I - A nulidade da acusação, dada a ausência de qualquer previsão nesse sentido, não configura uma nulidade insanável, que é oficiosamente declarada (art. 119.º do CPPenal), até ao trânsito em julgado da decisão final do processo, antes uma nulidade sanável, a arguir nos termos definidos no art. 120.º do CPPenal, concretamente do seu n.º 3 al. c).
II - E se ninguém arguir no prazo estabelecido na lei a nulidade da acusação, o Tribunal a quo está impedido de se pronunciar sobre a validade dessa peça em sede de sentença.
III - Não obstante, o Tribunal de julgamento, ao elaborar a sentença, pode, e deve, considerar, se assim o entender, que alguns factos têm configuração genérica, não permitindo o cabal exercício de direito de defesa do arguido, razão pela qual os desconsidera.
IV - A circunstância de o Tribunal a quo ter deixado de indagar, como podia e devia, qual a frequência da ocorrência das acções imputadas, bem como, sendo viável, o contexto da sua ocorrência – indagação que, no limite, sendo infrutífera ou não convencendo o Tribunal a quo, devia ter conduzido a uma decisão de não comprovação dos factos em causa –, e decidindo em face dessa omissão investigatória não tomar posição relativamente à demonstração ou falta dela quanto a tais factos, integra o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto pelo art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPPenal.
V - A constatação de que a sentença recorrida padece do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPPenal, não determina automaticamente o reenvio do processo para novo julgamento. O reenvio só deve ocorrer quando não seja possível por outra forma colmatar as falhas detectadas, conforme decorre do disposto no art. 426.º, n.º 1, do CPPenal.
VI - Tratando-se de vício que afecta a configuração da matéria de facto pode o Tribunal de recurso procurar a sua modificação em ordem à correcção das falhas apuradas nas condições previstas no art. 431.º do CPPenal, isto é, i) se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base, ii) se a prova tiver sido impugnada nos termos do art. 412.º, n.º 3, do referido diploma legal e iii) se tiver havido renovação da prova.
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Criminal de Matosinhos – Juiz 1
Sumário:
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Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
No âmbito do Processo Comum Singular n.º 178/22.2PBMTS, a correr termos no Juízo Local Criminal de Matosinhos, Juiz 4, por sentença datada de 19-12-2023, foi decidido:
«1. Absolver o arguido AA da prática de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.º1, al. b), com a agravação do n.º 2, do Código Penal.
2. Determinar a imediata cessação das medidas de coação impostas ao arguido para além do termo de identidade e residência.
3. Determinar a cessação do estatuto de vítima atribuído a BB, ao abrigo do disposto no artigo 24.º, n.º 2 da Lei 112/2009 de 16.09 e a cessação dos procedimentos de avaliação de risco.
4. Julgar totalmente improcedente o pedido de indemnização civil deduzido pela assistente/demandante contra o arguido».
«A. Não se conforma a Assistente com a decisão que absolveu o Arguido AA, da prática de um crime violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e c) e n.º 2 alínea a) do Código Penal.
B. O presente recurso versa sobre:
- Não concordância com a decisão da nulidade parcial da acusação pública;
- Vício decisório de erro notório, nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do C.P.P.
- nulidade da sentença por não expor de forma clara dos motivos de facto, bem como falta de indicação de factos concretos que fundamentam a decisão;
- impugnação da decisão da matéria de facto no sentido da prova da factualidade constante das alíneas i) a xvii, julgada não provada;
- Normas jurídicas violadas: os artigos 124.º e 127.º e 163.º do Código de Processo Penal e 152.º, n.º 1, n.º 1, alínea a) e c), n.º 2, alínea a) do Código Penal.
C. No que à nulidade parcial da acusação pública diz respeito, o Tribunal a quo considerou que a acusação quando menciona: “Desde sempre arguido humilhou a vítima”. “Também desde sempre, o arguido controlou as saídas da vítima, exigia acompanhá-la sempre que saia de casa e, com frequência não apurada, chamava-lhe “tola”, “caolha”, “vadia” e “cegueta” refere-se a um conjunto de imputações genéricas, desprovidas do mínimo de concretização temporal ou mesmo de circunstâncias, são apenas imputações vagas e imprecisas que não permitem a defesa ao arguido, e, por isso, devem ser consideradas não escritas.
D. Entende a assistente que os referidos factos não são imputações genéricas, nomeadamente para efeitos de impossibilitar o contraditório, pois, a única falta que lhe pode ser assacada é uma imprecisão quanto à data (tempo) já que deles consta o modo e lugar onde ocorreram.
E. Que é o bastante para permitirem o contraditório, nem a lei no artigo 283.º n.º 2 alínea b) do CPP, exige mais.
F. Neste sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24/11/2021, no âmbito do processo número 304/20.6PAVLG.P1: “Resulta da experiência comum, haver comportamentos humanos, sancionados penalmente, em relação aos quais não é possível (ou humanamente exigível) a concretização, quanto ao dia e à hora, de todos os atos que os integram; relativamente a comportamentos reiterados que se vão prolongando ao longo dos anos não é exigível de ninguém, sequer a vítima, que fixe/memorize o dia e o lugar concretos em que ocorreu cada um dos comportamentos ofensivos do agente.”
G. Ora, no caso dos autos, os factos encontram-se devidamente identificados e descritos os períodos em que ocorreram, sendo que a conduta do arguido foi repetida no tempo, comportamentos reiterados que se vão prolongando ao longo dos anos não é exigível a ninguém, sequer a vítima, que fixe/memorize o dia e o lugar concretos em que ocorreu cada um dos comportamentos ofensivos do agente, não sendo por isso que deixaram de ser penalmente relevantes.
H. Das declarações da assistente resulta a concretização do modo e lugar em que os factos sucederam. Aliás das suas declarações resulta que toda a sua vida a assistente foi vítima de violência doméstica.
I. Não nos podemos esquecer que se trata de uma pessoa que conta com 74 anos de idade, tendo vivido cerca de 45 anos em contexto de violência psicológica.
J. O que o julgador não pode é, em vista de um depoimento que, mercê da idade avançada da vítima, do seu estado frágil e do resultado de anos de opressão, se revela menos concretizado nalgumas circunstâncias, até pela repetição e frequência dessas circunstâncias, retirar do depoimento a conclusão [precipitada] de que a mesma se limita a fazer imputações genéricas que não permitem ajuizar com o mínimo de rigor que os factos julgados não provados tiveram existência real.
K. Dos factos que foram considerados como não escritos e do depoimento da assistente da forma como esta depôs (debilitada, em choro) resulta que o arguido insultou, humilhou e ameaçou a ofendida de forma reiterada e repetida, durante vários anos.
L. O que também é confirmando pelo relatório pericial constante de fls.168 e seguintes, onde a senhora perita refere nas suas conclusões que: “A avaliação realizada leva também a admitir que o relato apresentado pela examinada se revelou congruente, espontâneo e detalhado; feito com linguagem ajustada ao seu nível de desenvolvimento e com ressonância emocional compatível com as situações descritas. O relato reporta várias situações abusivas, alegadamente perpetradas pelo marido ao longo dos anos de casamento, num crescendo em termos de intensidade e gravidade dos atos praticados. Comporta informação detalhada sobre as ocorrências, os sentimentos despoletados, as verbalizações dos intervenientes, assim como as dinâmicas tipicamente observadas nestas situações.
M. Pelo exposto, terá de improceder a eliminação de tais factos e serem os mesmos apreciados por este Tribunal procedendo ao seu enquadramento jurídico penal.
N. O erro de julgamento – previsto no artigo 412.º n.º 3 CPP - ocorre quando o Tribunal recorrido considere como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
O. Ora, em face da prova produzida e da decisão proferida, não nos podemos restringir à apreciação do texto da decisão, deverá antes proceder-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência.
P. No presente caso é imperativo efetuar uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do Tribunal a quo, na medida em que em face da prova documentada, mais concretamente das declarações da Assistente, conjugadas com o depoimento das testemunhas arroladas pela acusação, uma vez que os factos constantes dos pontos i) a xviii) foram incorretamente julgados como não provados.
Q. Como este Venerando Tribunal verificará os pontos de facto questionados não têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, pelo que se impunha decisão diferente.
R. É por essa razão que, na fundamentação da sentença, para além da enumeração dos factos provados e não provados, deve constar a exposição dos motivos de facto que fundamentam a mesma, completa e concisa ainda que seja, e com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção, tal como é exigência do artigo 374.º n.º 2 CPP.
S. O que no caso dos Autos também não sucede, pois que como resulta da sentença recorrida, o Tribunal a quo, não descreve os concretos pontos em que se baseia para dar como não provados os factos constantes da acusação, limitando-se a fazer um comentário genérico no caso das declarações da assistente, quando concluiu que não logrou ultrapassar as dúvidas que se instalaram no confronto das versões (opostas) de arguido e da assistente e, sobretudo, por terem surgido, alguns dados que atingiram a credibilidade e idoneidade no depoimento desta última, dúvidas que não se conseguiram ultrapassar, nem face ao depoimento das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento.
T. Na verdade, e perante a factualidade descrita na acusação, apenas as declarações do Arguido e da Assistente se debruçaram, diretamente, sobre a mesma, sendo que o Arguido negou a prática de tais factos e a Assistente confirmou os mesmos.
U. Em abstrato, nada impede que a prova dos factos da acusação/contestação assente, exclusivamente, nas declarações de Arguido/Assistente, mesmo se opostas ou se desacompanhadas de outras provas corroborantes, muito mais no âmbito da criminalidade que ocorre na reserva da vida privada, com a presença exclusiva destes, a prova possível consistirá predominantemente no depoimento destes intervenientes.
V. E perante provas de sinal contrário – declarações do Arguido versus declarações da Vítima – o tribunal não está desobrigado de justificar a maior credibilidade que estas tenham eventualmente merecido.
W. No entanto, o inverso também resulta claro, ao não credibilizar o depoimento da vítima, e por consequência, dar como não provados factos que constam da acusação, o Tribunal a quo, deverá elencar os concretos factos nos quais se baseou para dar mais crédito à versão apresentada pelo Arguido.
X. O julgador, na decisão sobre a matéria de facto, quando se depare com provas de sinal contrário e abstratamente de igual peso probatório, se preocupe em procurar socorrer de outros elementos probatórios corroborantes do facto controvertido da acusação.
Y. Pelas regras de experiência comum deveria o Tribunal questionar-se: qual a necessidade de a vitima inventar estes factos, qual a necessidade de estar numa Casa Abrigo mais de um ano, onde não tinha o conforto da sua casa, a sua privacidade, de deixar o conforto da sua casa e dos seus pertences, a companhia do seu fiel amigo???
Z. O que nos remete novamente para a perícia realizada que refere que o relato da vítima reporta várias situações abusivas, alegadamente perpetradas pelo marido ao longo dos anos de casamento, num crescendo em termos de intensidade e gravidade dos atos praticados.
AA. Porém, no caso concreto, de acordo com a fundamentação ali expendida o Tribunal a quo limita-se a concluir que a prova pericial junta aos autos não permite lograr convencer o Tribunal da veracidade do descrito pela Assistente.
BB. Contudo, o legislador processual penal estabeleceu que o juízo técnico, científico ou artístico da perícia só pode ser afastado pelo juiz com fundamentação de idêntica valia científica, técnica ou artística, não estando por isso o juízo técnico e científico submetido à livre apreciação do julgador ao mesmo nível de qualquer prova comum.
CC. Sem questionarmos a livre apreciação das respetivas declarações, inerente à função de julgar, afigura-se-nos que tal equiparação contraria as regras da experiência e não contempla as especificidades decorrentes da qualidade de vítima de violência doméstica, acolhida em Casa Abrigo, na sequência dos factos objecto da Acusação.
DD. Conforme constatará este Venerando Tribunal terá de ocorrer necessariamente alteração da matéria de facto dada como não provada, na medida em que a prova produzida, designadamente as declarações da Assistente, impunham uma outra decisão.
EE. O sofrimento e as consequências de anos de ofensas verbais, repressão e controlo resulta claramente demonstrado no timbre e na forma como o depoimento é prestado pela assistente, conforme resulta das transcrições supra elencadas e para as quais se remete por economia processual.
FF. O facto de ter havido versões díspares entre Arguido e Assistente, ou até contraditórias da própria assistente, que embora não tenham sido elencadas e referidas, no nosso entender não existiram, o certo é que foram referidos factos relevantes, que não foram tidos em consideração, e tal facto por si só, não determinaria, nem determina que o arguido deva ser absolvido.
GG. Como se salientou no Ac. da R.L. de 24/10/2021 “(…) o Tribunal de eliminar, dentro da razoabilidade, toda a dúvida existente. Só em presença de dúvida insuperável poderá o princípio ser aplicado”.
HH. Por outro lado, o exame pericial de psicologia forense à vítima, esclarece a existência de sinais de abuso emocional.
II. A valoração da prova exige uma apreciação crítica e racional, fundada nas regras da experiência, da lógica e da ciência e na perceção da personalidade dos declarantes e depoentes, o que não sucedeu. Impunha-se também ao Tribunal que da fundamentação fosse percetível a razão pela qual decidiu absolver o Arguido.
JJ. Ao lermos a motivação da sentença, ora posta em crise, não se consegue perceber, por um lado, quais as razões de ciência de cada depoimento e/ou declarações, nem o motivo pelo qual o Tribunal a quo lhes atribuiu ou não credibilidade, e por outro lado,
KK. Se atentarmos na matéria de facto dado como provada e não provada, nem nessa parte, nem depois, na motivação propriamente dita, vem referido quais os factos/contradições que permitiram dar como não provada a matéria constante da acusação.
LL. No caso em apreço, o Tribunal a quo omitiu a razão de ciência da sua decisão, pelo que, a omissão destes elementos, determina a nulidade da sentença, nos termos dos artigos 379.º n.º 1 al. a) e 374.º n.º 2 CPP.
MM. O Tribunal a quo incorreu em erro notório na apreciação da prova - artigo 410.º, n.º 2, al. c) CPP, uma vez que ainda quando nos circunscrevamos ao texto da decisão, da mesma sempre resulta que o Tribunal a quo retirou da prova que ele mesmo pondera, na sua própria fundamentação, a conclusão oposta àquela que a prova ponderada permite e mesmo impõe que, no entanto, aqui fica prejudicado pela verificação anterior do erro de julgamento.
NN. No que interessa ao caso dos autos, impunha-se ao Tribunal de julgamento que, servindo-se, como se impõe, dos factos relatados e recorrendo a juízos de normalidade, assentes nas regras da experiência comum, chegasse à conclusão de que se encontravam provados aqueles factos.
OO. Ao decidir em sentido contrário incorre a douta decisão a quo em violação do disposto nos artigos 124.º e 127.º e 163.º do C.P.P. e 152.º, n.º 1, alínea a) e c) n.º 2, alínea a) do Código Penal.
PP. Pelo que atento o exposto, deverá ser revogada a douta sentença recorrida e em consequência ser substituída por outra que considere provados os factos acima descritos e condene o Arguido pela prática do crime de violência doméstica pelo qual vinha acusado.
QQ. E, em consequência, ser considerado como procedente o pedido de Indemnização deduzido nos Autos.»
«1ºA douta sentença é curial e correta ao absolver o arguido de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152º, nº1, al, b), com a agravação do nº 2, do Código Penal.
2º Andou bem o tribunal recorrido em considerar parcialmente nula a acusação na parte em que nesta refere “desde sempre o arguido humilhou a vitima” “Também desde sempre, o arguido controlou as saídas da vítima, exigia acompanhá-la sempre que saia de casa, com frequência não apurada, chamava-lhe “tola”, “caolha”, “vadia” e “cegueta”.
3º Da análise da prova produzida, nada justifica a alteração da matéria de facto dada como não provada.
4ºA impugnação da sentença proferida nos autos carece de qualquer fundamento face à conjugação dos elementos de prova existentes nos autos e muito bem referidos e valorados pela Mma. Juiz a quo na motivação da matéria de facto;
5º O tribunal “a quo” formou a sua convicção com base na prova produzida em audiência de julgamento, analisada de forma critica e à luz do principio da livre apreciação, consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal
6º O tribunal “a quo” gozou da imediação e da oralidade própria da audiência de julgamento, que mais ninguém tem, criando a sua própria convicção e à luz das regras da lógica e da experiência.
7ºAs declarações da assistente mostraram-se incoerentes, despidas de sentido.
8º As declarações do arguido mereceram maior credibilidade, foi admitindo alguns desentendimentos, normais num relação de quase 50 anos, mas nunca atingiu dignidade da ofendida, a sua saúde física e psíquica, como se veio apurar em sede de audiência de julgamento.
9º Nenhuma das testemunhas inquiridas corroborou de forma peremptória e convincente a versão da Assistente/Recorrente trazida para os autos
10ºAdemais, resulta claro dos depoimentos das várias testemunhas arroladas que ningu consegue imputar a prática de tais atos ao Arguido; bem como convenceram o tribunal que a versão da assistente levada ao tribunal estava eivada de inverdades, adensando-se assim a dú no espírito do julgador.
11º A dúvida instalou-se e adensou-se no espirito julgador, e em obediência ao principio do in dúbio pro reo, pelo que o tribunal entendeu, e bem, absolver o arguido.
12º A sentença encontra-se bem fundamentada, não devendo ser considerada nula, pois o tribunal o Tribunal "a quo", para além de especificar cada meio de prova em que se estribou para formar a sua convicção, fez ainda a alusão circunstanciada da matéria factual para que o mesmo foi essencial.
13º De harmonia com o princípio da prova livre consagrado no nº 127º do Código de Processo Penal, e do nº 5, do artigo 607º do C.P.C, o tribunal aprecia livremente as provas responde aos factos em sintonia com a convicção que tenha formado acerca de cada um deles.
14º Não podia o tribunal a quo ter proferido sentença diferente daquela que ditou.
15º Não foram violados pela sentença recorrida o disposto nos artigos 124º e 127º e 163º do Código de Processo Penal, bem como não foram violados todos os princípios enunciados na motivação e conclusões do recurso.
Termos em que deve, e sempre com o suprimento de Vª Exas, deverá ser negado provimento ao presente recurso, confirmando-se, por consequência, a douta decisão recorrida, como é de
JUSTIÇA!!!»
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].
As questões que a recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso são as seguintes:
- Discordância com a decisão de declarar a nulidade parcial da acusação;
- Erro notório na apreciação da prova (art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPPenal);
- Nulidade da sentença por falta de fundamentação;
- Erro de julgamento em sede de matéria de facto quanto aos pontos i a xvii) dos factos não provados.
«III. Fundamentação
A) Factos Provados
Com interesse para a decisão da causa resultaram provados os seguintes factos:
1. O arguido casou com a assistente BB a 16 de junho de 1974.
2. Deste casamento nasceu, a ../../1975, CC.
3. Inicialmente, o casal e filho viviam na Rua ..., em Matosinhos e, a partir de 2018, foram para uma vivenda sita na Rua ..., ....
4. Na sexta feira santa do ano de 2020, a assistente telefonou para o filho e para a amiga DD pedindo para chamar a polícia, o que a mesma fez.
5. Nesse dia o filho de ambos veio buscá-la e levou-a para sua casa.
6. No dia 9 de agosto de 2022 a assistente chamou a atenção do arguido por este estar com o vizinho.
7. A assistente manifestou anunciou ao arguido que ia fazer queixa.
8. A assistente chamou o filho a sua casa e este quando ali chegou pediu-lhe que preparasse o almoço para o arguido.
9. A assistente fez o almoço ao arguido e após saiu de casa com o cão, sem levar qualquer pertence.
10. A assistente foi acolhida em casa de emergência e depois na casa abrigo, onde permaneceu até ao final de 2022.
11. A assistente apresenta sintomatologia depressiva e ansiosa, ausência de auto-estima, medo do marido, da reação dos demais familiares e da solidão.
12. O arguido não tem antecedentes criminais.
13. O arguido cresceu com sete irmãos, o seu pai trabalhava na construção civil e mãe era doméstica.
14. O arguido completou o 4.º ano com 14 anos, tendo anteriormente a trabalhar a guardar aas ovelhas.
15. O arguido viveu em Celorico de Basto até aos 14 anos, tendo vindo com essa idade trabalhar como caixeiro para a “A...”, onde ficou até 1968, tendo no ano seguinte mudado de restaurante, onde trabalhou até 1970. Nesse ano começou a trabalhar na B... como serralheiro, guarda e depois como técncico de operações pecuárias, até se reformar em 2001.
16. O arguido recebe o valor mensal de reforma de €1900 e tem património imobiliário.
17. O arguido conheceu a assistente na década de 1970, por intermédio de uma senhora que a acolheu em criança e passou a ser sua madrinha, e era proprietária de um estabelecimento comercial, vulgo “Tasco” sito na Rua ..., em Matosinhos, que o arguido por vezes frequentava.
Com relevância para a decisão da causa não resultaram provados os seguintes factos:
i.) Na sexta feira santa, no ano de 2020, no interior da residência comum, o arguido empurrou a assistente contra as escadas e pôs as duas mãos no pescoço da mesma, apertando-o, causando-lhe desta forma dores e dificuldade de respiração.
ii.) Enquanto fazia isso, o arguido disse que matava a assistente, que ela não passava daquele dia, e a mesma, em pânico, fechou-se no quarto.
iii.) A assistente não se sentiu bem recebida em casa do filho pois este e a mulher disseram que o lugar dela era junto do arguido, independentemente da forma como ele a tratasse.
iv.) Desde que o casal mudou para a residência sita em ..., o arguido diariamente dirigia à vítima os seguintes impropérios: “tola”, “maluca”, “vadia”, “puta”, “caolha”, “porca” e dizia “vai-te matar” “trata-te”, “devias ir para o Conde Ferreira”.
v.) No dia 9 de agosto de 2022, na sequência da discussão gerada, o arguido dirigiu-lhe os seguintes impropérios e expressões: "caolha”, “cegueta”, “mulher vadia”, “puta”, “nasceste cega de um olho, devias ter nascido cega dos dois".
vi.) Quando a assistente manifestou estar saturada de ser humilhada e anunciou que ia fazer queixa, o arguido respondeu: "vais fazer queixa e eu mato-te, vais ter um fim triste"
vii.) O filho do arguido repreendeu o pai, mas pediu à assistente que desvalorizasse a situação.
viii.) A assistente permaneceu na casa abrigo em grande sofrimento e vulnerabilidade emocional.
ix.) Ao proceder conforme o acima descrito, dirigindo as expressões acima referidas à assistente, agiu o arguido com o intuito de a molestar psicologicamente, causando-lhe medo e angústia, humilhando-a, afetando-a na sua integridade moral e no seu bem-estar, bem sabendo que a assistente é sua mulher, mãe de seu filho e que, por isso, lhe devia especial respeito.
x.) O arguido quis ainda causar a BB dor corporal como efetivamente causou, molestando-a, também fisicamente.
xi.) Ao atuar no interior da residência de ambos, o arguido agiu ciente de que ampliava o sentimento de receio da ofendida e que violava o espaço reservado da sua vida privada e o seu caráter securitário.
xii.) O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as condutas por si adotadas eram proibidas e criminalmente punidas.
xiii.) Por causa da atuação do arguido a assistente encontra-se afastada da família e das pessoas com quem convivia.
xiv.) O medo constante de desagradar ao arguido e provocar a sua irritação e a consequente violência, durante estes últimos anos, implicou que a assistente entrasse num estado depressivo, que ainda hoje a assola.
xv.) Ainda hoje a assistente se sobressalta quando ouve um ruido, acorda de
noite vezes sem conta assustada, tem sonhos e pesadelos constantes.
xvi.) Por causa da atuação do arguido, a assistente, outrora, pessoa alegre e bem-disposta, tonou-se numa pessoa triste e constrangida.
xvii.) A assistente sempre teve uma personalidade bipolar, tanto está bem, como de repente perde o controle das suas ações, fica histérica, nervosa, e de seguida entra em estado depressivo.
xviii.) A assistente sempre teve problemas do foro psicológico, muito devido ao facto de ser abandonada pelos pais e à sua deficiência física, traumas com os quais qual nunca soube lidar.
Mais se consigna que no que concerne à contestação, não foram de igual modo considerados os factos constituem impugnação dos factos vertidos na contestação, matéria conclusiva, de direito, irrelevantes para a decisão da causa, que se encontram em contradição com os factos provados ou por se reportarem a factualidade estranha ao objeto do processo, delimitado pelo libelo acusatório.
Em concreto, o Tribunal baseou a sua convicção a partir da valoração do seguinte acervo probatório:
» Declarações do arguido e da assistente.
» Reprodução em audiência de julgamento de declarações para memória futura prestadas pela assistente perante Juiz de Instrução Criminal.
» Foram inquiridas as seguintes testemunhas: EE, (cabeleireira); FF (maquinas de fazer rendas, reformada); DD (prestadora de serviços de roupa); GG (reformado); HH (reformada, mulher da testemunha anterior); II (agente da esquadra de Matosinhos); JJ (reformado da PSP); KK (reformada, vendedora ambulante) LL (pescador) MM (reformado, encarregado de armazém); NN (encerador de pavimentos de madeira).
» A prova documental é a vertida nos autos, que infra se detalhará sempre que se justificar pelo seu relevo probatório relativamente a determinados factos, sendo os que contribuíram para a formação da convicção do Tribunal, umas vezes pela credibilidade que o próprio teor só por si revela e, outras, em conjugação com outros meios de prova, sendo que todos eles apresentam um teor que se afigura verídico e não foram postos em crise por qualquer outro meio de prova. Aqueles, cujo âmbito conceitual normativo é delimitado pelo artigo 363.º do Código Civil, implicam que se considerem provados os factos materiais deles constantes, enquanto a autenticidade dos documentos ou a veracidade do seu conteúdo não forem, fundadamente, postos em causa.
» Por fim, para além da prova direta dos factos, considerou-se, ainda, a prova indireta relativamente a parte da factualidade objeto de julgamento e que infra será expressamente mencionada. Sobre a prova indireta, entende Euclides Dâmaso Simões[3], que o uso da mesma implica dois momentos de análise: um primeiro requisito de ordem material exigirá que os indícios estejam completamente provados por prova direta, os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e sendo vários devem estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência; posteriormente, um juízo de inferência que seja razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado, respeitando a lógica da experiência e da vida (dos factos-base há de derivar o elemento que se pretende provar, existindo entre ambos um nexo preciso, direto, segundo as regras da experiência).
Salienta-se que, no cotejo e apreciação da prova produzida e globalmente ponderada, o tribunal teve presente a circunstância de que, por regra, o crime de violência doméstica raramente tem prova testemunhal, porque é no ‘seio e segredo do lar’ que o mesmo é, na maioria das vezes, cometido, preservado da observação alheia, só sendo presenciado pelo agressor e a vítima. Neste contexto, quando o arguido escassamente confessa os factos, ou pelo menos a sua totalidade, como aconteceu no caso dos autos, as declarações da vítima devem merecer a devida ponderação do julgador, no âmbito do princípio da livre apreciação, plasmado no artigo 127.º, do Código de Processo Penal.
No que concerne à factualidade provada, o tribunal fundou a sua convicção apreciando, conjugadamente:
- as declarações do arguido, que confirmou a veracidade dos factos que resultaram provados e depôs sobre o seu percurso de vida e condições sócio-económicas.
- depoimento de II, agente da esquadra de Matosinhos, que confirmou o aditamento ao auto de noticia por si elaborado na sequência de a assistente ter comparecido no Posto para apresentar queixa contra o arguido.
- o teor do certificado do registo criminal do arguido junto aos autos.
Vejamos.
O arguido, embora admitindo a existência de desentendimentos com a sua mulher, negou sempre tê-la insultado, verbalmente ou fisicamente nos moldes descritos na acusação, assumindo que às vezes, ao longo dos quase cinquenta anos de relação (primeiro de namoro e depois de casamento) anos de casamento, dizia-lhe por vezes “vai-te tratar” e “tás cegueta, não estás a ver nada disto”, mas em situações que se desentendiam e como expressões correntes sem querer com tais referir-se ao estado de saúde mental ou física daquela.
De salientar, que não obstante o estado de emoção, por vezes latente, do arguido ao longo das suas declarações (que também veio a verificar-se com a assistente), este descreveu com pormenor toda a relação do casal de uma forma objetiva, ponderada e pormenorizada, dentro do que a memória lhe permitiu, tendo respondido a todas as questões que lhe foram sendo colocadas, de modo consistente, localizando no tempo e no espaço o que relatou.
Por seu turno, quanto ao depoimento da assistente, foi manifesto que esta apresentou uma versão “colada” à descrição dos factos plasmados na acusação, mas apenas sendo capaz de fazer uma descrição superficial, mas não conseguindo aprofundar as situações por si descritas. Acresce dizer que a assistente, embora verbalizando os episódios, apresentou um discurso pouco assertivo, circunstanciado e incoerente em alguns aspetos, e em alguns pontos em notória contradição com o que havia declarado em sede de declarações para memória futura. Ainda que às vítimas de violência doméstica se reconheçam algumas dificuldades na contextualização dos factos, seja pela reiteração da atuação do agressor seja, seja pelo contexto em que surge, tais limitações terão sempre de ser apreciadas num contexto global e, em concreto, ponderando a restante prova produzida.
Ora, no caso dos autos, nem dos depoimentos das testemunhas EE, FF e DD foi possível suplantar aquelas dificuldades.
Vejamos.
EE referiu que a assistente começou a frequentar o seu cabeleireiro há trinta e cinco anos e sempre se queixou que o arguido a tratava por puta, vaca, porca. Que há cerca de quinze anos comentou com a assistente que estava com peladas no cabelo, ao que aquela lhe respondeu que era o arguido que lhe puxava pelos cabelos. Desde há quinze anos que não via a assistente, mas do que se recorda era uma pessoa muito infeliz, muito chorosa, sempre com o carrinho das compras e com pressa.
Já FF, referiu que a assistente lhe confidenciava que o arguido lhe batia e que lhe chamava cegueta, caolha, Mais explicou que trabalhou no estabelecimento comercial explorado pela assistente há cerca de 40 anos aos sábados à tarde, nunca tendo ouvido nenhum cliente nem o arguido tratar mal a assistente. Esclareceu que na noite em que a assistente lhe pediu ajuda estava apavorada.
DD, disse conhecer a assistente por esta levar algumas peças para tratar na sua loja e que esta lhe disse que “tinha mau viver”, “que o marido lhe chamava burra, zarolha, palerma”. Mais acrescentou que uma vez a assistente lhe ligou num feriado, quando estava na casa de ..., a dizer que o marido a estava a ameaçar que a matava e que estava fechada no quarto. Acrescentou que noutra data a assistente lhe ligou a dizer que o arguido a estava a ameaçar novamente e pediu para a levar à polícia, tendo-se encontrando com ela na rua (estava com o cão). Que depois de tal dia deixou de saber da assistente, tendo esta ligado passado algum tempo, dizendo que estava numa casa abrigo.
Resultou claro que as referidas testemunhas não presenciaram qualquer um dos factos vertidos na acusação; sendo que as duas primeiras relataram o que a assistente lhes teria confidenciado em datas que não souberam concretizar e imputando atos ao arguido de ofensa à integridade física nesse tempo aparentemente longínquo que a própria assistente não relatou ao tribunal. Já no que concerne ao dito por DD, estranhou-se que, tendo sido a quem a assistente terá ligado nos dois dias que terá sido agredida fisicamente pelo arguido, lhe tenha omitido tal facto.
O tribunal não ignorou que na perícia médico-legal de psicologia forense feito à assistente, constante de fls.168 e seguintes, a senhora perita tenha nas conclusões vertido que “A avaliação realizada leva também a admitir que o relato apresentado pela examinada se revelou congruente, espontâneo e detalhado; feito com linguagem ajustada ao seu nível de desenvolvimento e com ressonância emocional compatível com as situações descritas. O relato reporta várias situações abusivas, alegadamente perpetradas pelo marido ao longo dos anos de casamento, num crescendo em termos de intensidade e gravidade dos atos praticados. Comporta informação detalhada sobre as ocorrências, os sentimentos despoletados, as verbalizações dos intervenientes, assim como as dinâmicas tipicamente observadas nestas situações. De referir, ainda, que não foram observados indicadores (e.g., lapsos de memória, erros interpretativos) que sugiram que o mesmo seja produto da sua imaginação e/ou esteja a ser sugestionado por terceiros. Também não foram observados quaisquer ganhos secundários com a denúncia efetuada às autoridades, pelo contrário, a examinada encontrava-se em casa-abrigo numa situação de grande sofrimento e vulnerabilidade emocional, sem condições de apoio e suporte ajustados à sua condição de vida. Registavam-se também o aparecimento de medos novos, nomeadamente do futuro, da incerteza, da reação do marido e do filho à presente denúncia, de retaliações, da solidão.”
Contudo, como se refere no Ac. do tribunal da Relação do Porto de 29.04.2015, relatado por Vaz Patto, “Há que considerar, porém, o seguinte. Não podemos equiparar a perícia de avaliação psicológica do menor que incide sobre a credibilidade do depoimento deste a uma qualquer outra perícia. É que o juízo de credibilidade dos depoimentos das testemunhas é tarefa própria e indeclinável do juiz. Esse juízo pericial é um subsídio da maior importância que não pode, porém, substituir ou suplantar o juízo próprio e caraterístico da função judicial. Não pode, um suma, transferir-se para o perito aquilo que é próprio e caraterístico da função judicial. Por esse motivo, não tem, neste aspeto, aplicação o regime do citado artigo 163º do Código de Processo Penal, podendo o julgador divergir das conclusões da perícia no que diz respeito à credibilidade do depoimento de uma testemunha, sem necessariamente recorrer a outro juízo pericial Isto sem prejuízo do relevo que, mesmo assim, deve ser dado a tais conclusões, que devem sempre auxiliar a decisão do julgador, sem a substituir.”
Sobre o mesmo meio de prova escreveu-se no Ac. da Relação de Évora de 13.09.2022, relatado por Fátima Bernardes que “Tal perícia teve por finalidade a avaliação das caraterísticas psicológicas e da personalidade da ora assistente, em ordem a poder determinar em que medida poderiam influenciar o seu testemunho relativamente aos factos, o que não se confunde com a avaliação da veracidade do conteúdo do seu depoimento, no tocante à versão dos factos apresentada, pois que, esta última cabe exclusivamente ao tribunal, que decidirá de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 127º do CPP.
O juízo sobre a credibilidade da prova por declarações ou testemunhal, estando a respetiva produção sujeita aos princípios da imediação e da oralidade, é feito pelo tribunal, de acordo com o principio da livre apreciação da prova, nos termos sobreditos, sendo que a perícia de avaliação psicológica um meio auxiliar de que o juiz se serve ou pode servir para melhor ajuizar sobre a credibilidade da testemunha, considerando as suas características psicológicas e da personalidade, mas já não para aferir da credibilidade do seu depoimento, na versão que apresenta dos factos.”
Revertendo ao caso dos autos, perante o já supra referido, não obstante o teor do referido relatório, o tribunal não encontrou no declarado pela assistente – sem qualquer outro meio de prova - “terreno firme” para fundar convicção da veracidade dos factos que descreveu. De facto, a motivação do tribunal depende da presença de elementos de prova mais seguros que permitam sedimentar uma convicção segura sobre os factos imputados ao arguido para além de toda a dúvida razoável, o que não sucedeu.
E esta dúvida adensou-se com relatado pelas testemunhas GG; HH, JJ, KK, LL, MM e NN, que apresentaram todas depoimentos consistentes, objetivos e revelando conhecimento do por si declarado, por terem acompanhado a vida do casal ao longo das várias décadas, dos quais resultou no global que a versão trazida pela assistente relativamente à postura do arguido no casamento, no trabalho dedicado por este ao estabelecimento comercial daquela e à família e se encontra eivada de inverdades.
No que concerne à factualidade não provada atinente ao pedido de indemnização civil e à contestação, a prova produzida foi de igual modo insuficiente para que o tribunal alcançasse com segurança da sua veracidade.
Em síntese, a factualidade dada como não provada foi assim considerada por, em decorrência do vindo de dizer, e para além das declarações do arguido, que não a assumiu, não ter sido produzida prova ou prova suficiente e/ou idónea para conduzir no imputado sentido.
Em conclusão, sempre se dirá que, ponderando o conjunto da prova produzida, nada permite ajuizar com o mínimo de rigor que os factos julgados não provados tiveram existência real.»
Vejamos, então, as questões colocadas.
Discordância com a decisão de declarar a nulidade parcial da acusação.
Neste segmento do recurso, invoca a recorrente que:
«Da douta sentença resulta que a acusação quando se refere aos seguintes factos:
“Desde sempre arguido humilhou a vítima”.
“Também desde sempre, o arguido controlou as saídas da vítima, exigia acompanhá-la sempre que saia de casa e, com frequência não apurada, chamava-lhe “tola”, “caolha”, “vadia” e “cegueta”.
Se refere a um conjunto de imputações genéricas, desprovidas do mínimo de concretização temporal ou mesmo de circunstâncias, são apenas imputações vagas e imprecisas que não permitem a defesa ao arguido, e, por isso, devem ser consideradas não escritas.
Temos por claro que que os referidos factos não enfermam das características de factos genéricos que o Tribunal a quo refere, nomeadamente para efeitos de impossibilitar o contraditório, pois, a única falta que lhe pode ser assacada, vistos apenas em si, é uma imprecisão quanto à data (tempo) já que deles consta o modo e lugar onde ocorreram.
Tanto basta para permitirem o contraditório, nem a lei no artigo 283.º n.º 2 alínea b) do CPP, exige mais.
Das declarações da assistente resulta a concretização do modo e lugar em que os factos sucederam.
Aliás das suas declarações resulta que toda a sua vida a assistente foi vítima de violência doméstica.
Não nos podemos esquecer que se trata de uma pessoa que conta com 74 anos de idade, tendo vivido cerca de 45 anos em contexto de violência psicológica.
O que resulta da lei e da jurisprudência é que o facto deve manter a sua singularidade por forma a ser identificável, não obstante se situe num período de tempo sem data precisa.
Neste sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24/11/2021, no âmbito do processo número 304/20.6PAVLG.P1 (…).
Ora, no caso dos autos, os factos encontram-se devidamente identificados e descritos os períodos em que ocorreram, sendo que a conduta do arguido foi repetida no tempo, os comportamentos reiterados que se vão prolongando ao longo dos anos não é exigível a ninguém, sequer a vítima, que fixe/memorize o dia e o lugar concretos em que ocorreu cada um dos comportamentos ofensivos do agente, não sendo por isso que deixaram de ser penalmente relevantes.
Como refere o Tribunal a quo, a acusação não é um romance, mas uma peça técnica que tenta descrever pormenorizadamente os factos, porém não pode ser um relato tão pormenorizado, que possa demonstrar que ocorreu uma fabricação de factos.
O que o julgador não pode é, em vista de um depoimento que, mercê da idade avançada da vítima, do seu estado frágil e do resultado de anos de opressão, pela repetição e frequência até dessas circunstâncias, retirar do depoimento a conclusão [precipitada] de que a mesma se limita a fazer imputações genéricas que não permitem ajuizar com o mínimo de rigor que os factos julgados não provados tiveram existência real.
Trata-se por isso de uma decisão, em toda a sua extensão despropositada e descontextualizada.
Pois é precisamente dos factos que foram considerados como não escritos e do depoimento da assistente da forma como esta depôs (debilitada, em choro) que resulta que o arguido insultou, humilhou e ameaçou a ofendida de forma reiterada e repetida, durante vários anos.
O que também é confirmando pelo relatório pericial constante de fls.168 e seguintes, onde a senhora perita refere nas suas conclusões que:
“A avaliação realizada leva também a admitir que o relato apresentado pela examinada se revelou congruente, espontâneo e detalhado; feito com linguagem ajustada ao seu nível de desenvolvimento e com ressonância emocional compatível com as situações descritas. O relato reporta várias situações abusivas, alegadamente perpetradas pelo marido ao longo dos anos de casamento, num crescendo em termos de intensidade e gravidade dos atos praticados. Comporta informação detalhada sobre as ocorrências, os sentimentos despoletados, as verbalizações dos intervenientes, assim como as dinâmicas tipicamente observadas nestas situações. De referir, ainda, que não foram observados indicadores (e.g., lapsos de memória, erros interpretativos) que sugiram que o mesmo seja produto da sua imaginação e/ou esteja a ser sugestionado por terceiros. Também não foram observados quaisquer ganhos secundários com a denúncia efetuada às autoridades, pelo contrário, a examinada encontrava-se em casa-abrigo numa situação de grande sofrimento e vulnerabilidade emocional, sem condições de apoio e suporte ajustados à sua condição de vida.”
Aliás, se atentarmos nas declarações da Assistente que infra se transcreverão.
Não resulta de tais declarações que as mesmas sejam genéricas, pelo contrário, é desprovida de sentido a alegação de que tais factos se referem a imputações vagas e genéricas e necessariamente terá de improceder a eliminação de tais factos e serem os mesmos apreciados por este Tribunal procedendo ao seu enquadramento jurídico penal.
Devendo, em consequência, ser os mesmos considerados, e atenta as declarações da Assistente supra descritas dados como provados.
Este segmento do recurso destina-se, ao menos em parte, a rebater a apreciação que o Tribunal a quo efectuou na sentença sobre a nulidade parcial da acusação.
É do seguinte teor essa parcela da decisão:
«II. Saneamento
O Tribunal é o competente.
Da Nulidade Parcial da Acusação Pública
O arguido foi acusado pela prática do crime de violência doméstica.
Qualquer acusação penal não poderá conter imputações genéricas.
Na verdade, num tipo de crime onde a reiteração e intensidade do agir humano está no centro da definição de um tipo penal muito amplo (como é o caso da violência doméstica), a precisa e possível indicação e concretização dos factos necessários à integração no tipo é elemento essencial do julgamento.
E é, na sequência, o cerne do direito de defesa.
Os factos hão de corresponder a “pedaços de vida”. Esses pedaços de vida terão de estar concretizados de tal forma que não seja possível serem confundidos e misturados uns com os outros. O que impõe, no nosso entender, que os factos tenham uma motivação percetível, um enquadramento factual que o torne reconhecível e distinguível, permitindo assim ao arguido exercer a sua cabal defesa.
Pois bem. Refere a acusação pública, além do mais, o seguinte:
“Desde sempre arguido humilhou a vítima”.
“Também desde sempre, o arguido controlou as saídas da vítima, exigia acompanhá-la sempre que saia de casa e, com frequência não apurada, chamava-lhe “tola”, “caolha”, “vadia” e “cegueta”.
Estas imputações são apenas um conjunto de imputações genéricas. Com efeito, expressões como “desde sempre humilhou”, “controlou”, desprovidas do mínimo de concretização temporal ou mesmo de circunstâncias, são apenas imputações vagas e imprecisas que não permitem a defesa ao arguido. Na verdade, tratam-se de um conjunto de imputações genéricas, sem concretização, sem individualização de momentos, sem que ninguém se possa defender de uma imputação deste teor. Sem as devidas concretizações não é possível ao agente exercer cabalmente a sua defesa.
A concretização exigida é mínima. Não tem de ser completa. Mas os episódios têm de estar autonomizados uns dos outros, de forma a que o visado possa saber exatamente de que pedaço de vida está a ser acusado.
E o que é “humilhar”? E “controlar”? Em que mês, ano, quantas vezes e em que circunstâncias? Nestes pontos, a acusação apresenta um conjunto de afirmações vagas, obscuras e genéricas, sem a mínima concretização possível.
Uma acusação não é um romance, é uma peça técnica, que assenta num raciocínio dedutivo, na qual devem ser alegados factos, que não origem a conclusões, que, por sua vez, são, ou não, subsumíveis ao crime imputado.
O jurista, no seu trabalho, está próximo de um matemático. Não é por acaso que o raciocínio judiciário assenta numa metodologia que poderia ser facilmente transponível do livro “Principia Mathematica” de Whithead e Bertrand Russel. Afasta-se aqui de uma fórmula jornalística, em que para além de informar, há que expurgar o que torne o texto pesado para o leitor.
Assim, não contendo a acusação, nesta parte, a especificação necessária, deve ser considerada nula nessa parte e essas imputações consideradas como não escritas.
Tem sido esta, aliás, a jurisprudência mais recente do Tribunal da Relação do Porto. Assim, no acórdão do TRP de 09.03.2016[4] estava em causa, além do mais, a seguinte imputação presente nos factos provados da sentença recorrida: “b) Desde o nascimento da filha, quando o arguido se deslocava à residência da C…, situada na Rua..., nesta comarca, pelo menos uma vez por semana, em datas não concretamente apuradas, dirigiu à ofendida expressões injuriosas, apelidando-a de puta, vaca e filha da puta. Frequentemente, nas mesmas circunstâncias, o arguido ameaçou aquela anunciando que lhe havia de passar com o carro por cima”. j) No referido período temporal o arguido telefonou várias vezes à C… e enviou-lhe inúmeras mensagens escritas, via pela qual lhe dirigiu expressões como puta e vaca e anúncios de que a vai agredir e matar; por outro lado, o arguido perseguiu várias vezes aquela, no percurso por esta feito desde o local de trabalho até à sua residência, e, frequentemente, posicionou-se dentro de um veículo automóvel à porta do local de trabalho e da residência daquela, controlando os seus movimentos e intimidando-a com a sua presença”.
E a análise do TRP é expressiva: “importa ter presente que é pacificamente aceite na jurisprudência que as meras imputações vagas, obscuras, imprecisas ou conclusivas, são inadmissíveis no processo criminal, para efeitos de condenação, por violarem os direitos de defesa e contraditório do arguido, devendo considerar-se não escritas. Assim, o quadro factual que recorta o crime pelo qual o agente há de ser julgado e, eventualmente, condenado, terá que conter narração suficiente e adequada à fácil compreensão das concretas circunstâncias, atos, comportamentos e intenções que enquadram a imputação criminal, de molde que, por um lado, o arguido possa exercitar plenamente o seu direito de defesa e contraditório e, por outro, seja possível ao julgador dirimir integralmente e com segurança todas as questões que constituem o thema decidendum. Ora, in casu, cremos ser manifesto que grande parte das imputações não cumpre o referido desiderato, apresentando contornos indefinidos não só quanto à localização temporal, mas também quanto ao real contexto, número, circunstâncias envolventes, etc., não sendo apresentado qualquer suporte factual concreto que lhes dê sustentação. Assim, as referências nos factos provados: Alínea b) - Insultos desde o nascimento da filha, pelo menos uma vez por semana, em datas não concretamente apuradas (Em que dia da semana, de quando até quando, quantas vezes e em que circunstâncias? No âmbito de discussão e insultos mútuos? Sem razão aparente?); Frequentemente, nas mesmas circunstâncias… (Que frequência e que circunstâncias?) Alínea j) - Telefonou várias vezes…inúmeras mensagens…perseguiu várias vezes… frequentemente posicionou-se…”.
No acórdão do TRP de 08.07.2015[5], perante afirmações como“ao longo da relação, em diversas ocasiões”, no ano de 1998 quando ainda mantinham uma relação de namoro”, em data não concretamente apurada, quando passavam férias no Algarve”, “numa outra ocasião”, o TRP veio mencionar que “Desde há muito o STJ tem entendido que devendo os factos imputados ser claros e precisos, não podem ser utilizados / imputados na acusação (e consequentemente na sentença) conceitos vagos e imprecisos, genéricos e conclusivos porquanto isso não apenas impede um eficaz exercício do direito de defesa, como impede o exercício do contraditório ínsito naquele. (…)
No acórdão do TRP de 27.06.2018[6] considerou-se que “tem que se ter como não escrito que, “de cada vez que a ofendida o contrariava, aquando das visitas à filha, o arguido a apelidava de puta e vaca e lhe dizia que não era mulher de um homem só” e que “por diversas vezes disse que mataria a ofendida”, por não estar concretizado no tempo nem balizado temporalmente, antes resultando em imputações vagas e genéricas, que impossibilitam o arguido de se defender, de as poder contraditar”.
Também no acórdão do TRP de 15-06-2016[7], perante as afirmações “A partir de momento não determinado, desde a data da celebração do referido casamento, o arguido, dirigindo-se a E…, manifestava-lhe o seu desagrado sempre que esta saía do domicílio comum, ainda que na sua companhia. – ponto 4. Volvido um período de tempo não determinado, na constância do casamento, o arguido passou a dirigir-se a E…, no interior do domicílio comum, apodando-a de cabra, de vaca, de cadela e de puta, ofendendo a sua honra e consideração. – ponto 5 Volvido um período de tempo não determinado, na constância do casamento, no interior do sobredito domicílio comum, o arguido, dirigindo-se a E…, passou a gesticular, simulando que a estrangulava, provocando-lhe medo. – ponto 6 Após, a partir de momento não determinado, na constância do casamento, o arguido, no interior do domicílio comum, apertou-lhe, um número não apurado de vezes, o pescoço, provocando-lhe falta de ar. – ponto 7 Após, a partir de determinado momento não apurado, na constância do casamento, o arguido, no interior do domicílio comum, passou a intimidar E…, um número não apurado de vezes, tendo em data não concretamente apurada utilizando um machado com o qual partiu um tanque na sequência de uma discussão com aquela, provocando-lhe receio e medo. – ponto 8 Após, a partir de determinado momento não apurado, na constância do casamento, o arguido, no interior do domicílio comum e na presença de F…, dirigiu-se, um número não determinado de vezes, a E…, apodando-a de puta, vaca, cabra e cadela e dizendo-lhe: “eu mato-te, eu ponho fogo à casa”, ofendendo a honra e consideração desta e provocando-lhe medo. – ponto 9 Após, a partir de data não apurada, na constância do casamento, o arguido, no interior do domicílio comum, desferiu, um número não apurado de vezes, bofetadas, murros e pontapés no corpo de E…, provocando-lhe dores. – ponto 10 Em data posterior [9] não determinada, o arguido, no interior do domicílio comum, na sequência de uma discussão com E…, agarrou-lhe uma das mãos para, de seguida, lhe puxar os respetivos dedos para trás, com o propósito de os partir, o que não conseguiu, provocando-lhe apenas arranhão na mão, porque F… intercedeu, separando o arguido. – ponto 16 Nesse momento, quando F… separava o arguido, este arranhou-lhe a mão direita, provocando-lhe dores. – ponto 17”, o Tribunal não teve dúvidas em afirmar que “Semelhante descrição de acontecimentos, dada a indefinição temporal que encerra, não permite o contraditório, impossibilitando qualquer defesa” e considerou como não escritas estas imputações.
Descendo novamente a este processo, é exatamente este caráter genérico, sem concretização mínima, que afeta as afirmações supra transcritas e vertidas na acusação pública e que a tornam nula nesta parte, devendo tais imputações considerarem-se como não escritas.
Por conseguinte, e com estes fundamentos, o Tribunal considera como não escritas as imputações genéricas referidas na acusação pública e supra mencionadas.»
Esta avaliação da acusação levada a cabo pelo Tribunal a quo não foi requerida por nenhum interveniente, correspondendo a uma análise que oficiosamente levou a cabo.
Mas mal, pois, para além de manifestamente extemporânea, não encontra conforto na lei.
Com efeito, determina o art. 283.º, n.º 3, do CPenal que a acusação contém, sob pena de nulidade:
a) As indicações tendentes à identificação do arguido;
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
c) As circunstâncias relevantes para a atenuação especial da pena que deve ser aplicada ao arguido ou para a dispensa da pena em que este deve ser condenado;
d) A indicação das disposições legais aplicáveis
A questão da natureza da nulidade prevista no art. 283.º, n.º 3, do CPPenal, é determinante da solução a encontrar para a situação em análise.
Com efeito, atento o princípio da tipicidade legal em matéria de nulidades consagrado no art. 118.º, n.ºs 1 e 2, do CPPenal, a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei, sendo certo que nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular.
No caso em apreço, dada a ausência de qualquer previsão nesse sentido, não estamos perante uma nulidade insanável, que é oficiosamente declarada (art. 119.º do CPPenal), até ao trânsito em julgado da decisão final do processo.
Trata-se, pois, de uma nulidade sanável, a arguir nos termos definidos no art. 120.º do CPPenal, concretamente do seu n.º 3 al. c), segundo a qual, tratando-se de nulidade respeitante ao inquérito ou à instrução, até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito.
Uma vez que nos presentes autos houve fase de instrução, a nulidade da acusação só podia ter sido arguida até ao encerramento do debate instrutório.
A verdade é que ninguém a arguiu, pelo que estava o Tribunal a quo impedido de se pronunciar sobre a validade da acusação em sede de sentença.
Assim, sanou-se eventual nulidade de que pudesse padecer a acusação, não podendo a mesma ser o fundamento de qualquer decisão sobre uma parcela desta, como ocorreu no caso concreto.
É expressiva a jurisprudência que reconhece que a nulidade da acusação, na falta de indicação em contrário e perante a omissão de previsão no elenco do art. 119.º do CPPenal, é sanável, estando, por isso, sujeita à disciplina dos arts. 120.º e 121.º do mesmo diploma legal[8].
Dito isto, é evidente que o Tribunal de julgamento, ao elaborar a sentença, pode, e deve, considerar, se assim o entender, que alguns factos têm configuração genérica, não permitindo o cabal exercício de direito de defesa do arguido, razão pela qual os desconsidera.
Nessa perspectiva, aquilo que o Tribunal a quo analisou em sede de nulidade parcial da acusação pode ser aproveitado como avaliação da matéria de facto para efeitos de ser dada como provada, não provada ou, na perspectiva do Tribunal a quo quanto aos concretos factos aqui discutidos, não escrita.
O problema em concreto é que tais factos alegadamente vagos e genéricos na verdade não o são, pelo que o Tribunal a quo, ao ignorar totalmente essa factualidade, não indagou em termos probatórios e decisórios de matéria que era essencial à boa decisão da causa.
Em questão está a parcela da acusação onde se refere:
«Desde sempre arguido humilhou a vítima e, já antes de casar, exigiu-lhe que arranjasse uns óculos para ocultar uma deformação que a mesma tem num olho.
Também desde sempre, o arguido controlou as saídas da vítima, exigia acompanhá-la sempre que saia de casa e, com frequência não apurada, chamava-lhe “tola”, “caolha”, “vadia” e “cegueta”.»
Do primeiro parágrafo citado, o Tribunal a quo apenas se pronunciou sobre a expressão desde sempre arguido humilhou a vítima.
Podendo não corresponder à melhor técnica jurídica, esta expressão aparece como nota introdutória do que depois se descreve ao longo da acusação, factualidade que culmina com a afirmação de que ao proceder conforme o acima descrito, dirigindo as expressões acima referidas à ofendida, agiu o arguido com o intuito de a molestar psicologicamente, causando-lhe medo e angústia, humilhando-a, afetando-a na sua integridade moral e no seu bem-estar, bem sabendo que a ofendida é sua mulher, mãe de seu filho e que, por isso, lhe devia especial respeito.
O Tribunal a quo não podia dissociar aquela expressão do demais descritos na acusação, ainda que a configuração não seja a mais correcta.
E desde logo não podia cindir da expressão desde sempre arguido humilhou a vítima o resto da frase, onde se menciona e, já antes de casar, exigiu-lhe que arranjasse uns óculos para ocultar uma deformação que a mesma tem num olho.
Percorrendo o texto da acusação, que é aquele que nos dá a sequência inicial da enunciação factual, segue-se depois, no segundo dos parágrafos obliterados pelo Tribunal a quo, a indicação de algumas palavras que o arguido dirigia à vítima, com paralelo com a afirmação, mais adiante no texto da acusação, de que desde que o casal mudou para a residência sita em ..., o arguido diariamente dirigia à vítima os seguintes impropérios: “tola”, “maluca”, “vadia”, “puta”, “caolha”, “porca” e dizia “vai-te matar” “trata-te”, “devias ir para o Conde Ferreira” ou com o parágrafo seguinte respeitante ao dia 09-08-2022.
Ou seja, a expressão desde sempre arguido humilhou a vítima não aparece isolada, sem qualquer outra referência a acontecimentos em concreto, pelo que sobre ela, tendo em conta o conjunto dos factos imputados, deveria o Tribunal a quo ter-se-pronunciado.
Assim, como devia ter emitido pronúncia sobre a segunda parte do primeiro parágrafo, isto é, e, já antes de casar, exigiu-lhe que arranjasse uns óculos para ocultar uma deformação que a mesma tem num olho, relativamente à qual o Tribunal a quo nada disse, sendo evidentemente um facto concreto localizável no tempo.
No que concerne à expressão também desde sempre, o arguido controlou as saídas da vítima, exigia acompanhá-la sempre que saia de casa e, com frequência não apurada, chamava-lhe “tola”, “caolha”, “vadia” e “cegueta”, não podemos concordar com a posição do Tribunal a quo.
Quando se diz que o arguido controlou as saídas da vítima, exigia acompanhá-la sempre que saia de casa temos uma acção concreta imputada – a exigência de acompanhar a vítima sempre que ela saía de casa, assim controlando as suas saídas.
E está localizada no tempo, pois, desde sempre, significará – sem grande esforço – desde que o casal se casou assim acontece.
Por outro lado, quando na acusação se diz que com frequência não apurada, chamava-lhe “tola”, “caolha”, “vadia” e “cegueta”, também não estamos perante factos vagos e genéricos. E para assim concluir nem precisamos de ter em conta o que mais adiante se refere na acusação quando o casal foi viver para ..., acima citado.
São aqueles dizeres (“tola”, “caolha”, “vadia” e “cegueta”) que, na terminologia do art. 283.º, n.º 3, al. b), do CPPenal, respeitante aos requisitos de validade da acusação, enquanto peça jurídica, e por inerência lógica a sentença, constituem a narrativa «dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena», no caso, segundo a qualificação da acusação por crime de violência doméstica.
Refere-se depois no preceito indicado que essa narração inclui, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática.
O grau de possibilidade de concretização da acção pode varia muito dependendo do tipo de crime que está em causa.
Se se analisa, por exemplo, um crime de roubo, é expectável que a acusação determine em que dia e a que horas ocorreram os factos, pois trata-se de um acto singular e particularmente preciso em termos de tempo e lugar, em que assume relevância para a defesa demonstrar que no dia X, à hora Y, o arguido não se encontrava no local alvo do crime mas sim num outro sítio.
Mas se lidamos com um crime de violência doméstica, com factos ocorridos ao longo de um período temporal de meses ou anos e que se traduzem em palavras dirigidas ao outro, o grau de possibilidade dessa exacta concretização é evidentemente menor. Veja-se que é o próprio tipo que pressupõe a possibilidade de ocorrência de reiteração embora o agente, a final, seja sempre condenado por um único crime, independentemente do período de tempo decorrido e do número de vezes em que ocorreu repetição dos factos.
É evidente que perante este quadro legal e contexto factual não é exigível que as vítimas de violência doméstica tenham presente o dia e hora em que, por exemplo, lhe são dirigidas palavras como as supradescritas, no fundo, fazendo recair sobre as mesmas a obrigação de anotarem todas as ocorrências. Até porque, e sem prejuízo de questões formais que se possam colocar por força da sucessão de leis no tempo, é indiferente para a configuração do crime se, mantendo-se o contexto subjacente, as palavras foram dirigidas às 10h00 de uma segunda-feira ou às 16h00 de um domingo.
E o arguido saberá dizer, assim se defendendo, se, desde que se casaram, dirigia à ofendida este tipo de expressão.
Um entendimento tão estrito da lei, que imponha um rigor descritivo exacerbado e que não permita em alguns casos, fruto das limitações indicadas, a comprovação da prática de crimes por tal razão é desproporcionado e desadequado aos bens jurídicos e valores que a Justiça protege e prossegue, pois deixa desprotegidas as vítimas mais vulneráveis em nome da garantia de direitos de defesa dos arguidos que não deixam de ser mantidos com regras interpretativas mais maleáveis.
E o legislador ao configurar este tipo crime estava certamente ciente das limitações que as vítimas teriam na concretização dos episódios vividos, por vezes, ao longo de toda uma vida.
É nesta perspectiva que interpretamos as exigências de configuração de uma acusação e posteriormente de uma sentença válida, no sentido em que as exigências que resultam do apontado art. 283.º, n.º 3, al b) do CPPenal não são inócuas, repercutindo-se necessariamente na validade da descrição factual que deve constar da decisão final – isto é, se determinada narrativa é bastante para configurar uma acusação válida e permitir o contraditório também tem de o ser relativamente à sentença, sob pena de grave incongruência interna do sistema processual.
A propósito dos ilícitos que se podem consubstanciar em actos reiterados ao longo do tempo e do direito de defesa dos arguidos, mostra-se certeira a seguinte avaliação realizada no acórdão desta Relação do Porto de 16-03-2022[9]:
É necessário ponderar que no âmbito das garantias da defesa o indiscutível e sensível princípio do contraditório, deve assegurar que o facto em discussão, não obstante se situar num período de tempo sem data precisa (como sucede nos pontos 7 a 14) deve manter a sua “singularidade” por forma a ser identificável pela defesa e assim ser plenamente contraditado, se for o caso. Portanto, a identificação do facto pela defesa necessariamente tem de ser possível, para exercício do contraditório. Essa identificação do facto deriva da sua “singularidade”[10], a qual se fixa nos contornos ônticos do próprio facto, o que, no caso de uma conduta reiterada no tempo, torna mais fácil a sua identificação, atento os comportamentos ou mau trato que se repete durante o referido período temporal, podendo, por isso mesmo, a defesa, ou assistindo à mesma, a possibilidade de contraditar se ocorreu, ou não, esse procedimento delitual repetido.
Portanto, o processo de identificação do facto pela defesa existe e verifica-se quando ao arguido é imputado um tratamento delitual repetido no tempo, onde a reiteração desses maus tratos vem a constituir o fenómeno de “singularidade”, tal como sucede nos factos apurados sob os pontos 7 a 12 da matéria provada. Com efeito, se atomisticamente não é possível a reconstituição das datas em que ocorreu a sucessão de cada um dos eventos delituais, mas tão só o período de tempo em que sucedeu o mau tratamento, esta conduta reiterada torna-se identificável pela defesa, pelo que, basta para a identificação do facto e sua singularização a descrição ôntica desse tratamento (a qual inclui a imputação da sua frequência e repartição no tempo dos actos que se repetiram - réplicas) como tendo ocorrido em certo período de tempo. E aí, se o arguido maltratou repetidamente a ofendida, ou não, tudo dependerá da prova que se fizer sobre o tratamento entre o arguido e a ofendida. Aliás, o recorrente na impugnação sobre a decisão da matéria de facto nos termos do art.412º do CPP quando sustenta ter havido erro no julgamento de facto, depreende-se que identificou claramente os factos em discussão, impugnando-os, não existindo qualquer quebra do contraditório.
De notar que, quando a imputação se concretiza numa sucessão repetida de injúrias durante certo período de tempo (que podem ser de vários anos), o processo de identificação do facto pela defesa encontra-se facilitado, dado que é essa actividade plural que está em questão, restando apurar se a verificação dos actos ocorreu à razão de “x” número de vezes por ano, ou “y” número de vezes por mês; ou até, como acontece nos autos, em número indeterminado de vezes. Pois, a repetição e a frequência das condutas e suas réplicas integram a ontologia do facto (maus tratos) e enriquece o processo de identificação do mesmo.
Diversamente, quando se trata de um só acontecimento ou ato delitual imputado sem data precisa, a individualização e a sua singularidade ôntica, exige maior esforço de concretização. Aqui a necessidade de singularização é maior, pois, a irrepetibilidade do episódio é total.
Aliás, na discussão jurídica que ocorre nos Tribunais sobre a actividade delitual nos delitos tráfico de estupefacientes, em situações de trato sucessivo, ou na pluralidade de abusos sexuais verificados num determinado período de tempo, comungam dos mesmos princípios agora analisados, onde a singularidade dos factos apurados, reside na reiteração e pluralidade apuradas, concretamente quando um agente v.g. por cinco vezes “abusou sexualmente de um menor” (infligindo sobre o mesmo determinado comportamento) entre os anos de 2016 e 2018, bastando para a sua identificação, que os referidos abusos hajam sido suficientemente descritos na sua ontologia e com a localização no referido período temporal.
Portanto, satisfeitos os critérios da singularidade do facto, que permitem a sua identificação pela defesa, obviamente que não ocorre a violação dos arts.32º, nº 1, da C.R.P., e art.6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.»
Naturalmente que, como também decorre do indicado aresto, não é indiferente o número de situações em que, e agora volvendo ao caso concreto, na constância do matrimónio, o arguido dirigiu à assistente as expressões indicadas. Serem duas ou duzentas vezes é relevante para a defesa do arguido, pois essa mensuração será repercutida na medida concreta da pena em caso de condenação.
E essa frequência não vem mencionada no apontado parágrafo. Mas o Tribunal de julgamento não está inibido de – aliás, deve fazê-lo, em busca da verdade material –, procurar concretizar a regularidade com que, ao longo do casamento, o arguido dirigiu à vítima palavras como “tola”, “caolha”, “vadia” e “cegueta”, caso considere demonstrado esse facto, tendo depois à sua disposição o preceituado no art. 358.º, n.º 1, do CPPenal caso entenda que a situação justifica efectuar essa comunicação (a concretização da regularidade apenas clarifica, para efeito de defesa do arguido, a frequência da acção, dentro da previsão já incluída no texto original).
O Tribunal a quo ao ignorar totalmente os apontados factos, por entender que sobre eles nem tinha de se pronunciar, criou uma situação de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, pois podia e devia ter ido mais além na produção e avaliação da prova, o que não fez (art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPPenal).
Para além do referido, a decisão recorrida evidencia ainda outras deficiências na sua motivação, posto que dá como provado incidentes de chamamento da polícia e do filho do casal e também a saída de casa por parte da assistente para ir viver para uma casa de emergência e depois uma casa abrigo, assim, como dá por assente que a assistente apresenta sintomatologia depressiva e ansiosa, ausência de auto-estima, medo do marido, da reacção dos demais familiares e da solidão, mas, quase contraditoriamente, não relaciona esse factos com a análise que faz da prova, limitando-se a falar em contradições relativamente às declarações da assistente para memória futura e em julgamento, sem as explicar ou a concretizar.
Ora, o facto de a assistente ter medo do marido e sair de casa para ir viver numa casa abrigo, segundo se deu como provado, face às regras da experiência comum, é sintomático de eventual violência doméstica. Porém, paradoxalmente, nada disto que se provou (factos provados 4. a 11.), parecer ter tido qualquer reflexo na apreciação da prova quanto aos factos imputados ao arguido, o que se mostrava necessário esmiuçar e explicar.
O mesmo se diga das observações sobre os depoimentos das testemunhas EE, FF e DD, de onde se salienta o facto de não terem assistido aos factos, mas apenas ao que a assistente lhes contava.
Porém, a própria sentença dá nota de relatos sobre factos a que as próprias assistiram, que mais uma vez são tidos como aparentemente neutros, como, por exemplo, a primeira, cabeleireira, ter visto peladas na cabeça da assistente, que referiu que era o marido que lhe puxava pelos cabelos, a segunda que esclareceu que na noite em que a assistente lhe pediu ajuda estava apavorada e a terceira ter chamado a polícia a pedido da assistente.
Não percebemos da motivação o porquê da irrelevância destes factos, como se todos os referidos acontecimentos fossem, face às regras da experiência comum, normais no decorrer da vida das pessoas.
A circunstância de a sentença recorrida não elencar entre os factos provados e os não provados alguns dos que constam da factualidade descrita na acusação e que constituem parte do seu núcleo essencial, quando devia e podia tê-los enunciados num dos referidos parâmetros, determina a nulidade da decisão nos termos dos arts. 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. a), ambos do CPPenal.
Mas a circunstância de o Tribunal a quo ter deixado de indagar, como podia e devia, qual a frequência da ocorrência das acções imputadas, bem como, sendo viável, o contexto da sua ocorrência – indagação que, no limite, sendo infrutífera ou não convencendo o Tribunal a quo, devia ter conduzido a uma decisão de não comprovação dos factos em causa –, e decidindo em face dessa omissão investigatória não tomar posição relativamente à demonstração ou falta dela quanto a tais factos, integra o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto pelo art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPPenal.
Com efeito, é jurisprudência pacífica a que considera que os vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPPenal, e designadamente, para o que aqui nos importa, o da insuficiência para a matéria de facto provada, previsto na alínea a) do mencionado preceito, são defeitos que têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida, sem apoio em quaisquer elementos externos à mesma, salvo a sua interpretação à luz das regras da experiência comum. São falhas que hão-de resultar da própria leitura da decisão e que são detectáveis pelo cidadão médio, devendo ser patentes, evidentes, imediatamente perceptíveis à leitura da decisão, revelando juízos ilógicos ou contraditórios.
Concretizando:
«A insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem – absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. – e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena.»[11]
No mesmo sentido, salientando ainda que o vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão não se confunde com a ausência de prova para demonstração da factualidade em causa:
«IX - A insuficiência da matéria de facto provada para a decisão reconduz-se a uma ausência de materialidade substancial, isto é, uma omissão factual contextualizada que inviabiliza e impede que o tribunal possa validamente operar uma adequada e correcta subsunção à previsão ilícito-material contido no preceito incriminatório da facticidade adquirida para o teor decisório. O tribunal podia e devia ter apurado factos que lhe permitissem obter uma factualidade consistente donde fosse possível extrair um veredicto de direito ajustado ao caso. X - Não cabe na insuficiência da matéria de facto a alegação, ou verificação, de carência ou incapacidade probatória do tribunal para congraçar a realidade que lhe foi posta para julgamento, vale dizer impossibilidade de lograr alcançar um liquet para sustentação dos enunciados fácticos propostos para enformação da realidade jurídica proposta para julgamento. Neste caso do que se tratará é de uma falência probatória ou uma errada apreciação dos elementos de facto que forma aportados para o processo e que o tribunal equacionou de forma não correspondente a um ajuizamento atinado com razão e com o razoamento lógico-racional que, a verificar-se, deverá determinar a falência histórico-factual dos enunciados fácticos que foram propostos ao tribunal para julgamento e segundo as várias soluções de direito que poderiam ser encaradas para a solução do caso.»[12]
Como cristalinamente se vê no caso dos autos, o Tribunal a quo não chegou, sequer, ao ponto de decidir que a prova quanto aos pontos de facto considerados como não escritos era insuficiente, dando-os como não provados, optando por verdadeiramente não se comprometer com nenhuma das versões em conflito, antes se escudando na ausência de datação precisa das ocorrências e numa incorrecta rotulagem dessa factualidade como genérica, para não mais se preocupar com a mesma e não assumir a decisão que se impunha, ou considerando não provados tais factos ou considerando-os provados na medida do que lhe fosse possível apurar.
O enquadramento do apontado vício merece igual análise, entre muitos outros, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-09-2017[13], onde se decidiu:
«VI - Existe insuficiência da matéria de facto quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos para a decisão de direito, considerando as várias soluções plausíveis, como sejam a condenação (e a medida desta) ou a absolvição (existência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa), admitindo-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis, poderiam ser dados como provados, determinando uma alteração de direito.
(…)
IX - O vício a que alude o art. 410.º, n.º 2, al. a) do CPP, não se confunde com a insuficiência da prova para a decisão nem com o erro de julgamento, não contemplando as situações em que o recorrente manifesta a sua discordância relativamente aos factos dados como provados e porque está fora da competência deste STJ exercer censura sobre a valoração que o tribunal recorrido procedeu dos diversos meios de prova e sobre a convicção que sobre eles formou, à luz do princípio da livre apreciação.»
Em situação com algum paralelo relativamente à frequência do cometimento de condutas ilícitas e solução legal em caso de omissão de apuramento respectivo mas no âmbito de tipo legal diverso foi igualmente decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 28-02-2018[14], que se verificava o vício apontado:
«VI - Casos há em que não é possível apurar o número exacto de condutas praticadas pelo arguido. Ou seja, sobra a pergunta: tendo conseguido a prova dos actos de abuso sexual, mas sem prova precisa do número de vezes e do momento temporal, o arguido deve ser absolvido dos crimes que praticou? Ou quantos crimes devem ser-lhe imputados? Tantos quantos se consigam averiguar. De outra forma estaremos também aqui a dispensar a investigação de determinar o número exacto de actos singulares que foram praticados pelo arguido. Enquanto se mantiver a legislação que temos, cabe fazer a prova do maior número possível de actos individuais, devendo ser excluídos, em nome do princípio in dubio pro reo, aqueles cuja prova se não consegue obter de forma segura. VII – Ficou provado que o arguido praticou diversos actos sexuais de relevo com a menor, entre Dezembro de 2014 e Março de 2017. Ainda que se diga que não é possível apurar o número de vezes que em cada semana tais práticas foram realizadas, no mínimo caberia fazer prova se teriam sido realizadas todas as semanas. Dado que do texto da decisão recorrida resulta a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do art. 410º, n.º 2, al. a), do CPP, determina-se o reenvio do processo para novo julgamento quanto ao referido.»
A constatação de que a sentença recorrida padece do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPPenal, não determina automaticamente o reenvio do processo para novo julgamento. O reenvio só deve ocorrer quando não seja possível por outra forma colmatar as falhas detectadas, conforme decorre do disposto no art. 426.º, n.º 1, do CPPenal.
Tratando-se de vício que afecta a configuração da matéria de facto pode o Tribunal de recurso procurar a sua modificação em ordem à correcção das falhas apuradas nas condições previstas no art. 431.º do CPPenal, isto é, i) se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base, ii) se a prova tiver sido impugnada nos termos do art. 412.º, n.º 3, do referido diploma legal e iii) se tiver havido renovação da prova[15].
No caso concreto, são de afastar liminarmente a primeira e a terceira hipótese de sanação do vício, seja porque a modificação a produzir depende do teor das declarações e depoimentos produzidos, logo não dispondo o processo de todos os elementos de prova em causa, seja porque não foi requerida renovação da prova e esta não opera oficiosamente, conforme decorre do disposto no art. 430.º do CPPenal[16].
Resta a hipótese prevista na al. b) do art. 431.º do CPPenal – a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do art. 412.º –, o que efectivamente ocorreu.
Mas ouvida a prova produzida percebemos que há falhas que não podem ser reparadas em recurso, pois faltou por parte do Tribunal a quo essa necessária indagação e confrontação sobre todos estes referidos acontecimentos, começando, desde logo, pela factualidade que o Tribunal a quo decidiu considerar como não escrita, mas também perante as demais incongruências assinaladas.
Por isso, mostra-se impossível a este Tribunal de recurso suprir a insuficiência detectada em ordem à composição de uma matéria de facto completa que permita uma solução jurídica de condenação ou de absolvição alicerçada na prova produzida, já que esta não esgotou as potencialidades de apuramento dos factos que se evidencia poder ser realizada.
Resta, em conformidade com a avaliação antecedente, determinar o reenvio do processo para novo julgamento quanto à totalidade do seu objecto, nos termos do art. 426.º, n.º 1, do CPPenal, a realizar de acordo com as regras estabelecidas no art. 426.º-A do CPPenal e com intervenção de diferente magistrado judicial.
Esta solução prejudica a análise de outras questões suscitadas no recurso, cuja apreciação se torna inútil em face da repetição do julgamento.
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em reconhecer verificado o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPPenal, e, em consequência, determinar o reenvio do processo para novo julgamento quanto à totalidade do seu objecto, nos termos do art. 426.º, n.º 1, do CPPenal, a realizar de acordo com as regras estabelecidas no art. 426.º-A do CPPenal e com intervenção de diferente magistrado judicial, mostrando-se prejudicada a análise do demais suscitado no recurso.
Sem tributação (art. 515.º do CPPenal).
Porto, 03 de Junho de 2024
(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
Maria Joana Grácio
Pedro M. Menezes (Voto a decisão)
Paulo Costa
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[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.
[2] As notas-de-rodapé assumiram diferente numeração com a inserção do trecho em questão no presente acórdão.
[3] In Prova Indiciária, Revista Julgar, n.º 2, 2007, Pág. 205.
[4] Acórdão do TRP de 09/03/2016, processo nº 635/14.4PAVNG.P1, integralmente disponível no sítio www.dgsi.pt
[5] Acórdão do TRP de 08/07/2015, processo nº 1133/13.9PHMTS.P1, integralmente disponível no sítio www.dgsi.pt.
[6] Acórdão do TRP de 27/06/2018, Processo nº 82/17.6GAALB.P1, integralmente disponível no sítio www.dgsi.pt
[7] Acórdão do TRP de 15/03/2016, Processo nº 1170/14.6TAVFR.P1, integralmente disponível no sítio www.dgsi.pt
[8] Cf. entre outros, acórdãos do TRG de 20-03-2017, relatado por Jorge Bispo no âmbito do 386/13.7GAVVNF-G1, do TRL de 21-06-2022, relatado por Artur Vargues no âmbito do Proc. n.º 6041/19.7T9LSB.L1-5, e do TRP de 15-02-2023, relatado por Cláudia Rodrigues no âmbito do Proc. n.º 6578/20.5T9CBR.P1, acessíveis in www.dgsi.pt.
[9] Relatado por Nuno Pires Salpico no âmbito do Proc. n.º 613/20.4PDVNG.P1, acessível in www.dgsi.pt.
[10] O conceito de singularidade (aqui usado) do facto respeitante a uma conduta delitual (com figurino típico), não respeita à ideia de excentricidade, ou de algo extraordinário, mas antes à individualização de um evento que se destaca da vivência do dia-a-dia e de diferenciação de outros factos. Ao mesmo tempo, assume-se como conceito de “particularidade” que torna o facto distinto de outros. O ato de singularizar é aqui usado com o significado de “especificar”, “particularizar”, “distinguir dos outros”; “destacar”.
[11] Cf. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 05-11-2008, Proc. n.º 268/08.4GELSB.C1, acessível in www.dgsi.pt. No mesmo sentido, entre muitos outros, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-04-2018, Proc. n.º 140/15.1T9FNC.L1.S1- 5.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos).
[12] Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-05-2018, Proc. n.º 659/12.6JACBR.C3.S1 - 3.ª secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos).
[13] Proc. n.º 427/14.0JACBR.C1 – 3.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos).
[14] Proc. n.º 128/17.8JAODL.S1, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos). No mesmo sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04-05-2017, Proc. n.º 110/14.7JASTB.E1.S1 – 5.ª Secção, igualmente acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos).
[15] Sobre esta questão, embora chegando a solução diversa no caso concreto, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-03-2018, Proc. n.º 1188/15.1PHLRS.L1.S1 - 3.ª Secção, onde se decidiu (sumário):
«III - Decorre do art. 426.º do CPP que, quando se reconheça a verificação de um dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, a decisão de reenvio constituirá a excepção e só tem lugar se «não for possível decidir da causa» no tribunal de recurso, cabendo em regra a sanação do vício ao próprio tribunal de recurso.
IV - A decisão de aditamento de um ponto aos factos provados, levada a cabo pelo Tribunal da Relação no acórdão recorrido, surge por reconhecimento da existência do vício invocado pelo arguido – insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, prevista no art. 410.º, nº 2, al. a), do CPP - e tendo considerado ser possível decidir com os elementos constantes dos autos, procedeu à sanação do vício e consequentemente não determinou o reenvio do processo para a 1.ª instância. Esta forma de sanação do vício não excede os poderes de cognição da Relação (arts. 428.º, 410.º, n.º 2, al. a), e art. 426.º, n.º 1, todos do CPP).
V - Constitui jurisprudência corrente do STJ a orientação interpretativa dos arts. 1.º, al. f) e 358.º, n.º 1, ambos do CPP, segundo a qual inexiste alteração substancial dos factos da acusação ou da pronúncia quando na sentença melhor se concretizam os factos ali descritos. O aditamento de factos levado a cabo pelo Tribunal da Relação consubstancia uma alteração não substancial de factos, na medida em que se traduz num mero facto concretizador da conduta criminosa do arguido e não decorre a imputação para o mesmo de crimes diversos ou a agravação dos limites máximos da pena aplicável.
VI - O art. 424.º, n.º 3, do CPP limita o dever de notificação do arguido à alteração não conhecida do arguido, pelo que tendo o arguido conhecimento da eventual alteração uma vez que a questão foi suscitada pelo próprio recorrente (nas alegações de recurso interposto do acórdão da 1.ª instância), a mesma não carece de ser notificado ao arguido. Inexiste nesta interpretação qualquer violação do princípio do contraditório ou diminuição das garantias de defesa do arguido.»
[16] Nesse sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de processo Penal, Universidade Católica Editora, 3.ª edição, anotação 2 ao art. 430.º, pág. 1158.