CONFLITO DE COMPETÊNCIA
MESMA QUESTÃO
NÃO CONFLITO
Sumário

1) Nos termos do disposto no artigo 109.º, n.º 2, do CPC, há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão.
2) Pressuposto necessário para que haja lugar a conflito de competência é que ambas as decisões proferidas pelos tribunais em conflito tenham transitado em julgado, pois, conforme estatui o n.º 3 do artigo 109.º do CPC, “não há conflito enquanto forem suscetíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência”.
3) No caso em apreço, as duas decisões proferidas – uma de indeferimento da execução por falta de liquidez do título dado à execução e, outra, de indeferimento de incidente de liquidação – não respeitam à mesma questão, tendo de comum apenas o liminar indeferimento de cada uma das duas pretensões (também de conteúdo diverso) apresentadas pelo autor/exequente.
4) Assim, não estamos perante um conflito negativo de competência que deva ser tutelado nos termos do artigo 109.º e ss. do CPC, mas antes, perante duas decisões, ambas transitadas em julgado, proferidas em dois processos distintos.
5) A intervenção da presidência do Tribunal da Relação na resolução do conflito negativo de competência pressupõe a existência de uma mesma questão, sendo que, esta, só é a mesma quando suscitada no âmbito do mesmo processo e não em processos diferentes.
6) Tratando-se de dois processos intentados perante dois tribunais distintos e, sendo que, em nenhum deles houve decisão que se pronunciasse sobre questão de competência, não estamos perante um conflito negativo de competência cuja resolução caiba ao Presidente da Relação.

Texto Integral

I.
1) Em 16-08-2023, “A” veio apresentar em juízo requerimento de execução de decisão judicial condenatória, o que fez contra “B”.
2) Invocou no requerimento inicial, nomeadamente, o seguinte:
“(…) Factos:
1. Nos termos da transação homologada por sentença a 23 de maio de 2017, extinguindo por acordo os autos relativos ao processo (…)/16.2T8CSC que correu termos no Juízo Central Cível de Cascais - juiz (…), ficou a ré, “B”, constituída na obrigação de cumprir com direito de crédito reconhecido ao ali autor, aqui exequente, “A”, decorrente do reconhecimento do direito de propriedade deste propriedade do imóvel objeto do acordo, ainda que na proporção de metade;
2. Foi assim reconhecido em ação declarativa a co-propriedade do imóvel sito na Rua  (…), freguesia de (…), Concelho de Cascais, descrito na segunda conservatória do registo Predial de Cascais sob o número (…) da aludida freguesia;
Doc. 1
3. Lê-se no ponto dois de douta transação “A Ré reconhece que o prédio dos autos, identificado a folhas 93 a 99, foi comprado por Autor e Ré, na proporção de metade.”
4. Acrescenta-se no ponto 5. “O imóvel será vendido pela Ré, pelo preço não inferior a duzentos e cinquenta mil euros.”
5. Lê-se ainda no ponto 6. de douto acordo homologado que “Com o produto da venda, a Ré pagará a quantia em divida ao Banco, a comissão da imobiliária, as mais-valias, se forem devidas, e o remanescente será dividido equitativamente, sem prejuízo do estipulado no número 3, supra.”, sendo o referido ponto três um crédito da ali ré no valor de 10 000 euros, que seriam descontados no valor devido ao autor na parte que lhe caberia pelo produto da venda do imóvel;
6. E ainda no ponto 7. “A Ré promoverá a venda no prazo de um ano, a partir de 23 de maio de 2017, findo o qual, caso não tenha aparecido comprador, se compromete a deixá-la livre de pessoas e bens.”
7. E mais se obrigou a aqui executada nos termos do ponto 9. De douta transação homologada que “9. A Ré deverá, no prazo de quinze dias, fazer prova de que celebrou o contrato de mediação imobiliária pelo prazo de seis meses prorrogável por igual período, e de que, no referido contrato, ficou consignado que o Autor poderá obter informações sobre as diligências de venda.”
8. Ora, valendo-se de uma exclusiva titularidade do direito de propriedade do imóvel cuja copropriedade foi reconhecida judicialmente, veio a ré alienar aquela sem mais prestar contas ao aqui exequente; Doc. 2
9. Pondo e dispondo do valor pecuniário que lhe era devido desde a data da alienação, in casu, 8 de junho de 2018, conforme escritura simples que se junta ao presente requerimento executivo;
10. Sem que alguma vez viesse a ré, aqui executada, notificar o exequente para, querendo, exercer o seu direito de preferência legal;
11. Prosseguindo, é plasmado em douto documento autêntico, prova da alienação concretizada, que o imóvel foi vendido pela quantia de 260 000 euros;
12. Inferindo-se do mesmo documento autêntico que terá sido outorgado contrato promessa com entrega do respetivo sinal no valor de 30 000 mil euros a 28 de abril de 2018;
13. Assim, e apesar de incumprido o acordo por quanto o contrato prometido só veio a efetivar-se além do prazo judicialmente estabelecido para o efeito, in casu, 23 de maio de 2018, foi o contrato promessa assinado em data anterior;
14. Assim e, ainda da leitura desatenta percebe-se que incumprido o ponto 9 da transação homologada por sentença, sendo o exequente alheio a qualquer contrato promessa ou de compra e venda;
15. Acresce que em claro enriquecimento sem causa não mais a ré prestou contas ao autor, mantendo-se até hoje a despatrimonialização deste à custa daquela;
16. Sabe ainda o exequente que a aqui executada já após a referida alienação adquiriu a 28 de setembro de 2018 imóvel para habitação permanente, sendo assim isenta do cumprimento do pagamento de mais valias; Doc. 3, 4, 5, e 6
17. Aquisição que custou à executada 205 mil euros de acordo com a respetiva escritura;
18. Pelo que teme o exequente pela efetivação do seu direito de crédito, presumindo que o produto do imóvel em copropriedade foi sub-rogado na totalidade para aquisição de imóvel agora propriedade da executada;
19. Sem prejuízo da hipoteca que o onera no valor de 110 mil euros constituída a favor da Caixa Geral de Depósitos; citado Doc. 3
20. Em conformidade com averbamento consultado junto da 1ª Conservatória do Registo Predial de Cascais; Citados Docs. 4 e 5
21. Obrigação constituída pela Ré no momento da aquisição de douto imóvel;
22. Ora aqui chegados e conhecido o produto da venda, subtraído o valor de 45 309,75 euros (valor infirmado pela própria executada) em divida ao banco, o valor a titulo de comissão imobiliária no valor de 15 990 euros e concretizados os contra créditos da executada no valor de 13 500 euros nos termos dos pontos 3 e 14 daquele acordo homologado. Doc. 7
23. Ora dos 260 000 euros escriturados, e subtraídos os 45 309,75 euros e os 15 990 euros supra identificados, alcança-se um valor de 198 700, 25 euros;
24. Que na proporção de metade se alcança o valor de 99 350,13 euros aos quais se descontam os 13 500 euros supra identificados;
25. São assim devidos ao exequente o total de 85 850.13 euros;
26. Ao que acrescem os juros moratórios legais desde o momento da referida alienação no valor de 17772,15 euros;
27. Tudo num total em dívida de 103 622,28 euros;
28. Encontram-se assim preenchidos os pressupostos para que a presente ação executiva possa ser instaurada e suscitada nos próprios autos;
29. Sendo que nos termos da ali. A) do nº1 do artigo 703 do CPC é a presente transação homologada por sentença título executivo bastante (art.º 703 nº1 b) do CPC), preenchendo os requisitos de certeza, liquidez, exigibilidade legalmente exigidos;
30. Certeza porquanto não se consubstanciando numa obrigação pura, nos termos do artigo 805 nº1 do CC, tinha como prazo para o cumprimento integral o momento da alienação do imóvel objeto da referida transação, ainda que tal se assumisse como condição suspensiva da constituição da obrigação da executada;
31. Pelo que está a executada op legis constituída em mora desde 8 de junho de 2018 nos termos do artigo 805 nº2 al. c) do CC;
32. E considerando o caráter pecuniário da obrigação, a indemnização pelo cumprimento defeituoso, porque extemporânea, concretiza-se nos termos do artigo 806 nº 1 e 2 do CC, impondo-se o pagamento dos juros já vencidos que ascendem até ao momento o valor de 17 772,15 euros;
33. Sem prejuízo dos juros vincendos que se vierem a liquidar até total e integral satisfação do direito de crédito da exequente;
34. Foi a executada interpelada a 26 de julho para a satisfação do direito de crédito do executado; Doc. 8
35. Interpelação realizada para os demais efeitos legais por carta registada com aviso de receção, entretanto já no poder da executada;
36. Permanecendo a inércia da executada como garante do seu enriquecimento ilícito;
37. Considerando a situação de reiterado incumprimento por parte dos executados, vê-se o exequente forçado a instaurar a presente execução alicerçada na transação homologada por sentença;
38. Termos em que,
39. Requer a V. Exa. que nos termos ordene de imediato as diligencias com vista à satisfação coerciva do direito de crédito da exequente e da massa da herança acima referenciada, através da penhora do imóvel propriedade da executada e do seu vencimento atá aos limites legais de penhorabilidade, para o integral pagamento do montante em divida de 103 622,28 € euros -a que acrescem os juros de mora vencidos e bem assim os vincendos à taxa legal até integral pagamento, acrescidos da sanção pecuniária compulsória prevista nº nº. 4 do art.º 829º -A do Cód. Civil, com vista ao integral pagamento do montante em divida a remeter ao Exequente através de depósito na conta bancária com o IBAN: (…)”.
3) Em 31-10-2023, o Juízo de Execução de Oeiras – Juiz 1 a quem os autos foram distribuídos proferiu o seguinte despacho:
“Nos termos do disposto no art.º 85º, 1, do Cód. Proc. Civil, na execução de decisão proferida por tribunais portugueses, o requerimento executivo é apresentado no processo em que aquela foi proferida.
No caso dos autos, a sentença dada à execução foi proferida pelo Juízo Central Cível de Cascais, pertencente à Comarca de Lisboa.
Por outro lado, a sentença homologatória da transacção entre as partes carece de ser liquidada, já que não depende de simples cálculo aritmético.
Dispõe o art.º 704º, 6, do Cód. Proc. Civil, que, tendo havido condenação genérica, a sentença só constitui título executivo após a liquidação no processo declarativo.
Pelo exposto, ao abrigo do art.º 726º, 2, a), do Cód. proc. Civil, indefiro liminarmente a execução, por a sentença carecer de liquidação, sem a qual inexiste título executivo.
Custas pelo executado.
Notifique e registe”.
4) O referido despacho foi notificado ao exequente por notificação datada de 06-11-2023.
5) Em 02-01-2024, a executada apresentou requerimento nos autos no qual veio requerer “esclarecimento quanto ao despacho liminar proferido, porquanto se condena em custas a “Executada” por lapso e a Sra. Agente de Execução, não pede o esclarecimento do lapso nem, devolve os valores penhorados, nem retira a penhora efectuada ao imóvel sem esse esclarecimento por parte de V. Exa.”.
6) Em 07-02-2024 foi proferido despacho a reformar a decisão proferida quanto à decisão sobre custas, determinando que as custas ficassem a cargo da exequente, despacho que foi notificado às partes por notificação expedida em 20-02-2024.
7) O exequente, em 19-03-2024, veio apresentar nos autos requerimento de onde consta, nomeadamente, o seguinte: “(…) notificado do Despacho de 29 de fevereiro de 2024 (refª citius149548020), vem nos termos do artigo 111 e ss do CPC, suscitar a Resolução de conflito negativo de competência, que corre nos próprios autos e de forma urgente”.
8) Com o referido requerimento, o exequente anexa um documento – n.º 6 – referente a despacho proferido em 15-12-2023, no processo n.º (…)/16.2T8CSC, do Juízo Central Cível de Cascais – Juiz 4, onde foi indeferido liminarmente incidente de liquidação ulterior declarativo, aí requerido pelo requerente e ora exequente, em 09-11-2023.
9) Por despacho de 24-05-2024 foram os autos remetidos a este Tribunal da Relação de Lisboa.
10) Prosseguindo os autos com vista ao Ministério Público, nos termos do disposto no artigo 112.º, n.º 2, do CPC, o Ministério Público – por promoção de 21-06-2024 – concluiu que, “no caso vertente, compete ao Juízo Central Cível de Cascais determinar o prosseguimento da execução, por ser o materialmente competente e, em consequência, nos termos do n.º 2, proceder à remessa da execução fundada na sua sentença, à secção especializada de execução”, devendo a execução de sentença ser instaurada no processo onde foi proferida a decisão judicial que se pretende executar e apenas em momento ulterior passará a ser tramitada pelo tribunal com competência especializada de execução.
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II. Nos termos do disposto no artigo 109.º, n.º 2, do CPC, há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão.
Pressuposto necessário para que haja lugar a conflito de competência é que ambas as decisões proferidas pelos tribunais em conflito tenham transitado em julgado, pois, conforme estatui o n.º 3 do artigo 109.º do CPC, “não há conflito enquanto forem suscetíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência”.
A decisão considera-se transita em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação (cfr. artigo 628.º do CPC).
Assim, o conflito de competência apenas se materializa quando ambas as decisões se revelarem definitivas (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa; Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, 2018, p. 137) e, por outro lado, quando as mesmas se refiram à mesma questão.
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III. Na situação em apreço verifica-se que, nos presentes autos, teve lugar decisão liminar de rejeição do requerimento executivo.
Tal decisão não se pronunciou sobre qualquer questão de competência, limitando-se a indeferir, ao abrigo do disposto no artigo 726.º, n.º 2, al. a), do CPC, liminarmente a execução, por entender que a sentença carece de liquidação, sem a qual inexiste título executivo.
O mesmo se diga relativamente à decisão proferida pelo Juízo Central Cível de Cascais – Juiz (…), que se cingiu a indeferir liminarmente, naqueles autos, incidente de liquidação ulterior declarativo, aí requerido pelo requerente e ora exequente, em 09-11-2023.
As duas decisões proferidas – uma de indeferimento da execução por falta de liquidez do título dado à execução e, outra, de indeferimento de incidente de liquidação – não respeitam à mesma questão, tendo de comum apenas o liminar indeferimento de cada uma das duas pretensões (também de conteúdo diverso) apresentadas pelo autor/exequente.
Assim, no caso em apreço – mesmo considerando a decisão mencionada em 8) – não estamos perante um conflito negativo de competência que deva ser tutelado nos termos do artigo 109.º e ss. do CPC, mas antes, perante duas decisões, ambas transitadas em julgado, proferidas em dois processos distintos.
A intervenção da presidência do Tribunal da Relação na resolução do conflito negativo de competência pressupõe a existência de uma mesma questão, sendo que, esta, só é a mesma quando suscitada no âmbito do mesmo processo e não em processos diferentes.
Tal é o que resulta do disposto nos artigos 100.º e 109.º, n.º 2, do CPC.
O artigo 109.º, n.º 2, do CPC estatui que: “Há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão”.
E, por seu turno, o artigo 100.º do CPC prescreve que: “A decisão sobre incompetência absoluta do tribunal, embora transite em julgado, não tem valor algum fora do processo em que foi proferida, salvo o disposto no artigo seguinte”.
Esta foi também a posição assumida, na decisão proferida em 15-01-2014, nos autos de conflito negativo de competência proferidos no âmbito do Proc. 5/11.6TTPTG.E1, da Relação de Évora (rel. ANTÓNIO M. RIBEIRO CARDOSO), nos quais se refere: “Ora, tendo sido instaurados dois processos distintos em dois tribunais diferentes, a decisão declinando a competência proferida por cada tribunal em cada um dos processos, apenas tem validade dentro do próprio processo, ou seja, nada obsta a que os AA. voltem a instaurar nova acção, seja no tribunal de competência genérica, seja no tribunal do trabalho, uma vez que as respectivas decisões, ainda que tenham transitado, não constituem caso julgado fora do processo em que foram proferidas.
E só assim não seria se a questão do tribunal competente tivesse sido decidida “em via de recurso” [art.º 101º do CPC] e não foi o caso.
Como resulta dos artigos 99.º, n.º 2, 101.º e 109.º, nºs 1 e 2 do CPC, só existe conflito de competência dirimível nos termos do artigo 109.º e seguintes, quando, sendo a incompetência decretada findos os articulados, o autor requeira a remessa do processo para o tribunal considerado competente (art.º 99º, nº 2) e este, no processo remetido, decline igualmente a competência (art.º 109º, nºs 1 e 2), ou quando, perante a decisão de incompetência, se interponha recurso no qual se decida qual o tribunal competente, mas noutro tribunal esteja pendente a mesma acção (art.101º, nº 3 do CPC).
No caso, tratando-se de dois processos intentados perante dois tribunais distintos e, sendo que, em nenhum deles houve decisão que se pronunciasse sobre questão de competência, não estamos perante um conflito negativo de competência cuja resolução caiba ao Presidente da Relação.
O meio próprio para a reação do exequente relativamente ao despacho liminar proferido nos presentes autos seria o recurso do despacho de indeferimento liminar do requerimento executivo, decisão da qual, nos termos do art.º 853.º, n.º 3, do CPC, cabe sempre recurso, o que, contudo, aquele não fez.
Verifica-se, pois, causa de indeferimento do pedido – cfr. artigo 113.º, n.º 1, do CPC.
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IV. De acordo com o exposto, por não estarmos perante uma situação de conflito suscetível de ser conhecido por esta Presidência, indefiro o pedido formulado no requerimento do exequente de 19-03-2024.
Custas a cargo do exequente.
Notifique-se (art.º 113.º, n.º 3, do CPC).
Baixem os autos.

Lisboa, 24-06-2024,
Carlos Castelo Branco.
(Vice-Presidente, com poderes delegados – cfr. Despacho 2577/2024, de 16-02-2024, D.R., 2.ª Série, n.º 51/2024, de 12 de março).