PROCEDIMENTO ESPECIAL DE DESPEJO
OPOSIÇÃO
PAGAMENTO DE CAUÇÃO
OMISSÃO
APOIO JUDICIÁRIO
INCONSTITUCIONALIDADE
Sumário

I. No que tange à interpretação conjugada dos Artigos 15º-F, nº5, do NRAU e 13º, nº3, da Portaria nº 49/2024, de 15.2. atinentes ao pagamento de caução pelo arrendatário que beneficie de apoio judiciário, existem duas correntes jurisprudenciais e doutrinárias, sendo que uma sustenta que existe uma contradição entre normas de diferente hierarquia, devendo prevalecer a norma de hierarquia superior, no caso, a do NRAU pelo que, caso o inquilino beneficie de apoio judiciário, o mesmo está isento de prestar a caução a que alude o nº5 do Artigo 15º-F do NRAU.
II. Para uma segunda corrente, a concessão do apoio judiciário ao oponente arrendatário apenas o isenta do pagamento da taxa de justiça devida  e não também do depósito da caução legalmente estipulada, no valor das rendas, encargos ou despesas em atraso.
III. A norma do nº2 do Artigo 13º da Portaria nº 49/2024, de 15.2. (“O documento comprovativo do pagamento referido no número anterior deve ser apresentado juntamente com a oposição, independentemente de ter sido concedido apoio judiciário ao arrendatário”) é organicamente inconstitucional porquanto insere normação inovatória  e integrativa face ao Artigo 15º-F, nº5, in fine, do NRAU.
IV. O regime do nº2 do Artigo 13º da Portaria nº 49/2024  não só é inovatório como contraria o Artigo 15º-F, nº5, in fine, porquanto do elemento literal deste preceito resulta que, caso o inquilino beneficie de apoio judiciário, está isento do pagamento da caução, sendo que a  Portaria não concretiza os termos em que opera a isenção mas limita-se, simplesmente, a rejeitá-la em absoluto.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
BB e DD vieram propor procedimento especial de despejo contra FF, com fundamento no disposto no artigo 1083º, n.º 3, do Código Civil, com pedido de pagamento de rendas em atraso.
A Ré apresentou oposição, juntando aos autos cópia de decisão de apoio judiciário nas modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e nomeação de patrono.
Na oposição, a Ré sustentou o seguinte:
- Os autores e a ré celebraram, em 20.11.2021, dois contratos, sendo um de arrendamento da fração autónoma e outro de “aluguer” de móveis e garagem, havendo que aplicar o Artigo 1065º do Código Civil com a consideração de um contrato único;
- Os Autores atuaram em abuso de direito, ocorrendo o vício da nulidade (Artigo 220º do Código Civil) face à forma como o contrato de arrendamento e o contrato de “aluguer de garagem” foram feitos;
- O imóvel e as coisas alugadas padecem de vícios: o frigorífico deixou de funcionar, sendo que a Ré comprou outro; a máquina de lavar roupa também deixou de funcionar, tendo a ré que lavar a roupa fora com encargos; a torneira da banheira deixou de funcionar; em virtude do mau funcionamento das portas do locado, a Ré ficou aí fechado e teve de chamar os bombeiros; os estores das janelas do quarto e da sala não funcionam; tudo redundando em que a requerida está impedida do gozo pleno da habitação e dos eletrodomésticos;
- Reconhece que deve € 3.285 de rendas, estando desempregada desde novembro de 2023 e tendo um subsídio de desemprego no valor de € 585,65;
- Formula pedido de diferimento da desocupação do lado por prazo não inferior a cinco meses (Artigo 15º-M do NRAU; artigos 38º a 48º da oposição).
Conclui a oposição nestes termos:
«Termos em que
a) Requer pelos fundamentos supra alegados a improcedência total do procedimento especial de despejo, entre outros fundamentos de nulidade dos contratos nos termos do Artigo 220º do Código Civil
b) Caso assim não se entenda pelos fundamentos supra alegados requer a V. Exa ao Abrigo do Artigo 15º - M da Lei 6/2006 o deferimento por prazo não inferior a 5 meses do despejo do locado, até arranjar um teto para os seus pertences e sua filha menor com quem vive, afigurando-se necessário proceder à Reorganização da Requerida, que padece de depressão, e especialmente a sua filha que se encontra matriculada em instituição escolar perto da habitação arrendada, e que consequentemente poderá ser transferida porá outra escola com inerentes encargos de deslocações e despesas escolares.»
Com a oposição apresentada a Ré não comprovou o pagamento da caução devida.
Remetidos os autos à distribuição e verificada a referida omissão a Ré foi notificada para comprovar o pagamento da caução devida, nos termos do artigo 15º F, n.º 6 da Lei n.º 6/2006, de 27/02, sucessivamente atualizada.
A Ré juntou aos autos o requerimento datado de 23.05.2024 e não comprovou o pagamento da caução devida. Nesse requerimento, a ré sustenta que quando o arrendatário beneficia de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos, como é o seu caso, o mesmo estará isento de demonstrar o pagamento da caução a que alude o Artigo 15º-F do NRAU.
Em 21.6.2024, foi proferida decisão [impugnada nesta apelação] com o seguinte teor:
«Prescreve o artigo 15º F, n.º 5 da Lei n.º 6/2006, de 27/02, sucessivamente actualizada pela Lei n.º 31/2012, de 14.08, Lei n.º 79/2014, de 19/12, Lei n.º 42/2017, de 14/06, Lei n.º 43/2017, de 14/06, Lei n.º 12/2019, de 12/02, Lei n.º 13/2019, de 12/02, Lei n.º 2/2020, de 31/03 e Lei 56/2023, de 06.10), que «com a oposição, deve o requerido proceder à junção do documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida e, nos casos previstos nos ns. 3 e 4 do artigo 1083.º do Código Civil, ao pagamento de uma caução no valor das rendas, encargos ou despesas em atraso, até ao valor máximo correspondente a seis rendas, salvo nos casos de apoio judiciário, em que está isento, nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça».
Por seu turno, dispõe o artigo 13º da Portaria n.º 49/2024, de 15 de Fevereiro:
1 - O pagamento da caução devida com a apresentação da oposição, nos termos do n.º 5 do artigo 15.º-F da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, é efectuado através dos meios electrónicos de pagamento previstos no artigo 17.º da Portaria n.º 419-A/2009, de 17 de Abril, após a emissão do respectivo documento único de cobrança.
2 – O documento comprovativo do pagamento referido no número anterior deve ser apresentado juntamente com a oposição, independentemente de ter sido concedido apoio judiciário ao arrendatário.
A imposição ao arrendatário do ónus de impugnação do despejo, de prestação de caução e de pagamento da taxa de justiça, no âmbito do procedimento especial, tem em vista dissuadir o uso deste procedimento como meio dilatório para a efectivação do despejo (neste sentido Ac. RL de 06.03.2014, disponível em www.dgsi.pt, relatado pela Exma. Sra. Desembargadora Dra. Ondina Carmo Alves).
A prestação de caução não se confunde com a purga da mora. Esta determina a extinção da execução; aquela garante a posição do senhorio.
Em face disso, ao contrário da purga da mora, a prestação de caução não tange o fundo da questão, i.e., o direito à resolução (vide O Novo Regime Processual do Despejo, Rui Pinto, 2ª Edição, Coimbra Editora, pág. 155 e 156).
Daí que o artigo 15º F, n.º 5 da Lei n.º 6/2006, de 27/02, sucessivamente actualizada, ao prescrever que «com a oposição, deve o requerido proceder à junção do documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida e, nos casos previstos nos ns. 3 e 4 do artigo 1083.º do Código Civil, ao pagamento de uma caução no valor das rendas, encargos ou despesas em atraso, até ao valor máximo correspondente a seis rendas, salvo nos casos de apoio judiciário, em que está isento, nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça» apenas ressalva a primeira parte da norma, isto é, isenção do pagamento da taxa de justiça nas situações em que ao requerente de apoio judiciário lhe tenha sido concedida dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo (e não o pagamento da caução correspondente a seis rendas, menção que de resto se mostra entre virgulas).
O apoio judiciário concedido (pela Segurança Social) à Ré, mostra-se restrito ao respectivo âmbito, isto é, à modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, nomeação e pagamento da compensação de patrono (artigo 16º da Lei n.º 34/2004, de 29.07).
Os encargos compreendidos nas custas mostram-se enunciados no artigo 16º do RCP.
A caução em apreço (e o respectivo pagamento) não integra a modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo a que respeita a decisão de apoio judiciário concedida à Ré no âmbito do pedido de apoio judiciário.
Em adição, demonstrativo ainda de que o legislador trata de forma distinta as duas realidades regista-se que na redacção do n.º 7 do artigo 15ºF se dispõe: «a oposição tem-se igualmente por não deduzida quando o requerido não efectue o pagamento da taxa devida no prazo de cinco dias a contra da data da notificação da decisão definitiva de indeferimento do pedido de apoio judiciário, na modalidade de dispensa ou de pagamento faseado da taxa e dos demais encargos com o processo», não existindo aqui menção à caução, impondo-se concluir que o respectivo pagamento se mostra devido independentemente da (eventual) concessão de apoio judiciário na mencionada modalidade.
Ora, «não pode (...) ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» (artigo 9º, n.º 2 do Código Civil).
Por outro lado, «o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (cfr. artigo 9º, n.º 3, do Código Civil).
Neste sentido, vide, entre outros, os doutos Acórdãos prolatados pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 23.02.2016, proferido no âmbito da acção especial de despejo que correu termos neste Juízo Local Cível (J14), sob o processo n.º 24663/15.T8LSB, em que foi relatora a Exma. Sra. Desembargadora Dina Maria Monteiro, datado de 02.06.2016, proferido no âmbito da acção especial de despejo que correu termos sob o n.º 1347/15.7YLPRT, em que foi relatora a (então) Exma. Sra. Desembargadora Maria de Deus Correia, datado de 17.12.2015, proferido no âmbito da acção especial de despejo que correu termos 274/15.2YLPRT, em que foi relator o Exmo. Sr. Desembargador Jorge Leal (todos consultáveis em www.dgsi.pt).
Esta opção legislativa, assente que se mostra na falta de pagamento de rendas (e que no caso se mostra confessado pela Ré), e no pedido de pagamentos das rendas em atraso, como é manifesto, não afronta qualquer princípio ou garantia constitucional, nomeadamente o acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva previsto no artigo 20º da CRP, sendo que a questão a este propósito trazida pela Ré não se mostra adequadamente enunciada.
Assim, é manifesto que a Ré se mostra obrigada a comprovar o pagamento da caução prevista no artigo 15º F, n.º 3 da Lei n.º 6/2006, de 27/02, actualizada pela Lei n.º 31/2012, de 14.08.
No caso concreto a Ré, notificada para o efeito, não comprovou o pagamento da competente caução e veio defender estar isenta de o demonstrar, o que não conhece agasalho no quadro legal aplicável e não se autoriza deferir.
Como resulta do que se deixa expresso, a Ré mostrava-se obrigada (por opção legislativa expressa) a comprovar o pagamento de uma caução correspondente ao valor das rendas em dívida, a qual se destina a acautelar os interesses dos senhorios, sem que tal ónus acarrete a ofensa de quaisquer princípios constitucionais, designadamente do direito de defesa.
O que (mesmo convidada) não fez.
Nestas condições, indefere-se, por falta de fundamento legal, o requerido pela Ré e tem-se por não deduzida a oposição apresentada (cfr. artigo 15º F, n.º 6 da Lei n.º 6/2006, de 27/02, actualizada pela Lei n.º 31/2012, de 14.08).
(…)
III - Das rendas peticionadas
À obrigação dos Autores de assegurar à Ré o gozo do R/c A do prédio identificado na acção, contrapunha-se a desta de, pontualmente, entregar aqueles a renda devida (artigos 1031º al. b) e 1038º A) do Código Civil).
A Ré não pagou (por referência à propositura da acção) as rendas vencidas nos meses de Fevereiro de 2023 (relativa a Março), Junho de 2023 (relativa a Julho), Outubro de 2023 (relativa a Novembro), Novembro de 2023 (relativa a dezembro) e Dezembro de 2023 (relativa a Janeiro de 2024), à razão de 765,00 € (setecentos e cinquenta euros) mensais, no total de € 3.825,00 (três mil, oitocentos e vinte e cinco euros).
Assim, é incontroverso que são devidas as rendas reclamadas, vencidas, que até à propositura da acção se computavam no valor total de € 3.825,00 e ainda das que, entretanto, se venceram e vincendas até efectiva entrega do locado [cfr. contrato de arrendamento, artigo 59º n.º 1 do NRAU e artigos 1098º, n.º 1 e 405º e 406º do Código Civil].
*
IV – Decisão
Termos em que, atentas as considerações expendidas e as normas legais citadas, se decide:
a) Indeferir, por falta de fundamento, legal o requerido pela Ré quanto a estar isenta (que não está) de demonstrar o pagamento da caução devida.
b) Ter por não deduzida a oposição apresentada pela Ré.
c) Autorizar a entrada imediata no domicílio de FF sito na Rua (...) e a utilização dos meios adequados à efectivação do despejo.
d)    Ser a Ré responsável pelo pagamento das rendas reclamadas que até à propositura da acção se computavam no valor total de € 3.825,00 (três mil, oitocentos e vinte e cinco euros), das que, entretanto, se venceram e das vincendas até efectiva entrega do locado.»
*
Não se conformando com a decisão, dela apelou a  Ré, formulando, no final das suas alegações, as seguintes
CONCLUSÕES:
I- Vem o presente recurso interposto da aliás Douta Sentença proferida nos presentes autos a 21/06//2024, com a Referência: 436456533 e notificada a 24/06/2024, em todo o seu conteúdo e que deu como não aceite a oposição deduzida pela Ré e seus documentos, na data de 24/04/2024; bem como da data do Trânsito em Julgado, constante nos autos: 15 de Julho 2024, conforme consta no citius, com a referência n.º 437586286.
II-   Salvo o devido respeito, que é muito, a Recorrente/Ré, não se conforma com tal decisão, pois entende que houve uma errada avaliação existindo um manifesto erro na apreciação da prova e insuficiência para a decisão da matéria.
III-  Razão pela qual interpõe o presente Recurso.
- BB e DD iniciaram um procedimento especial de despejo no Balcão do Arrendatário e do Senhorio, relativo ao imóvel sito na Rua (...), contra, a Ré, ora Recorrente, FF, pedindo o pagamento da quantia total de €3850,50.
V-   Foi apresentada oposição, com documentos, na data de 24 de Abril de 2024, constante de fls. 75 e seguintes, com cópia de deferimento de apoio judiciário, nas modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e nomeação de patrono.
VI- Oposição essa que o Douto Tribunal a quo deu por não deduzida, por não ter sido apresentado comprovativo do pagamento da caução.
VII- Salvo o devido respeito, a Ré/Recorrente discorda por entender que o Tribunal a quo não considerou, por exemplo, o decidido no Douto Acórdão 21057/19.5T8LSB, de 01 de Julho de 2021, proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que decidiu que “O requerido que beneficie de apoio judiciário está, para o efeito de deduzir oposição ao procedimento especial de despejo, dispensado de prestar a caução a que se refere o n° 3 do art. 15°F do NRAU”.
VIII- Também não foi tido em consideração tudo o que se passou desde Novembro de 2021, devidamente relatado no requerimento da oposição, desde o arrendamento da casa, como por exemplo dois contratos diferentes: um apenas da casa em si (de 300,00€), mais um contrato de garagem, onde constam todos os eletrodomésticos e o mobiliário que estava absolutamente podre, no valor de 450,00€.
IX- Até 26 de Dezembro de 2023 só estava registado nas finanças o contrato de 300,00€. A Ré/Recorrente foi prejudicada em sede de IRS, desde Novembro de 2021
X- Durante os 12 meses de 2023, foi impedida de receber o apoio à renda, por estar apenas registado nas finanças um contrato de arrendamento, no valor de 300€ (deixou de receber 200€ X 12 meses).
XI- Ficou a Ré/Recorrente prejudicada, pois não foi possível declarar as despesas totais com o valor da renda pelos dois contratos, em sede de IRS, e também foi privada de ser ressarcida pela Autoridade Tributária, em IRS.
XII- O imóvel tinha uma máquina de lavar roupa avariada, frigorífico avariado, estores que caíram, torneira da banheira estragada, que a levou a gastar uma quantia avultada em contas de água.
XIII- A Ré ficou fechada no quarto, tendo que chamar os bombeiros, porque a fechadura da porta do quarto avariou.
XIV- Devidamente alertados para a existência de problemas com as torneiras do imóvel e com fechadura de um quarto e avaria do frigorífico, os Autores não solucionaram o problema, o que traduz um incumprimento do contrato de arrendamento por parte dos Autores/Recorridos.
XV- A Ré/Recorrente teve que suportar a suas custas e teve de chamar os bombeiros ao imóvel, pois ficou fechada no quarto, com a fechadura avariada.
XVI- Teve de comprar um novo frigorífico, com valor de 200,00 €.
XVII- A Ré comprou dois comandos novos para a garagem (40€ cada um), pediu que o valor fosse descontado na renda, nunca foi.
XVIII- A Ré/Recorrente está desempregada, e tem uma filha menor a seu cargo.
XIX- Foi importunada pelos senhorios com visitas de completos estranhos à casa, com a filha menor presente.
XX- Nada disto foi tido em consideração.
XXI- Pelo já exposto, entende a Ré /Recorrente não ser devedora da quantia pedida.
XXII- Antes do trânsito em Julgado, foram trocadas as fechaduras.
XXIII- Dia 12 de Julho/2024, foi afixado o aviso de despejo- Cf. doc. N.º 1 e doc. N.º 2.
XXIV- Andou mal a Douta Sentença de que agora se Recorre, pois, não pode ser exigido à Recorrente, com uma filha menor, que comprovadamente não tem condições económicas, que proceda ao depósito de uma caução, tendo em conta a sua carência económica.
XXV- Deveria a oposição e tudo o ali alegado ter sido como aceite.
XXVI- Deve a Ré ser absolvida do pagamento da quantia peticionada de 3825,00€ e de todas as rendas que se vençam e vincendas, atenta a efetivação do despejo.
Nestes termos e nos melhores de direito que Vossas Excelências mui doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado provado e procedente e em consequência ser a sentença recorrida integralmente revogada nos termos expressos nas alegações e conclusões que antecedem e, acolhendo as razões invocadas pela Ré/Recorrente, ser integralmente absolvida do pagamento da quantia de 3825,00 Euros, e de todas as rendas que se vençam e vincendas, com todas as legais consequência, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.»
Não se mostram juntas contra-alegações.
QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Artigos 635º, nº4, e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, v.g., abuso de direito.[2]
Nestes termos, as questões a decidir são as seguintes:
i. Se a ré/inquilina estava dispensada do pagamento da caução a que alude o Artigo 15º-F, nº5, do NRAU;
ii. Se ocorreu incumprimento do contrato de arrendamento pelos autores e se esse incumprimento justifica o não pagamento das rendas pela ré.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A matéria de facto relevante para a apreciação de mérito é a que consta do relatório, cujo teor se dá por reproduzido.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Se a ré/inquilina estava dispensada do pagamento da caução a que alude o Artigo 15º-F, nº5, do NRAU
Nos termos do Artigo 15º-F do NRAU:
1 - O requerido pode opor-se à pretensão de despejo no prazo de 15 dias a contar da sua notificação.
2 - A oposição é apresentada no BAS por via eletrónica.
3 - Com a oposição, o arrendatário identifica:
a) As pessoas a quem, nos termos da lei, o respetivo direito seja comunicável;
b) O respetivo regime de bens vigente, quando aplicável;
c) Outras pessoas que, licitamente, se encontrem a residir no locado;
d) Qualquer das situações que motivem a suspensão e ou diferimento da desocupação do locado nos termos do artigo 15.º-M; e
e) Se o locado corresponde à casa de morada de família.
4 - No prazo para a oposição, pode o requerido deduzir incidente de intervenção principal provocada, nos termos dos artigos 316.º a 320.º do Código de Processo Civil, verificados os respetivos pressupostos.
5 - Com a oposição, deve o requerido proceder à junção do documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida e, nos casos previstos nos n.os 3 e 4 do artigo 1083.º do Código Civil, ao pagamento de uma caução no valor das rendas, encargos ou despesas em atraso, até ao valor máximo correspondente a seis rendas, salvo nos casos de apoio judiciário, em que está isento, nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.
6 - Não se mostrando paga a taxa ou a caução previstas no número anterior, a oposição tem-se por não deduzida.
7 - A oposição tem-se igualmente por não deduzida quando o requerido não efetue o pagamento da taxa devida no prazo de cinco dias a contar da data da notificação da decisão definitiva de indeferimento do pedido de apoio judiciário, na modalidade de dispensa ou de pagamento faseado da taxa e dos demais encargos com o processo.
Por sua vez, o Artigo 13º da Portaria nº 49/2024, de 15.2, dispõe que:
1 - O pagamento da caução devida com a apresentação da oposição ao requerimento de despejo, nos termos do n.º 5 do artigo 15.º-F da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, na sua redação atual, é efetuado através dos meios eletrónicos de pagamento previstos no artigo 17.º da Portaria n.º 419-A/2009, de 17 de abril, na sua redação atual, após a emissão do respetivo documento único de cobrança.
2 - O documento comprovativo do pagamento referido no número anterior deve ser apresentado juntamente com a oposição, independentemente de ter sido concedido apoio judiciário ao arrendatário.
Anteriormente, o Artigo 10º da Portaria nº 9/2013, de 10.1. (revogada pela Portaria nº 49/2024) dispunha que:
1 - O pagamento da caução devida com a apresentação da oposição, nos termos do n.º 3 do artigo 15.º-F da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, é efetuado através dos meios eletrónicos de pagamento previstos no artigo 17.º da Portaria n.º 419-A/2009, de 17 de abril, após a emissão do respetivo documento único de cobrança.
2 - O documento comprovativo do pagamento referido no número anterior deve ser apresentado juntamente com a oposição, independentemente de ter sido concedido apoio judiciário ao arrendatário.
A interpretação conjugada do Artigo 15º-F e da Portaria (sendo que a atual não difere em essência da anterior) originou duas correntes jurisprudenciais.
Para uma primeira corrente, existe um contradição entre normas de diferente hierarquia, devendo prevalecer a norma de hierarquia superior, no caso a do NRAU pelo que, caso o inquilino beneficie de apoio judiciário, o mesmo está isento de prestar a caução a que alude o nº5 do Artigo 15º-F do NRAU.
Assim, nos termos do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.4.2015, Rosa Ribeiro Coelho, 1945/14:
I - A interpretação do nº 3 do art. 15º-F do NRAU, com recurso aos elementos gramatical e teleológico ou racional, leva-nos a concluir que, com ele, o legislador isentou o beneficiário de apoio judiciário da prestação de caução, em moldes a regulamentar por ulterior Portaria.
II – Já a Portaria nº 9/2013, de 10.01, que, segundo o dito preceito legal, deveria definir os termos dessa isenção, acabou por, contrariando aquela norma, exigir, no seu art. 10º, o pagamento da caução, independentemente de o arrendatário gozar daquele benefício.
III – Existe, pois, um conflito de normas de hierarquia diversa - uma de lei ordinária da assembleia da República e outra ínsita em Portaria que é regulamento de fonte governamental -, gerador do vício da ilegalidade e que se resolve fazendo preferir “a norma de fonte hierárquica superior (critério da superioridade: lex superior derogat legi inferiori”.
IV – Assim, beneficiando de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, o arrendatário está isento de demonstrar o pagamento da caução normalmente exigida como condição de admissibilidade da oposição ao pedido de despejo.
Mais recentemente, no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de  20.4.2021, Carlos Moreira, 233/20, a questão foi analisada nestes termos:
«Verifica-se, pois, que os segmentos normativos se apresentam, na parte sublinhada, total, inequívoca e inconciliavelmente, contraditórios.
Na verdade, a Lei isenta o beneficiário de apoio judiciário da caução.
Já a Portaria obriga este a satisfazer a caução, mesmo que lhe tenha sido concedido tal benefício.
E nem se diga, como defendeu o Sr. Juiz recorrido na decisão prévia à presente, que a Portaria operou uma interpretação do estatuído na lei 6/2006.
Primus, porque a letra daquela Lei não é duvidosa, antes sendo claramente inequívoca no sentido de isentar da caução o beneficiário do apoio judiciário.
Pelo que não pode ser aventada qualquer hipótese exegética que não tenha na letra da lei um respaldo ou um mínimo apoio verbal – artº 9º nº2 do CC.
Não há, pois, qualquer dúvida que exija esclarecimento através de uma interpretação.
Secundus, porque a interpretação  legal vinculativa é apenas a interpretação autêntica; e esta apenas pode ser operada por diploma com igual ou superior valor hierárquico, o que não é o caso.
Encontramo-nos, assim, perante uma antinomia real de normas.
Por outro lado, e no âmbito da pura  interpretação da lei.
Neste domínio, e considerando  a ratio legis e outros elementos da hermenêutica jurídica, como sejam o  lógico e teleológico, pode chegar-se à conclusão que uma norma encerra, em si mesma, ou por comparação com outras, uma contradição insanável e  conduz a um resultado não pretendido e que até pode apresentar-se, atentas as finalidades do sistema, como nocivo.
Neste caso pode o interprete operar uma interpretação  ab-rogante.
Na interpretação ab-rogante, o interprete: «após a busca do sentido possível conclui que há uma contradição insanável, donde não resulta nenhuma regra útil…por ter escapado ao legislador uma incongruência na regulamentação ou uma incompatibilidade (lógica: não pode ser assim, ou valorativa: não deve ser assim) entre vários textos, há, desde o início, uma falta de sentido… Verificados estes pressupostos o intérprete deve declarar a lei morta» - Oliveira Ascensão, in O Direito, Ed. Gulbenkian, 2ª ed. p. 373 e sgs. (…)
Retornando ao caso vertente reitera-se que a norma da Portaria contraria frontalmente a norma da Lei.
Por conseguinte, e por apelo à prioridade hierárquica desta norma, ela deve prevalecer.
Acresce que a isenção de prestação da caução ex vi de ter sido concedido ao inquilino o benefício do apoio judiciário, se apresenta, como se viu, uma pretensão assumidamente pretendida pela lei 6/2006.
E bem se compreende a sua ratio e finalidade.
Quanto aquela razão de ser, porque a concessão do apoio jurídico radica na falta ou míngua de meios económico financeiros; e não havendo que distinguir sobre as consequências deste défice económico, em função das finalidades a que se reporta: custas do processo ou pagamento de  renda.
Afinal estamos a falar de, e a tratar com,  pessoas e não apenas de números ou valores; e a pessoa com défice económico é a mesma: o opoente.
O direito e a sua interpretação não podem apenas ser perspetivados em termos meramente economicistas; urge, outrossim, apreciar e decidir com base num mínimo ético.
Se se conclui que o opoente não tem cabedal económico para pagar honorários a advogado e, inclusive, as custas dum processo público a entes públicos, mal se compreende que se lhe exija suportar uma caução para tutelar interesses meramente privados.
Nesta conformidade, e aqui já entramos no âmago daquele referido fito, há que convir que se tal penúria pecuniária existe, de tal sorte que lhe atribui jus a litigância gratuita e a pagamento de honorários a advogado, outrossim, logicamente, e ao menos, por igualdade de razão, ela deve valer  para  o eximir do pagamento da caução.
Até porque, se assim não fosse, o inquilino, por falta de meios, podia perder a ação e ser despejado ainda antes de se discutir a substancia da questão, dilucidação esta que, se se concretizasse, até lhe poderia dar-lhe ganho de causa e, assim, se obstaculizando ao despejo.»
Ainda dentro desta linha argumentativa, vejam-se os seguintes arestos: Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 10.2.2015, Isabel Fonseca, 1958/14, de 19.2.2015, Ezaguy Martins, 4118/14, de 26.4.2016, Cristina Coelho, 4024/15; Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 3.3.2016, Leonel Serôdio, 3055/15, de 5.6.2017, Maria José Simões, 2375/16, de 26.10.2017, Carlos Portela, 342/16, de 30.5.2018, Ana Paula Amorim, 2678/17, de 27.6.2018, Joaquim Gomes, 2719/17.
No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.4.2024, Lima Gonçalves, 1182/22, afirma-se que «E apenas fica sujeito à prestação da caução o inquilino que tenha capacidade económica, encontrando-se protegidos os casos de não prestação de caução por dificuldade económica. / Isto é, a compressão do direito de defesa do inquilino apenas contempla a prestação de caução num determinado valor (limite máximo de seis meses de renda) e sempre que os inquilinos estejam em condições económicas de a poderem prestar.»
Na doutrina, a mesma posição é sustentada em António Menezes Cordeiro (Coord.), Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, 2014, Almedina, p. 441.
Em sentido oposto, afirma-se que a concessão do apoio judiciário ao oponente arrendatário apenas o isenta do pagamento da taxa de justiça devida  e não também do depósito da caução legalmente estipulada, no valor das rendas, encargos ou despesas em atraso.
Os argumentos esgrimidos em abono desta tese são essencialmente os seguintes:
«Apesar de não ser muito feliz a redação conferida ao nº. 3, do artº. 15º-F, do NRAU (Lei nº. 6/2006, de 27/02, atualizada pela Lei nº. 31/2012, de 14/08), uma cuidada análise de tal normativo leva-nos necessariamente a concluir que o benefício do apoio judiciário aí enunciado só poderá referir-se à obrigação do pagamento de taxa de justiça, e não à obrigação de prestar caução pelo valor das rendas em atraso ;
Com efeito, por definição, o instituto do apoio judiciário tem por abrangência o pagamento de custas e encargos reportados a um processo judicial, não abarcando dívidas ou encargos de outra natureza, de que o seu beneficiário seja titular, mas apenas daqueles para que foi expressamente previsto na lei ;
A necessidade de prestação de caução para que a oposição deduzida pelo arrendatário possa ser considerada, de valor equivalente ao das rendas em atraso (com limite máximo de seis rendas), tem por desiderato garantir ao respetivo credor o direito ao pagamento das rendas em falta ;
Ora, o apoio judiciário não isenta o arrendatário do pagamento de rendas em dívida, pelo que, beneficiando de apoio judiciário, não faria sentido isentá-lo do pagamento da caução legalmente prevista ;
Tal interpretação, que já decorria da análise daquele nº. 3, do artº. 15º-F, do NRAU, veio a ser confirmada e esclarecida (que não contraditada) pelo nº. 2 do artº. 10º, da Portaria nº. 9/2013, de 10/01, ao referenciar expressamente que o “o documento comprovativo do pagamento referido no número anterior deve ser apresentado juntamente com a oposição, independentemente de ter sido concedido apoio judiciário ao arrendatário ;
Adrede, resulta claramente do estatuído no nº. 5, do mesmo artº. 15º-F, que a interpretação não pode ser outra, ou seja, que o citado nº. 3, do mesmo normativo não dispensa o beneficiário do apoio judiciário do pagamento da caução ;
Efetivamente, se assim fosse, não se entenderia como aquele nº. 5 veio referenciar que a oposição tem-se igualmente por não deduzida quando o requerido não efetue o pagamento da taxa devida no prazo de cinco dias a contar da data da notificação da decisão definitiva de indeferimento do pedido de apoio judiciário, na modalidade de dispensa ou de pagamento faseado da taxa e dos demais encargos com o processo ;
Pois, de acordo com tal entendimento, este normativo, após a prolação de decisão definitiva de indeferimento do pedido de apoio judiciário, teria que necessariamente prever o pagamento, por parte do requerido arrendatário, não só da taxa de justiça, mas ainda da caução ;
O que não foi previsto, num claro juízo de pressuposição de que a caução já havia sido liquidada ;
Por fim, num derradeiro argumento, parece evidente que a limitação da caução até ao valor máximo correspondente a seis rendas (e não da totalidade do valor das rendas reclamadas pelo requerente locador) terá tido por base a intenção do legislador em não limitar ou inviabilizar o direito de defesa dos arrendatários de menores recursos» (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.10.2023, Arlindo Crua, 1971/22).
Ainda neste sentido, cf.: Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 2.6.2016, Maria de Deus Correia, 1347/15 e de 17.12.20015, Jorge Leal, 274/15 (embora neste caso a ré fosse uma pessoa coletiva).
Na doutrina, Jorge Pinto Furtado, Comentário ao Regime do Arrendamento Urbano, 2ª Ed., Almedina, 2020, p. 872, subscreve a segunda orientação argumentando que:
«Na verdade, quando o preceito refere que deve proceder-se ao pagamento da caução, “salvo nos casos de apoio judiciário, em que está isento, nos termos a definir por portaria de membro do Governo responsável pela área da justiça”, este passo interpretado no seu todo, não determina que o requerido está, sem mais, isento de pagamento de caução, nos caos de apoio judiciário, mas unicamente, que o estará naqueles que venham a ser referidos por portaria.
Quer dizer, o texto, quando analisada a totalidade da sua expressão linguística não contém uma afirmação acabada, de isenção de pagamento de caução, em caso de apoio judiciário – mas, unicamente, uma delegação em portaria, a emitir, daquelas eventualidades em que a isenção venha a ser fixada.»
O Tribunal Constitucional no seu acórdão nº 779/2013, em que estava em causa o conflito de normas em causa então vigentes, considerou que «estando em causa um conflito entre duas normas de direito infraconstitucional, mormente a violação de uma lei por um ato regulamentar – como sucede in casu - existe um vício de ilegalidade, pelo que, não se reintegrando tais situações nos casos de ilegalidade por violação de lei com valor reforçado expressamente previstos na Constituição (cf. o artigo 280.º, n.º 2, alíneas a), b), c), e d), da CRP), não há que delas conhecer no quadro dos recursos de constitucionalidade interpostos ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC.»
Tomando posição nesta divergência jurisprudencial e doutrinária, entendemos que a posição correta é a enunciada pela primeira corrente, ou seja, o inquilino que beneficie de apoio judiciário está dispensado da prestação da caução de seis meses.
Discordamos da posição de Pinto Furtado porquanto as condições do exercício do direito de defesa em procedimento especial de despejo não podem ser “delegadas” em Portaria. Com efeito, o regime do arrendamento urbano constitui matéria de reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República (Artigo 165º, nº1, al. h), da Constituição) de modo que só pode ser regulado por Lei ou, havendo autorização legislativa, por Decreto-lei do Governo.
A competência regulamentar do Governo (Artigo 199º, al. c), da Constituição; normação secundária) não serve para inserir normação inovatória, de caráter interpretativo e integrativo, como é o caso porquanto, nos termos do nº2 do Artigo 13º da Portaria nº 49/2024, exige-se que o inquilino preste caução mesmo que lhe tenha sido deferido o benefício do apoio judiciário. Ou seja, a Portaria vem enunciar um regime que não só é inovatório face ao Artigo 15º-F, nº5, do NRAU como, sobretudo, o contraria porquanto do elemento literal deste preceito resulta que, caso o inquilino beneficie de apoio judiciário, está isento do pagamento da caução. Dito de outra forma, a Portaria poderia concretizar os termos em que opera a isenção mas não simplesmente negá-la em absoluto. Não ocorre regulamentação de uma isenção, mas apenas a rejeição desta.
Acresce que o segmento em causa do nº5 do Artigo 15º-F do NRAU, na parte final em que remete para Portaria, está a conferir a uma portaria o poder de  integrar o preceito em causa, em violação do disposto no nº5 do Artigo 112º da Constituição.
Em suma, o nº2 do Artigo 13º da Portaria nº 49/2024, de 15.2, padece de inconstitucionalidade orgânica (Artigo 165º, nº1, al. h) e nº2, da Constituição), razão pela qual se recusa a aplicação de tal norma (cf. Artigo 280º, nº1, al. a), da Constituição).
No que tange ao argumento sistemático, assente na coerência do regime designadamente atenta a redação do nº7 do Artigo 15º-F do NRAU, o mesmo improcede. Com efeito, constituiria uma contradição valorativa bem mais gravosa e  intolerável obrigar o inquilino (que beneficia de apoio judiciário) a pagar a caução de seis meses de renda. Tal equivaleria a considerar o inquilino pobre perante o Estado e abonado perante o inquilino, em benefício exclusivo deste.
Por todo o exposto, dever ser revogada a decisão impugnada no segmento em que considerou a oposição não deduzida com fundamento no não pagamento da caução.
Se ocorreu incumprimento do contrato de arrendamento pelos autores e se esse incumprimento justifica o não pagamento das rendas pela ré.
Na oposição, alegou a ré que o imóvel e o recheio  padecem de vícios: o frigorífico deixou de funcionar, sendo que a Ré comprou outro; a máquina de lavar roupa também deixou de funcionar, tendo a ré que lavar a roupa fora com encargos; a torneira da banheira deixou de funcionar; em virtude do mau funcionamento das portas do locado, a Ré ficou aí fechado e teve de chamar os bombeiros; os estores das janelas do quarto e da sala não funcionam; tudo redundando em que a requerida está impedida do gozo pleno da habitação e dos eletrodomésticos (artigos 21º a 31º da oposição).
No artigo 30º  da oposição, concluiu a ré que: «O que leva a que quer a habitação quer os respetivos móveis e eletrodomésticos padeçam de vícios múltiplos que impedem por parte da aqui Requerida o gozo pleno, como era devido, quer da habitação (estores das janelas e torneira da banheira), quer dos respetivos eletrodomésticos.»
Nas conclusões X e XI, sustenta a apelante que também foi impedida de receber o apoio da renda porque os senhorios demoraram a registar os contratos nas finanças. Trata-se de uma questão nova, que não foi alegada e discutida no tribunal a quo, razão pela qual não se conhece da mesma porquanto os recursos são de reponderação e não para apreciação de questões novas (cf. supra).
Nos termos do Artigo  1031º, al. b), do Código Civil, é obrigação do locador assegurar ao locatário o gozo da coisa para os fins a que se destina. Cabe ao senhorio executar todas as obras de conservação, ordinárias ou extraordinárias, requeridas pelas leis vigentes ou pelo fim do contrato, salvo estipulação em contrário (Artigo 1074º, nº1, do Código Civil). Obras de conservação «são aquelas que se destinam a manter o prédio ou fração arrendada no estado físico que apresentava aquando do arrendamento» (Jorge Pinto Furtado, Comentário ao Regime do Arrendamento Urbano, 2ª Ed., Almedina, 2020, p. 398). Obras urgentes são «aquelas que não permitem a utilização do locado, no todo ou em parte, se não forem executadas imediatamente» (António Agostinho Guedes e Júlio Vieira Gomes (Coords.), Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Contratos em Especial, UCP Editora, 2023, p. 406).
Atento este quadro legal, competia ao senhorio proceder às reparações do frigorífico, máquina de lavar roupa, torneira da banheira, portas e estores, repondo a fração no estado de funcionamento que estava aquando da locação (cf. também Artigo 1065º do Código Civil, sendo que a locação de móveis/acessórios do imóvel se sujeita ao regime de arrendamento para habitação).
Cabia à inquilina/apelante interpelar o senhorio para a realização das reparações/obras em causa, sendo que algumas obras (designadamente a reparação da torneira da banheira) podem ser qualificadas como urgentes na medida em que a sua não execução não permite a utilização de parte do locado.
Não tendo o senhorio realizado tais reparações/obras,  cabia à Ré duas vias de tutela jurídica da sua posição de arrendatária com carência de obras/reparações para fruição do locado: (i) ou arrogar-se o direito de reduzir a renda proporcionalmente ao tempo da privação ou à extensão desta (Artigo 1040º, nº1, do Código Civil) ou (ii) realizar ela própria as obras, desde que urgentes, podendo efetuar posteriormente a compensação do seu crédito pelas despesas com a realização das obras com a obrigação de pagamento da renda (Artigos 1074º, nº3, e 1036º do Código Civil).
O Artigo 1040º do Código Civil equivale a uma manifestação especial da exceção do contrato não cumprido, prevista nos artigos 428º a 431º do Código Civil – cf. Menezes Cordeiro (Coord.), Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, Almedina, 2014, p. 72.
Conforme refere Gravato Morais, Falta de Pagamento da Renda no Arrendamento Urbano, Almedina, p. 207:
«Repare-se que a falta de pagamento só pode ser total se o prédio não realiza cabalmente o fim a que é destinado, carecendo o mesmo das qualidades asseguradas no início do contrato.
Em todos os outros casos, a falta de pagamento da renda apenas pode ser parcial.»
Ora, a Ré não precisou qual destas vias elege nem na oposição nem sequer nas alegações de recurso. Limita-se a alegar os vícios e o que fez perante os mesmos, nada precisando quanto à tutela que pretende: diminuição proporcional do valor da renda ou compensação pelas despesas que teve com a realização de obras.
Vigorando o princípio do dispositivo, não pode este Tribunal da Relação substituir-se à parte na formulação de um pedido específico emergente dos vícios alegados e não supridos (cf. Artigos 615º, nº1, al. d) e 666º, nº1, do Código de Processo Civil ) para, depois, o apreciar.
Sem embargo, caso tivesse sido formulado tempestivamente um de tais pedidos, certo é que os autos teriam de prosseguir na primeira instância para julgamento e apreciação de tal factualidade controvertida (cf. Artigo 665º, nº2, in fine, e 15º-H nº4, da Lei nº 6/2006, de 27.2).
Termos em que improcede esta segunda questão suscitada na apelação.
Custas
No caso em apreço, a apelação deve ser julgada parcialmente procedente, sendo certo que os apelados não contra-alegaram.
Suscita-se, assim, a questão de saber como imputar as custas da apelação.
Ensina a este propósito Salvador da Costa, “Responsabilidade pelas custas no recurso julgado procedente sem contra-alegação do recorrido”, 18.6.2020, publicado no blog do IPPC:
«Na base da referida responsabilidade pelo pagamento das custas relativas às ações, aos incidentes e aos recursos está um de dois princípios, ou seja, o da causalidade e o do proveito, este a título meramente subsidiário, no caso de o primeiro se não conformar com a natureza das coisas.3
Grosso modo, a causalidade consubstancia-se na relação entre um acontecimento (causa) e um posterior acontecimento (efeito), em termos de este ser uma consequência daquele.
Considerando o disposto na primeira parte do n.º 1 deste artigo, o primeiro evento é determinado comportamento processual da parte e o último a sua responsabilização pelo pagamento das custas.
Nesta perspetiva, do referido princípio da causalidade emerge a solução legal de dever pagar as custas relativas às ações, aos incidentes e aos recursos a parte a cujo comportamento lato sensu o ajuizamento do litígio seja objetivamente imputável.
A dúvida revelada pela doutrina e pela jurisprudência ao longo do tempo sobre quem devia ser responsabilizado pelo pagamento das custas processuais com base no princípio da causalidade levou o legislador a intervir por via da inserção do normativo que atualmente consta do n.º 2 do artigo, em termos de presunção iuris et de iure, ou seja, de que se entende sempre dar causa às custas do processo a parte vencida na proporção em que o for.
Consequentemente, o referido nexo de causalidade tem como primeiro evento o decaimento nas ações, nos incidentes e nos recursos, e o último na responsabilização pelo pagamento das custas de quem decaiu, conforme o respetivo grau.
Assim, a parte vencida nas ações, nos incidentes e nos recursos é responsável pelo pagamento das custas, ainda que em relação a eles não tenha exercido o direito de contraditório, o que se conforme com o velho princípio que envolve esta matéria, ou seja, o da justiça gratuita para o vencedor.»
Reiterando tal entendimento, cf. artigo do mesmo autor, “Custas da apelação na proporção do decaimento a apurar a final”, publicando no mesmo blog em 31.10.2020.
Dentro desta mesma linha de raciocínio, é clarificadora a análise feita no AUJ nº 10/2015 nestes termos:
« (…) a sucumbência, como prejuízo causado pela decisão no processo ou recurso é independente e abstrai da posição (ativa ou passiva) da parte que o sofra e da respetiva atitude (intervindo ou não) no processo: o réu que não contesta e o recorrido que não contra-alega, se perderem ou forem condenados, também sucumbem…
E porque a sucumbência abstrai da posição (ativa ou passiva) da parte no processo ou recurso, é que ela deve ser perspetivada objetivamente como dano, prejuízo, perda ou resultado final desfavorável da decisão; sucumbe a parte cujos interesses sofram dano ou prejuízo por serem afetados desfavoravelmente pela decisão (seja porque lhe nega aquilo a que se arroga com direito, seja porque lhe impõe obrigações a que sustenta não estar vinculado).
A sucumbência afere -se, por conseguinte, pelo contraste entre, por um lado, o conteúdo da decisão e, por outro, os interesses da parte, ou seja, pelo reflexo negativo daquela nestes.»
«No âmbito de vigência do RCP deixou de ser fator de isenção subjetivo de custas do recurso o facto do apelado não ter contra-alegado» ( Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 18.1.2024, Moreira Dias, 2440/21).
No caso em apreço, a apelação procede em parte (quanto à admissibilidade da oposição), improcedente no mais, pelo que as custas deverão ser fixadas em 2/3 para a apelante e 1/3 para os apelados.

DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em:
a) julgar  parcialmente procedente a apelação, revogando-se a decisão impugnada no segmento em que não admitiu a oposição por falta de pagamento de caução, sendo admitida a oposição apresentada;
b) recusar a aplicação do disposto no nº 2 do Artigo 13º da Portaria nº 49/2024, de 15.2, com fundamento em  inconstitucionalidade orgânica desta norma;
c) julgar improcedente a apelação quanto ao pedido de absolvição do pagamento das rendas vencidas de € 3.825 e de todas as rendas que se vençam e vincendas.
Custas pela apelante e pelos apelados, na vertente de custas de parte, na proporção de 2/3 e 1/3, respetivamente (Artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº6 e 663º, nº2, do Código de Processo Civil).
Notifique o Ministério Público, nos termos e para os efeitos do Artigo 72º, nº3, da Lei nº 28/82, de 15.11.

Lisboa, 24.9.2024
Luís Filipe Sousa
José Capacete
Augusta Ferreira Palma
_______________________________________________________
[1] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª ed., 2022, p. 186.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., pp. 139-140.
Neste sentido, cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13, de 10.12.2015, Melo Lima, 677/12, de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, de 17.11.2016, Ana Luísa Geraldes, 861/13, de 22.2.2017, Ribeiro Cardoso, 1519/15, de 25.10.2018, Hélder Almeida, 3788/14, de 18.3.2021, Oliveira Abreu, 214/18, de 15.12.2022, Graça Trigo, 125/20, de 11.5.2023, Oliveira Abreu, 26881/15, de 25.5.2023, Sousa Pinto, 1864/21, de 11.7.2023, Jorge  Leal, 331/21, de 11.6.2024, Leonel Serôdio, 7778/21. O tribunal de recurso não pode conhecer de questões novas sob pena de violação do contraditório e do direito de defesa da parte contrária (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2014, Fonseca Ramos, 971/12).