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ESCUSA
AMIZADE
CONHECIMENTO DOS FACTOS
PROCESSO DE INVENTÁRIO
Sumário
É de deferir escusa requerida por juiz, relativamente a processo de inventário que lhe foi distribuído, onde se partilha a herança dos avós e mãe da criança que se encontra aos cuidados e guarda de sua amiga há mais de 20 anos e por força da relação de amizade de longínqua data que a Sra. Juíza mantém com tal amiga – sendo esta madrinha de uma das suas filhas e frequentando esta a sua residência - esta última, pediu-lhe conselhos sobre os procedimentos a seguir no âmbito dos processos que identifica (precedentes aos referidos autos de inventário), tendo, por isso, a Sra. Juíza tido conhecimento pessoal de factos pertinentes para o processo de inventário.
Texto Integral
I. A Sra. Juíza de Direito “A”, a exercer funções no Juízo Local Cível de Torres Vedras – Juiz (…), veio requerer, ao abrigo do disposto no artigo 119.º, n.º 1 do CPC, lhe seja concedida escusa de intervenção no processo de inventário n.º (…)/24.8T8TVD.
Para tanto, invocou, em suma, que:
- Foi informada pela sua amiga, “B”, que deu entrada no Juízo Local Cível de Torres Vedras processo de inventário, onde figura como requerente o Ministério Público, no interesse do menor “C”, na sequência de processo administrativo que corria termos nos Serviços do Ministério Público;
- Após consulta da distribuição, constatou que o referido processo de inventário (visando a partilha das heranças abertas por óbito de “D”, “E” avós do menor, e de “F”, mãe do menor) foi distribuído ao Juízo Local Cível de Torres Vedras - Juiz (…), onde exerce funções;
- O menor “C” é primo materno de “B” e filho de “F”, falecida, tendo, após o óbito da mãe, ficado aos cuidados do pai;
- Correu termos processo de promoção e proteção, junto da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, onde foi aplicada a medida de apoio junto de familiar, tendo o menor ficado à guarda e cuidados da sua prima materna “B”, situação que se mantém atualmente;
- Paralelamente, correu termos no Juízo Local Criminal de Torres Vedras, processo crime onde o progenitor do menor e sua companheira foram constituídos arguidos, tendo o menor a qualidade de ofendido;
- “B” é sua amiga há mais de 20 anos e é madrinha de uma das suas filhas, frequentando a sua residência;
- No decurso dos processos suprarreferidos, “B”, por força da amizade de longa data que mantém, pediu-lhe conselhos quanto aos procedimentos a adotar no decurso dos referidos processos, tendo aconselhado a sua amiga “B”, o que ainda faz atualmente, e esclarecendo os trâmites processuais, habituais, nos processos da mesma natureza;
- Por residir com “B”, aos cuidados de quem se encontra, o menor “C” já frequentou a sua residência, tendo também estado presente em evento social onde se celebrou o aniversário da sua filha, tendo a Sra. Juíza conhecimento pessoal dos factos objeto do processo de inventário, onde “B” foi indicada pelo Ministério Público, na petição inicial do processo de inventário suprarreferido, para o exercício do cargo de curador especial do menor; e
- O processo ainda não lhe foi concluso, tendo sido distribuído ao Juízo onde exerce funções no dia 27 de junho.
Concluiu que as referidas circunstâncias são, só por si, suscetíveis de gerar desconfiança sobre a imparcialidade da signatária.
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II. Nos termos plasmados no nº. 1 do artigo 119º do CPC, o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir que seja dispensado de intervir na causa quando se verifique algum dos casos previstos, no artigo 120.º do CPC e, além disso, quando, por outras circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade.
O juiz natural, consagrado na Constituição da República Portuguesa, só pode ser recusado quando se verifiquem circunstâncias assertivas, sérias e graves. E os motivos sérios e graves, tendentes a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador resultarão da avaliação das circunstâncias invocadas.
O TEDH – na interpretação do segmento inicial do §1 do art.º 6.º da CEDH, (“qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei”) - desde o acórdão Piersack v. Bélgica (8692/79), de 01-10-82 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57557) tem trilhado o caminho da determinação da imparcialidade pela sujeição a um “teste subjetivo”, incidindo sobre a convicção pessoal e o comportamento do concreto juiz, sobre a existência de preconceito (na expressão anglo-saxónica, “bias”) face a determinado caso, e a um “teste objetivo” que atenda à perceção ou dúvida externa legítima sobre a garantia de imparcialidade (cfr., também, os acórdãos Cubber v. Bélgica, de 26-10-84 (https://hudoc.echr.coe.int/ukr?i=001-57465), Borgers v. Bélgica, de 30-10-91, (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57720) e Micallef v. Malte, de 15-10-2009 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-95031) ).
Assim, o TEDH tem vindo a entender que um juiz deve ser e parecer imparcial, devendo abster-se de intervir num assunto, quando existam dúvidas razoáveis da sua imparcialidade, ou porque tenha exteriorizado relativamente ao demandante, juízos antecipados desfavoráveis, ou no processo, tenha emitido algum juízo antecipado de culpabilidade.
O pedido de escusa terá por finalidade prevenir e excluir situações em que possa ser colocada em causa a imparcialidade do julgador, bem como, a sua honra e considerações profissionais.
Efectivamente, não se discute se o juiz iria ou não manter a sua imparcialidade, mas a defesa de uma suspeita, ou seja, o de evitar que sobre a sua decisão recaia qualquer dúvida sobre a sua imparcialidade.
A imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo.
O direito a um julgamento justo, não se trata de uma prerrogativa concedida no interesse dos juízes, mas antes, uma garantia de respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, de modo a que, qualquer pessoa tenha confiança no sistema de justiça.
Do ponto de vista dos intervenientes nos processos, é relevante saber da neutralidade dos juízes face ao objeto da causa.
Com efeito, os motivos sérios e válidos atinentes à imparcialidade de um juiz terão de ser apreciados de um ponto de vista subjetivo e objetivo.
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III. No caso em apreço, a Sra. Juíza vem invocar que, no processo de inventário que lhe foi distribuído se partilha a herança dos avós e mãe da criança que se encontra aos cuidados e guarda da sua amiga – há mais de 20 anos – “B”.
Por via da relação de amizade de longínqua data que a Sra. Juíza mantém com a referida “B” – sendo esta madrinha de uma das suas filhas – frequentando esta a sua residência, esta última, pediu-lhe conselhos sobre os procedimentos a seguir no âmbito dos processos que identifica (precedentes aos referidos autos de inventário), tendo, por isso, a Sra. Juíza tido conhecimento pessoal de factos pertinentes para o processo de inventário.
Não se coloca em causa o dever de objetividade e distanciamento inerentes ao ato de julgar, sendo a postura de um juiz sempre a de cumprir a lei, com rigor, imparcialidade e retidão, mas pode questionar-se o seu não distanciamento relativamente ao caso concreto, quando a Sra. Juíza conhece e priva com a cuidadora da criança em questão, um dos interessados do inventário para partilha da herança por óbito da sua mãe e dos seus avós.
Não se coloca, todavia, somente a questão do contacto social, pois, um Juiz é um cidadão como qualquer outro, podendo conviver e integrar-se na sociedade.
O que perpassa, em particular, na situação em apreço é, não só a amizade que liga a Sra. Juíza à cuidadora do interessado – sendo indicada esta, pelo Ministério Público, para exercer as funções de curadora da criança em questão – mas, designadamente, o aconselhamento previamente dado relativamente à condução de processos relacionados com a criança e, bem assim, o conhecimento que, por via de tal aconselhamento, a Sra. Juíza adquiriu. “A imparcialidade afasta-se quando as razões ditadas pela razão objectiva são substituídas pelas empatias contidas na emoção resultante da proximidade. A partir do momento em que o juiz recebe informação de qualquer tipo relacionada com o processo, que lhe é transmitida por um dos intervenientes, dificilmente a sua posição deixa de ser reconhecida como condicionada por tal ligação. Passa a interferir um elemento de conexão pessoal e extraprocessual num procedimento que se deve pautar pelo afastamento e pela objectividade” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-02-2016, Pº 1289/13.0T3AVR.PL, rel. SANTOS CABRAL).
Também evidenciando que o “conhecimento pessoal da situação, resultante de confidências radicadas numa relação de amizade, põe em causa princípios estruturantes da função de julgar, que são a isenção e imparcialidade”, justificando o deferimento de escusa, vd., o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 07-03-2018 (Pº 93/18.4T9LMG-A.C1, rel. OLGA MAURÍCIO).
Em face do que se vem referindo, não seria só a imparcialidade da Sra. Juíza que ficaria em causa, mas também, a desconfiança sobre si, relativamente aos restantes sujeitos processuais – em particular o outro interessado do processo de inventário em questão - , caso se mantivesse com os autos referenciados, ou seja, o poder gerar a ideia de que a Sra. Juíza poderia não ser imparcial nas suas decisões, atenta a relação de amizade mantida com a cuidadora de um dos interessados no processo e a convivência, relacionamento e aconselhamento dados em razão de tal amizade.
Tudo tem de se pautar pela transparência e com o maior distanciamento.
Quer do ponto de vista subjetivo quer objetivo, a situação narrada é suscetível de causar perturbação, descrença na Justiça e dúvidas sobre a imparcialidade do Juiz.
Os pedidos de escusa, pressupõem situações excecionais, o que é o caso.
Assim e sem mais considerandos, entendo existir circunstância ponderosa que justifica que a Sra. Juíza seja dispensada de intervir no processo em questão.
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IV. Face ao exposto, defiro o pedido de escusa de intervenção da Sra. Juíza de Direito “A”, no âmbito do processo de inventário n.º (…)/24.8T8TVD.
Sem custas.
Notifique.
Lisboa, 04-07-2024,
Carlos Castelo Branco
(Vice-Presidente, com poderes delegados – cfr. Despacho 2577/2024, de 16-02-2024, D.R., 2.ª Série, n.º 51/2024, de 12 de março).