REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
Sumário

I - Uma conduta humana, para que seja considerada crime, terá que preencher a tipicidade objetiva da norma punitiva, ou seja o comportamento factualmente descrito numa acusação ou num despacho de pronúncia terá que ser subsumível à previsão normativa vigente à data da ação, mas não só, pois não é possível dizer que um facto preenche materialmente o tipo de crime se não houver dolo ou negligência, ou seja o preenchimento também da tipicidade agora numa perspetiva subjetiva;
II - A consciência da ilicitude respeita à culpa, conforme decorre do regime do erro respetivo acolhido no art.º 17º do Código Penal e a sua verificação implica a exclusão da culpa (e não do dolo);
III - A ilicitude, não se confunde com o dolo ou a negligência, sendo antes uma circunstância de avaliação da culpa – cfr. artigo 17º do C.P. – isto é, está arredada da vontade do agente, podendo este agir, determinado pelo resultado que pretende, sem ter o conhecimento do desvalor da sua ação em concreto, desvalor esse comunitário e legalmente tipificado como crime, o que nos leva a outro patamar da análise que é o de saber se, tal ignorância é ou não censurável.
IV - A apreciação da acusação nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 311º do CPP, quando deparada com a omissão da “formula” tradicional de que o arguido “agiu com consciência da ilicitude”, não constitui motivo de rejeição da mesma, pois aquela consciência da ilicitude não é elemento constitutivo dos tipos criminais definidos pela lei penal, perante o normativo constante do art.º 17.º do CP, ao contrário, é a inconsciência da ilicitude ou a sua ausência (artigo 31º do C.P. ) que, em certas circunstâncias pode excluir a culpa e, por essa via, a responsabilidade criminal.

Texto Integral

Proc. nº 424/23.5T9VFR.P1

Sumário:
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Acordam em Conferência na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto

1 Relatório

Nos autos nº 424/23.5T9VFR.P1 que correm os seus termos na comarca de Aveiro, Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira, juiz 1, foi proferido o seguinte despacho:
(transcrição do despacho sem as respetivas notas de pé de página)
“A assistente AA deduz, atempadamente, por si e em representação do seu filho menor, BB, acusação particular contra CC, imputando-lhe a autoria material e em concurso efectivo de um crime de injúria e de um crime de difamação, p. e p., respectivamente, pelos art.os 181.º, 1, 183.º, 1 b), 180.º, 1, e 183.º, 1 b), todos do Cód. Penal, fundada em factos (ocorrência) que descreve, verificados no dia 25.12.2022, e aditando aos mesmos que “Com tais epítetos o Arguido CC quis de forma livre, consciente e deliberadamente injuriar o Jovem BB, bem sabendo que as expressões que proferia não correspondiam à verdade e eram ofensivas da honra e consideração do seu filho” e “Quis também, e ainda, o Arguido CC, de forma livre, consciente e deliberadamente difamar a Assistente AA, perante o seu filho BB, bem sabendo que as imputações e juízos ofensivos que proferia não correspondem à verdade e eram ofensivas da honra e consideração da Assistente AA, mãe do seu filho.
“Pelo que, cometeu o arguido CC, em autoria material, um crime de injúria, p.p. pelos art.os 181.º, 1, e 183.º, 1 b), ambos do C.P. e um crime de difamação, p.p. pelos art.os 180.º, 1, e 183.º, 1 b), ambos do C.P.”.
O Ministério Público acompanhou a acusação particular “quando à descrição da matéria fáctica e à respectiva qualificação jurídica”.
Cumpre apreciar e decidir.
Vejamos o tipo legal de crime de injúria:
“Art.º 181.º do Cód. Penal
1. Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.
2. ...........................................................................................................”
São elementos constitutivos deste tipo legal de crime:
- Injuriar outrem;
- Dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra ou consideração;
- O dolo, em qualquer das suas formas.
“Injúria é a manifestação, por qualquer meio, de um conceito ou pensamento que importe ultraje, menoscabo, ou vilipêndio contra alguém, dirigida ao próprio visado. O bem jurídico lesado pela injúria é, prevalentemente, a chamada honra subjectiva, isto é, o sentimento da própria honorabilidade ou respeitabilidade pessoal.”
“Honra «é a essência da personalidade humana, referindo-se, propriamente, à probidade, à rectidão, à lealdade, ao carácter...».
Consideração é «o património de bom nome, de crédito, de confiança que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida, sendo como que o aspecto exterior da honra, já que provém do juízo em que somos tidos pelos outros».
Por outras palavras pode dizer-se que a honra é a dignidade subjectiva, ou seja, o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui. Diz assim respeito ao património pessoal e interno de cada um - o próprio eu.
A consideração será o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, a reputação, a boa fama, a estima, a dignidade objectiva, que é o mesmo que dizer, a forma como a sociedade vê cada cidadão - a opinião pública.”
Como escreve JOSÉ DE FARIA COSTA“...entre nós, BELEZA DOS SANTOS: “a lei não exige, como elemento do tipo criminal, em nenhum dos casos, um dano efectivo do sentimento da honra ou da consideração. Basta, para a existência do crime, o perigo de que aquele dano possa verificar-se.”
Analisemos agora o tipo legal de crime de difamação:
“Art.º 180.º do Cód. Penal
1. Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.
2. ...........................................................................................................
3. ..............................................................................................................
4. .............................................................................................................”
São elementos constitutivos deste tipo legal de crime:
- A imputação a outra pessoa de facto, mesmo sob a forma de suspeita, ou o formular sobre ela juízo, ofensivos da sua honra ou consideração;
- Dirigindo-se a terceiro, sem o ofendido se achar presente;
- O dolo genérico.
“Doutrinariamente pode definir-se difamação como atribuição a alguém de facto ou conduta, ainda que não criminosos, que encerrem em si uma reprovação ético-social, por conseguinte, que sejam ofensivos da reputação do visado.
Na linguagem da lei a difamação compreende comportamentos lesivos da honra e consideração de alguém.
Honra «é a essência da personalidade humana, referindo-se, propriamente, à probidade, à rectidão, à lealdade, ao carácter...».
Consideração é «o património de bom nome, de crédito, de confiança que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida, sendo como que o aspecto exterior da honra, já que provém do juízo em que somos tidos pelos outros».
Por outras palavras pode dizer-se que a honra é a dignidade subjectiva, ou seja, o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui. Diz, assim, respeito ao património pessoal e interno de cada um - o próprio eu.
A consideração será o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, a reputação, a boa fama, a estima, a dignidade objectiva, que é o mesmo que dizer, a forma como a sociedade vê cada cidadão - a opinião pública.”
Como escreve JOSÉ DE FARIA COSTA “...entre nós, BELEZA DOS SANTOS: “a lei não exige, como elemento do tipo criminal, em nenhum dos casos, um dano efectivo do sentimento da honra ou da consideração. Basta, para a existência do crime, o perigo de que aquele dano possa verificar-se.”
Será a factualidade imputada na acusação particular susceptível de preencher os elementos constitutivos dos tipos legais de crime de injúria e difamação imputados?
Entendemos que não, porque foram omitidos elementos constitutivos subjectivos do tipo, maxime a consciência da ilicitude criminal dos factos.
O tipo legal de crime é conformado pelos elementos constitutivos objectivos e subjectivos. Integram os primeiros os factos concretos naturalísticos imputados aos arguidos e preenchem os segundos o conhecimento e vontade de realização do tipo de crime. Quanto a estes últimos, citando o Professor Doutor FIGUEIREDO DIAS, “O dolo enquanto conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo, e a negligência enquanto violação de um dever de cuidado, são elementos constitutivos do tipo-de-ilícito. Mas o dolo é também e ainda expressão de uma atitude pessoal contrária ou indiferente, e a negligência expressão de uma atitude pessoal descuidada ou leviana, perante o dever-ser jurídico-penal; e nesta parte são elementos constitutivos, respectivamente do tipo-de-culpa doloso e do tipo-de-culpa negligente. É a dupla valoração da ilicitude e da culpa que concorre na completa modelação do dolo e da negligência.”
Assim, só a verificação dos elementos constitutivos objectivos e subjectivos é passível de integrar o preenchimento dos tipos legais incriminadores. Pelo que é imperioso, porque imprescindível, que constem da acusação, sem os quais não é a mesma fundada, porque insusceptível de suportar a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança (art.º 283.º, 3 b), do CPP), não sendo os elementos normativos subjectivos passíveis de serem considerados objectivamente resultantes dos elementos normativos objectivos.
Neste sentido, fixou a seguinte jurisprudência o Acórdão do STJ n.º 1/2015 [publicado no DR Série I, de 27.01.2015]:
«A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.»
Consequentemente, é de rejeitar a referida acusação particular, porque nula e manifestamente infundada (art.º 311.º, 2 a) e 3 b), do CPP).
Em idêntico sentido se pronunciaram, entre outros, os Acs. da Relação de Lisboa, de 30.01.2007, Proc.º n.º 10221/2006 – 5, e de 12.11.2008, Proc. n.º 5736/2008 – 3; da Relação do Porto, de 15.11.98, Proc. n.º 9840867; da Relação de Coimbra, de 01.06.2011, Proc. n.º 150/10.5T3OVR.C1; da Relação de Guimarães, de 07.04.2003, Proc.º n.º 84/03; e da Relação de Évora, de 01.03.2005, Proc.º n.º 2/05 – 1, e também o Ac. de fixação de jurisprudência supra mencionado, onde se refere expressamente: “Já vimos que esses elementos têm de constar obrigatoriamente da acusação, implicando a sua falta a nulidade do libelo (art.º 283.º, n.º 3, alínea b) do CPP).
Por conseguinte, tendo o processo sido despachado para julgamento, sem ter passado pela instrução, o respectivo juiz (presidente) deveria rejeitar a acusação, não só por a mesma ser nula, nos moldes referidos, mas também por ser manifestamente infundada, nos termos do art.º 311.º, n.os 2, alínea a) e 3, alínea b) do CPP – não conter a narração dos factos.”
Face ao exposto, nos termos do art.º 311.º, 1, 2 a) e 3 b), do Cód. Proc. Penal, rejeita-se a referida acusação particular, porque nula e manifestamente infundada.
Custas pela assistente.”
Inconformado, veio o Digno Magistrado do Ministério Público interpor recurso, tendo concluído o mesmo nos seguintes termos:
I. No despacho judicial de recebimento da acusação proferido no dia 17/11/2023 o Meritíssimo Juiz rejeitou a acusação particular porque a mesma não descrevia os “elementos constitutivos subjectivos do tipo, maxime a consciência da ilicitude criminal dos factos”;
II. O dolo desdobra-se no conhecimento (ou representação ou, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objetivo do ilícito, e na intenção de realizar o facto (no caso do dolo direto) – cf. art.º 14º do Código Penal – o que constava da acusação particular;
III. A consciência da ilicitude respeita antes à culpa, conforme decorre do regime do erro respetivo acolhido no art.º 17º do Código Penal e a sua verificação implica a exclusão da culpa (e não do dolo);
IV. A consciência da ilicitude assume autonomia apenas nos casos em que se discuta a sua falta, ou seja, sempre que, atendendo à natureza do crime – não se incluindo este nos crimes de direito clássico nos quais a referida consciência está implícita no preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do tipo, em especial o dolo – se encontre controvertida a verificação de tal elemento enquanto causa de exclusão a culpa nos termos previstos no artigo 17º do CP;
V. A ilicitude dos crimes de injúria e difamação é conhecida por todos, tratando-se de crimes em si, do Direito Penal Clássico e com relevo axiológico conhecido e difundido, na comunidade;
VI. O “conhecimento da ilicitude” refere-se ao juízo de culpa, previsto autonomamente, no art.º 17º C.P., razão pela qual o mesmo não tem de ser descrito no texto de acusação;
VII. Ao rejeitar a acusação particular o Tribunal “a quo” fez uma errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 283º, n.º 3, al. b) e 311º, n.ºs 2, al. a) e 3, al. d) do Código de Processo Penal e artigos 14º, 180º e 181º do Código Penal.
Termos em que deve o presente recurso merecer provimento e, em consequência, ser revogado o despacho recorrido substituindo-o por outro que receba a acusação particular deduzida pela assistente contra o arguido pela prática dos crimes de difamação e injúria.
Neste Tribunal a Digna Procuradora Geral Adjunta teve vista nos autos, tendo emitido parecer no sentido do provimento do recurso.
Deu-se cumprimento ao disposto no artigo 417º nº 2 do CPP, foram os autos aos vistos e procedeu-se à Conferência.
Cumpre assim apreciar e decidir
2 Fundamentação.
Atentas as conclusões do recurso, sendo estas que balizam o seu objeto, a única questão que importa conhecer e decidir é o saber se a acusação particular rejeitada pelo Tribunal, está em condições de ser recebida e submetido o arguido a julgamento.
Vejamos então.
Importa antes de mais apreciar a acusação particular formulada pela assistente, sendo este o seu teor:
“Acusação particular

No dia 25.12.2022, cerca das 10h30, durante o percurso de automóvel entre a residência do Arguido e da Assistente, e, após o Jovem BB ter passado o dia 24.12.2022 em casa do Arguido, seu pai, este, enquanto conduzia, dirigindo-se ao Jovem BB, proferiu os seguinte epítetos: “…bardamerda …”; “… tu és um parvalhão…”; “.. andas ali feito palhaço também…”.

Também durante a referida viagem, o Arguido, dirigindo-se ao Jovem BB, e referindo-se à Assistente, formulou as seguintes imputações:
-“… sabe que foi aquele monte de merda que destruiu a nossa família, o mal que ela nos fez a todos, sabe tudo, tu sabes tudo, isto tudo, que ela destruiu a nossa família, aquele monstro…”;
- “…tu estás ao lado do diabo…”;
- “… tu precisas é de viver no meio da falsidade, aquela merda que ela te deu, da merda de vida que ela te deu…”;
- ” …porquê que tu achas que o teu irmão não está com ela, ele já percebeu há muito tempo que ela não vale nada pá, que ela é um monte de merda, que não vale nada pá, aquilo não vale nada, não te vai dar nada, não vai fazer de ti ninguém, é tudo podre, aquilo é uma mulher podre, completamente podre pá, não vale nada, nada…”;
- “… a mulher dele não o quis para nada e arranjou esta em 10ª mão…”.

Ora, tais expressões injuriosas proferidas pelo Arguido, ofenderam a honra, consideração e o bom nome do Jovem BB, que se sentiu humilhado, envergonhado e vexado.

Com tais epítetos o Arguido CC quis de forma livre, consciente e deliberadamente injuriar o Jovem BB, bem sabendo que as expressões que proferia não correspondiam à verdade e eram ofensivas da honra e consideração do seu filho.

De igual modo, com as imputações falsas, a atribuição de factos desonrosos, a formulação de juízos ofensivos da pessoa da Assistente AA, perpetrados pelo Arguido, difamando a mãe do seu filho, ofenderam a honra e consideração da Assistente AA, a sua dignidade e reputação, provocando-lhe sentimentos de humilhação, vergonha e vexame.

Quis também, e ainda, o Arguido CC, de forma livre, consciente e deliberadamente difamar a Assistente AA, perante o seu filho BB, bem sabendo que as imputações e juízos ofensivos que proferia não correspondem à verdade e eram ofensivas da honra e consideração da Assistente AA, mãe do seu filho.

Pelo que, cometeu o Arguido CC, em autoria material, um crime de injúria, p.p. pelos artigos 181º, n.º 1 e 183º, n.º1, alínea b) ambos do C.P. e um crime de difamação, p.p. pelos artigos 180º, n.º1 e 183º, n.º1, alínea b) ambos do C.P.”
Perante esta acusação, entendeu o M. Juiz que “foram omitidos elementos constitutivos subjectivos do tipo, maxime a consciência da ilicitude criminal dos factos.”, razão pela qual a rejeitou.
Ora, dispõe o artigo 311º nº 2 al. a) do CPP que o Juiz rejeita a acusação se a considerar manifestamente infundada, esclarecendo o legislador, no nº 3 do mesmo artigo o que se deverá entender por acusação manifestamente infundada, sendo que, no caso, interessa o esclarecimento constante na alínea d) do referido nº 3, que nos diz que a acusação é manifestamente infundada se os factos não constituírem crime.
A rejeição da acusação particular surge assim porque, segundo reza o despacho recorrido, (se bem o entendemos) os factos descritos carecem da descrição da motivação psicológica do arguido no seu comportamento, pelo que, se omitindo a tipicidade subjetiva dos crimes em causa, jamais este comportamento do arguido se pode considerar crime.
Não no compete neste acórdão descrever as diversas posições doutrinárias e jurisprudências relativas à “teoria do crime”.
Ficaremos assim pelo que é de mais elementar e pacificamente aceite, e que subscrevemos e que podemos encontrar mais detalhadamente na doutrina da chamada “Escola pós-finalista” (Roxin, Jakobs)
Uma conduta humana, para que seja considerada crime, terá que preencher a tipicidade objetiva da norma punitiva, ou seja o comportamento factualmente descrito numa acusação ou num despacho de pronúncia terá que ser subsumível à previsão normativa vigente à data da ação, mas não só, pois não é possível dizer que um facto preenche materialmente o tipo de crime se não houver dolo ou negligência, ou seja o preenchimento também da tipicidade agora numa perspetiva subjetiva.
Isto mesmo nos diz o artigo 13º do Código Penal.
Nos casos da verificação de uma situação de dolo direto – as mais frequentes e no caso destes autos a que se verifica – importa que o agente do crime represente a realização de um facto (ou uma ação que leva a cabo) sabendo que a mesma preenche um tipo de crime e atua com a intenção de o realizar – cfr. artigo 14º nº 1 do Código Penal.
Depois de concluirmos que há uma ação típica, temos de ver se ela é ilícita.
Entendemos que a ilicitude, isto é, a valoração sobre o ato do agente, quer na sua vertente subjetiva, quer na sua vertente objetiva, enquanto fator determinante para a punição da ação, deverá analisar-se pela técnica negativa da exclusão. Ou seja, para concluirmos que uma conduta típica é ilícita ou não, temos de averiguar se se verifica ou não alguma causa de exclusão da ilicitude, tal qual nos refere o artigo 31º do Código Penal.
A ilicitude, não se confunde com o dolo ou a negligência, sendo antes uma circunstância de avaliação da culpa – cfr. artigo 17º do C.P. – isto é, está arredada da vontade do agente, podendo este agir, determinado pelo resultado que pretende, sem ter o conhecimento do desvalor da sua ação em concreto, desvalor esse comunitário e legalmente tipificado como crime, o que nos leva a outro patamar da análise que é o de saber se, tal ignorância é ou não censurável.
Com isto, queremos dizer, e voltando ao caso dos autos, que a subsunção legal do comportamento do agente indiciado por um crime contra a honra (artigos 180º e seguintes do C. Penal) basta-se com a identificação da sua vontade – dolosa- e a representação do resultado que pretende alcançar – a ofensa ao bom nome e consideração da vítima – sendo a ilicitude desse comportamento uma realidade universal e secular do conhecimento generalizado de todos os que vivem em sociedade, onde a proteção do “bom nome” de cada um encontra raízes jurídicas e mesmo religiosas, que se perdem no tempo.
A assistente, na sua acusação particular, foi clara ao descrever a tipicidade objetiva e subjetiva dos crimes que imputa ao arguido, sendo por demais evidente que a “consciência da ilicitude” do mesmo não carece de ser traduzida com a aposição da formula tabelar “bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei”, pois era desnecessária e nada nos autos nos permite configurar uma situação de erro sobre a ilicitude, ou uma situação de exclusão dessa mesma ilicitude.
Haveria assim a acusação particular de ser recebida.
Neste mesmo sentido, podemos encontrar, entre muitos o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11/10/2022, proferido no proc. N.º 431/18.0PBRLV.E- 1 (disponível em www.dgsi.pt )
“I - O Juiz, a quem incumba proferir o despacho de recebimento ou rejeição da acusação nos termos do art.º311º CPP, apenas deve lançar mão do aludido poder de rejeição nas situações em que seja patente a inaptidão dos factos descritos nesta peça processual para preencher atipicidade da norma incriminadora, em qualquer interpretação plausível desta, pois só nessa hipótese a sujeição do arguido a julgamento público seria suscetível de redundar num vexame inútil sem sentido.
II - A ausência de menção na acusação sob escrutínio, nos termos do art.º 311 CPP, de que o arguido agiu com consciência da ilicitude, não constitui motivo de rejeição da mesma, pois aquela consciência da ilicitude não é elemento constitutivo dos tipos criminais definidos pela lei penal, perante o normativo constante do art.º 17.º do CP; ao contrário, é a inconsciência da ilicitude que, em certas circunstâncias que revelem que a mesma não pode ser censurada ao agente, pode excluir a culpa e, por essa via, a responsabilidade criminal”
Por último, e porque o despacho recorrido aí se baseou também, teremos que dizer que o acórdão de fixação de jurisprudência Acórdão do STJ n.º 1/2015 (publicado no DR Série I, de 27.01.2015), em momento algum confunde a ilicitude com a tipicidade subjetiva do crime, não sendo assim aplicável a este caso.
3 Decisão.
Pelo exposto, julga-se o recurso provido e consequentemente revoga-se o despacho recorrido, devendo ser proferido despacho a receber a acusação particular e a designar dia para julgamento.

Sem custas

Porto, 3 de julho de 2024
Raul Esteves
Nuno Pires Salpico
Maria Joana Grácio