I - A ausência de indicação no RAI das disposições legais aplicáveis ao crime que o requerente considera ter sido cometido pelo arguido corresponde à omissão de cumprimento do disposto no art. 283.º, n.º 3, al. d), do CPPenal, determinante da nulidade do RAI, por força da remissão operada pelo n.º 2 do art. 287.º, sendo, por isso, decalcada do regime da nulidade da acusação.
II - Dada a ausência de qualquer previsão nesse sentido, não estamos perante uma nulidade insanável, que deve ser oficiosamente declarada (art. 119.º do CPPenal), até ao trânsito em julgado da decisão final do processo, antes face a uma nulidade sanável, a arguir nos termos definidos no art. 120.º do CPPenal, concretamente do seu n.º 3 al. c).
III - Se ninguém arguir no prazo estabelecido na lei a nulidade do RAI, o Tribunal a quo está impedido de se pronunciar sobre a validade dessa peça na decisão instrutória.
IV - A inadmissibilidade legal da instrução, conceito que tem sido preenchido pelos aplicadores do direito, não é equivalente aos vícios que geram a nulidade do RAI, embora possa ser sobreponível em alguns aspectos.
V - Um deles é a omissão prevista no art. 283.º, n.º 3, al. b), do CPPenal, de narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
VI - Se a imputação factual do RAI não for clara e assertiva ou, no limite, se não existir os arguidos não têm, sequer, possibilidade de se defender. Daí a importância da existência de uma narrativa factual que todos possam identificar como sendo a acusação alternativa que lhes é imputada e que baliza o objecto do processo.
VII - Tem sido entendido generalizado o de que o não cumprimento desta formalidade, posto que torna escusada a tramitação subsequente, já que o resultado pretendido – despacho pronúncia – nunca poderá ser alcançado, deve ser enquadrado como inadmissibilidade legal da instrução, à luz da regra da proibição de actos inúteis (art. 130.º do CPCivil ex vi art. 4.º do CPPenal).
VIII - E tem também sido entendido não ser admissível o convite à reparação daquela falha por força de uma celeridade que, a não ser alcançada, contende com direitos fundamentais de defesa dos arguidos.
IX - Diferentemente, a mera omissão de indicação no RAI da disposição legal, conjugada com a expressa denominação do tipo de crime em causa, a que corresponde uma única disposição legal aplicável, não impede uma decisão instrutória válida, sem prejuízo de ocorrer posterior alteração da qualificação à luz do art. 303.º, n.ºs 1 e 5, do CPPenal, pelo que não permite concluir pela inadmissibilidade legal da instrução.
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Instrução Criminal do Porto – Juiz 5
Sumário:
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Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
No âmbito dos autos de Inquérito n.º 10629/22.0T9PRT, a correr termos na Comarca do Porto, 1.ª Secção do DIAP do Porto, foi proferido despacho de arquivamento dos autos quanto ao apuramento da responsabilidade criminal do arguido AA pela eventual prática do crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 143.º, n.º s 1 e 2, e 132.º, n.º 2, als. l) e m), do CPPenal.
Perante este despacho, a assistente BB requereu a abertura da instrução, pretendendo a pronúncia do referido arguido pela prática de factos que descreve, os quais entende integram a prática do crime de ofensa à integridade física.
Por despacho de 17-01-2024, a Senhora Juiz de Instrução decidiu rejeitar o requerimento para abertura da instrução (RAI), aduzindo a seguinte argumentação (transcrição):
«Requerimento de fls.145 e s.s.
A assistente BB veio requerer a abertura de instrução contra AA, por considerar, contrariamente ao entendimento vertido no despacho de arquivamento do Ministério Público que a factualidade descrita na queixa crime e neste requerimento de abertura de instrução integra a prática de “um crime de ofensa à integridade física”.
Cumpre apreciar:
Ao assistente é facultada a abertura de instrução, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação (art. 287º, nº 1, al. b), do Cód. P. Penal).
Nos casos em que é requerida pelo assistente, a fase de instrução tem por finalidade a comprovação judicial da decisão de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art. 286º, nº 1, do Cód. P. Penal).
Quando formulado pelo assistente - por não se conformar com a decisão de arquivamento do inquérito - o requerimento para a abertura de instrução é que define e limita o objeto do processo, sendo certo que ao Tribunal está vedada a pronúncia por factos que importem uma alteração substancial dos que nele constem.
Nisto radica o princípio da vinculação temática do Tribunal ao objeto do processo tal como definido pelo assistente no requerimento para abertura de instrução.
Podemos, pois, afirmar que, nestes casos, o requerimento para abertura de instrução constitui, em suma, uma “acusação alternativa”, uma verdadeira acusação em sentido material, e, neste caso, o requerimento para abertura de instrução deve conter a narração de forma individualizada dos factos concretos imputados ao arguido ou visado com a instrução.
Trata-se de uma exigência que deriva da estrutura acusatória do processo penal (art. 32º da Constituição).
Com efeito, para além das razões de facto e de direito da discordância do assistente relativamente ao arquivamento, o requerimento para abertura de instrução formulado pelo assistente deverá conter, entre o mais – e sem prejuízo de não estar sujeito a formalidades especiais -, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, e, ainda, as disposições legais aplicáveis (art. 283º, nº 3, als. b) e c), ex vi do art. 287º, nº 2, do Cód. P. Penal).
No caso, o requerimento para instrução apresentado pela assistente, pretende a pronúncia do arguido pela prática de “um crime de ofensa à integridade física”.
Para o efeito, expõe as razões de discordância em relação ao despacho de arquivamento e tece considerações sobre os elementos probatórios constantes do inquérito, assim como alega os factos que entende que se encontram suficientemente indiciados, e que entende consubstanciarem o invocado crime.
Omite, no entanto, a qualificação jurídica (não especifica se é crime de natureza simples, qualificada, negligente e não indica as disposições legais.
O artigo 287º, nº 2, do Código de Processo Penal prevê que o requerimento (de abertura da instrução) não esta sujeito a formalidades especiais; porém, impõe que o mesmo contenha as razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação. Mais acrescenta a norma em causa que tal peça deve conter os factos que se espera provar, sendo aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artº 283º alíneas b) e c).
Reportando-nos a esta última norma, concluímos que o requerimento em causa deve assim ser idêntico a uma acusação: nos termos da referida alínea b) – e sob pena de nulidade deve o mesmo conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança incluindo se possível o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção; isto é: deve tal requerimento conter a narração exata de uma acusação, mediante a descrição dos factos integradores de um crime e a indicação da correspondente disposição legal que o tipifica.
Na mesma sequência, no seu nº 3 estão previstas as situações em que o requerimento pode ser rejeitado: quando é extemporâneo, quando dirigido a juiz incompetente ou por inadmissibilidade legal.
No requerimento de instrução em apreço, a assistente não indica a disposição legal que tipifica o crime que pretende imputar ao arguido.
DECISÃO:
Pelo exposto somos reconduzidos a uma inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do artigo 287º, n.º3, do Código de Processo Penal, cuja consequência é a rejeição do requerimento para abertura de instrução.
Notifique.
«I. 1. O presente recurso vem interposto do despacho da Mm. a Juíza de Instrução que rejeitou o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo Recorrente, com o fundamento na nulidade por inadmissibilidade legal e inobservância das formalidades legais (art.º 283.º n.º 3 e art.º 287.º n.º 2 do Código de Processo Penal).
II. - Porquanto no entender da Meritíssima Juiz de Instrução: «no requerimento de instrução em apreço, a assistente não indica a disposição legal que tipifica o crime que pretende imputar ao arguido.»
III. O requerimento de abertura de instrução dos autos contém o núcleo essencial dos factos suscetíveis de integrar os elementos do tipo, faltando, no entanto, a indicação da disposição legal aplicável, sem prejuízo da mesma ser extraível dos elementos processuais anteriores (designadamente do despacho de arquivamento) e ter sido indicada a tipologia criminal.
IV. Ora, salvo devido respeito, a Assistente não se pode conformar com o despacho proferido, porquanto, não se tratando da falta de narração dos factos essenciais à aplicação de uma pena ao arguido (caso em que não haveria convite ao aperfeiçoamento — Cf. Acórdão do STJ de fixação de jurisprudência n. 0 7/2005) deveria a Mm.ª Juiz de Instrução ter convidado ao aperfeiçoamento.
V. Por essa razão, o Tribunal a quo, fez uma incorreta interpretação dos artigos 287.º n.º 1, n.º 2 e n.º 3º e art.º 283.º n.º 3, todos do Código de Processo Penal.
VI. Violando duplamente os artigos 287.º n.º 1, n.º 2 e n.º 3 e art.º 283.º n.º 3, todos do Código de Processo Penal e o art.º 20 n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, o que determina a invalidade daquela decisão».
Organiza os seus argumentos da seguinte forma (transcrição):
«A) A assistente interpôs recurso do despacho da MMª Juiz de Fls. 187 a 188 que rejeitou o seu requerimento de abertura da instrução, por inadmissibilidade legal, porquanto não formulou uma verdadeira acusação, omitiu as disposições legais incriminatórias;
B) Diz a assistente, que no seu requerimento instrutório alegou factos suscetíveis de integrarem a pratica de um crime de ofensa à integridade fisica, e que não tendo apenas indicado as disposições legais incriminatórias, deveria o seu requerimento não ser rejeitado, mas deveria ter sido notificada para o aperfeiçoar;
C) E ao não o tendo feito, violou a MMª Juiz o disposto nos artº s 287º nº 1, nº 2 e nº 3, 283º nº 3, ambos do CPP, artº 20º da CRP e Acórdão com força obrigatória Geral nº 7 /2005;
D) E por via disso deve tal despacho ser substituído por outro, que ordene tal aperfeiçoamento;
E) O Mº Pº não concorda com a recorrente, pois a omissão da norma incriminadora numa acusação determina a sua nulidade, nos termos do artº 283º nº 3 al-c) do CPP;
F) Inexistindo a impossibilidade do seu aperfeiçoamento, sob pena de violação do princípio do acusatório;
G) Mas antes, passível do requerimento (abertura de instrução) em que se insere ser rejeitado, nos termos do artº 287º nº 3 do CPP;
H) O que a MMª Juiz fez, no cumprimento das referidas normas legais, que obviamente não violou;
I) Mas das quais, fez antes, correta, criteriosa e justa aplicação;
J) Mesmo à luz do decidido no Acórdão com força obrigatória geral nº 7/2005, que no caso em apreço não tem aplicação;
K) Pelo que, deve tal despacho sob censura ser mantido, negando-se provimento ao recurso.
Se outro for o entendimento de Vas Exas,
por certo farão JUSTIÇA!»
«A) A Resposta ao Recurso tem por objecto a não admissibilidade de convite ao aperfeiçoamento do Requerimento de Abertura de Instrução (doravante designado apenas por "RAI") formulado pela Assistente, o qual, redundou em decisão de inadmissibilidade legal da instrução, por violação do artigo 287.º, n.º 2, ex vi, artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), do CPP.
B) Na óptica do Arguido, o douto Despacho recorrido salvaguarda a estrutura acusatória do processo penal, consagrada no artigo 32.º, n.º 5, da CRP, pois, através dele, é vedada a prolação de uma decisão instrutória ferida de nulidade, nos termos do artigo 309º, do CPP.
C) Neste conspecto, fundamentalmente ligado à definição constante do artigo 1.º, alínea f), do CPP, persiste o direito de o Arguido ter ciência de todos os factos que possam vir a enformar a fase de instrução, para que possam continuar respeitados os seus direitos de defesa (artigo 32.º, n.º 1, da CRP).
D) Permitir-se o convite ao aperfeiçoamento do RAI, traduzir-se-ia numa oportunidade de duplicação (não prevista legalmente) de actos aprazados (peremptoriamente) no iter processual penal.
E) O que, consubstanciaria uma vantagem em abono da Recorrente, com o correlativo detrimento dos direitos de defesa do Arguido, em gritante violação do artigo 20.º, da CRP.
F) Ademais, não será admissível que a violação do artigo 287.º, n.º 2, ex vi, artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), do CPP por banda da Recorrente, possa ser suprida por convocação de elementos prévios do processo. Os assistentes encontram-se especialmente onerados na verificação de todos os requisitos constitutivos do seu RAI, em situações como a dos presentes autos, em que o Ministério Público absteve-se de acusar!
G) Isto posto, um ulterior convite a apresentação de novo RAI (aperfeiçoado) consubstanciaria uma violação do princípio da igualdade e do direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, tal como preconizados na CRP e gizados pela mais respeitada e alta Jurisprudência.
H) Termos em que, sempre com a mais respeitosa vénia, não merecerá censura o douto Despacho do Tribunal recorrido, porquanto o mesmo cumpre o disposto nos artigos 20.º e 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP, bem como, nos artigos 287.º, n.º 3, ex vi, 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), do CPP. Com a total improcedência do Recurso interposto e correlativo não convite da Recorrente, para aperfeiçoamento seu RAI, realizar-se-á Justiça!»
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].
A única questão que cumpre apreciar é a de saber se é incorrecta a decisão da Senhora Juiz de Instrução que rejeitou o requerimento para abertura da instrução, por inadmissibilidade legal da instrução.
Vejamos.
De acordo com o disposto no art. 287.º, n.º 2, do CPPenal, o requerimento para abertura da instrução «não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e d) do n.º 3 do artigo 283.º, não podendo ser indicadas mais de 20 testemunhas.»
Por seu turno, o art. 283.º, n.º 3, als. b) e d), do CPPenal estabelece que a acusação contém, sob pena de nulidade, «b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada» e «d) A indicação das disposições legais aplicáveis».
Resulta do conjunto destas normas que o requerimento para abertura da instrução deve ter a estrutura de uma acusação, sendo «[o]s factos (da acusação e da sentença) (…) “enunciados linguísticos descritivos de acções”: da acção executada – factos externos – e da acção projectada na vontade – factos internos.»[2]
Compulsado o requerimento para abertura da instrução apresentado pela recorrente verificamos que, na realidade, tal como se descreve na decisão recorrida, o mesmo é omisso quanto à indicação das disposições legais aplicáveis ao crime de ofensa à integridade física que considera ter sido cometido pelo arguido, ali requerido.
Esta falha corresponde à omissão de cumprimento do disposto no art. 283.º, n.º 3, al. d), do CPPenal, determinante da nulidade do RAI, por força da remissão operada pelo apontado n.º 2 do art. 287.º, prescrevendo aquela norma os requisitos da acusação, sob pena de nulidade.
Esta nulidade do RAI é, assim, decalcada do regime da nulidade da acusação.
Ora, dada a ausência de qualquer previsão nesse sentido, não estamos perante uma nulidade insanável, que é oficiosamente declarada (art. 119.º do CPPenal), até ao trânsito em julgado da decisão final do processo.
Trata-se, pois, de uma nulidade sanável, a arguir nos termos definidos no art. 120.º do CPPenal, concretamente do seu n.º 3 al. c), segundo a qual, tratando-se de nulidade respeitante ao inquérito ou à instrução, até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito.
Uma vez que nos presentes autos nenhum interveniente arguiu a referida nulidade do RAI, e estando a mesma dependente de arguição, estava o Tribunal a quo impedido de se pronunciar sobre a validade do RAI por aplicação directa daqueles normativos.
É expressiva a jurisprudência que reconhece que a nulidade da acusação, na falta de indicação em contrário e perante a omissão de previsão no elenco do art. 119.º do CPPenal, é sanável, estando, por isso, sujeita à disciplina dos arts. 120.º e 121.º do mesmo diploma legal[3].
É verdade que o despacho recorrido não classifica a omissão apontada como nulidade do RAI, reconhecendo apenas a inadmissibilidade legal da instrução, embora, no fundo, com fundamento em falha que importaria o reconhecimento daquela nulidade.
Contudo, a inadmissibilidade legal da instrução, conceito que tem sido preenchido pelos aplicadores do direito, não é equivalente aos vícios que geram a nulidade do RAI, embora possa ser sobreponível em alguns aspectos.
Um desses aspectos é a omissão prevista no art. 283.º, n.º 3, al. b), do CPPenal, de narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
Com efeito, se a imputação factual do RAI não for clara e assertiva ou, no limite, se não existir os arguidos não têm, sequer, possibilidade de se defender. Daí a importância da existência de uma narrativa factual que todos possam identificar como sendo a acusação alternativa que lhes é imputada e que baliza o objecto do processo.
E tem sido entendido generalizado o de que o não cumprimento destas formalidades, posto que torna escusada a tramitação subsequente, já que o resultado pretendido – despacho pronúncia – nunca poderá ser alcançado, deve ser enquadrado como inadmissibilidade legal da instrução, à luz da regra da proibição de actos inúteis (art. 130.º do CPCivil ex vi art. 4.º do CPPenal).
O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-03-2009[4] abordou esta questão, argumentando-se aí o seguinte:
«Também a jurisprudência tem considerado que “não faz sentido procede-se a uma instrução visando levar o arguido a julgamento, sabendo-se antecipadamente que a decisão instrutória não poderá ser proferida nesse sentido” (ac. do STJ, de 22-10-2003 – proc. 2608/03-3), entendendo ser de “rejeitar, por inadmissibilidade legal «vista a analogia perfeita entre a acusação e a instrução», o requerimento de abertura e instrução apresentado pelo assistente no qual este se limita a um exame crítico das provas alcançadas em inquérito … e omite em absoluto a alegação de concretos e explícitos factos materiais praticados pelo arguido e do elemento subjectivo que lhe presidiu para cometimento do crime” (ac. de 22-03-2006 – proc. 357/05-3 e de 07-05-2008, proc. 4551/07-3) E, mais especificamente, o acórdão de 7-12-1005 – proc. 1008/05, que o aqui relator subscreveu como adjunto, onde foi decidido, com um voto de vencido, que “se o requerimento do assistente para abertura da instrução não narra factos susceptíveis de integrar a prática de qualquer crime não pode haver legalmente pronúncia (cf. art. 308.º do CPP), pois a instrução seria, então, um acto inútil, cuja prática a lei proíbe (arts. 137.º do CPC e 4.º do CPP), e como tal legalmente inadmissível”, sendo certo que “a inadmissibilidade legal da instrução é uma das causas de rejeição do requerimento para abertura da instrução, nos termos do n.º 3 do aludido art. 287º”.
Também os tribunais da Relação vem decidindo que a falta de indicação de factos que preencham os elementos típicos do crime produz uma situação de inadmissibilidade legal da instrução. Nesse sentido, cfr, entre outros, os acs. da Rel. de Lisboa de 03-10-2001 – p. 1293/00, de 18-03-2003 – p. 77635; de 30-03-2004 – p. 8701/03; de 30-05-2006 – p. 1111/06; da Rel. do Porto de 15-12-2004 – p. 3660/03; de 01-03-2006 – p. 5577/05; de 21-06-2003 – p. 1176/06; e da Rel. de Coimbra de 23-04-2008 – p. 988/05.8TAACN.
Tudo quanto se deixou exposto permite concluir que a falta de indicação no requerimento para a abertura de instrução subscrito pelo assistente dos factos essenciais à imputação da prática de um crime a determinado agente tem como consequência necessária a inutilidade da fase processual de instrução, a qual, como é sabido, é constituída por diversos actos praticados pelo juiz de instrução, sendo um deles, obrigatoriamente, o debate instrutório. Ou seja, nos casos em que exista um notório demérito do requerimento de abertura de instrução, a realização desta fase constitui um acto processual manifestamente inútil por redundar necessariamente num despacho de não pronúncia. Haverá, assim, em consequência, que incluir no conceito de “inadmissibilidade legal da instrução”, além dos fundamentos específicos de inadmissão da instrução qua tale, os fundamentos genéricos de inadmissão de actos processuais em geral.»
Também o acórdão n.º 35/2012 do Tribunal Constitucional, de 25-01, em consonância com o acórdão n.º 636/2011 do mesmo Tribunal, veio acolher a solução apontada, considerando que a incompletude ou narração inadequada dos factos que gerariam responsabilidade criminal dos arguidos não pode ser qualificada como uma mera preterição de um formalismo legalmente exigido antes deve ser equiparada ao incumprimento – ou, pelo menos, ao cumprimento deficiente – de um ónus de natureza material, neste caso, a falta de narração adequada dos factos ilícitos que consubstanciariam a responsabilidade penal dos arguidos, razão pela qual naquele aresto se decidiu «[n]ão julgar inconstitucional a norma extraída dos artigos 287º e 283º do CPP, quando interpretada “no sentido de, em caso de narração incompleta dos factos, ser justificada a rejeição do requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal da instrução”.»
E não existe forma de salvar tal peça processual que sofra da apontada omissão por força do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça para fixação de jurisprudência n.º 7/2005, de 12-05-2005[5], segundo o qual:
«Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.»
O já mencionado acórdão n.º 35/2012 do Tribunal Constitucional, de 25-01, citando o acórdão n.º 636/2011, acolhe igualmente a posição de que não é possível no contexto em análise o convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura da instrução:
«“Ao determinar que “o requerimento [de abertura de instrução] não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à (…) não acusação”, o nº 2 do artigo 287.º do CPP está a definir um pressuposto de admissibilidade, por parte do tribunal, do ato praticado pelo assistente no processo que, para além de ser – como qualquer outro pressuposto processual – um meio de funcionalização do sistema no seu conjunto, é, pelo seu teor, necessário, face às exigências decorrentes dos princípios fundamentais da Constituição em matéria de processo penal. Face à legitimidade (digamos assim) “reforçada” de que dispõe, portanto, o legislador ordinário para fixar esse pressuposto – exigindo o seu cumprimento por parte do assistente – não se afigura excessiva ou desproporcionada a norma sob juízo, aplicada pela decisão recorrida: a Constituição não impõe um convite ao aperfeiçoamento do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, que, fora dos casos previstos no nº 3 do artigo 287.º do CPP, não cumpra os requisitos exigidos pelo nº 2 do mesmo preceito.
Assim é, tanto mais se se considerarem os efeitos que, nos termos do nº 1 do artigo 57.º do CPP, decorrem da apresentação do requerimento de abertura de instrução. Por tal apresentação implicar, ipso facto, a constituição de arguido (com todas as consequências que daí resultam para a protecção das garantias de defesa), não é jurídico-constitucionalmente irrelevante o tempo em que ela é feita. Precisamente por esse motivo fixa a lei um prazo – que é de 20 dias a contar da notificação do arquivamento do inquérito (artigo 287.º, n.º 1 do CPP) – para o assistente apresentar o requerimento de abertura de instrução.
A dilação desse prazo, que seria potenciada pela necessidade de formulação de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente, viria afetar os direitos de defesa do arguido, porquanto a peremptoriedade do prazo funciona em favor do arguido e dos seus direitos de defesa (v., nesse sentido, acórdão do STJ n.º 7/2005, já citado, pág. 6344). Além disso, o convite à correcção dilataria o termo final do desfecho da instrução. A relevância jurídico-constitucional desses dois aspectos do regime legal relaciona-se não apenas com os direitos de defesa do arguido, tal como constitucionalmente tutelados, mas decorre também de valores constitucionalmente atendíveis tais como o princípio da celeridade processual. Mais outra razão, portanto, para que a opção legislativa pela inexigibilidade da formulação de tal convite seja tida como constitucionalmente legítima.”»
E o acórdão n.º 175/2013 do Tribunal Constitucional, de 20-03, fazendo apelo às decisões proferias nos acórdãos n.º 389/2005 e 636/2011, veio a decidir «Não julgar inconstitucional a norma resultante do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, com referência ao artigo 283.º, nº 3, alíneas b) e c)[6], do mesmo Código, segundo a qual não é admissível a formulação de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente e que não contenha o essencial da descrição dos factos imputados aos arguidos, delimitando o objeto fáctico da pretendida instrução».
A jurisprudência é, pois, unânime ao considerar que a falta de descrição factual é circunstância definitivamente impeditiva de uma decisão de pronúncia, razão pela qual determina a inutilidade da instrução e, consequentemente, a inadmissibilidade legal da instrução.
Mais, tem sido entendido não ser admissível o convite à reparação daquela falha por força de uma celeridade que, a não ser alcançada, contende com direitos fundamentais de defesa dos arguidos.
Perfilhamos em absoluto tais orientações.
Porém, a omissão de indicação das disposições legais, nos termos em que se verificou no caso em apreço, não impede uma decisão instrutória válida, pelo que não permite concluir pela inadmissibilidade legal da instrução.
Repare-se que se o legislador pretendesse este resultado bastava ter determinado a nulidade insanável em caso de falta dos requisitos previstos no art. art. 283.º, n.º 3, do CPPenal.
Mas não o fez. E a nosso ver bem, pois a multiplicidade de situações que podem surgir do não cumprimento daqueles requisitos hão-de determinar soluções diferentes.
Como bem se definiu no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24-10-2017[7], embora perante falhas diferentes, «[e]ntre as causas de rejeição do requerimento para abertura de instrução previstas taxativamente no nº 3 do art. 287º conta-se a “inadmissibilidade legal da instrução”. Neste conceito cabem apenas as deficiências do conteúdo de tal requerimento, nomeadamente quando dele resultar falta da tipicidade da conduta - e já não as suas deficiências formais», sendo que estas, não sendo essenciais e imprescindíveis, não devem conduzir à rejeição da abertura da instrução, «posto que a sua indagação e acrescento é possível».
No caso em apreço, a assistente entendeu que estava em causa um crime de ofensa à integridade física, elucidando, deste modo, qual a subsunção jurídica considerada adequada ao caso.
É certo que omitiu a indicação da norma legal, mas em coerência com a denominação que utilizou só existe uma disposição legal aplicável – o art. 143.º do CPenal, já que os demais casos de ofensa à integridade física são ou graves ou qualificados ou privilegiados ou negligentes.
O RAI deveria, pois, ter sido admitido tendo por fundamento uma tal interpretação, sem prejuízo de ocorrer posterior alteração da qualificação à luz do art. 303.º, n.ºs 1 e 5, do CPPenal.
Diga-se, aliás, que a faculdade decorrente deste preceito, torna incompreensível a rejeição por inadmissibilidade legal da instrução em situações em o juiz de instrução tem precisamente o poder de, antes de remeter os autos para a fase de julgamento, sendo caso disso, complementar ou corrigir o RAI.
Nestes termos, deve ser concedido provimento ao recurso, revogando-se o despacho de rejeição da instrução que deve ser substituído por outro que, não verificando outras causas para a sua rejeição, determine a abertura da instrução, prosseguindo esta os seus trâmites normais.
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso interposto pela BB e, em consequência, revogar o despacho de rejeição do requerimento para abertura da instrução e determinar a sua substituição por outro que, não verificando outras causas para a sua rejeição, declare aberta a instrução, prosseguindo esta os seus trâmites normais.
Sem tributação (art. 515.º do CPPenal).
Notifique.
Porto, 03 de Junho de 2024
(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
Maria Joana Grácio
Pedro M. Menezes (Acompanho sem reservas a decisão, por entender, na esteira da posição que tenho tomado nesta matéria, que também o requerimento para abertura de instrução em causa nos autos cumpre minimamente – e, por isso mesmo, suficientemente – a função de identificação que lhe cabe assegurar)
Pedro Vaz Pato
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[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.
[2] Cf. acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 27-06-2017, Proc. n.º 171/14.9GDEVR.E1, acessível in www.dgsi.pt.
[3] Cf. entre outros, acórdãos do TRG de 20-03-2017, relatado por Jorge Bispo no âmbito do 386/13.7GAVVNF-G1, do TRL de 21-06-2022, relatado por Artur Vargues no âmbito do Proc. n.º 6041/19.7T9LSB.L1-5, e do TRP de 15-02-2023, relatado por Cláudia Rodrigues no âmbito do Proc. n.º 6578/20.5T9CBR.P1, acessíveis in www.dgsi.pt.
[4] Cf. Proc. 08P3168, acessível in www.dgsi.pt.
No mesmo sentido, veja-se o acórdão do STJ de 22-04-2021, relatado por António Gama no âmbito do Proc. n.º 35/20.7TREVR.S1, acessível in www.dgsi.pt.
[5] Proc. n.º 430/2004 – 3.ª Secção (DR 212 Série I-A, de 05-11-2005).
[6] Nota da aqui relatora: actualmente al. d).
[7] Relatado por Maria Leonor Esteves no âmbito do Proc. n.º 1383/16.6T9BJA.E1, acessível in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRE:2017:1383.16.6T9BJA.E1.28.