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MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
DEFICIÊNCIA NA FUNDAMENTAÇÃO
Sumário
I - A deficiente motivação da convicção (662.º, n.º 2, al. d), do Cód. Proc. Civil) não gera a nulidade da sentença. A consequência da deteção deste vício é apenas a determinação da sua supressão, aperfeiçoando-se a motivação, como ato preparatório da pronúncia do tribunal ad quem sobre o objeto da impugnação. II - A lei não obriga a que a motivação da decisão de facto obedeça a uma metodologia específica. Qualquer estratégia discursiva é válida, desde que permita apreender o raciocínio probatório do julgador. Quando tal não aconteça – ou seja, quando a motivação efetuada não permita apreender quais os concretos meios de prova e o raciocínio subjacentes à decisão sobre os concretos factos –, estaremos perante uma parcial deficiência na fundamentação da decisão de facto (art. 662.º, n.º 2, al. d), do Cód. Proc. Civil). III - Não sendo unívoco o material probatório na sustentação da decisão proferida, justifica-se que os autos baixem ao tribunal a quo, para que o M.mo Juiz autor da decisão motive a sua convicção que conduziu à decisão proferida.
Texto Integral
Processo 11158/15.4T8PRT.P1– Apelação
Tribunal a quo Juízo Central Cível do Porto – Juiz 2
Recorrente(s) A..., S.A.
Recorrido(a/s) AA
BB
Instituto da Segurança Social, I.P.
Sumário
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Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I – Relatório:
Identificação das partes e objeto do litígio
AA instaurou a presente ação declarativa, com processo comum, contra A..., S.A., pedindo a condenação da ré “no pagamento à autora da quantia global líquida de 950.375,00 €, acrescida de juros de mora vincendos à taxa legal, até efetivo e integral pagamento, [e ] ainda na indemnização que, por força dos factos alegados, (…) vier a ser fixada em ampliação do pedido ou em liquidação posterior”.
Para tanto, alegou que foi vítima de um acidente de viação causado pelo condutor de uma viatura segurada pela ré.
Citada, a contraparte apresentou contestação, impugnando a dinâmica do acidente e os danos alegados.
Em 29 de março de 2023 (ref. 45159357), a autora liquidou e ampliou os pedidos inicialmente formulados, pedindo a condenação da ré a pagar à autora “a quantia global de 1.496.412,70 euros acrescida de juros de mora”.
BB instaurou a ação declarativa com processo comum n.º 18431/15.0T8PRT, apensada aos presentes autos, contra A..., S.A., pedindo a condenação da ré “no pagamento ao autor da quantia global líquida de 62.502,40 €, acrescida de juros de mora vincendos à taxa legal, até efetivo e integral pagamento, [e ] ainda na indemnização que, por força dos factos alegados, (…) vier a ser fixada em ampliação do pedido ou em liquidação posterior”.
Para tanto, alegou que sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais em resultado do referido acidente sofrido por AA.
Citada, a contraparte apresentou contestação, impugnando a dinâmica do acidente e os danos alegados.
Em 18 de novembro de 2015, nos presentes autos (ref. 21134240), o Instituto da Segurança Social, I.P., deduziu contra a ré, A..., S.A., pedido de reembolso de prestações satisfeitas, requerendo que esta seja condenada a pagar-lhe “a quantia de € 3.139,35 (…), acrescida de juros de mora à taxa legal.”
Citada, a contraparte apresentou contestação, impugnando a dinâmica do acidente e os valores satisfeitos pelo demandante.
Após realização da audiência final, o tribunal a quo julgou parcialmente procedentes as duas demandas principais e totalmente procedente o pedido do Instituto da Segurança Social, I.P., concluindo nos seguintes termos:
(…) decido condenar a ré A..., S.A., nos seguintes pedidos:
A – Condenar a ré a pagar à autora AA, a quantia global de 917.825,00 euros ((…) sendo 100 mil euros a título de danos não patrimoniais e 817.825 euros a título de danos patrimoniais), acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação e até pagamento (observando-se o disposto no art. 388 n.º 2 do Código de Processo Civil, relativamente ao procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória em apenso);
B – Condenar a ré a pagar ao autor BB, a quantia global de 27.945,00 euros (…), a título de danos patrimoniais e não patrimoniais (sendo 7.945,00€ a título de danos patrimoniais e 20.000,00€ de danos não patrimoniais), acrescida dos juros de mora à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento;
C – Condenar ainda a ré a pagar ao Instituto da Segurança Social, I.P., a quantia de 3.139,35 euros (…), acrescida também de juros de mora à taxa legal desde a citação e até pagamento;
D – Absolvendo a ré dos demais pedidos formulados pelos autores.
Inconformada, a ré apelou desta decisão, concluindo, no essencial:
G. Donde e porque se revelam absolutamente essenciais à descoberta da verdade material e boa decisão da causa, uma vez que que apenas ora se mostraram disponíveis, se vem (…) requerer a junção de dois documentos.
H. Entende a recorrente verificar-se nulidade da sentença por violação das alíneas b) e d) do n.º1, do artigo 615.º do CPC, no que se refere aos factos provados sob os números 18, 25, 28, 33, 38, 39, 40, 41 (…).
J. (…) o Tribunal “a quo” podia e devia ter julgado de modo diverso a matéria dos pontos 12, 14, 15, 16, e 18 da matéria de facto provada; (…)
P. No que respeita à matéria provada sobre os pontos 25 e 33, verifica-se ainda nulidade por violação da alínea c) do n.º 1, do artigo 615.º do CPC (…).
Q. (…) verifica-se nulidade por violação do artigo 662.º, n.os 2, [al.] d), e 3, alíneas b) e d), do CPC, na medida em que a matéria de facto provada sobre os pontos 18, 25, 28, 33, 38, 39, 40, 41, 43, não foi feita com a indicação dos meios de prova que levaram à decisão proferida (…).
R. No que concerne aos pontos 12, 14, 15, 16 e 18 (…), é absolutamente imprescindível, em função da junção dos documentos n.º 1 e 2, aferir se a autora estaria a mudar um pneu ou se o carro ficou a padecer de avarias, se esta tinha ou não possibilidade de sinalizar a sua viatura, ou se ao invés, tal como se esqueceu de envergar o colete refletor, também se olvidou de sinalizar a imobilização da sua viatura, acionando as competentes luzes de emergência pois tal denota gravíssima violação do dever de cuidado que se lhe impunha.
S. Impõe-se, portanto, a ampliação da matéria de facto (…), bem como importa ouvir a testemunha CC (…) e ainda proceder à leitura da centralina da viatura do demandante de forma a apurar se na data e hora do sinistro se registou qualquer avaria, renovação que se requer ao abrigo do disposto no art. 662.º, n.º 2, als. a) e b), e 3 do CPC.
T. (…) nenhum elemento resultou apurado de que o condutor estivesse distraído (…).
X. Donde, a decisão da matéria de facto mostra-se deficiente e omissa o que implica a sua anulação ao abrigo da al. b) e c), do n.º 2 e 3 do artigo 662.º, do CPC, para produção de prova adicional, a complementar à produzida, como a inspeção ao local; a reconstituição do acidente; e uma perícia equidistante e objetiva, com perito nomeado pelo tribunal, para confirmar a conclusão de que a única explicação plausível para que o sinistro houvesse ocorrido é que o condutor seguia distraído. (…)
Y. (…) o ponto 25 foi incorretamente julgado (…).
EE. (…) quanto ao ponto 33 da matéria de facto provada, (…) entendemos que deveria ter sido dada como não provada (…).
OO. (…) o ponto 28 da matéria de facto provada devia ter sido dado como não provado (…).
QQ. No que se refere aos factos provados sob o número 38, (…) tal ponto deveria ter sido dado como não provado (…)
RR. (…) no que se refere ao ponto 39 da matéria de facto provada, deveria o mesmo ter sido julgado como não provado (…).
SS. Quanto aos pontos 40 e 41 da matéria de facto provada, entendemos que não quedou demonstrado que a autora tem necessidade de prótese transtibilal nem prótese transtibilal de banho, de dois em dois anos, com um custo entre 5.500 e 7.000 euros por cada prótese (…)
YY. Tendo em conta a situação clínica atual da autora, (…) impunha[-se] considerar que indemnização arbitrada para aquisição de próteses no entender da Recorrente deveria ter ficado relegada para incidente de liquidação (…).
ZZ. No que se refere ao ponto 41 é de aplicar idêntico raciocínio ao que se deixou expendido quanto ao ponto 40 (…).
BBB. Do mesmo vício padece o ponto 43 da matéria de facto provada (…).
KKK. Não respondendo a recorrente por qualquer culpa assacada ao seu condutor, e, afirmando-se a culpa exclusiva da demandante na produção do sinistro, a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do artigo 503.º é excluída (…).
QQQ. (…) a indemnização a arbitrar a título de danos não patrimoniais não deverá situar-se em montante superior a €40.000,00 (…).
RRR. A douta sentença condenou ainda a ré a pagar ao autor BB, a quantia (...) 20.000,00€ de danos não patrimoniais, de acordo com o art. 495.º do Código Civil (…).
SSS. (…) os normativos insertos nos artigos 483.º, n.º 1 e 495.º, n.º 1 e 2 do Código Civil, limitam o ressarcimento de terceiros aos danos patrimoniais – despesas feitas ou perda de alimentos, o que no caso não sucedeu. (…)
VVV. (…) a douta sentença (…) teve por justo e equilibrado fixar tal perda a título de lucros cessantes na quantia de 350.000,00 euros. (…)
HHHH. (…) num cenário académico em que a culpa pertencesse integralmente à ré, seria justo e correspondente ao efetivo dano patrimonial sofrido o valor máximo de € 85.000,00, devendo ser posteriormente deduzido 25% pelo recebimento de uma só vez do capital.
LLLL. No caso dos autos, não é possível atender aos danos futuros com próteses e suas reparações, pois que não são previsíveis, nem determináveis, motivo pelo qual a fixação da indemnização correspondente – que não concedermos ser devida – teria que ser remetida para liquidação ulterior (…).
OOOO. uma vez (…) que o acidente ocorreu exclusivamente devido à conduta da autora, naturalmente não poderá [a ré] ser condenada na reparação do veículo do demandante nem quanto ao ressarcimento de quaisquer quantias ao Instituto da Segurança Social, IP, (…).
RRRR. (…) a autora na petição inicial não pediu a condenação em juros de mora no que diz respeito aos danos cuja ampliação ou liquidação remeteu para momento posterior à sentença, pelo que a douta sentença ao condenar indistintamente no pagamento de juros, a contar da citação, condena além do pedido, incorrendo na nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Civil.
SSSS. No que se refere ao pagamento de danos morais e bem ainda € 195.000,00 para próteses de uso diário e € 103.000,00 para próteses de banho, € 2.200,00 para canadianas, bancos de banho e barras de duche bem como € 147.000,00 não se pode conceber que os mesmos sejam igualmente passíveis de condenação em juros a contar da citação.
A apelada AA contra-alegou, pugnando pela manutenção de decisão do tribunal a quo recorrida. Deduziu, ainda, recurso subordinado, concluindo:
17.ª – (…) a indemnização destinada a ressarcir o dano não patrimonial da autora deverá ser fixada em valor não inferior a EUR 175.000.000,00 (…).
28.ª – (…) [É] justo, adequado e proporcional, a fixação da quantia de € 400.000,00 a título de dano biológico (…).
A apelada no recurso subordinado, A..., S.A., contra-alegou, pugnando pela improcedência deste recurso.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II – Objeto do recurso:
Após a apreciação da questão preliminar suscitada pela apelante no recurso independente – junção de documentos –, caberá decidir as questões adjetivas suscitadas pela apelante, respeitantes à alegada nulidade da sentença, à necessidade de anulação da decisão sobre a matéria de facto e à necessidade de determinar ao tribunal a quo motive (melhor) a sua convicção sobre esta decisão.
A verificar-se a conformidade da decisão recorrida à lei processual, deverá ter lugar a apreciação da impugnação da decisão respeitante à matéria de facto referida nos pontos 12, 14, 15, 16, 18, 25, 28, 30, 33, 38, 39, 40, 41 e 43 dos factos provados, bem como à matéria não provada alegada nos arts. 31.º e 32.º da contestação.
As questões de direito a tratar serão mais desenvolvidamente enunciadas no início do capítulo dedicado à análise dos factos e à aplicação da lei.
Acresce a fixação da responsabilidade pelas custas.
Questão prévia – Junção de documentos pela apelante (recurso independente)
Requereu a apelante a admissão de documentos, juntos com a alegação de recurso. Para tanto, alega que “[a] demandada apenas neste momento teve conhecimento da participação e dos documentos juntos, pelo que apenas agora os pode juntar; falha que não lhe é imputável, mas é sim responsável em exclusivo à demandante, que, não dando cumprimento aos sucessivos despachos, omitiu factos essenciais à boa decisão da causar”. Está, pois, em causa, supostamente, a junção de “documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento” – arts. 425.º e 651.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil.
Resulta da lei que os meios de prova devem ser juntos ou oferecidos com a alegação do facto a cuja demonstração se destinam (arts. 423.º, n.º 1, 552.º, n.º 6, primeira parte, e 572.º, al. d), primeira parte, todos do Cód. Proc. Civil). Depois de produzidas alegações de facto pela contraparte, tem a parte a oportunidade de oferecer os meios de prova destinados a contrariar estas alegações (arts. 552.º, n.º 6, segunda parte, e 572.º, al. d), segunda parte, do Cód. Proc. Civil).
Findos os articulados, nenhum desenvolvimento processual amplia o objeto da instrução – salvos os casos especialmente previstos na lei –, pelo que nada justifica a apresentação serôdia de meios de prova que já podiam ter sido apresentados nos momentos acima referidos. A parte só o poderá fazer nos exatos termos consentidos por lei – designadamente, na oportunidade prevista no art. 598.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil.
A apelante alega conclusivamente que “apenas neste momento teve conhecimento da participação e dos documentos juntos”. Não esclarece como, em concreto, teve conhecimento da existência dos documentos nem em que data eles chegaram à sua posse. Não demonstra minimamente que a via que adotou para a sua obtenção (que não identifica) não podia ter sido adotada anteriormente.
Não basta dizer que é “facto público e notório” que a “recorrente integra agora por fusão o grupo B... S.A.”, via pela qual teve acesso aos registos desta seguradora. A fusão de sociedades não é um facto notório. É, sim, um facto a provar por documento – v.g., a certidão do registo comercial. A requerente não junta nenhum documento que comprove o que alega, podendo mesmo a sua conduta configurar litigância de má-fé, se resultar do Registo Comercial que tal putativa fusão não teve lugar (ou ainda não teve lugar) – para além de se poder questionar a licitude da partilha de dados pessoais.
Pelo exposto, não se admite a pretendida junção de documentos com as alegações de recurso.
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III – Fundamentação:
É a seguinte a fundamentação de facto da sentença recorrida (inserindo-se, para melhor apreensão, a identificação do tema da factualidade em causa incluída nos factos provados).
Factos provados
1. Dinâmica do acidente
1 – No dia 13 de novembro de 2014, pelas 16,50 horas, ocorreu um acidente de viação na autoestrada A-4, ao quilómetro número 14.150, na freguesia e concelho de Valongo;
2 – Nesse acidente, foram intervenientes os seguintes veículos automóveis: o veículo pesado de mercadorias, de marca Toyota, modelo ..., de matrícula ..-GE-..; o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca Volvo, modelo ..., de matrícula ..-JM-..;
3 – O veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula JM era propriedade do autor BB e, na altura da ocorrência do acidente de trânsito que deu origem à presente ação, era conduzido pela autora AA;
4 – O veículo pesado de mercadorias de matrícula GE era propriedade de C..., L.da, e, na altura da ocorrência do acidente de trânsito era conduzido por DD, funcionário dessa empresa, conduzindo o veículo por sua ordem, com o seu conhecimento, com a sua autorização, por sua conta e no interesse da sua proprietária, no âmbito de uma relação laboral;
5 – A autoestrada ..., no local do sinistro aqui em causa, configura uma curva suave, com inclinação ascendente, tendo em conta o sentido Amarante – Porto;
6 – A faixa de rodagem da Auto Estrada ..., naquele local, encontra-se dividida em duas pistas de tráfego, através de um separador central;
7 – Uma dessas pistas de tráfego destina-se ao trânsito de veículos automóveis que desenvolvem a sua marcha no sentido Amarante – Porto, no sentido ascendente, e outra destinada ao trânsito em sentido contrário, em sentido descendente (cfr. croquis elaborado pela GNR, junto ao procedimento cautelar de arbitramento, em apenso – Apenso A, que aqui se dá por reproduzido e integrado);
8 – O tempo estava bom e o pavimento encontrava-se limpo, seco e em bom estado de conservação;
9 – Pela sua margem direita, tendo em conta o sentido Amarante – Porto, a via apresentava uma berma, também pavimentada a asfalto, com uma largura de 1,10 metros (mesmo croquis);
10 – O pôr-do-sol no dia 13 de novembro de 2014, ocorreu às 17.15 horas;
11 – No dia e hora acima indicados, a autora conduzia o veículo JM pela autoestrada A. 4, no sentido Amarante – Porto, no sentido ascendente;
12 – Ao chegar ao local em que veio a ocorrer o sinistro, a autora apercebeu-se de que o sistema elétrico do carro havia deixado de funcionar, o carro estava a perder potência, o painel e as luzes do veículo deixaram de funcionar;
13 – Desviou-se para a berma do lado direito, aí imobilizando completamente a marcha, com o veículo JM ocupando totalmente a berma asfáltica situada do lado direito da pista de trânsito da autoestrada, ocupando ainda parcialmente a faixa de rodagem, face à pequena largura da berma (cfr. supra nº 9);
14 – Após imobilizar o veículo, verificou que perdera toda a parte elétrica do automóvel, não conseguindo ligar luzes e os quatro piscas intermitentes;
15 – Face ao local e receosa do trânsito que se processava, a autora aguardou alguns instantes, deixando passar outros veículos que circulavam no mesmo sentido, antes de sair do automóvel para se dirigir à bagageira do mesmo, a fim de daí retirar e colocar na via, o triângulo de pré-sinalização de perigo;
16 – No momento em que a autora se encontrava na traseira do veículo para retirar o triângulo, foi colhida pelo veículo automóvel pesado de mercadorias GE, conduzido pelo DD, que transitava no mesmo sentido;
17 – O referido GE, embateu na autora e, de seguida no automóvel em que esta seguia;
18 – O condutor do GE conduzia distraído do demais trânsito e, mercê dessa distração, não se apercebeu da presença do veículo parado e da autora, que se encontrava na traseira do mesmo;
19 – A proprietária do veículo ..-GE-.. tinha a sua responsabilidade civil emergente de acidente de viação, relativamente a danos causados a terceiros, transferida para a ré mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º ... (doc. junto aos autos);
2. Danos corporais sofridos
20 – Em consequência do embate, a autora sofreu lesões graves, nomeadamente grave lesão traumática da perna direita, fratura exposta dos ossos da perna direita e fratura transversal da diáfise do fémur direito; esfacelo da perna direita, ferida grave, na perna direita, traumatismo da coluna lombar, dorsal e cervical, escoriações e hematomas espalhados pelo corpo todo, lesões e cortes na face e nos membros superiores, fratura da anca, tendo sido transportada, de ambulância, para o Centro Hospitalar ..., EPE – Hospital ..., onde lhe foram prestados os primeiros socorros, no respetivo Serviço de Urgência;
21 – Aí foi submetida a diversos tratamentos e intervenções cirúrgicas, tendo-lhe, além do mais, sido amputada a perna direita, abaixo do joelho;
22 – Ainda em consequência do acidente aqui em causa, a autora sofreu as consequências e sequelas melhor descritas no relatório pericial do INMLCF IP de fls. 370 a 375, que se dá por integralmente aqui integrado e reproduzido nos seus dizeres (história do evento, dados documentais, antecedentes, estado atual, queixas, exame objetivo, exames complementares, discussão e concussões), e com as conclusões que de seguida se transcrevem:
– A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 26 de abril de 2018;
– Período de Défice Funcional Temporário Total sendo assim fixável num período de 49 dias;
– Período de Défice Funcional Temporário Parcial sendo assim fixável num período 1212 dias;
– Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total sendo assim fixável num período total de 1175 dias;
– Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial sendo assim fixável num período total de 85 dias;
– Quantum Doloris fixável no grau 7/7;
– Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em 43 Pontos;
– As sequelas descritas são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, impeditivas do exercício da atividade profissional habitual, sendo, no entanto, compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico profissional desde que beneficie de plano de reintegração profissional;
– Dano Estético Permanente fixável no grau 5/7;
– Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer fixável no grau 4/7;
– Repercussão permanente na Atividade Sexual fixável no grau 4/7;
– Dependências futuras: tratamentos médicos regulares; ajudas técnicas; adaptação domicílio e veículo.
3. Danos patrimoniais sofridos
23 – Após altas hospitalares, a autora regressava à sua residência, necessitando de ajuda de terceira pessoa para as suas necessidades elementares, nomeadamente de higiene e alimentação, necessitando ainda de usar canadianas como auxiliar de locomoção;
24 – A autora vivia em união de facto com o autor;
25 – À data do acidente, a autora trabalhava como repositora de supermercado, no D..., auferindo, em média, a quantia de mensal de € 450,00, atenta as horas extras que habitualmente fazia;
26 – Após o acidente, a autora deixou de receber qualquer quantia daquela entidade, recebendo apenas da Segurança Social e 600 euros mensais da ré, por via da providência cautelar de arbitramento (processo apenso);
27 – Antes do acidente, a lesada fazia toda a lide doméstica da casa, cozinhava e arrumava tudo e era uma pessoa muito ativa, autónoma, alegre e dada ao convívio;
28 – A autora irá remunerar terceira pessoa que a acompanhou nas suas necessidades pessoais, nomeadamente de higiene e alimentação, EE, com a quantia de 750 euros;
29 – A Autora não vai conseguir mais efetuar os trabalhos de casa – domésticos – como antes fazia, com desembaraço e agilidade;
30 – A autora nasceu a ../../2007;
31 – A autora ambicionava seguir uma carreira profissional no D..., tendo obtido um curso de formação profissional na área de aconselhamento e dispensa de medicamentos não sujeitos a receita médica (doc. junto aos autos);
32 – A autora tem o 9.º ano de escolaridade, era ativa, dinâmica e com ambições profissionais;
33 – À data do acidente, a autora, para além de trabalhar no D..., trabalhava também em limpezas domésticas, auferindo nessa atividade um rendimento mensal de cerca de € 350,00;
4. Outros danos não patrimoniais sofridos
34 – No momento do acidente e nos instantes que se seguiram, a autora sofreu enorme susto, temendo pela sua vida;
35 – Viveu e continua a viver momentos de angústia e de sofrimento pela perda de um membro inferior;
36 – Tem-lhe sido difícil a adaptação a próteses no membro inferior direito, com diversas vezes o corpo a rejeitar próteses, sendo causa de infeções;
37 – A autora era, antes do acidente, uma jovem alegre, bem-disposto, feliz, saudável, cuidando da sua presentação pessoal e valorização profissional;
5. Outros danos patrimoniais sofridos
38 – Para deslocações em tratamentos médicos consequência do acidente, gastou a autora quantia não inferior a 250,00 euros;
39 – Em consequência do acidente perdeu toda a roupa que usava naquele momento, com um custo de cerca de 375,00 euros;
40 – Ainda em consequência do acidente, a autora tem necessidade de prótese transtibilal, de dois em dois anos, com um custo entre 5.500 e 7.000 euros por cada prótese;
41 – Bem como de prótese transtibial de banho, de dois em dois anos, com um custo entre 2.500 e 3.500 euros por cada prótese;
42 – A autora tem ainda necessidade de canadianas (anual), banco de duche (de cinco em cinco anos) e barra de apoio para duche (de 10 em 10 anos), num valor unitário de 20, 60 e 50 euros, respetivamente;
43 – Para aplicação das próteses e/ou reparações das mesmas, são necessários interface de silicone de 6 em 6 meses, encaixe, que deve ser substituído de 2 em 2 anos, estrutura tubular, que deve ser substituído de 2 em 2 anos, pé protésico, que deve ser substituído de 3 em 3 anos, sistema de trancador, que deve ser substituído de 2 em 2 anos e revestimento cosmético, devendo ser considerado uma substituição anual, tudo com um custo, tendo em consideração a esperança média de vida, num valor de cerca de 147 mil euros;
44 – O veículo automóvel de matrícula ..-JM-.., havia sido adquirido em comum pelo autor BB e pela autora AA, estando a sua aquisição registada em nome do BB;
45 – Como consequência direta e necessária do acidente, resultaram para o veículo danos avultados;
46 – A reparação dos danos do veículo tem um custo de 24.152,40 euros;
47 – O valor comercial do veículo era, à data do acidente, de 11.500,00 euros e os seus salvados, após o acidente, tinham um valor de 3.555,00 euros;
48 – Antes do acidente, o veículo encontrava-se em bom estado de conservação, com cerca de 160.000 km percorridos;
49 – O BB não se dispunha, como não se dispõe, a vender o veículo, mantendo-o aparcado em garagem, pagando retribuição a terceiros pelo seu aparcamento;
50 – Desde então, viu-se o autor privado do veículo, que usava na sua vida pessoal e familiar;
6. Outros danos não patrimoniais sofridos
51 – O BB vivia com a AA em união de facto, união que veio a cessar algum tempo após o acidente;
52 – Após o acidente enquanto se manteve a união de facto entre ambos, o BB apoiava e ajudava a AA nos tratamentos e deslocações necessárias para esse efeito;
53 – O BB ficou abalado psicologicamente com o acidente sofrido pela sua então companheira, o que lhe causou profundo desgosto;
54 – À autora, mercê do acidente, foi paga pelo Instituto da Segurança Social, I.P. a quantia de € 3.139,35 (três mil, cento e trinta e nove euros e trinta e cinco cêntimos).
Arguição de nulidades adjetivas (vícios processuais)
A apelante inclui na sua alegação um capítulo (II) intitulado “Do erro de julgamento da matéria de facto”. Não obstante a designação adotada se referir ao error in judicando da decisão sobre a matéria de facto, as três divisões deste capítulo referem-se, insolitamente, a supostas nulidades da sentença e da decisão sobre a questão de facto, isto é, ao error in procedendo, e não ao error in judicando: “A – Da nulidade por violação das alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC”, “B – Da nulidade por violação da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC” e “C – Da nulidade por violação do artigo 662.º, n.os 2, d), e 3, alíneas b) e d), do CPC”. Esta imprecisão na adoção de conceitos jurídicos torna desnecessariamente espinhosa a tarefa deste tribunal ad quem.
1. Das nulidades previstas nas als. b) e d) do n.º 1 do art. 615.º do Cód. Proc. Civil
Alega a apelante que, “no que se refere aos factos provados sob os números 18, 25, 28, 33, 38, 39, 40, 41 e 43 entendemos que a fundamentação da matéria de facto provada não foi feita com a indicação dos meios de prova que levaram à decisão, assim como a fundamentação da convicção do julgador, não foi feita com clareza, objetividade e discriminadamente, de modo a que as partes, saibam o que o tribunal considerou provado ou não e qual a fundamentação dessa decisão reportada à prova fornecida pelas partes e adquirida pelo tribunal”.
Prossegue sustentando que, “quanto aos factos não provados, para lá de ser totalmente omissa a fundamentação, apenas se procede a uma alegação genérica e vaga, nem sequer tendo os mesmos sido elencados, consubstanciando assim nulidade, nos termos dos arts. 607.º, n.º 4, e 615.º, n.º 1, alíneas b) e d), do Código de Processo Civil”.
Começamos por referir que não se percebe por que razão a apelante opta por misturar fundamentos e vícios, numa amalgama sincrética que, mais uma vez, apenas torna desnecessariamente espinhosa a tarefa do tribunal ad quem, em nada favorecendo a defesa da sua posição. Os vícios previstos nas als. b) e d) do n.º 1 do art. 615.º do Cód. Proc. Civil não se confundem. Não pode a apelante indicar vários enunciados prevendo diferentes causas de nulidade da sentença – até incompatíveis entre si – e adjudicar ao tribunal ad quem a tarefa de os distribuir pertinentemente pelos diferentes segmentos da sentença.
Pelo que diz respeito aos factos provados acima referidos, diz a apelante crer que “o juiz a quo não procedeu a uma análise crítica das provas, não indicou as ilações tiradas dos factos, mormente instrumentais nem especificou os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção”. Afigura-se-nos apodítico que não estamos perante nenhum vício previsto nas als. b) e d) do n.º 1 do art. 615.º do Cód. Proc. Civil, mas sim, a verificar-se, perante a irregularidade especialmente prevista na al. d) do n.º 2 do art. 662.º do Cód. Proc. Civil.
De modo a tentar obter a necessária clarificação das questões suscitadas, deixaremos a análise desta irregularidade para o capítulo apropriado – que será o ponto 4 (Da irregularidade prevista no art. 662.º, n.os 2, al. d), e 3, al. d), do Cód. Proc. Civil), adiante desenvolvido.
No que toca aos factos não provados, diz a apelante crer que, “para lá de ser totalmente omissa a fundamentação, apenas se procede a uma alegação genérica e vaga, nem sequer tendo os mesmos sido elencados, consubstanciando assim nulidade, nos termos dos arts. 607.º, n.º 4, e 615.º, n.º 1, alíneas b) e d), do Código de Processo Civil”.
No entender do tribunal a quo, os únicos dois factos relevantes não abrangidos pelo leque dos factos provados são os que se referem à velocidade do veículo segurado pela apelante e à distância à qual o condutor deste podia avistar o veículo detido pela autora. O tribunal considerou tal factualidade não provada e motivou a sua decisão nos seguintes termos:
Também apenas no essencial e com interesse para o objeto do presente processo, considero apenas como merecedor da menção de “não provados” a referência à velocidade a que seguia o veículo de matrícula ..-GE-.., por nenhuma prova convincente se ter efetuado quanto a tal respeito, bem como que o condutor deste veículo pudesse ter avistado o veículo JM a distância superior a 250 metros.
Em especial sobre os factos não provados, o tribunal recorrido termina a motivação da sua convicção esclarecendo que eles assim foram julgados por falta de prova sobre os mesmos.
No entender da apelante, “exigia-se que a sentença fundamentasse a suprarreferida decisão da matéria de facto de forma mais perfunctória (sic) do que a mera remissão abstrata e genérica que operou, sob pena de incorrer em nulidade a sentença por falta de fundamentação e contradição total entre o decidido e o provado, violando o dever de motivação e fundamentação das decisões judiciais (art. 208.º, n.º 1, C. R. P. e art. 154.º, n.º 1, do C. P. Civil)”.
Mais uma vez, movimentamo-nos no âmbito da suposta insuficiência da motivação da convicção, e não da falta de fundamentação da sentença (art. 615.º, n.º 1, al. b), do Cód. Proc. Civil): o juiz especificou os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, isto é, que fundamentam o segmento decisório da sentença referido no n.º 3 do art. 607.º do Cód. Proc. Civil. Também não estamos perante uma omissão de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), do Cód. Proc. Civil): o juiz pronunciou-se sobre todas as questões de facto relevantes – não indicando, de resto, a apelante qual a questão que, supostamente, ficou por decidir.
Quanto ao mais, fundando-se a pronúncia de não provado na falta de prova sobre os factos em questão, nada mais há a declarar, para além disto mesmo: não foi produzida prova bastante sobre esta factualidade.
Em suma, a sentença não enferma de nenhuma nulidade por falta de fundamentação ou por omissão de pronúncia.
2. Da nulidade prevista na al. c) do n.º 1 do art. 615.º do Cód. Proc. Civil
Sustenta também a apelante que “os fundamentos estão em oposição com a decisão e ocorre ambiguidade e obscuridade que torna a decisão ininteligível no que respeita à matéria provada sobre os pontos 25 e 33”. De uma assentada, a apelante invoca três vícios – contradição, ambiguidade e obscuridade – dificilmente conciliáveis.
Para tanto, alega que “deu-se como apurado auferir a demandante [auferia] rendimentos de € 800,00 euros mensais (€ 450,00 + € 350,00), porém, é calculado o dano patrimonial futuro sofrido por aquela com base na premissa de que à data do sinistro os rendimentos totalizavam € 1000,00 euros”. Logo por aqui se percebe que não assiste razão à apelante.
Dispõe a primeira parte da al. c) do n.º 1 art. 615.º do Cód. Proc. Civil que “[é] nula a sentença quando (…) [o]s fundamentos estejam em oposição com a decisão”. Sobre esta norma, o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que “a contradição geradora de nulidade ocorre quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto ou, pelo menos, de sentido diferente” – cfr. o Ac. do STJ de 14-04-2021, proc. n.º 3167/17.5T8LSB.L1.S1. A nulidade em causa decorre, pois, de “um erro de raciocínio lógico, consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la: a contradição geradora de nulidade ocorre quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto ou, pelo menos, de sentido diferente” – idem, cfr., ainda, entre muitos outros, os Acs. do STJ de 20-05-2021, proc. n.º 69/11.2TBPPS.C1.S1, de 09-03-2022, proc. n.º 4345/12.9TCLRS-A.L1.S1, de 26-01-2021, proc. n.º 2350/17.8T8PRT.P1.S2, de 27-04-2023, proc. n.º 374/22.2T8LRA.C1.S1, de 10-01-2023, proc. n.º 508/20.1T8AGH.L1.S1, de 12-01-2021, proc. n.º 1801/19.1T8CSC.L1-B.A.S1, de 22-02-2022, proc. n.º 3282/17.5T8STB.E2.S1 e de 29-04-2021, proc. n.º 704/12.5TVLSB.L3.S1.
Desenvolvendo e subscrevendo este entendimento, podemos assentar que a “oposição” referida na al. c) do n.º 1 art. 615.º do Cód. Proc. Civil é uma falha no silogismo judicial, tal como se encontraenunciado na sentença – cfr., neste sentido, o Ac. do STJ de 03-03-2021, proc. n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1. Neste silogismo falhado, o tribunal identifica uma premissa maior, isto é, tipicamente, uma determinada norma legal, compreendendo a sua fatispécie e a sua estatuição. Seguidamente, identifica uma concreta factualidade – ou uma realidade extraprocessual, ou circunstâncias processuais –, que afirma preencher a hipótese legal da premissa maior, constituindo-se ela como a premissa menor. Por último, sem apresentar nenhuma outra etapa no seu raciocínio, conclui com a não aplicação da estatuição ao caso concreto. Por exemplo: todos os culpados são condenados; o réu é culpado; o réu não é condenado.
Trata-se, assim, de um vício intrínseco, independente da validade das premissas, e que qualquer leitor pode constatar – ainda que desconheça a regra afirmada (premissa maior), isto é, o acerto da sua seleção, ou ignore a bondade do acolhimento da premissa menor. Para sua deteção, não é necessário o conhecimento de elementos extrínsecos à decisão, por exemplo, nem da prova produzida, nem da lei aplicável (cuja fatispécie abranja o caso concreto). Sejam, ou não, acertadas as premissas apresentadas (isto é, os fundamentos), a conclusão (isto é, a decisão) não corresponde ao resultado da sua articulação.
Anomalia diferente é a que traduz um erro de julgamento. Neste, o silogismo apresentado na sentença não é formalmente ilógico. Aqui, o tribunal elege, expressa ou implicitamente, uma premissa errada para o seu silogismo. Por exemplo, afirma como aplicável uma determinada norma geral, não atentando na norma especial também prevista na lei (à qual o caso se subsume), ou dando-lhe um sentido indevido. Com base nesta premissa erradamente enunciada, o tribunal, desenvolvendo um raciocínio formalmente lógico, chega a uma conclusão errada, isto é, produz um julgamento de mérito errado.
Assim, quando os factos provados devem conduzir a uma decisão final de mérito diferente da proferida, resultando a que foi tomada de uma errada valoração jurídica dos mesmos – em resultado da errada escolha da norma aplicada, isto é, da não aplicação da norma efetivamente apropriada –, não estamos perante uma nulidade processual, mas sim perante um erro de julgamento – cfr. o Ac. do STJ de 14-04-2021, proc. n.º 3167/17.5T8LSB.L1.S1, bem como a jurisprudência no mesmo citada.
A “decisão” referida al. c) do n.º 1 art. 615.º do Cód. Proc. Civil é tipicamente a decisão referida na parte final do n.º 3 do art. 607.º do Cód. Proc. Civil, ou seja, é o dispositivo da sentença. A típica nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão refere-se ao silogismo que tem por premissa maior o regime legal aplicado ao caso e por premissa menor o facto já julgado provado, sendo o dispositivo a sua conclusão.
No caso dos autos, de acordo com o alegado, na fundamentação do julgado o tribunal considerou um rendimento de € 1000,00 e, consequentemente, fixou uma indemnização tendo este valor por base. Inexiste contradição, ambiguidade ou obscuridade.
Questão diferente desta é a do acerto da adoção deste valor (€ 1000,00). Como é evidente, se tal adoção for errada – por, supostamente, dever ter sido adotado o valor de € 800,00 (o que se apreciará no momento próprio) –, estamos perante um erro de julgamento, e não perante uma nulidade da sentença.
Em suma, os fundamentos apresentados na sentença não estão em oposição com a decisão nem ocorre nenhuma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
3. Da nulidade prevista na al. e) do n.º 1 do art. 615.º do Cód. Proc. Civil
Na conclusão RRRR da prolixa alegação de recurso, a apelante refere que “a autora na petição inicial não pediu a condenação em juros de mora no que diz respeito aos danos cuja ampliação ou liquidação remeteu para momento posterior à sentença, pelo que a douta sentença ao condenar indistintamente no pagamento de juros, a contar da citação, condena além do pedido, incorrendo na nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Civil”. Esta é uma alegação não desprovida de mérito.
No entanto, conforme se refere no Ac. do TRP de 25-03-2021, proc. n.º 59/21.7T8VCD.P1, “por força da regra da substituição ao tribunal recorrido (art. 665.º do Cód. Proc. Civil), quando a nulidade da sentença recorrida é apenas um dos vários fundamentos de impugnação dessa decisão, a arguição da nulidade é um ato inútil e não necessita sequer de ser apreciada pela Relação se a sentença puder ser confirmada ou revogada por outras razões”. Ora, considerando a decisão que adiante se proferirá, a utilidade da apreciação desta questão é ainda incerta. Assim sendo, relega-se o seu conhecimento para o acórdão final a proferir oportunamente.
4. Da irregularidade prevista no art. 662.º, n.os 2, al. d), e 3, al. d), do Cód. Proc. Civil
Tal como já referimos acima – cfr. o ponto 1 Das nulidades previstas nas als. b) e d) do n.º 1 do art. 615.º do Cód. Proc. Civil –, alega a apelante que, “no que se refere aos factos provados sob os números 18, 25, 28, 33, 38, 39, 40, 41 e 43 entendemos que a fundamentação da matéria de facto provada não foi feita com a indicação dos meios de prova que levaram à decisão, assim como a fundamentação da convicção do julgador, não foi feita com clareza, objetividade e discriminadamente, de modo a que as partes, saibam o que o tribunal considerou provado ou não e qual a fundamentação dessa decisão reportada à prova fornecida pelas partes e adquirida pelo tribunal”. Na divisão da alegação “C – Da nulidade por violação do artigo 662.º, n.os 2, d), e 3, alíneas b) e d), do CPC”, a apelante retoma a invocação da irregularidade da decisão de facto por deficiente motivação da convicção.
Está aqui em causa a ocorrência da irregularidade especialmente prevista na al. d) do n.º 2 do art. 662.º do Cód. Proc. Civil. Recorde-se que o art. 662.º, n.º 2, al. d), do Cód. Proc. Civil dispõe que “[a] Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: (…) [d]eterminar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados”.
Efetivamente, na motivação da convicção o tribunal a quo não dedica um parágrafo em exclusivo a cada um dos factos objeto da sua pronúncia. Sendo certo que a lei não estabelece que a motivação da decisão de facto obedeça a uma metodologia específica, a estratégia discursiva adotada deve permitir apreender a razão pela qual se proferiu determinada decisão sobre os factos considerados provados, o que pode exigir a concreta indicação do/s meio/s de prova considerado/s pelo julgador para a prova de factos concretos – e uma eventual análise crítica desses meios de prova, nomeadamente quanto à valoração de depoimentos prestados e de outros meios de prova –, por forma a permitir perceber qual foi o raciocínio/análise crítica efetuada pelo julgador na formação da sua convicção subjacente à afirmação da ocorrência de determinado facto ou da realidade de determinado facto (bem como da falta de prova da ocorrência/verificação de factos alegados). Quando tal não aconteça, estaremos perante uma parcial deficiência na fundamentação da decisão de facto (art. 662.º, n.º 2, al. d), do Cód. Proc. Civil).
No entanto, tal vício não gera a nulidade da sentença. Com efeito, resulta do confronto entre o texto da al. d) do n.º 2 do art. 662.º do Cód. Proc. Civil e o texto da alínea que a antecede que não estamos perante um caso de nulidade da decisão da 1.ª instância – em sentido oposto, enquadrando a norma enunciada na al. d) do n.º 2 do art. 662.º do Cód. Proc. Civil no “poder de anulação” do tribunal da Relação, cfr. João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Volume II, Lisboa, AAFDL, 2022, pp. 234 e 238. Assim se explica – isto é, por não haver aqui lugar à anulação do ato decisório, que assim subiste na ordem jurídica (lato sensu) – que, no caso de não ser possível fundamentar melhor – atividade esta não decisória exigida pelo tribunal da Relação ao juiz a quo, que não pode alterar a decisão (art. 613.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil) –, nada mais reste fazer na 1.ª instância do que remeter novamente os autos ao tribunal da Relação (art. 662.º. n.º 3, al. d), do Cód. Proc. Civil), porque uma sentença (impugnada) existe e subsiste na ordem jurídica. Pela mesma razão, não tem a parte vencida de interpor novo recurso de uma (inexistente) nova sentença.
A consequência da deteção deste vício é, assim, apenas a determinação da sua supressão, aperfeiçoando-se a motivação, como ato preparatório da pronúncia do tribunal ad quem sobre o objeto da impugnação: o sentido (provado ou não provado) da decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto.
A utilização da ferramenta prevista na al. d) do n.º 2 do art. 662.º do Cód. Proc. Civil justifica-se quando a parte impugna (regularmente) a concreta decisão (sobre determinado facto) e a motivação efetuada não satisfaz a exigência legal do estabelecimento de um «(…) fio condutor entre a decisão sobre os factos provados e não provados e os meios de prova usados na aquisição da convicção, fazendo a respetiva apreciação crítica nos seus aspetos mais relevantes. Por conseguinte, quer relativamente aos factos provados, quer quanto aos factos não provados, o juiz deve justificar os motivos da sua decisão, declarando porque razão, sem perda da liberdade de julgamento garantida pela manutenção do princípio da livre apreciação das provas (art. 607.º, n.º 5), deu mais credibilidade a uns depoimentos e não a outros, julgou relevantes ou irrelevantes certas conclusões dos peritos ou achou satisfatória ou não a prova resultante de documentos. (…)
Se a decisão proferida sobre algum facto essencial não estiver devidamente fundamentada, a Relação deve determinar a remessa dos autos ao tribunal de 1.ª instância, a fim de preencher essa falha (…)» – António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª Edição, Almedina, pp. 359 a 361.
No caso dos autos, o acervo probatório respeitante à matéria constante dos pontos indicados pela apelante – os pontos 18, 25, 28, 33, 38, 39, 40, 41 e 43 da decisão de facto – não é unívoco na sustentação da decisão proferida, não sendo explicitado como o tribunal fundou a sua convicção quanto a tais factos e com base em que concretos meios de prova. Justificava-se, pois, que o tribunal a quo fosse mais generoso no desenvolvimento da motivação da convicção que formou. Tomem-se como exemplos os pontos 40, 41 e 43. É, efetivamente, importante perceber como chegou o tribunal recorrido aos valores neles referidos.
Encontram-se, pois, reunidos os referidos pressupostos do funcionamento da ferramenta em análise, pelo que se deverá lançar mão da solução descrita na al. d) do n.º 2 do art. 662.º do Cód. Proc. Civil.
Ainda sob a mesma divisão da alegação – “C – Da nulidade por violação do artigo 662.º, n.os 2, d), e 3, alíneas b) e d), do CPC” –, a apelante sustenta que se “impõe ampliar a prova produzida de forma a apurar junto da autora porque é que foi omitida a informação pedida pela recorrente, nem foi declarada a existência de participação de um acidente de trabalho, segundo o qual aquele ocorreu quando a demandante estaria a mudar o pneu quando foi embatida pelo veículo GE, inexistindo qualquer menção de existência de avaria elétrica”. É ostensivo que estes factos não integram a relação material controvertida, pelo que é desprovido de sentido pretender uma pronúncia – de provado ou de não provado – sobre eles.
Prossegue a apelante requerendo não uma ampliação da matéria de facto, mas sim novas diligências probatórias – audição de uma testemunha e a leitura da centralina da viatura da demandante. Esta pretensão não tem nenhum cabimento nas normas previstas no n.º 2 do art. 662.º do Cód. Proc. Civil, nem nas normas executivas do n.º 3 deste artigo. A atividade instrutória em causa deveria ter sido requerida no momento processual devido, e não nesta 25.ª hora. O mesmo se diga da “inspeção ao local” e da reconstituição dos factos, mais adiante insolitamente sugeridas na alegação. Diga-se, a propósito, que, ainda que o documento n.º 1 junto com a alegação tivesse sido admitido, e não o foi, seria a audição do funcionário que o elaborou absolutamente inidóneo para prova das causas do acidente. Trata-se de uma declaração preenchida pela entidade patronal da autora, horas depois do acidente, quando esta se encontrava no hospital, no impressivo estado descrito nos pontos 20.º e 21.º da fundamentação de facto.
De resto, não explica a apelante a relevância da dúvida que levanta sobre a natureza da avaria verificada – se elétrica, se num pneumático –, sendo certo que, quanto ao mais – sinalização da viatura imobilizada –, já teve a recorrente possibilidade de discutir em 1.ª instância todo este circunstancialismo.
Inexiste, assim, fundamento para se anular a decisão recorrida nos termos previstos no art. 662.º, n.º 2, al. c), do Cód. Proc. Civil.
Ainda sob a mesma divisão da alegação – “C – Da nulidade por violação do artigo 662.º, n.os 2, d), e 3, alíneas b) e d), do CPC” –, agora discorrendo sobre o “ponto 18 da matéria de facto provada”, sustenta a apelante que “é absolutamente inequívoco que nenhum elemento resultou apurado de que o condutor estivesse distraído e que o sinistro ocorreu por força de tal distração”. É manifesto que não nos encontramos perante a invocação de um vício processual, gerador da nulidade, mas sim de um error in judicando, a justificar, se for fundado, a alteração do julgamento deste facto.
É, pois, nesta sede – impugnação da decisão respeitante à matéria de facto – que, oportunamente, deverá ser apreciada a impugnação vertente.
5. Conclusão
Do raciocínio expendido, conclui-se que devem os autos baixar ao tribunal a quo, para que o M.mo Sr. Juiz autor da decisão motive devidamente a sua convicção que conduziu à decisão (como provados) dos pontos 18, 25, 28, 33, 38, 39, 40, 41 e 43 da fundamentação de facto.
Ao tribunal a quo cabe apenasaditar a motivação da sua convicção – sem prejuízo de poder retificar a data referida no ponto 30 dos factos provados (um mero lapso manifesto) –, sem alterar qualquer segmento da decisão (dispositivo) ou da fundamentação (factos provados e razões de direito). Ou seja, o M.mo Juiz autor da decisão deverá apenas, relativamente aos factos constantes dos pontos 18, 25, 28, 33, 38, 39, 40, 41 e 43 da fundamentação de facto, proceder à indicação dos concretos meios de prova (testemunhal, documental, pericial, outro), com a expressa identificação do/s depoimento/s e/ou documentos e/ou perícias com base nos quais formou a sua convicção quanto aos referidos pontos da decisão de facto, expondo igualmente o raciocínio probatório por si desenvolvido para considerar provada tal factualidade nos termos em que o foi.
A validade da sentença não é afetada pela remessa transitória, subsistindo os recursos dela já interpostos, devendo os autos subir imediatamente a este tribunal após a sanação da irregularidade.
IV – Dispositivo:
Pelo exposto, acorda-se em determinar a baixa dos autos ao tribunal a quo, para que, nos termos previstos na al. d) do n.º 2 do art. 662.º do Cód. Proc. Civil, o M.mo Juiz autor da decisão motive a sua convicção que conduziu à decisão (como provados) dos pontos 18, 25, 28, 33, 38, 39, 40, 41 e 43 da fundamentação de facto, com a identificação dos concretos meios de prova com base nos quais formou a sua convicção quanto aos referidos pontos da decisão de facto, por forma a perceber-se que meios de prova considerou e como os mesmos foram por si valorados para considerar provada tal factualidade nos termos em que o foi – sem prejuízo de poder retificar a data referida no ponto 30 dos factos provados (um mero lapso manifesto).
Custas a decidir a final.
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Notifique.
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Porto, 12/9/2024
Ana Luísa Loureiro
Isoleta de Almeida Costa
Carlos Portela