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INCIDENTE DE DESPEJO IMEDIATO
OPOSIÇÃO
FUNDAMENTOS
OBRAS PAGAS PELO ARRENDATÁRIO
DAÇÃO EM CUMPRIMENTO
Sumário
I. No âmbito de um incidente de despejo imediato (Artigo 14º, nºs 4 e 5 da Lei nº 6/2006, de 27.2), o arrendatário pode discutir designadamente a qualidade de senhorio do demandante, o dever de pagar as rendas, a validade do contrato de arrendamento ou a mora do senhorio. II. Caso assim não fosse, a interpretação de tal norma seria inconstitucional, materialmente, por preterição do princípio da proibição de indefesa. III. Tendo o arrendatário e senhorio, na sequência da ocorrência de infiltrações no locado e danos daí advenientes, acordado que o arrendatário faria as obras necessárias, sendo o valor das obras descontado nas rendas, tal acordo integra uma dação em cumprimento obrigacional. IV. Tendo-se esgotado o âmbito da vigência temporal da invocada dação em cumprimento, e deduzindo o autor/senhorio incidente de despejo imediato, sendo a única defesa do réu no incidente a invocação de tal acordo, deve ser julgado procedente o incidente de despejo imediato.
Texto Integral
Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
RELATÓRIO
BB intentou ação de despejo, que segue a forma de ação declarativa comum, contra DD e FF, peticionando que:
“A) Seja decretada a resolução do contrato de arrendamento de prazo certo, para habitação, celebrado a 29 de Novembro de 2012 entre o A. e os RR., e a condenação do 1º R. a entregar imediatamente ao A. O locado, livre e devoluto de pessoas e bens;
B) Sejam os RR. solidariamente condenados a pagar ao A. a quantia de € 19.800,00 (dezanove mil e oitocentos euros), a título de rendas vencidas e não pagas desde Julho de 2017, acrescida do valor das rendas que se vencerem até ao trânsito da sentença que decretar a resolução do contrato de arrendamento e do valor correspondente à renda, por cada mês subsequente ao trânsito em julgado desta decisão e até entrega efetiva do arrendado;
C) Sejam os RR. solidariamente condenados a pagar ao A. os juros de mora, à taxa legal, sobre as quantias referidas em B), no valor atual de € 1.980,00 (mil novecentos e oitenta euros)”.
Fundamentando a pretensão, alega que:
- No dia 29 de Novembro de 2012, celebrou com o 1.º Réu, enquanto arrendatário, e com o 2.º Réu, enquanto fiador, um contrato de arrendamento através do qual cedeu ao primeiro o gozo e fruição de um anexo, com início a 1 de Janeiro de 2013, e fim em 31 de Dezembro de 2018, e contra o pagamento de uma renda mensal de € 330,00;
- A partir da renda relativa a Março de 2014, o 1º Réu deixou de proceder ao pagamento das rendas, sendo que reconhece que as rendas até Junho de 2017 se encontram prescritas, devendo ser pagas as vencidas a partir de Julho de 2017;
- Apesar de tal circunstância, o 1.º Réu mantém-se no gozo do imóvel.
Contestando, o réu:
- Confirma a celebração do contrato de arrendamento, o período inicial fixado e bem assim o valor da renda. Ademais, confirma também que se mantém no gozo do imóvel, não obstante não pagar a renda desde Março de 2014;
- Explica, todavia, que, no decurso do inverno de 2013, 2014, ocorreu uma infiltração de águas pluviais a partir do telhado e do isolamento da cobertura do imóvel e que danificaram o mesmo, assim como os seus pertencentes, neste caso, em valor não inferior a € 750,00;
- Indica que o Autor jamais se mostrou disponível a efectuar as reparações necessárias para cessar com as infiltrações, tendo-lhe proposto que as fizesse, procedendo-se ao desconto dos valores despendidos nas rendas que deveria ser pagas;
- Aceitou a proposta do Autor, tendo efectuado as obras necessárias a dotar o imóvel das condições mínimas de habitabilidade, despendendo quantia não concretamente apurada, mas por volta dos € 35.000,00;
- Desse modo, considera que, face ao acordo empreendido, não existem rendas em dívida, sendo que também não são as mesmas devidas em virtude do disposto no artigo 428.º, n.º 1 do C.C.
Por Requerimento de 21 de Agosto de 2023, veio o Autor intentar incidente de despejo imediato.
Refere o Autor que, após o termo do prazo para apresentar contestação, os Réus não procederam ao pagamento de qualquer renda, estando em dívida, entre Dezembro de 2022 e Agosto de 2023, € 2.970,00.
Deste modo, por despacho de 6 de Setembro de 2023, foi determinada a notificação dos Réus para que, em 10 dias, procedessem ao pagamento/depósito das rendas e da indemnização mencionada no artigo 1041.º, n.º 1, do CC ou requeressem o que tivessem por conveniente.
Veio o 1.º Réu, neste seguimento, afirmar que a quantia peticionada a título de rendas não é devida, uma vez que é menor ao crédito que reclama em sede de contestação.
Após a fixação da matéria de facto, o incidente do despejo imediato foi decidido assim:
«Em face do exposto, o Tribunal decide julgar procedente o requerimento formulado pelo Autor e, em consequência:
a) Determina-se o despejo imediato do anexo do prédio urbano sito na Rua (...), freguesia de (...), concelho de (...), por parte do Réu DD e a entrega do mesmo ao Autor livre e devoluto de pessoas e bens.»
*
Não se conformando com a decisão, dela apelou o Réu, formulando, no final das suas alegações, as seguintes
CONCLUSÕES:
a) Recorre-se da douta sentença que julgou procedente o requerimento de incidente de despejo imediato e, consequentemente, ordenou o despejo imediato do R.;
b) Discorda-se do entendimento efeituado pelo Mm°. Juiz a quo quanto aos valores em discussão, na parte em que foi considerado que:
“Por outro lado, é, salvo melhor opinião, totalmente indiferente o valor que é pedido pelo Autor no presente caso.
De facto, a circunstância de o Autor peticionar apenas a condenação dos Réus no pagamento das rendas vencidas a partir de Julho de 2017 não elimina o facto de estes não pagarem as rendas desde Março de 2014.
É que a prescrição das rendas em dívida anteriores a Julho de 2017 não faz desaparecer o seu não pagamento, apenas permitindo aos Réus recusarem o pagamento – cf. artigo 304.º, n.º 1 do C.C.
Como tal, o facto de as rendas, entre Março de 2014 e Junho de 2017, estarem prescritas e o Autor não peticionar a condenação dos Réus no pagamento, não faz com que se deva ignorar que estes não pagam a renda desde Março de 2014 – algo que o próprio 1.º Réu admite. Assim, tais rendas continuam em dívida, apenas o seu pagamento pode ser recusado pelos devedores, os Réus.
E, por isso, também não se pode ignorar que, caso o acordo indicado pelo Réu tenha existido, ele abrangeu também o período entre Março de 2014 e Junho de 2017...”;
c) Ora, não se concorda que seja indiferente aquilo que foi peticionado pelo A. na petição inicial;
d) O A. alegou, designadamente, o seguinte na sua douta P.I.:
- Art. 11°: “O A. reconhece a prescrição das rendas vencidas há mais de cinco anos, portanto até Junho de 2017.';
- Art. 12º: “Encontram-se, assim, em dívida as rendas vencidas de Julho de 2017 a Junho de 2022, no valor total de € 19.800,00 (dezanove mil e oitocentos euros) (60 x € 330,00);
- E, no pedido: “Serem os RR. solidariamente condenados a pagar ao A. a quantia de € 19.800,00 (dezanove mil e oitocentos euros), a título de rendas vencidas e não pagas desde Julho de 2017, acrescida do valor das rendas que se vencerem até ao trânsito da sentença que decretar a resolução do contrato de arrendamento e do valor correspondente à renda, por cada mês subsequente ao trânsito em julgado desta decisão e até entrega efetiva do arrendado.”;
e) Ou seja, nunca foi pelo A. peticionado o pagamento de rendas vencidas anteriormente a Julho de 2017;
f) Afigurando-se que não poderia o Mm°. Juiz a quo condenar o R. com base na falta de pagamento de rendas que não foram peticionadas e que já se encontravam prescritas à data da propositura da presente ação;
g) Nos termos do disposto no nº 1, do art. 5º do CPC, às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas;
h) Crendo-se que não foi atendido devidamente o princípio do dispositivo;
i) E que se poderá estar perante uma situação de excesso de pronúncia, cuja nulidade desde já se invoca para os devidos e legais efeitos;
j) Nos termos do disposto no art. 615º, nº 1, alínea d), do CPC, é nula a sentença quando “O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”;
k) Ora, afigura-se que o Mmº Juiz a quo se pronunciou sobre questões de que não podia tomar conhecimento e, por isso, condenou o R. no despejo imediato do locado;
l) Ao atender a valores não peticionados pelo A. a douta sentença considera que existem rendas em dívida, mesmo que se considerasse o crédito invocado pelo R. na sua contestação, a título de exceção de não cumprimento, como refere a douta sentença recorrida;
m) O que não sucederia se se tivesse atendido apenas aos valores efetivamente peticionados pelo A. Se não, vejamos:
n) Conforme alegado na contestação, nos anos de 2013-2014, ocorreu uma infiltração de águas pluviais a partir do telhado e do isolamento da cobertura do imóvel arrendado, as quais danificaram gravemente a habitação arrendada, passando o R. a ter, desde essa altura, infiltrações na sua habitação, dando-se por integralmente reproduzida a descrição dos danos e as consequências dessas infiltrações, indicadas nos arts. 8º a 16º da contestação;
o) O R. comunicou ao A. a necessidade de realização de obras, o que não foi posto em causa pelo A., tendo sido acordado entre ambos que o R. realizaria as obras necessárias, suportando os respetivos custos e não pagaria as rendas mensais até perfazer esse valor;
p) Acrescido do montante dos prejuízos que o R. teve com os seus pertences (móveis e vestuário), de valor não inferior a 750,00€;
q) Na execução dos trabalhos descritos, incluindo fornecimento de materiais, equipamento fixo, mão-de-obra, despesas correntes e taxas aplicáveis, o A. despendeu uma quantia não concretamente apurada que rondou os 35.000,00€.;
r) De que deu conhecimento ao A., que aceitou;
s) Ora, o valor das referidas obras ainda não foi alcançado;
t) O pedido formulado na douta petição inicial foi, designadamente, de que fossem os RR. condenados a pagar ao A. a quantia de € 19.800,00, referente à falta de pagamento das rendas vencidas entre Julho de 2017 e a data de entrada da presente ação (Junho de 2022), bem como as vincendas até ao trânsito em julgado;
u) No requerimento de incidente de despejo imediato, o A. peticionou o pagamento das rendas vencidas na pendência da presente ação, correspondentes aos meses de Janeiro a Setembro de 2023, no montante global de € 2.970,00;
v) Ora, do somatório de ambos os valores decorre que o valor total é de € 22.770,00;
w) A mencionada quantia de € 22.770,00 ainda se encontra abrangida pelo crédito invocado pelos RR. em sede de contestação (a saber, € 35.000,00);
x) Pelo que se crê que não tinham os RR. a obrigação de proceder à entrega daqueles valores ao A.;
y) Caso a douta sentença recorrida se tivesse limitado a analisar o que foi peticionado, não poderia ter condenado o R. nos temos constantes da mesma visto que, efetivamente, o crédito invocado pelo R. ainda não foi ultrapassado;
z) Pelo que se afigura que houve excesso de pronúncia, o que consubstancia uma nulidade que desde já se invoca para os devidos efeitos legais;
aa) Em face do exposto, deve a presente apelação ser julgada procedente, substituindo-se a douta decisão recorrida por outra que declare a improcedência do requerimento de despejo imediato formulado pelo A., prosseguindo a presente ação os seus termos, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.
*
Contra-alegou o autor/apelado, propugnando pela improcedência da apelação.
QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Artigos 635º, nº4, e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, v.g., abuso de direito.[2]
Nestes termos, as questões a decidir são as seguintes:
i. Nulidade da sentença por excesso de pronúncia;
ii. Se existe fundamento para decretar o despejo imediato.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
1 – Em 29 de Novembro de 2012, o Autor, na qualidade de “Senhorio”, o 1.º Réu, enquanto “Arrendatário” e o 2.º Réu, como “fiador”, assinaram um documento escrito, designado “Contrato de Arrendamento de prazo certo”, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, e do qual constava, entre o mais, o seguinte texto:
“(…) Entre si estabelecem o presente contrato de arrendamento para habitação limitada, que tem por objeto (..) de que os primeiros outorgantes são legítimos donos e possuidores, correspondente ao ANEXO do prédio urbano sito na Rua (...), freguesia de (...), concelho de (...) (...) PRIMEIRA – O prazo de duração do arrendamento é de cinco anos, com início em 01 de Janeiro de 2013 e com termo em 31/12/2018. SEGUNDA – A renda anual é de Euros 3.960 (...) a pagar mensalmente em duodécimos de EUROS 330 (...)”.
2 – O valor da “renda” mantém-se inalterado.
3 – A partir de Março de 2014, o 1.º Réu deixou de proceder ao pagamento da “renda”, situação que ainda se mantinha pelo menos em Agosto de 2023.
4 – O 1.º Réu mantém-se a residir no imóvel.
5 – O 1.º Réu foi citado em 4 de Outubro de 2022, tendo apresentado contestação em 7 de Novembro de 2022.
6 – O 2.º Réu foi citado, na pessoa de …, em 4 de Outubro de 2022, não tendo apresentado contestação.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO Nulidade da sentença por excesso de pronúncia.
Sustenta o apelante que a sentença proferida é nula por excesso de pronúncia porquanto o autor só peticionou rendas vencidas a partir de julho de 2017 e, apesar disso, o tribunal a quo considerou rendas vencidas anteriormente para efeitos do cômputo/imputação do valor suportado pelo réu de € 35.000 com a realização de obras, tendo as partes acordado que este valor deveria ser descontado nas rendas a pagar. Argumenta o réu/apelante que houve uma violação do princípio do dispositivo.
Apreciando.
Nos termos do Artigo 615º, nº1, alínea d), do Código de Processo Civil, a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Trata-se de um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de atividade que afeta a validade da sentença.
Esta nulidade está diretamente relacionada com o Artigo 608º, nº2, do Código de Processo Civil, segundo o qual “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
Neste circunspecto, há que distinguir entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos pelas partes. Conforme já ensinava ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, V Vol., p. 143, “ São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.” Ou seja, a omissão de pronúncia circunscreve-se às questões/pretensões formuladas de que o tribunal tenha o dever de conhecer para a decisão da causa e de que não haja conhecido, realidade distinta da invocação de um facto ou invocação de um argumento pela parte sobre os quais o tribunal não se tenha pronunciado.[3]
No que tange ao excesso de pronúncia (segunda parte da alínea d) do Artigo 615º), o mesmo ocorre quando o juiz se ocupa de questões que as partes não tenham suscitado, sendo estas questões os pontos de facto ou de direito relativos à causa de pedir e ao pedido, que centram o objeto do litígio. Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6.12.2012, João Bernardo, 469/11, à luz do princípio do dispositivo, há excesso de pronúncia sempre que a causa do julgado não se identifique com a causa de pedir ou o julgado não coincida com o pedido, não podendo o julgador condenar, além do pedido, nem considerar a causa de pedir que não tenha sido invocada. Contudo, quando o tribunal, para decidir as questões postas pelas partes, usar de razões ou fundamentos não invocados pelas mesmas, não está a conhecer de questão de que não deve conhecer ou a usar de excesso de pronúncia suscetível de integra nulidade (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.12.2011, Pereira Rodrigues, 2/08).
Não ocorre a apontada nulidade nos termos que se passam a explicitar, sendo certo que a apreciação da questão implica uma incursão no mérito da apelação.
Estamos no âmbito de um incidente de despejo imediato (Artigo 14º, nºs 4 e 5 da Lei nº 6/2006, de 27.2).
No âmbito deste incidente , o arrendatário pode discutir a qualidade de senhorio do demandante, o dever de pagar as rendas, a validade do contrato de arrendamento ou a mora do senhorio (cf. por todos: António Menezes Cordeiro (Coord.), Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, 2014, Almedina, p. 404; Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 20.12.2018, Carlos Oliveira, 1830/17, de 20.5.2021, Ana Azeredo Coelho, 273/20).
Conforme se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 327/2018:
« (…) tal como já decidido por este Tribunal nos arestos acima citados e afirmado por doutrina autorizada (no sentido de que, sob pena de violação do princípio da proibição da indefesa, «não se pode entender que a única opção concedida ao arrendatário é demonstrar, até ao termo do prazo para a sua resposta, que procedeu a esse pagamento ou depósito», cf. Miguel Teixeira de Sousa, Leis do Arrendamento Urbano…cit., p. 404.), não se mostra compatível com o princípio da proibição de indefesa, decorrente do artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da Constituição, uma interpretação do artigo 14.º, n.º 4 da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, alterado pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, segundo a qual se for requerido pelo autor o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da ação, o único meio de defesa do réu é a apresentação de prova, até ao termo do prazo para a sua resposta, de que procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância da indemnização devida.
Com isto não se pretende naturalmente admitir que qualquer fundamento servirá para obstar ao despejo imediato do arrendatário, e muito menos que o tribunal ficará vinculado aos mesmos, mas apenas que da aplicação conjugada dos n.º 4 e 5 do artigo 14.º, da Lei n.º 6/2006, o arrendatário não deve ser impedido de exercer o seu direito ao contraditório, constitucionalmente protegido. Com efeito, uma coisa é a permissão de contraditório; outra é a eventual procedência dos fundamentos invocados no seu exercício, que o juiz apreciará livremente.
Como, aliás, tem sido evidenciado pela jurisprudência deste Tribunal, aquilo que verdadeiramente ofende o princípio da proibição de indefesa é não permitir outros meios de defesa naqueles casos em que “na ação de despejo persista controvérsia quer quanto à identidade do arrendatário, quer quanto à existência de acordo, diverso do arrendamento, que legitimaria a ocupação do local pela interveniente processual” (v. Acórdão n.º 673/2005).»
Ora, o autor interpôs esta ação alegando que o 1º réu não procede ao pagamento das rendas desde março de 2014, reclamando apenas o pagamento das rendas vencidas a partir de julho de 2017. E fê-lo porquanto, consoante afirmou no artigo 11º da petição, «O autor reconhece a prescrição das rendas vencidas há mais de cinco anos, portanto até junho de 2017».
Ou seja, perante a evidência de que, caso reclamasse o pagamento das rendas vencidas entre março de 2014 e junho de 2017, o réu oporia a prescrição das mesmas, o autor optou por não as peticionar.
Na versão defensiva do réu, no inverno de 2013/2014, ocorreu uma infiltração de águas pluviais na fração causando danos de € 750, tendo o autor/senhorio e o réu/inquilino acordado que o réu realizaria as obras necessárias no imóvel, sendo descontado o custo de tais obras nas rendas a ser pagas pelo réu. O custo de tais obras foi de € 35.000, segundo o réu.
Este acordo assim celebrado não é uma compensação porquanto as obrigações do senhorio (realização de obras) e do inquilino/réu (pagamento de renda) não têm por objeto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade (não há homogeneidade das prestações; cf. Artigo 847º, nº1, al. b), do Código Civil).
Este acordo consubstancia uma dação em cumprimento para os efeitos do Artigo 837º do Código Civil. «O contrato de dação em cumprimento tem por objeto a atribuição de valor liberatório à realização de uma prestação diferente da devida. Mediante este acordo, a prestação torna-se apta a extinguir obrigação com objeto diverso» ( Ana Prata (Coord.), Código Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2017, p. 1055). A dação em cumprimento pode ter por objeto a prestação de um facto, podendo credor e devedor acordar em atribuir valor liberatório a prestação diferente da devida a realizar no futuro (dação em cumprimento obrigacional; Op. Cit., p. 1056).
Assim, o pagamento das rendas vencidas a partir de março de 2014 teve como sucedâneo a realização das obras pelo réu no valor de € 35.000, sendo que este valor cobre o pagamento de 108 rendas (35.000 + 750 = 35.750 :330 = 108). Cento e oito rendas/meses contadas a partir de 1 de março de 2014 findam em 1 de março de 2023.
Na lógica da defesa do Réu, durante todo esse período de tempo, o réu esteve dispensado do pagamento das sucessivas rendas em execução da dação em cumprimento acordada.
Neste enfoque, não colhe pertinência invocar a prescrição das rendas porquanto o autor/senhorio não tinha direito às mesmas em sentido estrito mas sim a um seu sucedâneo, que foi prestado, nos termos da dação em cumprimento acordada. Não ocorre inércia do credor/senhorio na exigência do pagamento das rendas quando, segundo o réu, este não era devido em si, atenta a dação em cumprimento acordada. Em suma, em decorrência desta versão, o réu não pode pretender beneficiar do instituto da prescrição num cenário em que o credor acordou em receber um sucedâneo das rendas.
O incidente de despejo imediato tem um âmbito específico e temporalmente delimitado, qual seja o do pagamento das rendas na pendência da ação de despejo. Assim, invocando o autor/senhorio que o réu/arrendatário não está a pagar as rendas na pendência da ação de despejo, o réu tem um direito de defesa alargado (cf. supra) mas o objeto da discussão é balizado pelo incidente de despejo imediato. Não cabe no âmbito deste incidente a discussão sobre a causa de pedir invocada pelo autor, a qual não tem necessariamente de se reportar a uma falta de pagamento de rendas prévia à propositura da ação.
Deste modo, não ocorre a apontada nulidade porquanto não cabia ao Tribunal a quo ponderar, para efeitos da decisão do incidente de despejo imediato, qual a causa de pedir da ação, no caso quais as rendas não pagas antes da propositura da ação e quais as reclamadas. A causa de pedir do incidente é apenas o não pagamento de rendas na pendência da ação.
O que cabia ao tribuna a quo apreciar , e fê-lo, foi a defesa apresentada pelo réu, justificadora – na sua perspetiva – do não pagamento das rendas na pendencia da ação.
O Tribunal a quo conheceu a questão que devia conhecer (incidente de despejo imediato e defesa deduzida) e sem excesso de pronúncia, não lhe cabendo apreciar nesse momento a causa de pedir inicialmente deduzida e os pedidos correspondentes (sendo que estes não condicionam o âmbito do conhecimento do incidente de despejo imediato). Se existe fundamento para decretar o despejo imediato.
O tribunal a quo julgou o incidente provado, essencialmente com base nesta argumentação:
«Como se disse, entre Março de 2014 e Agosto de 2023, venceram-se 114 rendas, num valor total de € 37.620,00.
Deste modo, e ainda que se tivesse como correto e provado a existência de um crédito pelo 1.º Réu no montante de € 35.750,00, e de um acordo que lhe permitia não pagar a renda até esse montante estar coberto, fica fácil de perceber que o mesmo deixou de estar em vigor antes de ser intentado o incidente de despejo imediato.
Assim, considerando-se o acordo permitia ao 1.º Réu não pagar as rendas até ao montante de € 35.750,00, sendo a renda de € 330,00 mensais, verificamos que ela sempre passaria a ser devida a partir de Abril de 2023 (altura em que decorriam 110 meses desde o início do não pagamento da renda.
Ora, o Requerimento de despejo imediato é intentado pelo Autor em Agosto de 2023, altura em que já estavam em dívida cinco rendas (as que deviam ser pagas nos primeiros dias de Abril de 2023 a Agosto de 2023).
Deste modo, sempre o 1.º Réu se encontrava obrigado a pagar ao Autor as rendas que vencessem desde de Abril de 2023, pois, ainda que acordo com os contornos já indicados haja sido celebrado, ele terminou a sua vigência em Março de 2023.
(…)
Acontece que o 1.º Réu não procedeu a esse pagamento, violando assim a obrigação de proceder ao pagamento da renda. É também de ter em atenção que esse não pagamento, em Agosto de 2023, era já superior a dois meses, estando, por isso, verificado o circunstancialismo a que fazem menção os n.º 3 e 4 do artigo 14.º do N.R.A.U.
Por outro lado, veja-se que, em momento algum, o 1.º Réu afirmou que, tirando os três meses já citados – ocorridos no início de 2014 -, se viu impedido de residir no imóvel e gozar as suas potencialidades.
Ademais, a alegação de exceção de não cumprimento – neste caso, não proceder ao pagamento da renda enquanto as obras não fossem efetuadas – não tem o mínimo cabimento, pois, segundo o próprio alega, as obras foram feitas por si.
Como tal, se o próprio efetuou as obras e se existiu um acordo para o não pagamento das rendas até ao custo das obras estar integralmente ressarcido, não tem o mínimo sentido invocar, na atualidade, a exceção de não cumprimento, pois não há qualquer violação dos deveres do senhorio.»
Face ao que ficou dito supra, há que concluir que a análise feita pelo tribunal a quo está inteiramente correta.
Com efeito, o acordo de dação em cumprimento – meio de defesa invocado pelo réu no âmbito do incidente de despejo imediato – findou em 1 de março de 2023, cabendo ao réu pagar as rendas vencidas a partir de 1 de abril de 2023 (já na pendência da ação), o que não fez, razão suficiente e necessária da improcedência desta apelação.
Como referiu o tribunal a quo, a invocação da exceção de não cumprimento não tem cabimento a partir do momento em que, na versão do réu, as partes celebraram o acordo de dação em pagamento.
Mesmo que assim não fosse, a exceção de não cumprimento como fundamento para não pagar as rendas perante a omissão da realização de obras pelo senhorio não tem cabimento legal, conforme decorre da explicação clara do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5.7.2022, Olinda Garcia, 564/19.
A fundamentação autónoma da condenação em custas só se tornará necessária se existir controvérsia no processo a esse propósito (cf. art. 154º, nº1, do Código de Processo Civil; Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 303/2010, de 14.7.2010, Vítor Gomes, e 708/2013, de 15.10.2013, Maria João Antunes).
DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo apelante na vertente de custas de parte (Artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº6 e 663º, nº2, do Código de Processo Civil).
Lisboa, 24.9.2024
Luís Filipe Sousa
Ana Mónica Mendonça Pavão
Paulo Ramos de Faria
_______________________________________________________ [1] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª ed., 2022, p. 186. [2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., pp. 139-140.
Neste sentido, cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13, de 10.12.2015, Melo Lima, 677/12, de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, de 17.11.2016, Ana LuísaGeraldes, 861/13, de 22.2.2017, Ribeiro Cardoso, 1519/15, de 25.10.2018, Hélder Almeida, 3788/14, de 18.3.2021, Oliveira Abreu, 214/18, de 15.12.2022, Graça Trigo, 125/20, de 11.5.2023, Oliveira Abreu, 26881/15, de 25.5.2023, Sousa Pinto, 1864/21, de 11.7.2023, Jorge Leal, 331/21, de 11.6.2024, Leonel Serôdio, 7778/21. O tribunal de recurso não pode conhecer de questões novas sob pena de violação do contraditório e do direito de defesa da parte contrária (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2014, FonsecaRamos, 971/12). [3] Cf. também os Acórdãos do STJ 12.1.2021, Graça Amaral, 7693/19, de 6.1.2020, Bernardo Domingos, https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:189.18.2.T8GRD.C1.S1/, de 7.7.94, Miranda Gusmão, BMJ nº 439, p. 526 e de 22.6.99, Ferreira Ramos, CJ 1999 – II, p. 161, da Relação de Lisboa de 10.2.2004, Ana Grácio, CJ 2004 – I, p. 105, de 4.10.2007, Fernanda Isabel Pereira, de 6.3.2012, Ana Resende, 6509/05, acessíveis em www.dgsi.pt/jtrl.