recorrente, deveria ter sido distinta.
No segundo caso – impugnação ampla – a sindicância pode envolver o próprio processo e resultado da formação da convicção do julgador sobre a prova produzida, designadamente a suficiência ou insuficiência desta para a materialidade considerada, a capacidade e a segurança do convencimento que emerge dos meios de prova a valorar, seja à luz dos critérios legais da avaliação (art.º 127.º do C.P.P.), seja sob o espectro das disposições sobre prova vinculada.
Em síntese, no caso da denominada impugnação restrita, tendo por fundamento os vícios decisórios, apenas se consente o escrutínio da sentença na sua literalidade e sob o espartilho apontado supra. Já no caso da impugnação ampla, esta já pode visar o próprio juízo decisório revidendo, a sua verosimilhança e consistência, no cotejo com a prova produzida. Porém, ainda assim e nesta última hipótese, não se trata, aqui, de um novo julgamento, sobreposto ao realizado em primeira instância e que usufruiu do aporte irrepetível oferecido pela oralidade e pela imediação. A impugnação, ainda que alargada, constitui, tão só, o remédio jurídico apropriado para a deteção de eventuais erros in judicando ou in procedendo, considerando o exame crítico da prova efetuado na primeira instância que está, naturalmente, vinculado a critérios objetivos, jurídicos e racionais e sustentado nas regras da lógica, da ciência e da experiência comum, sendo por isso mister que se demonstre a impossibilidade lógica e probatória da valoração seguida e a imperatividade de uma diferente convicção.
Mais.
No caso da impugnação alargada, - em que a atividade do Tribunal de recurso não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise da prova concretamente produzida em audiência de julgamento e devidamente registada – o juízo de apreciação e conformidade far-se-á de acordo com os limites fornecidos pelo recorrente e decorrentes do cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art.º 412.º do C.P.P.. Ou seja, sempre que qualquer recorrente vise impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto deve especificar (i) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; (ii) As concretas provas [ou falta delas] que impõem decisão diversa da recorrida; (iii) As provas que devem ser renovadas, ao que acresce que ”Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas (…) fazem-se por referência ao consignado na ata (…) devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”. Em epítome e em tese geral, não bastará ao recorrente configurar hipóteses decisórias alternativas, da sua conveniência ou modo de ver, mais ou menos compagináveis com a prova produzida, sendo ainda necessário que a eventual insuficiência da prova para a decisão da matéria de facto que foi tomada, ou, na proposta de apreciação alternativa, a prova que foi produzida, imponha, como conclusão lógica, uma decisão distinta e, em concreto, aquela que na argumentação de recurso se defende.
Neste último aspeto referido importa reforçar que não basta a afirmação do dissídio, a apreciação crítica do decidido ou a asseveração de considerandos ou propostas de decisão alternativa. Se assim fosse, a sindicância, a este nível, traduzir-se-ia na realização de um novo julgamento, já que ver-se-ia a segunda instância na contingência de revisitar toda a prova produzida para, ante aquelas manifestações gerais de subjetividade, sobrepor ou não a sua. Por isso, antes se impõe ao recorrente um dever de fundamentação que torne evidente que as provas indicadas impõem decisão diferente, com o mesmo grau de argumentação e convencimento que é exigível ao julgador para fundamentar os factos provados e não provados, só assim se percebendo qual o raciocínio seguido para se poder afirmar que o mesmo impõe decisão diversa da recorrida [cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica, 2ª Edição, fls. 1131, notas 7 a 9, em anotação ao artigo 412º, do Código de Processo Penal].
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Tendo em conta os sobreditos conceitos, agora em análise especificamente dirigida ao caso vertente, situa o recorrente a sua pretensão recursória sob o enfoque do erro de julgamento. Efetivamente, a matéria de facto discutida é impugnada com base na prova produzida em audiência e não no teor e literalidade da decisão. Lida esta, não se surpreendem os vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2 do C.P.P., quer por insuficiência fáctica para o preenchimento objetivo e subjetivo do tipo de abuso de confiança à segurança social (o que é contestado, apenas, tendo por premissa a ablação de factos considerados provados, ou seja, na eventualidade de proceder a pretendida alteração da decisão de facto), quer em eventual contradição ou entorse lógico patente no texto da motivação.
Apreciando.
Nesta parte – exercício da gerência - o Tribunal a quo considerou:
Na sempre difícil tarefa de deslindar quem, numa determina sociedade - que tem gerência “de direito”, mas em que serão outras pessoas efetivamente a geri-la no seu dia a dia - são, “de facto”, os seus gerentes, a prova que mais sobressai, na ausência de prova documental cabal, é sem dúvida a prova testemunhal ou por declarações. Com efeito, quando está colocada em causa a gerência de direito, que é definida no pacto social ou por alterações posteriores a este, se inexistirem documentos que atestem quem, afinal, era o “verdadeiro” gerente da sociedade, restarão os depoimentos das testemunhas que melhor conheceriam o quotidiano da sociedade e as declarações dos arguidos.
Ora, neste nosso caso, tendo os arguidos optado por se remeterem ao silencio, FF (mecânico que trabalhou na sociedade arguida entre 2007 e 2017) e HH (pintor automóvel, que trabalhou na sociedade arguida entre 2006 e 2015/2016), em depoimentos que se nos afiguraram espontâneos, ainda que por vezes menos circunstanciados e precisos, afirmaram que, da sua vivência de trabalhadores, entendiam que eram seus patrões quer o arguido BB (enquanto responsável pela parte da oficina/operacional) como o arguido AA (como responsável pela parte administrativa). HH detalhou que negociou o seu contrato, em 2006, com os arguidos AA e BB e com o então gerente GG, mas, em síntese, que era com BB que tratava de quase tudo no que respeitava à execução do respetivo contrato de trabalho. Quanto a FF, relatou que tanto recebia ordens do arguido BB, como do arguido AA, mas quem lhe dava instruções de como realizar o seu trabalho era o arguido BB, por ser o responsável da oficina. Por último, e com relevo também precisou que tanto marcava férias com o arguido AA, como com o arguido BB. A contrastar, em certa medida, com estes depoimentos, GG, gerente da sociedade arguida entre 2005 e 2008, afiançou que, nesse período, gerente de facto era apenas ele e BB, e que o arguido AA apenas tinha funções administrativas. No mesmo sentido foi o depoimento de KK, contabilista, que não sendo TOC da sociedade arguida, estabeleceu contactos permanentes com aquela até agosto de 2010, e que foi perentória em afirmar que, no período subsequente à alteração da denominação da sociedade arguida (que coincidiu com a alteração de toda a estrutura de participações sociais) – ou seja, no final do ano de 2005 - AA passou a ser um administrativo, com quem falava frequentes vezes por motivos burocráticos ligados à contabilidade da sociedade, mas que era com a testemunha GG ou com o arguido BB que reunia para tomar decisões e prestar informações sobre a situação contabilística. Por fim, II, chapeiro (que trabalhou na sociedade arguida até à insolvência), veio afirmar que o seu “patrão” era BB, arredando dessa qualidade AA e especificando que era com aqueloutro arguido que falava quando precisava de tratar de qualquer assunto, como marcar férias.
Aqui chegados, concitados estes depoimentos aqui sumariados, e não se logrando tributar de mais credíveis uns do que outros, já que todos assentaram, em parte, numa perspetiva pessoal do que observaram e do que conheceram em dado período de vida da empresa, não deixamos de ficar com dúvidas sobre a efetividade da gerência por parte de AA no período de cerca de 6 anos a que se referem as cotizações em falta. Explicando, se é certo que, por exemplo, GG e KK apenas tiveram contacto com a sociedade arguida em momentos anteriores ao hiato temporal que interessa ao objeto da pronúncia, não deixaria de ser normal (ou seja, adequado às regras da experiência comum aplicadas ao caso concreto) que o status quo narrado por aquelas testemunhas, que nos pareceram mais informadas sobre a vida societária da empresa numa perspetiva de gestão, se mantivesse. Depois, se todos os trabalhadores não hesitaram em apontar BB como patrão, II não referiu que AA seria também gerente de facto e mesmo FF apresentou alguma hesitação, no termo do seu depoimento, sobre os seus efetivos conhecimentos sobre a gestão da sociedade arguida por parte de AA.
Em suma, se existe alguma prova indireta no sentido de que AA poderia ser gerente de facto, porquanto tinha passado como sócio e gerente de direito (ainda que, então, a sociedade contasse com denominação distinta) e se manteve nela a trabalhar mesmo depois da destituição (o que, convém notar, não é uma situação muito habitual), os depoimentos sobre o seu papel na sociedade arguida antes (mas após a destituição) e durante o período que interessa ao objeto destes autos, tanto podem levar à conclusão que era gerente de facto, como um funcionário administrativo, afigurando-se, por tudo, que não pode o tribunal afirmar aquela versão em detrimento desta. Quanto à prova documental junta pelo arguido AA para demonstrar que deixou de exercer quaisquer funções na sociedade arguida desde fevereiro de 2016, nomeadamente o extrato de remunerações da Segurança Social, com os descontos declarados junto da Segurança Social enquanto TCO da sociedade arguida, a declaração de situação desemprego com referência ao mês subsequente (março de 2016) e o Passaporte Qualifica (com registo de certificação de frequência de unidades de formação em várias disciplinas ao longo do ano de 2016), não relevando autonomamente para corroborar a versão de que aquele arguido se trataria de um mero funcionário da sociedade arguida, servem, todavia, para reforçar as dúvidas sobre o seu concreto papel na gestão dos destinos da sociedade arguida ao longo dos anos 2011 a 2017, na medida em que AA não se limitou a inscrever-se no centro de emprego, como frequentou várias formações durante o ano de 2016, o que surge como um contraindício da sua atuação enquanto gerente de facto da sociedade arguida quer nesse ano, quer por arrastamento, nos anos anteriores.
Depois, nenhuma das referidas testemunhas que trabalhavam ao serviço da sociedade arguida alguma vez se apercebeu que o sócio gerente “de direito” no período em causa, CC, tivesse contactado com eles ou ordenado o que quer que fosse, o que numa sociedade de pequena dimensão como a sociedade arguida, leva à conclusão que nunca chegou a assumir de facto as funções para as quais estava nomeado.
Já no que tange a BB, de toda a prova conjugada, dúvidas não se nos suscitam que, pelo menos ele, era responsável pelos destinos da sociedade arguida e, entre o mais, por assegurar que as cotizações descontadas e retidas nos salários dos trabalhadores no período em relevo, a quem pagava, eram, depois, remetidas à Segurança Social.
No que concerne às cotizações em dívida, mostram-se atestadas no mapa de dívida de fls. 146, emitido pela Segurança Social, sendo certo que o valor correspondente ao mês de março de 2016 viria a ser anulado na sequência do seu pagamento com o valor atribuído à Segurança Social no rateio final ocorrido no processo de insolvência n.º 1104/17.6T8STS, conforme informação também prestada pela Segurança Social com o requerimento de 30-10-2023, na sequência do depoimento de DD em que procurou esclarecer a diferença entre aquele mapa de dívida e o que foi apresentado com o pedido de indemnização civil, a fls. 521.
A notificação dos arguidos nos termos do disposto no artigo do disposto na alínea b) do n.º4 e n.º6 do artigo 105º do RGIT emerge dos originais dessas notificações de fls. 282 e 353, concretizadas pela Segurança Social.
Os factos respeitantes ao elemento subjetivo e ao conhecimento da ilicitude pelo arguido BB afloram do restante quadro factual provado, evidenciando-se que só um comportamento querido, livre e propositado justifica a falta de cumprimento da obrigação de entrega das cotizações à Segurança Social ao longo de cerca de seis anos. Por fim, é importante notar que é do conhecimento generalizado da população e, em concreto, de qualquer empresário, que a falta de entrega de cotizações da Segurança Social, previamente retidas, constitui um crime público.
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Contra esta argumentação verbera o recorrente o decidido, numa aproximação inicial, com base no teor da certidão permanente constante dos autos (Ref.ª 434822169) e nos termos da qual se encontra registada a sua renúncia à gerência e, em contraponto, nela figurando como gerente CC.
Visto o predito documento encontra-se, de facto, registada a renúncia à gerência por parte do recorrente, através da Ap. ..., de 2010.09.14.
Não obstante e por si só, tal documento, a nosso ver (e no do Tribunal recorrido) não impõe decisão diversa. Espelha, unicamente, quem detém a gerência nominal ou de direito e não, como no caso releva, quem a exerce efetivamente ou de facto, não existindo presunção legal que imponha que, provada a gerência de direito, por provado se dê, também, o efetivo exercício da função, habilitando a que se faça prova, por qualquer meio não proibido, de quem exerce a gerência de facto.
Ora, na ótica da decisão recorrida, essa prova fez-se, tendo em conta os depoimentos de FF (20231004154054_16302768_2871530.wma), HH (20231004160241_16302768_2871530.wma), GG (20231004161640_16302768_2871530.wma), KK (20231004164155_16302768_2871530.wma) e II (20231221144319_16302768_2871530.wma) e a forma como os concatenou, que se encontra expressa na motivação agora contestada.
Ao raciocínio motivado do Tribunal a quo contrapõe o recorrente trechos dos depoimentos de DD, FF, MM, GG e II que, a seu ver, são elucidativos da impossibilidade de se sustentar a afirmação de que o recorrente exercia, no período, a gerência de facto da empresa.
Vejamos, então.
O depoimento de DD (20231004142713_16302768_2871530.wma) acaba por não ser relevante para a equação e para a pretendida reversão. É certo que a testemunha em causa identifica CC como “membro do órgão estatutário”, mas a sua intervenção nos autos emerge de análise documental, não estando, pois, habilitada a contribuir para o esclarecimento de quem exercerá, de facto, a gerência, nem a sentença recorrida considerou, neste particular, o seu depoimento para a formação da convicção.
Já quanto aos restantes depoimentos, foram, efetivamente, valorados. Ao que se intui, de forma distinta da almejada pelo recorrente. Na perspetiva do Tribunal o depoimento daquelas testemunhas contém elementos para a afirmação de que o arguido exerceu funções de gerente de facto. Para o recorrente os mesmos depoimentos fornecem elementos de sinal contrário e se, devidamente interpretados (e, no limite, ao abrigo do princípio in dubio pro reo), não poderiam defluir no sustento de uma condenação.
Tendo procedido à audição de todos os depoimentos convocados, referiu a testemunha FF (20231004154054_16302768_2871530.wma) que os arguidos “foram os seus patrões”, tendo trabalhado na empresa cerca de 10 anos, com início em 2007. Os arguidos geriam a empresa, não reconhecendo mais ninguém como “patrão” (incluindo, pois, o sobredito CC). Até ao encerramento foram sempre os arguidos AA e BB os seus patrões, sendo que, qualquer um deles, lhe pagava o salário, podendo, também com eles, tratar de qualquer assunto relacionado com a execução do contrato de trabalho.
No entender desta testemunha é certo que era o arguido BB quem lhe dava instruções quanto às suas funções, já que era o “patrão” que amiúde se encontrava a gerir a parte da oficina e o relacionamento com os clientes.
Quanto a CC “falou-se” que também seria sócio mas nunca os arguidos o apresentaram como “patrão” e nunca a ele se dirigiu ou com este tratou de qualquer assunto.
HH (20231004160241_16302768_2871530.wma) também identificou os arguidos como os “gerentes da firma onde trabalhava”. Iniciou as suas funções em 2006 e manteve-se na empresa até 2015/2016. Durante a sua permanência na empresa era com o arguido BB, aqui recorrente, que mais interagia, sendo este quem lhe distribuía o trabalho e se encontrava na oficina. O arguido AA encontrava-se mais no escritório. Quanto faltava ou tinha que justificar ausências era com o arguido BB que resolvia o assunto, nas suas folhas de vencimento figuravam os descontos para a Segurança Social sendo que, quando a empresa começou a atrasar-se no pagamento de salários, por vezes o recorrente endossava cheques de clientes ao depoente para liquidar parte do salário.
Mais referiu a testemunha que, enquanto foi funcionário da empresa, não lhe apresentaram mais ninguém como “patrão”, sendo o seu relacionamento com o arguido AA muito pontual.
A testemunha GG (202310044161640_16302768_2871530.wma) não manteve um depoimento, nesta parte, relevante, tendo em conta que se manteve na empresa apenas até 2008, desconhecendo o seu funcionamento de 2011 a 2016 embora, enquanto foi sócio, a gerência fosse exercida por si e pelo recorrente, tendo o arguido AA passado a funcionário administrativo.
Por fim, a testemunha II (20231221144319_16302768_2871530.wma) referiu que o arguido BB foi o seu “patrão” até à insolvência da empresa, não conferindo o ascendente ou identificando a mesma figura na pessoa do arguido AA, referindo a existência, na parte final, de CC, não por contacto direto, mas porque o recorrente lhe dizia – por exemplo quanto a um pretendido aumento de salário – que [o recorrente] “tinha de falar” com ele.
Aqui chegados e realçando que, no âmbito da impugnação da matéria de facto e como decorre do estatuído no art.º 412.º, n.º 3, al. b) do C.P.P., a alteração do decidido, com base nas provas indicadas, não se basta com meras hipóteses de decisão alternativa (da conveniência do recorrente e na linha da apreciação própria e subjetiva que faz da prova produzida), devendo aquelas impor decisão diversa, não se alcança que aquele desiderato, necessário para a procedência, tenha sido atingido.
Efetivamente, como se pode ler no Acórdão desta Relação de 25/05/2022 [proc. 57/19.0IDPRT.P1, Rel. Pedro Afonso Lucas] “A figura do chamado gerente de facto foi criada para responsabilizar pessoas que, não sendo formal e registalmente representantes legais de determinadas pessoas colectivas, efectivamente assumam essas funções, prevenindo assim a sua artificiosa obnubliação na responsabilidade pelas consequências da actuação destas últimas (…)”, o que se compreende, dado que o preenchimento do tipo legal do crime de abuso de confiança à Segurança Social pressupõe, da parte do agente, uma capacidade efetiva e material de praticar atos de gestão, com poderes de facto necessários para optar pelo incumprimento da obrigação, o que poderá não estar ao alcance do “gerente formal”.
Dito isto, dos meios de prova elencados e considerados na decisão a quo no arrimo dos factos provados, resulta afirmada a intervenção do recorrente nas vestes de “gerente de facto”, de “patrão”, praticando factos dispositivos consentâneos com essa qualidade e domínio funcional, a tal não obstando a eventual “divisão” referida por algumas testemunhas com o co-arguido ou, no caso da última referida, com CC já que, como se pode ainda reter do acórdão acima convocado, a figura do gerente de facto não serve para “(…) do mesmo passo desresponsabilizar os seus efectivos gerentes/administradores legais, ou de direito”.
Sucede, porém, que no caso o Tribunal afirmou a gerência de facto do recorrente com base num juízo e em inferência estribada nos vários indícios concordantes recolhidos, numa interpretação lisa e permitida pelas regras da experiência, designadamente a clara identificação do recorrente, pelos colaboradores, com a figura do “patrão”, na transmissão de ordens e instruções, na justificação de faltas, no endosso de cheques para o pagamento de vencimentos, a tal não obstando, quer a existência, no período, de um gerente de “direito”, desconhecido pelos funcionários e a quem não é identificado qualquer ato material compatível, quer a predominância assacada ao recorrente de funções operacionais/executivas e de proximidade com a força laboral, na oficina e no contato direto com os clientes.
Na verdade, ao contrário do que parece fazer crer o recorrente, não será pelo facto de este se encontrar, amiúde, na oficina, junto aos colaboradores e no contato com os clientes, que vê diminuída a qualidade em que intervém e passa a “mero” funcionário. As sociedades – e com particular as mico-empresas como evidenciou a testemunha GG – não funcionam “compartimentadas”, de forma estanque, de um modo que quem exerça funções mais operacionais seja desqualificado para o exercício de funções de gerência, ou perca contato com o processo decisório do ente coletivo.
Assim e em conclusão, salvo o devido respeito e apreciando o iter seguido pelo julgador, não da forma espartilhada e compartimentada como o faz o recorrente mas, ao invés, na perspetiva global como é percecionada na decisão recorrida, as inferências extraídas e as afirmações contidas na fundamentação da decisão de facto – neste particular – encontram respaldo nos meios de prova elencados, apreciados de forma que não colide com as regras da experiência comum e da lógica, defluindo numa reconstrução possível e verosímil da realidade que a argumentação recursória não desconstrói, fornecendo, apenas, uma versão alternativa para a valoração dos mesmos meios de prova mas que, como se viu, não impõe decisão diversa.
Aliás, a ser exatamente como propõe o recorrente, a sociedade estaria numa espécie de autogestão, num limbo, sem governo ou direção, porquanto o recorrente só trataria, em exclusivo, dos assuntos relacionados com a oficina, inibido de influenciar os destinos da empresa, gerida por outrem cuja presença no espaço não é referida e que os colaboradores não conhecem.
A posição do Tribunal a quo, desconsiderando a figura do “gerente de direito”, é apodítica e encontra-se sustentada na prova produzida e nas inferências dela extraídas, de acordo com a livre apreciação da prova, não evidenciando qualquer juízo arbitrário ou extrapolação esdrúxula da prova, não sendo inédito o surgimento de gerentes de direito em momentos conturbados da vida societária (como no caso vertente na iminência da insolvência), quando os “verdadeiros” gerentes não dispõem de crédito, confiança ou conveniência para personificar a imagem externa da sociedade. Aliás a lei não é insensível a estas realidades paralelas. Por exemplo, não será inconstitucional, designadamente por violação do art.º 29.º da C.R.P., a interpretação de que o preenchimento do tipo incriminador referente ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social não exige a demonstração da qualidade de gerente de direito, de acordo com critérios estritamente formais e jurídicos, bastando-se com a comprovação de o agente, voluntariamente, atuar como tal, atenta a norma do art.º 6.º do RGIT.
É certo que o Tribunal, pelas razões que justificou, não chegou à mesma conclusão quanto à comparticipação do coarguido AA, fazendo-o de forma motivada, defluindo na sua absolvição, consequência que o Ministério Público não impugnou. Também é certo que o gerente CC não foi acusado, tendo quanto a este sido produzido despacho final de arquivamento pela inexistência de indícios quanto a uma efetiva gerência de facto (mesmo que, numa perspetiva exclusivamente nominal e documental, lhe possa ter sido penhorada a reforma pela falta de pagamentos). Porém, estas incidências processuais não implicam, a contrario sensu, como parece defender o recorrente, que a mesma lógica e o mesmo quadro de asserções devesse impor, quanto a si, o mesmo resultado.
Assim, nenhuma censura merece a afirmação, como provados, dos factos contestados, não se alcançando que o Tribunal a quo devesse chegar a conclusão distinta da sufragada na decisão revidenda, ou que tenha proferido decisão de facto que extravase os limites da liberdade de apreciação da prova e de formação da convicção que lhe assistem (art.º 127.º do C.P.P.).
O erro de julgamento, com a virtualidade de conduzir à modificação da decisão de facto, não se identifica com a diferente valoração da prova produzida, proposta pelo recorrente, mas, antes, apenas existe quando se evidencie um erro flagrante de valoração ou de aquisição que, ante determinado acervo probatório (ou falta dele), impusessem decisão diversa. No caso, tal não se vislumbra, verificado que foi o iter lógico seguido pelo julgador, o encadeamento e confronto crítico dos meios de prova disponíveis e as conclusões a que chegou sem que, nessa sua atividade, sejam notados desvios às regras da lógica e da experiência comum, não sendo o resultado da exegese qualificável de inverosímil ou inadequado, acrescendo, no processo valorativo, o préstimo único das perceções, dos gestos, as interjeições, os silêncios que fazem parte do património único da imediação e da oralidade.
Da mesma forma não se concede que o Tribunal, ao decidir como decidiu, tenha violado o princípio in dubio pro reo.
O predito princípio é estruturante do processo penal, decorrência da presunção de inocência, consagrada constitucionalmente e que, na aplicação prática, constitui limite exógeno à liberdade de apreciação da prova.
Com efeito, o princípio da presunção de inocência destina-se a proteger as pessoas que são objeto de uma acusação, garantindo que não serão condenadas enquanto não se demonstrarem os factos da imputação, através de uma atividade probatória inequívoca. Significa tal princípio constitucional que toda a decisão condenatória deve ser sempre precedida de uma mínima e suficiente atividade probatória, impedindo a condenação sem provas seguras.
Sendo esse princípio uma norma diretamente vinculante e constituindo um direito fundamental dos cidadãos (cfr. art.ºs 32.º, n.º 2 e 18º, n.º 1 da C.R.P.), reconhecido no direito internacional (cfr. art.º 11º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e art.º 6º, n.º 2 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos), impõe-se, quando não for demonstrada e provada a culpabilidade do arguido, a sua absolvição.
Embora frequente, a dúvida não pode obstar ao ato de julgar. Sendo proibido o non liquet fundado na insuficiência de provas, em caso de dúvida insanável o facto deve resolver-se em desfavor da acusação, porquanto o arguido se presume inocente. Se o Tribunal não lograr obter a certeza dos factos, permanecendo em dúvida razoável, deve absolver o arguido por falta de provas.
Como bem sustentou Cavaleiro Ferreira, “Em processo penal, a justiça perante a impossibilidade de uma certeza, encontra-se na alternativa de aceitar, com base em uma probabilidade ou possibilidade, o risco de absolver um culpado e o risco de condenar um inocente. A solução jurídica e moral só pode ser uma: deve aceitar-se o risco de absolvição de um culpado e nunca o de condenação de um inocente” [Cfr. Curso de Processo Penal, Vol. I, Lisboa, 1986, pág. 216.].
Concluindo e utilizando uma fórmula consagrada, da autoria do Professor Figueiredo Dias, pode dizer-se que “(...) um non liquet na questão da prova – não permitindo nunca ao juiz que omita a decisão (...) tem de ser sempre valorado a favor do arguido” [Cfr. Direito Processual Penal, Vol. I, Coimbra, 1974] – pois a dúvida sobre os factos resolve-se em função do princípio da presunção de inocência.
Note-se, em todo o caso, que a dúvida que legitima a invocação do princípio in dubio pro reo deve ser, além do mais, insanável, pressupondo que houve, a montante, todo o empenho e diligência no esclarecimento dos factos, sem que tenha sido possível, a final, ultrapassar o estado de incerteza que funda a ativação do princípio.
Revertendo ao caso em apreço e entroncando na improcedência, já apontada, da parte atinente à impugnação alargada, também aqui e em confluência lógica, não se verifica qualquer violação do proclamado princípio.
Efetivamente, lida a fundamentação exarada pelo Tribunal a quo, não foi a entidade decisora assaltada, no percurso, por qualquer dúvida e, muito menos, que esta fosse razoável ou insanável. O Tribunal obteve a certeza dos factos que afirmou, em raciocínio motivado, pelo que não subsistindo quaisquer dúvidas, inexistia, outrossim, qualquer razão, porque desprovida de objeto, para resolvê-las a favor do arguido. O que na prática se verifica é que o recorrente, em face da valoração que subjetivamente fez da prova, entende que, ante o seu próprio convencimento, o Tribunal deveria ter tido dúvidas. Mas não teve, nem se notaram supra razões para que se questionasse a valoração que efetuou.
O princípio in dubio pro reo, decorrente da presunção de inocência, “parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador.” [Cfr. Cristina Líbano Monteiro, In Dúbio Pro Reo, Coimbra, 1997], dúvida positiva que, in casu, não existe nem se aponta que, em face da argumentação utilizada, devesse ter existido.
Aqui chegados e em síntese, com a manutenção do quadro factual impugnado mostram-se preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo constante da sentença produzida e da subsunção efetuada.
No caso, entendeu o Tribunal, de forma incontestada e a preservar pro reo, que se tratou de um único crime (continuado) de abuso de confiança contra a Segurança Social, entendendo-se como tal a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro de uma mesma solicitação exterior que diminua sensivelmente a culpa do agente (art.º 30.º do C.P.). Ou seja, nem toda a atuação do agente obedece ao mesmo dolo ou momento resolutivo, mas aquele está interligado por fatores externos que arrastam o agente para a reiteração das condutas. Nestes casos, a culpa está tão acentuadamente diminuída que um só juízo de censura, e não vários, é possível formular, o que, no caso, foi associado à situação precária da sociedade.
Foi este o raciocínio expresso na decisão recorrida, favorável ao recorrente (por contraposição a tantos crimes quantas as omissões, ou a um crime de execução continuada) e que, não sendo contestado, deve ser preservado em sede de recurso.
Embora as quotizações, individualmente consideradas, não atinjam os € 7.500,00, tal facto mostra-se irrelevante no caso vertente, quanto à completude da relevância típica porquanto, de acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2010, de 23 de setembro [acedido em https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao-supremo-tribunal-justica/8-2010-342118], a “exigência do montante mínimo de (euro) 7500, de que o n.º 1 do artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias - RGIT (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, e alterado, além do mais, pelo artigo 113.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro) faz depender o preenchimento do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal, não tem lugar em relação ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto no artigo 107.º, n.º 1, do mesmo diploma”.
*
III.4
Da (in)adequação da pena aplicada ao recorrente
Neste segmento, alega o recorrente que a pena concretamente aplicada – 2 anos e 2 meses de prisão – violou o princípio da proporcionalidade, em face das circunstâncias concretas apuradas nos autos e que determinaram a diminuição da culpa.
Apreciando.
A sindicância do decidido, que nos propomos fazer, não se efetivará como se inexistisse decisão recorrida ou como se este Tribunal da Relação se predispusesse a aplicar a pena pela primeira vez. Ademais, note-se que “(…) o tribunal de recurso deve intervir na alteração da pena concreta, apenas quando se justifique uma alteração minimamente substancial, isto é, quando se torne evidente que foi aplicada sem fundamento, com desvios aos citérios legalmente apontados” [cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18.03.2015, proc. 109/14.3GATBU.C1, Rel. Inácio Monteiro, consultado em www.dgsi.pt].
Como se pode ler no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 05.03.2018 [proc. n.º 827/17.4GAEPS.G1, Rel. Armando Azevedo, consultado em www.blook.pt], em alinhamento com a doutrina e jurisprudência aí citada, “(…) quanto aos limites de controlabilidade da determinação da pena em sede de recurso - entendemos ser de seguir o entendimento da doutrina e da jurisprudência no sentido de que é suscetível de revista a correção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de fatores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de fatores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação, mas a determinação do quantum exato de pena só pode ser objeto de alteração perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efetuada”.
Efetivamente e tendo existido, a montante, um julgamento – com contraditório pleno, oralidade e imediação – e uma atividade jurisdicional de fixação concreta da pena no culminar daquela audiência, na dependência do Tribunal ad quem não estará a realização de nova e originária determinação da pena mas, tão só, a sindicância do quantum da pena e a sua natureza, seguindo e tendo por referencial os critérios de determinação utilizados pelo Tribunal a quo, respetiva motivação, escrutinando a eventual existência de falhas ou omissões, exercendo a sua função corretiva se o resultado da operação se revelar ilegal ou manifestamente desproporcionado.
Do exposto resulta que a intervenção em segunda instância deverá ser sempre pautada pelo princípio da mínima intervenção, intercedendo se e quando o processo determinativo se revele insuficiente ou desajustado à luz dos critérios legais de determinação da pena, tendo por matriz os factos assentes.
Na verdade, a individualização judiciária da pena não é imune a um grau controlado de discricionariedade, inexistindo uma pena concreta inquestionável ou uma sentença certa e ideal, mas, antes, uma gama de decisões que, numa faixa de razoabilidade e proporcionalidade, poderão ser adequadas, conquanto os tribunais, aplicando os mesmos critérios de determinação das penas concluam, em casos semelhantes, por penas aproximadas (tendo por presente que não existirão, propriamente, dois casos exatamente iguais).
Regressando ao caso em apreço, como é consabido e resulta expressamente do estatuído no art.º 40.º, n.º 1, do C.P., a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Em síntese e pela sua clareza, retenha-se o constante do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.09.2010 [proc. n.º 1687/04.0GDLLE.E1.S1, Rel. Pires da Graça, www.dgsi.pt]: - “1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial. 2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa. 3) dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. 4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excecionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais. A moldura de prevenção, comporta ainda abaixo do ponto ótimo ideal outros em que a pressuposta tutela dos bens jurídicos “é ainda efetiva e consistente e onde portanto a pena pode ainda situar-se sem que perca a sua função primordial de tutela de bens jurídicos. Até se alcançar um limiar mínimo – chamado de defesa do ordenamento jurídico – abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar de bens jurídicos.” (idem, Temas Básicos…, p. 117, 121): Tal desiderato sobre as penas integra o programa político-criminal legitimado pelo artº 18º nº 2 da Constituição da República Portuguesa e que o legislador penal acolheu no artigo 40º do Código Penal, estabelecendo, contudo, o nº 2 que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
Neste conspecto, atentas aquelas finalidades, o art.º 70.º do C.P. preconiza que, sempre que ao crime seja aplicável, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade (como no caso sucede com a previsão, em alternativa, de duas penas principais – prisão ou multa), deve o Tribunal dar preferência à medida não detentiva (a multa) sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição e, ultrapassada esta etapa, o art.º 71.º do C.P. estabelece os critérios da determinação da medida concreta da pena, dispondo que esta se fará dentro dos limites definidos na moldura legal, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, valorando o Tribunal todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor ou contra o agente, tendo sempre por limite a culpa que, axiologicamente estranha a finalidades retributivas, estabelece o limite superior da pena que ainda seja concordante com as exigências de preservação da dignidade da pessoa humana.
No caso que nos ocupa, o Tribunal a quo considerou desadequada a pena de multa e individualizou a pena aplicada ao recorrente em 2 anos e 2 meses, considerando uma moldura legal que se situa entre 1 mês e 3 anos de prisão.
Para tanto, considerou:
Ao abrigo do disposto nos artigos 105.º, n.º 1 e 107º, n.ºs 1 e 2 do Regime Geral das Infrações Tributárias, o crime de abuso de confiança contra a segurança social é punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
Dispõe o artigo 70.º do Código Penal que “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa de liberdade e pena não privativa de liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades de punição”.
As finalidades de punição são a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (artigo 40.º, n.º1 do Código Penal).
A finalidade de proteção de bens jurídicos equivale à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, correspondendo às necessidades de prevenção geral positivas. Já a reintegração do agente na sociedade resume o outro polo que justifica a necessidade de aplicação da pena, doutrinalmente designado de prevenção especial positiva.
Acresce que não há pena sem culpa e a medida da pena não pode ultrapassar a da culpa (artigo 40.º, nº 2, do Código Penal).
E estabelece, ainda, o artigo 71.º, n.º2, do Código Penal que na determinação da medida concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.
Por fim dispõe o artigo 13.º do Regime Geral das Infrações Tributárias que: “Na determinação da medida da pena atende-se, sempre que possível, ao prejuízo causado pelo crime.”
No caso, verifica-se que as exigências de prevenção geral são assaz elevadas, atenta a proliferação deste tipo de ilícito, com prejuízo para o Estado-Segurança Social, que cada vez se encontra mais depauperado pela inversão da pirâmide etária (que resulta na dramática diminuição da população ativa e no progressivo aumento dos pensionistas), mas também pela prática recorrente deste tipo de ilícitos.
É importante, por esse motivo, transmitir à sociedade que as contribuições da Segurança Social não estão ao dispor das entidades empregadoras para a realização de jogos de contabilidade, ou para acorrer a necessidades de tesouraria; e importa alertar, também, que as contribuições da Segurança Social são elas próprias uma parte importantíssima da garantia de que o Estado de Direito Social terá um futuro apoiado na coesão e equilíbrio entre as várias camadas da sociedade.
Por outro lado, contra o arguido, deve considerar-se:
- O grau elevado da ilicitude do facto, consubstanciado no período de cerca de 6 anos em que o arguido BB persistiu na conduta criminosa e no valor global das deduções não entregues, que é alto;
- O dolo direto na prática do ilícito;
A favor do arguido resulta:
- Encontrar-se socialmente inserido;
- A ausência de antecedentes criminais;
- Ter apresentado postura correta em julgamento.
Pelo exposto, tudo considerado, opta-se pela aplicação de uma pena de prisão ao arguido BB, que neste caso concreto se impõe por motivos de prevenção geral – já que não seria compreendido pela comunidade a aplicação de uma pena de multa num caso em que a gravidade da ilicitude já se mostra elevada, quer pelo valor não entregue, quer pelo tempo em que perdurou a conduta criminosa – fixando-se a mesma em 2 anos e 2 meses de prisão.
*
Tendo em conta o decidido, a desconsideração da aplicação direta de medida não detentiva parece-nos perfeitamente justificada (não sendo esta operação sequer contestada, de forma motivada ou eficaz), tendo em conta o tipo de crime praticado e as exigências de prevenção geral, ao que acresce a reconhecida inadequação de uma pena pecuniária para um crime de natureza económica.
Quanto ao processo determinativo da pena concreta, o Tribunal valorou as exigências de prevenção geral, efetivamente acentuadas. Visando as penas, também - e sem sobrepassar, na sua concretização, o limite definido pela culpa - a proteção de bens jurídicos, a reposição e o reforço da confiança da comunidade na validade das normas jurídicas postas em crise, no caso dos crimes fiscais ou para-fiscais, estas necessidades são particularmente sentidas pelas razões apontadas na decisão recorrida, considerando que este tipo de criminalidade tem atingido uma dimensão tal que reclama uma eficaz e severa perseguição criminal dos prevaricadores. São notórios os efeitos de distorção concorrencial que a prática assinalada introduz no mercado, ante as empresas cumpridoras, bem como a degradação dos fundos próprios da Segurança Social para fazer face aos encargos assistenciais e prestacionais a que está obrigada, no limite satisfazendo prestações sociais a trabalhadores cujas quotizações são declaradas, refletidas no seu salário, mas nunca entregues.
Relativamente à culpa, o juízo respetivo foi influenciado pelo entorno de dificuldades vivenciadas na empresa, não se demonstrando um enriquecimento pessoal do agente, circunstâncias já atendidas e evidenciadas na punição da conduta como se de um único crime de tratasse.
O período de incumprimento é longo, denotando indiferença e persistência no desígnio criminoso, ao que acresce o facto de o montante não entregue – se de crime de execução continuada se tratasse - já se situar próximo da agravante contida no art.º 105.º, n.º 5 do RGIT (ex vi art.º 107.º). No caso vertente, ainda que no crime continuado se deva atender à mais grave das condutas integrantes da continuação, não poderá deixar de influenciar a tomada de decisão o valor global de que a Segurança Social deveria ter recebido e que o recorrente deveria esportular.
O arguido é primário e encontra-se socialmente inserido, tendo sido valorizada a sua postura em julgamento.
Pelo exposto, tendo a pena concreta sido individualizada acima dos 2/3 da pena prevista e chamando novamente à colação a dimensão da função corretiva deste Tribunal, não podemos deixar notar que aquele individualização se situa, já, acima do limite inultrapassável da culpa que o próprio Tribunal a quão considerou especialmente diminuída.
Assim sendo, não obstante as bem apontadas e evidentes exigências de prevenção geral, as mesmas não podem ser asseguradas em sobrepassagem do limite imposto pela culpa, julgando-se adequada a pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão.
Tendo em conta a medida concreta agora equacionada, importaria avaliar da possibilidade de substituição, tendo em conta o estatuído 58.º, n.º 1 do C.P.
No caso, fazendo-o, atendendo à idade do arguido e ao crime praticado, entendemos que a substituição da prisão pela prestação de trabalho a favor da comunidade não salvaguarda eficazmente as finalidades subjacentes à punição, designadamente as repontadas exigências preventivas que não se compadecem com reações penais percecionadas como mais simbólicas ou menos repressivas, ante a forte censura social que o comportamento do arguido introduz e a consequente necessidade de reforço da confiança comunitária na inviolabilidade do direito.
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III.5
Da condição da suspensão da execução da pena
Contesta, ainda, o recorrente o facto de lhe ter sido imposta a condição de, no período da suspensão, proceder ao pagamento da quantia de € 49.546,28, acrescida de juros, o que deflui numa condição impossível de cumprir atento o facto de auferir, mensalmente, cerca de € 900,00.
Nesta medida, entende que a fixação da condição acaba, nas circunstâncias apontadas, por equivaler a uma condenação em pena de prisão efetiva, tal a impossibilidade de cumprimento do ónus imposto.
Apreciando.
Conforme consta da decisão recorrida: “À luz do disposto no artigo 14.º, n.º1 do RGIT, que dispõe que - a suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa – fica a suspensão da pena de prisão condicionada ao pagamento, pelo arguido BB, das cotizações em falta e respetivos juros de mora.”.
É, pois, mandatório o condicionamento da suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento da(s) prestação(ões) em falta (pelo menos na parte que a sua perspetiva de cumprimento comporte), especificidade imposta pelo RGIT e que o Tribunal Constitucional tem afirmado, uniformemente, em nada contrariar a lei fundamental, mesmo que aparentemente à margem da condição económica e pessoal do responsável, por não se apresentar com a rigidez que aparenta e que o recorrente evidencia já que, no caso, vigorará o princípio rebus sic stantibus, só dando lugar à revogação se se demonstrar, no caso, uma atuação culposa do obrigado e a ponto de por em causa o juízo de prognose favorável e as finalidades subjacentes à suspensão, conforme decorre dos art.ºs 55.º e 56.º do C.P..
Neste particular, pode ler-se no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 51/2020 [Rel. Maria José Rangel de Mesquita, disponível em www.tribunalconstitucional.pt], em recensão jurisprudencial sobre o assunto:
“Ora, este Tribunal já teve oportunidade de se pronunciar, em face de diversos casos, pela não inconstitucionalidade do artigo 14.º do RGIT. Desde logo, no Acórdão n.º 256/2003, em que o problema foi apreciado em face da jurisprudência constitucional sobre questões afins, o Tribunal Constitucional concluiu (cf. II – Fundamentação, n.º 10.8 e seguintes):
«(…) [P]odendo a realização dos fins do Estado – dependente do cumprimento do dever de pagar impostos – justificar a adopção do critério da vantagem patrimonial no estabelecimento dos limites da pena de multa, não há qualquer motivo para censurar, como desproporcionada, a obrigação de pagamento da quantia em dívida como condição da suspensão da execução da pena. As razões que, relativamente à generalidade dos crimes, subjazem ao regime constante do artigo 51º, n.º 2, do Código Penal (supra, 10.6.), não têm necessariamente de assumir preponderância nos crimes tributários: no caso destes crimes, a eficácia do sistema fiscal pode perfeitamente justificar regime diverso, que exclua a relevância das condições pessoais do condenado no momento da imposição da obrigação de pagamento e atenda unicamente ao montante da quantia em dívida. Dito de outro modo, o objectivo de interesse público que preside ao dever de pagamento dos impostos justifica um tratamento diferenciado face a outros deveres de carácter patrimonial e, como tal, uma concepção da suspensão da execução da pena como medida sancionatória que cuida mais da vítima do que do delinquente (sobre a suspensão da execução da pena como medida que “permite cuidar ao mesmo tempo do delinquente e da vítima”, veja-se Manso-Preto, “Algumas considerações sobre a suspensão condicional da pena”, in Textos, Centro de Estudos Judiciários, 1990-91, p. 173).
10.9. As normas em apreço não se afiguram, portanto, desproporcionadas, quando apenas encaradas na perspectiva da automática correspondência entre o montante da quantia em dívida e o montante a pagar como condição de suspensão da execução da pena, atendendo à justificável primazia que, no caso dos crimes fiscais, assume o interesse em arrecadar impostos.
Cabe, todavia, questionar se não existirá desproporção quando, no momento da imposição da obrigação, o julgador se apercebe de que o condenado muito provavelmente não irá pagar o montante em dívida, por impossibilidade de o fazer.
Esta impossibilidade, que não chegou a ser declarada pelo tribunal recorrido – pois que este analisou a questão em abstracto, sem averiguar se o ora recorrente efectivamente estava impossibilitado de cumprir (supra, 10.5.) –, não altera, todavia, a conclusão a que se chegou.
Em primeiro lugar, porque perante tal impossibilidade, a lei não exclui a possibilidade de suspensão da execução da pena.
Dir-se-á que tal exclusão se encontra implícita na lei, atendendo a que não seria razoável que a lei permitisse ao juiz condicionar a suspensão da execução da pena de prisão ao cumprimento de um dever que ele próprio sabe ser de cumprimento impossível.
Todavia, tal objecção não procede, pois que traz implícita a ideia de que o juiz necessariamente elabora um prognóstico quanto à possibilidade de cumprimento da obrigação, no momento do decretamento da suspensão da execução da pena. Ora, nada permite supor a existência de um tal prognóstico: sucede apenas que a lei – bem ou mal, mas este aspecto é, para a questão de constitucionalidade que nos ocupa, irrelevante –, verificadas as condições gerais de suspensão da execução da pena (nas quais não se inclui a possibilidade de cumprimento da obrigação de pagamento da quantia em dívida), permite o decretamento de tal suspensão. O juízo do julgador quanto à possibilidade de pagar é, para tal efeito, indiferente.
Em segundo lugar, porque mesmo parecendo impossível o cumprimento no momento da imposição da obrigação que condiciona a suspensão da execução da pena, pode suceder que, mais tarde, se altere a fortuna do condenado e, como tal, seja possível ao Estado arrecadar a totalidade da quantia em dívida.
A imposição de uma obrigação de cumprimento muito difícil ou de aparência impossível teria assim esta vantagem: a de dispensar a modificação do dever (cfr. artigo 51º, n.º 3, do Código Penal) no caso de alteração (para melhor) da situação económica do condenado. E, neste caso, não se vislumbra qualquer razão para o seu tratamento de favor, nem à luz do princípio da culpa, nem à luz dos princípios da proporcionalidade e da adequação.
Em terceiro lugar, e decisivamente, o não cumprimento não culposo da obrigação não determina a revogação da suspensão da execução da pena. Como claramente decorre do regime do Código Penal para o qual remetia o artigo 11º, n.º 7, do RJIFNA, bem como do n.º 2 do artigo 14º do RGIT, a revogação é sempre uma possibilidade; além disso, a revogação não dispensa a culpa do condenado (supra, 10.4.).
Não colidem, assim, com os princípios constitucionais da culpa, adequação e proporcionalidade, as normas contidas no artigo 11º, n.º 7, do RJIFNA, e no artigo 14º do RGIT.»
Ora, este juízo é inteiramente transponível para o caso dos autos. Aliás, o recorrente não aduz qualquer argumento que motive a reapreciação desta posição, que foi reafirmada nos Acórdãos n.os 335/2003, 376/2003 e em diversas pronúncias posteriormente adotadas por este Tribunal (v., entre outros, os Acórdãos n.os 309/2006, 327/2008, 587/2009 e, mais recentemente, as Decisões Sumárias n.os 312/2011, 522/2012, 68/2015 e 606/2016). (…)”
*
No caso, sendo a imposição da condição contestada decorrência do regime legal fixado, com recorrente jurisprudência constitucional quanto à conformidade de tal imposição, e tendo em conta que, para efeitos da observância da jurisprudência fixada pelo Acórdão Uniformizador nº 8/2012 de 12 de setembro de 2012, o Tribunal apurou a situação económica do condenado e dilatou o prazo da suspensão como forme de, realisticamente, acomodar a possibilidade de pagamento, nada há a censurar relativamente ao decidido, improcedendo, nesta parte, o recurso.
*
III.6
Do pedido de indemnização civil
Finalmente, questiona o recorrente o acerto da sentença proferida pelo Tribunal a quo, neste aspeto particular, referindo que resultou do depoimento da técnica da Segurança Social que têm sido efetuados pagamentos mensais, por penhora, ao gerente de direito CC, desconhecendo o arguido quais os montantes efetivamente em dívida à data da condenação ou, inclusive, se permanece qualquer quantia em dívida, não se tendo apurado o valor da dívida atual, devendo, por isso, improceder o pedido formulado.
Vejamos.
Conforme já se decidiu, em sede de impugnação da matéria de facto, não é exata a afirmação de que se desconheça o montante em dívida ou, inclusivamente, se persiste qualquer montante em dívida. O teor da matéria de facto apurada e a condenação aqui contestada apontam claramente o contrário, defluindo num montante exato e preciso e na contabilização dos juros legalmente devidos, referindo-se, em sede de motivação, que “No que concerne às cotizações em dívida, mostram-se atestadas no mapa de dívida de fls. 146, emitido pela Segurança Social, sendo certo que o valor correspondente ao mês de março de 2016 viria a ser anulado na sequência do seu pagamento com o valor atribuído à Segurança Social no rateio final ocorrido no processo de insolvência n.º 1104/17.6T8STS, conforme informação também prestada pela Segurança Social com o requerimento de 30-10-2023, na sequência do depoimento de DD em que procurou esclarecer a diferença entre aquele mapa de dívida e o que foi apresentado com o pedido de indemnização civil, a fls. 521.”, sem contra-motivação eficaz que imponha outra conclusão.
Ademais, mesmo que, paralelamente, possa existir execução fiscal contra o gerente de direito, a mesma decorrerá de causa distinta (a do recorrente deriva da prática de crime), sendo que a responsabilidade perante a Segurança Social, quanto ao pagamento das quotizações, pode ser solidária (podendo concorrer ao pagamento vários obrigados), sendo os pagamentos ulteriores que aquele venha a fazer contabilizados na dívida global à entidade impetrante.
Assim e face à prova produzida e à matéria de facto provada, não assiste razão ao recorrente.
*
IV.
Decisão:
Por todo o exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência, decidem:
(i) Condenar o arguido BB, pela prática de um crime (continuado) de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelos art.ºs 107.º, n.ºs 1 e 2 e 105.º do RGIT, e 30.º, n.º 2 do C.P., na pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão;
(ii) Manter, em tudo o mais, o decidido, incluindo o período de suspensão da pena e suas condicionantes.
*
Sem custas (art.º Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 5 UC (art.º 513.º, n.º 1, a contrario, do C.P.P.).
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Porto, 03 de julho de 2024
José Quaresma
Pedro Afonso Lucas
Raquel Lima