EXECUÇÃO
AVAL
LIVRANÇA EM BRANCO
PREENCHIMENTO DA LIVRANÇA
COMUNICAÇÃO
CONTRATO DE MÚTUO
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
Sumário

I – É à sociedade embargante que incumbe o ónus da prova de factos concretos que, nos termos do art. 6.º n.º1 e 3 do Código das Sociedades Comerciais, sejam susceptíveis de gerar a nulidade do aval prestado na livrança apresentada como título executivo.
II – Encontrando-se subjacente à livrança a celebração de um contrato de mútuo, relativamente ao qual foi convencionada a restituição do capital mutuado em prestações mensais de capital e juros, é aplicável a cada uma dessas prestações o prazo de prescrição de cinco anos, contados da data do respectivo vencimento.
III – A falta de apresentação de uma livrança a pagamento ao avalista não lhe retira a exequibilidade.
IV – No entanto, decorre do princípio da boa fé ínsito no art. 762.º n.º2 do Código Civil que, tratando-se de livrança em branco, mesmo que o avalista não seja parte no contrato subjacente, nem no acordo de preenchimento, aquele que preenche o título deve avisá-lo da ocorrência de tal preenchimento, comunicando-lhe atempadamente os respectivos elementos.

Texto Integral

Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO:
G… intentou acção executiva, com processo ordinário, para pagamento de quantia certa, contra B…, L.da, C…, D…, E…, S.A., e F…, S.A., pretendendo a cobrança coerciva de € 45.144,69, acrescidos de juros vincendos. Apresentou, como título executivo, uma livrança[1], na qual constam:
a) Como beneficiário, o Banco X…;
b) Como subscritora, a executada B…, L.da;
c) Como avalistas da subscritora, os restantes executados.
Alegou a exequente, no requerimento executivo, ter adquirido, por cessão, o crédito subjacente à livrança.
Por apenso àqueles autos, veio a executada F…, S.A., deduzir oposição à execução, mediante embargos. Alega que a execução deve ser declarada extinta, quer face à sua incapacidade, enquanto sociedade comercial, para garantir dívidas de terceiros, quer porque a dívida exequenda se encontra prescrita, dado que a livrança foi preenchida mais de três anos após a data do incumprimento do contrato que lhe subjaz, além de que já decorreram mais de cinco anos sobre o vencimento das prestações decorrentes do contrato e respectivos juros de mora. Por outro lado, pretende que nunca foi interpelada para o cumprimento de qualquer obrigação decorrente daquele contrato, nem foi informada de que a livrança havia sido preenchida e se encontrava a pagamento.
A embargada contestou, pugnando pela total improcedência das excepções suscitadas e, consequentemente, da oposição deduzida.
Realizou-se audiência prévia, no decurso da qual o processo foi tabelarmente saneado, após o que foi indicado o objecto do litígio [«Da extinção da execução por falta de capacidade da embargante para a prestação da garantia, prescrição da livrança, falta de interpelação, prescrição das quotizações de capital e prescrição dos juros de mora»] e foram enunciados os temas da prova [«constituem temas de prova toda a factualidade referente:1. À invalidade da garantia; 2. À interpelação da embargante»].
Procedeu-se à audiência final, tendo então sido proferida sentença, que julgou os embargos improcedentes.
Não se conformando com tal decisão, dela recorreu a embargante, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões:
« A. O Apelante não se conforma com a douta sentença proferida por entender sumariamente que existe incapacidade da executada e prescrição cambiária, tendo as livranças sido preenchidas mais de três após a data do incumprimento dos respetivos contratos, que existiu ausência de interpelação da executada, bem como que existe prescrição de quotização do capital e de juros de mora.
B. Como resulta do facto provado nº3 a mutuária do contrato de empréstimo é a sociedade B…, Lda, à qual foi mutuada a importância de Eur.120.000,00 (cento e vinte mil euros) a reembolsar em 36 (trinta e seis) prestações mensais de capital e juros, vencendo-se a primeira no dia no primeiro mês após a data da celebração do contrato, ou seja, no dia 24 de Maio de 2012.
C. A Executada nunca foi sócia da sociedade mutuária, nem existe qualquer relação de grupo, que era do conhecimento do Banco X…, uma vez que foi-lhe disponibilizada a certidão do registo comercial da sociedade B…, Lda.
D. A concessão de qualquer garantia à sociedade B…, Lda não foi aprovada pelo Conselho de Administração da Executada, nem pela Assembleia Geral pelo que nenhum documento foi disponibilizado ao Banco X… que permitisse atestar que a concessão da garantia tivesse sido aprovada por qualquer órgão social da Executada.
E. A Executada não teve qualquer interesse próprio na prestação da garantia, como decorre do n.º 1 do artigo 6.º, n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais, sendo lucrativo o fim das sociedades comerciais determina que se considera contrária ao fim da sociedade, a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo, razão pela qual deve a mesma ser declarada nula.
F. Por outro lado, a Executada entende que houve prescrição da obrigação cambiária e ausência de interpelação, porquanto a data de incumprimento do contrato referido no facto provado nº3 foi a 24/07/2014.
Como resulta do facto provado nº 26 a executada foi citada para os termos da ação executiva a 24/01/2022, sendo que, aparentemente, porquanto não existe nenhum facto provado a este respeito, só em 17 de Maio de 2019 é que a livrança dada à execução foi preenchida e, em particular, foi preenchida a data do seu vencimento, sendo que, como decorre do contrato de financiamento que o reembolso ocorreria no dia 24 de Abril de 2015.
G. Ora, a livrança em causa foi preenchida decorridos mais de 3 (três) anos da data em que o mutuante considera que foi incumprido o contrato de empréstimo ou, mesmo, da data prevista para o seu reembolso, pelo que, ao ter preenchido a livrança após o prazo de 3 (três) anos e ao ter indicado uma data de vencimento posterior, a Exequente “incorre em preenchimento abusivo e culposo nos termos do art. 10.º da LU e, por referência à data de vencimento correcta, o direito cambiário deve considerar-se prescrito”.
H. Não obstante como resulta do facto provado nº14 e 15 a embargada terá remetido uma carta em 9/5/2019, já após a cessão de créditos tendo sido devolvida com a menção “objeto não reclamado”, tendo tal carta sido enviada por uma sociedade de advogados e não pelo Banco X… ou pela Embargada!
I. Dos factos provados resulta que sempre se refira que a Executada não foi informada de que a livrança em branco dada à execução ia ser preenchida, nem foi informada que a livrança em branco tinha sido preenchida com o montante alegadamente em dívida e a data do vencimento e nem que se encontrava a pagamento.
J. A Executada não pode aceitar, que uma alegada carta enviada por uma sociedade de advogados sirva para provar o cumprimento desta obrigação por parte da Embargada, note-se que até a referida carta faz menção a um contrato de cessão, mas nunca tal cessão tinha sido informado á Executada ou aos avalistas!
K. Ora, a apresentação a pagamento e a sua recusa são absolutamente essenciais para que a obrigação do avalista se constitua na sua plenitude, com efeito, a Exequente não alegou nem demonstrou que tenha interpelado a Executada do preenchimento da livrança em branco.
L. A obrigação da Executada não se encontra constituída, e como tal, não deve ser admissível a cobrança coerciva de uma obrigação que não se encontra constituída, e por esta razão, a presente execução deve ser declarada extinta.
M. Sem prescindir, a Executada entende que o tribunal “a quo” não tem razão no seu entendimento, pelo que não pode deixar de manter a invocação da prescrição do crédito da Exequente, ora, de harmonia com o disposto no artigo 310º, al. e) do Código Civil, prescrevem no prazo de cinco anos as quotas de amortização do capital, pagáveis com juro.
N. No caso concreto o reembolso seria gradual e periódico de prestações de capital, sendo certo que cada prestação é composta por uma parcela de capital e outra de juros, pelo que é inequívoco que é aplicável a al. e) do artigo 310.º do Código Civil.
O. No caso concreto e conforme facto provado nº 3, as prestações devidas pela sociedade B… ao Banco X… eram prestações mensais de capital e juros, tendo a mutuária deixado de cumprir as suas obrigações em 24 de Julho de 2014, não tendo pago as prestações mensais subsequentes até ao termo do prazo previsto para o reembolso, mas a Executada contudo só foi citada para a acção executiva em 24 de Janeiro de 2022.
P. Assim, decorreram mais de 5 (cinco) anos entre o não pagamento de cada umadas prestações que se venceram desde o dia 24 de Julho de 2014 até ao dia 24 de Abril de 2015 e a citação para a acção executiva.
Q. Assim sendo a Executada não pode deixar de invocar a prescrição e, consequentemente, que sejam declarados prescritos “as quotizações de capital, pagáveis com juro”.
R. Caso se entenda que a autonomia do crédito de juros em relação ao crédito de capital e, como tal, a extinção do capital por prescrição não tem efeito no crédito de juros, então, este crédito também se extinguiu por prescrição.
S. Então importa salientar que o já citado artigo 310.º do Código Civil prevê que prescrevem também no prazo de 5 (cinco) anos os juros convencionais.
T. Reitere-se que a sociedade B… terá deixado de cumprir as suas obrigações a partir 24 de Julho de 2014, sendo que a última prestação vencer-se-ia no dia 24 de Abril de 2015.
U. Mas a Executada apenas foi citada para a acção executiva em 24 de Janeiro de 2022, ou seja, decorreram mais de 5 (cinco) anos entre o alegado incumprimento e a citação para a ação executiva.
V. Assim sendo a Executada mantém a invocação da prescrição e, consequentemente, que sejam declarados prescritos os juros de mora reclamados pelo Exequente que se venceram ao longo de 5 (cinco) anos até à recente interrupção da prescrição.
E bem mal andou o Tribunal “a quo” na presente decisão
Termos em que face ao exposto, deverá ser a douta sentença revogada, substituindo-se por outra que considere totalmente procedente a presente oposição á execução, julgando-se assim procedente o recurso interposto, porque se assim fizerem, farão V. Exas. Meritíssimos Desembargadores a justa e sã JUSTIÇA!».
Não houve contra-alegações.
QUESTÕES A DECIDIR
Conforme resulta dos arts. 635.º n.º4 e 639.º n.º1 do Código de Processo Civil, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, as quais desempenham um papel análogo ao da causa de pedir e do pedido na petição inicial. Ou seja, este Tribunal apenas poderá conhecer da pretensão e das questões formuladas pela recorrente nas conclusões, sem prejuízo da livre qualificação jurídica dos factos ou da apreciação das questões de conhecimento oficioso (garantido que seja o contraditório e desde que o processo contenha os elementos a tanto necessários – arts. 3.º n.º3 e 5.º n.º3 do Código de Processo Civil). Note-se que «as questões que integram o objecto do recurso e que devem ser objecto de apreciação por parte do tribunal ad quem não se confundem com meras considerações, argumentos, motivos ou juízos de valor. Ao tribunal ad quem cumpre apreciar as questões suscitadas, sob pena de omissão de pronúncia, mas não tem o dever de responder, ponto por ponto a cada argumento que seja apresentado para sua sustentação. Argumentos não são questões e é a estes que essencialmente se deve dirigir a actividade judicativa». Por outro lado, não pode o tribunal de recurso conhecer de questões novas que sejam suscitadas apenas nas alegações / conclusões do recurso – estas apenas podem incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, salvo os já referidos casos de questões de conhecimento oficioso [cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 2022 – 7ª ed., págs. 134 a 142].
São, assim, as seguintes as questões que cumpre apreciar:
- A incapacidade da embargante para prestação do aval e respectivas consequências;
- A vinculação da embargante mediante a prestação do aval;
- A prescrição do crédito exequendo relativo a capital e juros;
- A falta de interpelação da embargante para o cumprimento do contrato e respectivas consequências;
- A falta de interpelação da embargante para pagamento da livrança e respectivas consequências.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A decisão sob recurso considerou como provados os seguintes factos:
«1. No dia 07/06/2019, a G… instaurou execução, para pagamento de quantia certa, com forma de processo ordinário, contra B… Lda., C…, D…, E… S.A. e F… S.A. apresentando como título executivo uma livrança, emitida a 24/04/2012, com vencimento a 17/05/2019, no valor de € 45.088,98, subscrita pela sociedade B… Lda. e avalizada por E… S.A., pela embargante F… S.A., por B… e por C….
2. Consta do requerimento executivo, designadamente, o seguinte:

3. Mediante Contrato de Empréstimo celebrado em 24/04/2012, com o n.º …., o BANCO X…, S.A. disponibilizou à B… Lda. o montante de € 120.000,00 (cento e vinte mil euros), a reembolsar por esta sociedade àquele banco em 36 prestações mensais, de capital e juros, a primeira com vencimento no primeiro mês após a data de celebração do contrato.
4. A livrança dada à execução foi entregue para garantia do contrato referido em 3.
5. Consta do contrato referido em 3., designadamente, o seguinte:


6. O executado C… é gerente da mutuária B… Lda. e presidente do Conselho de Administração da embargante e da sociedade E…, S.A.
7. A sociedade E… S.A. é titular de quota na sociedade mutuária B… Lda.
8. No contrato referido em 3. a sociedade mutuária e as sociedades avalistas foram representadas por C… e D…, que também se constituíram avalistas.
9. A data de incumprimento do contrato referido em 3. foi a 24/07/2014.
10. A embargante apresentou-se a Processo Especial de Revitalização, em 22/06/2017, cujo processo correu termos sob o n.º …T8VFX, Juízo de Comércio de Vila Franca de Xira - Juiz 4, o qual foi encerrado sem aprovação de plano de recuperação.
11. Consta da petição inicial do processo referido em 10., designadamente, o seguinte:

12. Por escritura pública outorgada no dia 27/12/2017, o Banco X… S.A. foi objeto de fusão por incorporação, com transmissão integral de património, no Banco Y…, S.A.
13. Mediante Contrato de Cessão de Créditos celebrado em 15/06/2018, o Banco Y… S.A. cedeu à G… o crédito antes detido pelo Banco X… S.A. sobre os executados.
14. Em 09/05/2019, a embargada remeteu à embargante carta registada com aviso de receção, para a sede da embargante, a comunicar a resolução do contrato, o preenchimento da livrança e respetiva data de vencimento.
15. A carta referida em 14. foi devolvida com a menção “Objeto não reclamado”.
16. A 11/12/2019, a exequente/embargada juntou aos auto de execução requerimento do seguinte teor:

17. A 16/12/2019 foi proferido o primeiro despacho na execução, mediante o qual foi ordenada a citação dos executados.
18. A 04/01/2020 foi remetida carta para citação da embargante, a qual foi devolvida com a menção “Objeto não reclamado”.
19. A 21/01/2020 foi remetida novamente carta para citação da embargante, a qual foi devolvida com a menção “Não haver recetáculo” e “Recetáculo avariado”.
20. A 02/02/2020 frustrou-se a citação da embargante por contacto pessoal do Agente de Execução.
21. A 12/04/2021 foi determinada a citação das executadas pessoas coletivas na pessoa dos seus legais representantes.
22. A 17/05/2021 foi remetida carta para citação ao executado C…, na qualidade de legal representante da embargante, a qual foi devolvida com a menção “Objeto não reclamado”.
23. A 17/06/2021 e a 23/08/2021 foram novamente remetidas carta para citação da embargante na pessoa do seu legal representante, o executado C….
24. A 15/07/2021 frustrou-se nova diligência de citação da embargante por contacto pessoal do Agente de Execução.
25. A 19/01/2022 foi novamente remetida carta para citação da embargante.
26. A executada foi citada para os termos da ação executiva a 24/01/2022».
Por outro lado, a decisão recorrida considerou não provados os seguintes factos:
«a) Não existe qualquer relação de grupo entre a embargante e a mutuária, o que era do conhecimento do Banco X….
b) A concessão de garantia à sociedade B…, Lda. não foi aprovada pelo Conselho de Administração da embargante, nem pela Assembleia Geral.
c) A embargante não teve qualquer interesse na celebração do contrato de financiamento à sociedade B…, Lda. ou na prestação da garantia, nem usufruiu do valor financiado».
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
A presente oposição tem por fim obstar à prossecução da acção executiva intentada pela exequente, que ali apresentou uma livrança, na qual figura como beneficiário o BPP, como subscritora a executada B…, L.da, e, como avalista da subscritora, a aqui embargante / recorrente.
De acordo com o art. 10.º n.º5 do C.P.C., toda a execução tem por base um título. O documento exequendo é um título extrajudicial, a que é conferida exequibilidade por virtude do art. 703.º n.º1 c), do mesmo diploma.
Segundo o disposto no art. 731.º, também do C.P.C., «não se baseando a execução em sentença (…) além dos fundamentos de oposição especificados no artigo 729.º, na parte em que sejam aplicáveis, podem ser alegados quaisquer outros que possam ser invocados como defesa no processo de declaração».
No caso dos autos, a exequente é portadora de uma livrança da qual é beneficiário o Banco X…. No entanto, conforme resulta dos factos provados, a exequente veio a adquirir, mediante celebração de contrato de cessão de créditos, o crédito subjacente àquela livrança, sendo certo que, conforme resulta dos arts. 577.º, 578.º e art. 582.º n.º1 do Código Civil, a cessão do crédito importa a transmissão, para o cessionário, das garantias e outros acessórios do direito transmitido.
Assim, por essa via, é a exequente legítima portadora da livrança subscrita e avalizada em garantia das obrigações emergentes do contrato cujos créditos foram cedidos[2].
Deste modo, e tendo também em consideração o teor do art. 342.º n.º1 e 2 do Código Civil, constando da livrança dos autos, como beneficiária (por via da cessão), a exequente, e, como avalista da subscritora, a embargante, incorpora aquele documento, enquanto título de crédito, um direito da exequente a receber a quantia aí inscrita (cfr. arts. 78.º, 28.º e 32.º da LULL), pelo que, para obstar à sua exequibilidade, a ora recorrente teria de alegar e provar factos impeditivos, modificativos ou extintivos da sua responsabilidade pelo pagamento do respectivo montante (art. 342.º n.º2 do Código Civil).
Com efeito, como título de crédito que é, a livrança encontra-se sujeita a uma disciplina jurídica especial, sintetizada nos princípios da incorporação (a obrigação acha-se incorporada no próprio título), da literalidade (a obrigação é a que constar objectivamente do título), da abstracção (a obrigação resultante do título é independente da relação que lhe está subjacente, ou seja, da causa debendi), da independência recíproca (a nulidade de uma das obrigações que o título incorpora não se comunica às demais) e da autonomia (as excepções decorrentes das convenções extra-cartulares e as excepções causais são inoponíveis ao portador mediato, além de que o direito do portador sobre o título é autónomo em relação ao direito dos portadores anteriores)[3]. Em consonância, e sendo certo que, como resulta da matéria provada, a livrança foi subscrita e avalizada em branco e a embargante / avalista foi parte no pacto de preenchimento da livrança, pelo que nos encontramos no domínio das relações imediatas, cabe à ora recorrente, como se disse, provar a ocorrência de factos excepcionais relativamente à sua responsabilidade incorporada no título.
A este respeito, vem a embargante, antes de mais, referir que a prestação de aval por uma sociedade comercial é acto proibido por lei.
Nesta matéria, rege o art. 6.º do Código das Sociedades Comerciais.
Prevê esta norma, no seu n.º1 (em consonância com o art. 160.º do Código Civil), que «a capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, exceptuados aqueles que lhe sejam vedados por lei ou sejam inseparáveis da personalidade singular» e, no seu n.º3, que «considera-se contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo».
Por outro lado, de acordo com o n.º4, do mesmo art. 6.º, «as cláusulas contratuais e as deliberações sociais que fixem à sociedade determinado objecto ou proíbam a prática de certos actos não limitam a capacidade da sociedade, mas constituem os órgãos da sociedade no dever de não excederem esse objecto ou de não praticarem esses actos».
Como se refere no Ac. RC de 16/12/2003[4], o art. 6.º n.º1 e 3 do Código das Sociedades Comerciais encontra-se directamente relacionado com o fim da sociedade (obtenção de lucros, conforme disposto no art. 980.º do Código Civil). A capacidade jurídica referida naquele art. 6.º n.º1 é a prevista no art. 67.º do Código Civil, ou seja, a susceptibilidade de ser sujeito de direitos e obrigações. A sua falta integra uma proibição absoluta de realizar determinada categoria de negócios, sob pena de nulidade – arts. 280.º n.º1 e 294.º do Código Civil.
Já o citado art. 6.º n.º4 do Código das Sociedades Comerciais tem a ver com o objecto da sociedade (prática de actos de comércio, conforme disposto no art. 1.º n.º2, do mesmo diploma).
Assim (e citando o mesmo acórdão), «a questão da vinculação da sociedade coloca-se em momento posterior ao da capacidade. Sem que a sociedade tenha capacidade para praticar determinado acto, não fará sentido levantar o problema do alcance da vinculação, não se podendo validar um acto nulo só porque foi praticado por um órgão capaz de vincular a sociedade».
Deste modo, perante determinado acto praticado por uma sociedade, impõe-se primeiro verificar se havia capacidade de gozo. Em caso negativo, o acto será nulo. Em caso afirmativo, passar-se-á à questão de aferir se o mesmo acto vinculou a sociedade.
Na situação sub judice, a embargante consta como avalista da subscritora de uma livrança, a qual foi entregue ao respectivo beneficiário como garantia de um contrato de mútuo em que é mutuante o beneficiário do título e é mutuária a respectiva subscritora. A ora embargante não é parte nesse contrato (não figura aí como mutuante, nem como mutuária, nem como fiadora), mas subscreveu-o, na qualidade de avalista da livrança entregue em garantia, declarando ter conhecimento da natureza e características da operação de crédito e das implicações do aval, dando acordo ao conteúdo do contrato (incluindo, portanto, o pacto de preenchimento da livrança) e declarando, ainda, que a prestação do aval «não contraria o disposto no artigo 6.º n.º3 do Código das Sociedades Comerciais».
Verificamos, assim, que, não sendo a embargante parte no contrato de mútuo, o aval prestado constituiu uma assunção de uma dívida de terceiro. Estamos perante uma co-assunção ou assunção cumulativa de dívida, juntando-se uma nova devedora à antiga (art. 595.º n.º2 do Código Civil; cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 4ª ed., págs. 349-350).
Acontece que, como resulta do citado art. 6.º n.º3 do Código das Sociedades Comerciais, a prestação de garantias pessoais a dívidas de outras entidades considera-se contrária ao fim da sociedade. No entanto, «a propósito do caso específico das garantias prestadas por sociedades a favor de terceiros, o nosso ordenamento jurídico não vislumbra uma proibição absoluta da prestação dessas mesmas garantias. Em bom rigor, esta norma não impede, sempre e em qualquer circunstância, a prestação de garantias, por sociedades, a favor de outras sociedades comerciais. Pelo contrário, o legislador português contemplou (…) duas excepções à regra fundada no princípio da especialidade, nas quais as prestações de garantias deixam de ser consideradas contrárias ao fim mediato das sociedades e por sua vez entendidas como actos plenamente válidos, nomeadamente:
a) Existindo justificado interesse próprio da sociedade garante; ou
b) Tratando-se de uma situação de domínio, ou de grupo.
(…)
No mesmo sentido, (…) é possível delimitar garantias subsumíveis a uma classe de negócios jurídicos que não violam as regras do disposto no artigo 6.º n.º 3, especificamente a prestação de garantias a título oneroso, estas consideram-se fora do escopo do estabelecido n.º 3 do artigo 6.º, do Código societário.
Em boa verdade, têm sido consagradas muitas mais excepções para além daquelas que se encontram elencadas no preceito, o que por si só acaba por colocar em causa a própria regra geral. Por um lado, tem a doutrina entendido que o justificado interesse próprio da sociedade (…)  não tem de ser directo. E por outro, no que respeita à existência de uma relação de grupo ou de domínio, o actual entendimento vai no sentido de alargar esta circunstância, também, a grupos de facto. Mais se refere, que a proibição das garantias e invalidade nos casos em que estas tenham sido prestadas tem sido analisada na óptica da proteção dos terceiros de boa-fé. Em suma, a lei consagra uma delimitação da capacidade das sociedades comerciais, salvaguardando fora desse mesmo regime um conjunto considerável de circunstâncias, diminuindo o escopo da proibição. Por esta razão se admite que, qualquer discussão que surja em torno da norma do artigo 6.º, n.º 3 acaba por ganhar maior relevância no plano teórico do que no prático[5]».
 Relativamente ao conceito de «justificado interesse próprio da sociedade garante», no nosso ordenamento jurídico, tal conceito «não se encontra positivado em qualquer parte. De igual forma se desconhecem quaisquer elementos que nos permitam aferir uma definição exacta e concreta daquilo que nele se compreende, dando origem a uma lacuna legislativa. Errado não será afirmar que, no que concerne à aplicação do Justificado interesse próprio, o mesmo deve ser analisado e ponderado casuisticamente, para que seja possível aferir, de forma concreta e prática, o interesse da sociedade garante na prestação dessa mesma garantia, podendo aí concluir-se ou não pela sua validade. No entanto, acreditamos que a determinação desse interesse deverá ter em linha de conta a realidade concreta da empresa, os interesses que a movem, e, naturalmente, não bastará que seja alegado um justificado interesse próprio para que se possa enquadrar a situação no âmbito da capacidade da sociedade comercial. Neste sentido se pronuncia Pinto Furtado, ao escrever que “É certo que não basta a simples declaração de semelhante interesse pelo órgão executivo, mas o qualificativo pode compreender dentro de si justificações desde como serem essenciais à realização lucrativa de certa operação até à necessidade de conservar um bom cliente.” (…) Ao abordar a presente temática, consideramos imperativo referir o estudo desenvolvido por JÚLIO PINHEIRO, o qual versa sobre quatro vértices que, na sua opinião, devem estar preenchidos por forma a que estejamos perante um “justificado interesse”: a Economicidade, a Objectividade, a Tempestividade e, por fim, a Proporcionalidade. No que tange à Economicidade, este vértice encontrar-se-á preenchido quando o contexto económico-financeiro assim o justificar, isto é, estando em vista uma vantagem económica na prestação da garantia, uma vez que a sociedade garante, ao prestar a mesma, coloca-se numa posição mais fragilizada, abrindo a sua esfera patrimonial em detrimento de uma obrigação de um terceiro, uma vez que a mesma garantia pode vir a ser accionada. OSÓRIO DE CASTRO esclarece ainda que “o justificado interesse próprio é qualquer interesse económico e não necessariamente um interesse que esteja em consonância com o objecto social”. Para este autor, o objecto social da sociedade garante não deve ser uma limitação que se sobreponha ao interesse económico na prossecução da mesma. Ainda neste sentido aponta JOÃO LABAREDA que o acto de prestação de garantia, inserido na actividade social “dá para a consecução do fim societário, permitindo algum ganho, ainda que indirecto, ou obstando a alguma perda razoavelmente estimável, mesmo quando, por circunstâncias aleatórias, acaba por se revelar ruinoso.” Ainda no que tange à temática da economicidade, ensina JANUÁRIO DA COSTA GOMES que “A prestação da garantia deverá enquadrar-se numa estratégia ou num processo tendente à prossecução do fim, ainda que os frutos da prestação de garantia não tenham imediata tradução no património social.” Destarte, atendendo ao facto de as sociedades comerciais terem como fim mediato o lucro, torna-se imperativo traduzir o justificado interesse, quer seja a curto, médio ou longo prazo, na esfera patrimonial e na contabilidade da sociedade garante. Um outro vértice consagrado é a Objectividade, nos termos do qual se deve atender aos critérios de diligência impostos a um gestor criterioso e ordenado, nos termos e para efeitos do artigo 64.º do CSC. Para cumprimento destes deveres, a que se encontram vinculados, devem os órgãos de administração e de fiscalização, aquando da efectiva prestação da garantia, justificar essa concessão, com vista ao preenchimento do requisito da Objetividade. O terceiro vértice assenta na questão da Tempestividade, uma vez que é necessário posicionarmo-nos no tempo e quanto às circunstâncias sobre os quais a decisão de prestação foi formada, e, consequentemente, indagar, com base nos deveres impostos pelo artigo 64.º do CSC, se um gestor diligente e criterioso, na posse da informação disponível à data da decisão, consideraria a mesma oportuna e vantajosa para a sociedade garante, por forma a concluir-se se existia um justificado interesse. Assim, ainda que a dita prestação de garantia se venha a traduzir num prejuízo ou numa vantagem diminuta, a mesma não constitui um acto nulo, atendendo a que a capacidade de prestar a garantia, como foi referido anteriormente, é aferida à data da sua prestação mediante as informações e circunstâncias que os administradores/gerentes disponham. Por último, na percepção daquele Autor, temos de considerar o vértice da Proporcionalidade. Neste sentido, é fundamental a existência de uma ponderação no que tange à adequação entre a garantia a prestar versus a responsabilidade inerente assumida pela sociedade garante. Errado não será afirmar que nos encontramos perante um justificado interesse sempre que a garantia a prestar não seja excessiva face à responsabilidade que visa garantir. (…)
Não obstante, a análise dos quatro vértices (…) tem vindo a ser suplantada por uma vertente mais prática, a questão da possível confundibilidade entre o (presumível) justificado interesse dos sócios da sociedade garante e o possível interesse justificado da própria sociedade garante. (…) Neste sentido, JOÃO LABAREDA defende – e nós acompanhamos este seu pensamento – que a vantagem na prestação da garantia é, imperativamente, apenas e tão só quanto à sociedade que a presta, e não quanto aos seus sócios ou membros dos órgãos sociais, não podendo existir uma confundibilidade dos interesses, uma vez que é necessário garantir a autonomia da sociedade em relação aos seus órgãos de representação e respetivos sócios, atendendo a que os mesmos são detentores de esferas jurídicas e patrimoniais distintas, não devendo existir uma confundibilidade no que tange aos verdadeiros interesses da sociedade garante em detrimento dos interesses do(s) sócio(s) da mesma[6]».
Isto posto, coloca-se a questão de saber a quem incumbe o ónus da prova relativamente ao «justificado interesse próprio da sociedade» – é ao beneficiário da garantia que cabe o ónus da prova da existência desse interesse, ou é à sociedade garante que incumbe o ónus de provar a sua inexistência?
«A doutrina maioritária, (…) entre os quais MENEZES CORDEIRO (…) afirma que “Celebrada a garantia, cabe à sociedade que invoque a nulidade o ónus da prova da ausência de interesse próprio ou da inexistência da relação de grupo”. Por outras palavras, cada uma das partes terá, assim, o ónus de alegar e provar os factos correspondentes à previsão da norma que aproveita à sua pretensão ou à sua excepção. No mesmo sentido, escreve ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA, a qual tem como ponto de partida o regime geral de distribuição do ónus de prova, consagrado no art. 342.º do CC, mais especificamente o n.º 2 daquela norma, onde é referido: “A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita”. Ora, nestes termos, os factos que neguem a situação jurídica afirmada pelo Autor devem ser demonstrados pela contraparte; ou seja, é sobre a parte que alega os factos impeditivos ou extintivos do direito invocado em seu benefício que deve recair o ónus de os provar Deixando, por ora, a análise Doutrinária e centrando o foco na análise da jurisprudência mais recente, conseguimos facilmente denotar que há uma significativa parte (maioritária) da jurisprudência que pugna pela visão partilhada com estes últimos Autores». Assim,  «impende sobre a sociedade garante, que invoca a nulidade da garantia por si prestada, com vista a fazer valer-se da alegada nulidade para obstar ao efetivo cumprimento da prestação de garantida, o ónus da prova. De notar que a maioria da jurisprudência pugna neste sentido assenta a sua motivação no pressuposto de que não se encontra ninguém em melhor circunstância, do que a própria sociedade garante, para defender e justificar que a garantia foi prestada no seu próprio interesse. (…) Parece-nos que será um exercício muitas vezes inglório para qualquer terceiro (credor) determinar e provar o interesse que a sociedade garante detinha em prestar tal garantia, uma vez que, numa grande parte dos litígios, o mesmo emerge do facto de a sociedade garante obstar-se a cumprir a garantia[7]».
Vertendo estes ensinamentos para o caso dos autos, é forçoso considerar que a embargante tem, em princípio, capacidade para a prática de todos os actos convenientes à  prossecução do seu fim (obtenção de lucro), incluindo, portanto, a prestação de aval, a não ser que prove que a garantia prestada não era necessária, nem conveniente, àquela prossecução, que não tinha qualquer interesse próprio nesse acto e que não existia qualquer relação de domínio ou de grupo com a sociedade beneficiária da garantia - caso em que o acto será nulo[8].
Ocorre que, compulsada a matéria provada, nela não se surpreende qualquer factualidade que permita concluir que (como alegava a embargante) o aval não se lhe tenha permitido prosseguir melhor os seus fins, não se tenha traduzido em benefícios que de outra forma não alcançaria, ou não tenha gerado uma ausência de perdas que, não fora a prestação da garantia, teria de suportar. Com efeito, não se provou o que a esse propósito havia sido alegado, ou seja, que «a embargante não teve qualquer interesse na celebração do contrato de financiamento à sociedade B…, Lda. ou na prestação da garantia, nem usufruiu do valor financiado».
Assim, não tendo provado factos concretos que permitam considerar preenchido o art. 6.º n.º3 do Código das Sociedades Comerciais e que, portanto, impliquem a nulidade do aval prestado, terá de improceder a excepção suscitada.
Acresce que a própria embargante, ao subscrever o pacto de preenchimento, declarou perante a embargada que «a prestação do aval não contraria o disposto no art. 6.º n.º3 do Código das Sociedades Comerciais».
Ora, nos termos do art. 334.º do C.C., «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».
Trata-se de uma cláusula geral, que constitui um limite normativo imanente ou interno dos direitos subjectivos – age em abuso de direito aquele que ultrapassa os limites normativo-jurídicos do direito particular que invoca. Esses limites são as regras éticas elementares, de carácter suprapositivo, que enformam o Direito[9].
O abuso de direito foi consagrado no Código Civil segundo uma concepção objectiva – para que haja lugar ao abuso de direito, é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito, sem se indagar da intenção do agente[10]. A boa fé funciona aqui como um princípio normativo, pelo qual todos devem actuar, num quadro de honestidade, correcção, probidade e lealdade, de forma a não defraudar as legítimas expectativas e a confiança gerada nos outros[11]. Ocorre abuso de direito «quando alguém, detentor de um determinado direito, consagrado e tutelado pela ordem jurídica, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e ostensivamente contra o sentimento jurídico dominante[12]».
A doutrina vem desdobrando o abuso de direito em diversas figuras, como o venire contra factum proprium, o tu quoque, o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas, ou a suppressio. O venire contra factum proprium, correspondente a um comportamento contraditório com um comportamento anterior, ocorre quando se verificam os seguintes pressupostos: «a existência de um comportamento anterior do agente susceptível de basear uma situação objectiva de confiança; a imputabilidade das duas condutas (anterior e actual) ao agente; a boa fé do lesado (confiante); a existência de um “investimento de confiança”, traduzido no desenvolvimento de uma actividade com base no factum proprium; o nexo causal entre a situação objectiva de confiança e o “investimento” que nela assentou[13]».
No caso sub judice, tendo o beneficiário da garantia concedido um empréstimo confiando na validade do aval prestado, confiança essa objectivamente susceptível de se fundar na supra transcrita declaração da embargante, é forçoso considerar a verificação de abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, relativamente à actual invocação, pela mesma embargante, da nulidade do aval, com fundamento na violação daquele art. 6.º n.º3 do Código das Sociedades Comerciais, que antes garantira ter sido respeitado. Age, pois, nos presentes autos, a embargante em violação dos princípios éticos fundamentais, violando, com tal comportamento, a mais elementar boa-fé.
Assim, por via do instituto do abuso de direito, sempre se justificaria a paralisação do eventual direito da embargante a obter a declaração de nulidade do aval.
Deste modo, improcedem as conclusões de recurso, naquilo que diz respeito à invocada incapacidade de gozo.
Pretendia, ainda, a embargante que não ficou vinculada pelo aval prestado, porque a concessão da garantia não foi aprovada pelo seu Conselho de Administração, nem pela sua Assembleia Geral.
De acordo com o art. 409.º do Código das Sociedades Comerciais:
«1 - Os actos praticados pelos administradores, em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere, vinculam-na para com terceiros, não obstante as limitações constantes do contrato de sociedade ou resultantes de deliberações dos accionistas, mesmo que tais limitações estejam publicadas.
2 - A sociedade pode, no entanto, opor a terceiros as limitações de poderes resultantes do seu objecto social, se provar que o terceiro sabia ou não podia ignorar, tendo em conta as circunstâncias, que o acto praticado não respeitava essa cláusula e se, entretanto, a sociedade o não assumiu, por deliberação expressa ou tácita dos accionistas.
3 - O conhecimento referido no número anterior não pode ser provado apenas pela publicidade dada ao contrato de sociedade.
4 - Os administradores obrigam a sociedade, apondo a sua assinatura, com a indicação dessa qualidade».
Ora, o aval em causa nos autos foi prestado pelo Presidente do Conselho de Administração da embargante e por D…, em nome da sociedade e com indicação da qualidade de administradores da mesma (cfr. factos provados n.º6 e 8 e livrança exequenda). Ficou, pois, a embargante vinculada pela prestação de aval, nos termos do n.º4 daquele art. 409.º, sendo que a eventual inexistência de deliberação do CA ou da AG - além de não se ter provado - apenas poderá ser invocada nas relações internas entre a sociedade e os seus administradores[14], mas não nas relações externas da sociedade com terceiros (sendo certo que também não se provou que a beneficiária da garantia conhecesse qualquer ausência de deliberação).
Improcedem, assim, igualmente nesta medida, as conclusões de recurso.
Pretende, por outro lado, a recorrente que se verifica a prescrição do crédito exequendo.
Em primeiro lugar, porque a livrança terá sido preenchida mais de três anos após a verificação do incumprimento do contrato de mútuo que lhe subjaz.
Acontece que, compulsado o pacto de preenchimento, do mesmo não consta qualquer limitação temporal, podendo a beneficiária apor-lhe a data de emissão e de vencimento que entendesse e não estando obrigada a fazer coincidir a data de emissão ou a data de vencimento da livrança com a data de vencimento da obrigação subjacente. Como se refere no Ac. RL de 5/5/2020[15], «o legislador português, contrariamente ao que ocorre noutros ordenamentos jurídicos, não fixou um limite temporal ao preenchimento da livrança em branco, pelo que a ausência de previsão legal quanto a tal limitação implica a estrita validade da data de vencimento que o portador inscreve no título, desde que não se mostre infringido o pacto de preenchimento, o qual confere força e eficácia cambiária ao título emitido em branco».
Assim, não tendo sido violado o pacto de preenchimento, têm de valer como data emissão e de vencimento as que foram apostas no título (respectivamente, 24/4/2012 e 17/5/2019) e, em consequência, à data da citação da embargante (24/1/2022), ainda não se havia esgotado o prazo de prescrição a que alude o art. 70.º da LULL, pelo que igualmente improcede esta excepção e, portanto, improcedem as conclusões de recurso, na mesma medida.
Refere a recorrente, por outro lado, que ocorre a prescrição do crédito subjacente à livrança, quer relativo a capital, quer relativo a juros.
Vejamos.
A livrança exequenda foi entregue em garantia dos créditos da exequente, emergentes de contrato celebrado com a executada B…, L.da.
Conforme consta dos factos provados, mediante tal contrato, o Banco X… (cuja posição é agora ocupada pela exequente / embargada), entregou à B… a quantia de € 120.000,00, que esta deveria restituir, acrescida de juros, em 36 prestações mensais, de capital e juros, vencendo-se a primeira em 24/5/2012. Está, assim, configurada a celebração de um contrato de mútuo oneroso, tal como o mesmo vem definido nos arts. 1142.º e 1145.º do Código Civil.
Em conformidade com aquelas normas e com as estipulações contratuais (art. 406.º do Código Civil), constituía obrigação da mutuária o pagamento, à mutuante, de prestações mensais de capital e juros, com início em 24/5/2012 e termo em 24/4/2015.
Ocorre que a mutuária deixou de pagar as prestações que se venceram a partir de 24/7/2014 - encontrando-se, pois, em falta as prestações de capital e juros (remuneratórios[16]) que se venceram entre 24/7/2014 e 24/4/2015, a que acrescem juros moratórios, contados sobre cada uma das prestações vencidas, a partir da data do respectivo vencimento [arts. 804.º n.º1 e 805.º n.º2 a), do Código Civil].
De acordo com o art. 310.º d) e e), também do Código Civil, prescrevem no prazo de cinco anos os juros convencionais ou legais, bem como as quotas de amortização do capital pagáveis com os juros. Como vimos, as prestações do contrato de mútuo, a pagar pela mutuária, incluíam juros e capital. É-lhes, assim, aplicável, nos termos daquela alínea e) [assim como aos juros remuneratórios e moratórios, nos termos da alínea d)] o prazo prescricional de cinco anos, previsto naquele art. 310.º, aliás em conformidade com a jurisprudência fixada no AUJ do Supremo Tribunal de Justiça n.º6/2022 de 30/6/2022: «I – No caso de quotas de amortização do capital mutuado pagável com juros, a prescrição opera no prazo de cinco anos, nos termos do art.º 310.º al. e) do Código Civil, em relação ao vencimento de cada prestação; II – Ocorrendo o seu vencimento antecipado, designadamente nos termos do art.º 781.º daquele mesmo diploma, o prazo de prescrição mantém-se, incidindo o seu termo “a quo” na data desse vencimento e em relação a todas as quotas assim vencidas». Ou seja, as prestações de capital e juros remuneratórios e os juros moratórios vencidos entre 24/7/2014 e 24/4/2015 prescreveriam entre 24/7/2019 e 24/4/2020 (havendo ainda que acrescentar os dias correspondentes à suspensão do prazo prescricional ocorrida entre 9/3/2020 e 2/6/2020, ou seja, durante 86 dias, por força do disposto no art. 7º nº3 e 4 da L 1-A/2020 de 19-3).
Por outro lado, de acordo com os arts. 323.º n.º1 e 325.º n.º1 e 2 do Código Civil, a prescrição interrompe-se pela citação ou pela notificação judicial de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, ou pelo reconhecimento do direito, efectuado perante o respectivo titular, sendo que o reconhecimento tácito só é relevante quando resulte de factos que inequivocamente o exprimam.
Ora, a embargante só foi citada no processo principal em 24/1/2022.
No entanto, terá de ser levado em conta o disposto no art. 323.º n.º1 e 2 do Código Civil, de acordo com o qual a prescrição se interrompe pela citação, mas, se esta não se fizer no prazo de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias.
Do processo não resulta (e tal nem sequer foi alegado) que a demora na efectivação da citação tenha advindo de facto imputável à exequente, até porque a citação é da competência do agente de execução e é precedida de despacho que é da competência do tribunal, não dependendo de qualquer acto da exequente. De resto, como se refere no Ac. RL de 17/11/2015 (disponível na internet, em http://www.dgsi.pt), o atraso na citação só será da responsabilidade do exequente se ele não praticar ou praticar mal os actos processuais que lhe incumbe realizar entre o momento da apresentação do requerimento executivo e o decurso do prazo de cinco dias previsto no art. 323.º n.º2 do Código Civil, pois que o ocorrido posteriormente acontece numa altura em que já se encontra interrompido o prazo prescricional.
Assim, sendo certo que o requerimento executivo deu entrada em Juízo em 7/6/2019, e não estando configurado que o retardamento da citação seja, por qualquer forma, devido a qualquer acto ou omissão da exequente, a prescrição interrompeu-se cinco dias depois, ou seja, em 12/6/2019 - portanto, antes de decorrido o prazo de prescrição da primeira prestação e respectivos juros (e, evidentemente, antes de decorrido o prazo de prescrição de todas as prestações e juros subsequentes).
Deste modo, tendo sido validamente interrompida a prescrição, e não tendo começado a correr novo prazo prescricional (art. 327,º n.º1 do Código Civil), tem de improceder esta excepção e, portanto, as respectiva conclusões de recurso.
Pretendia, ainda, a recorrente, que não foi interpelada para cumprir o contrato de mútuo.
Trata-se de uma falsa questão, não só porque as prestações tinham prazo certo de vencimento (e, portanto, para que este se verificasse, não era necessária a interpelação), como porque não se provou que tenha existido qualquer perda do benefício do prazo (pelo contrário, a data de vencimento da livrança é posterior à do vencimento de todas as prestações). De resto, a embargante não sequer era parte no contrato - não era mutuária e não se provou que, subjacente ao aval, estivesse a prestação de uma fiança. Improcede, assim, também a excepção de falta de interpelação para o cumprimento do contrato.
Finalmente, pretende a embargante / recorrente que não foi interpelada para o pagamento da livrança.
Como se refere no Ac. RL de 20/1/2011[17], a falta de apresentação de uma livrança a pagamento ao avalista não lhe retira a exequibilidade, bastando que não tenha sido paga pelo subscritor, na data nela aposta, já que a lei dispensa a apresentação a pagamento da livrança ao subscritor e ao seu avalista - cfr. arts. 32.º §1 e 53.º §1, a contrario, aplicáveis por força do art. 77.º, da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças.
De resto, o pagamento de uma livrança deve efectuar-se pela comparência, no lugar de pagamento dela constante, de quem tem por obrigação solvê-la. Ora, a embargante não alega essa comparência por parte da subscritora, sendo certo que só se a mesma tivesse ocorrido é que a exequente poderia ter procedido à apresentação da livrança (cfr. Ac. STJ de 22/11/1988, BMJ 381, pág. 685).
Poderia, no entanto, esta questão contender eventualmente com a do vencimento da obrigação – atendendo a que a livrança foi entregue em branco e que foi dada autorização para que o credor nela preenchesse o valor e a data do vencimento, poderia considerar-se que decorre do princípio da boa fé, ínsito no art. 762.º n.º2 do Código Civil, que o beneficiário deveria comunicar o preenchimento ao obrigado cambiário. Se assim não fosse, este não saberia, nem teria como saber, qual o montante em dívida ou a data em que teria de o pagar. Nesta medida, caso não tivesse sido efectuada a comunicação, os juros apenas seriam devidos a contar da data da citação, que é quando o obrigado cambiário toma conhecimento dos elementos preenchidos pelo credor. Este raciocínio vale para o caso do mero avalista do título em branco (que, usualmente, não é parte na relação jurídica fundamental e, portanto, não tem conhecimento das suas vicissitudes)[18].
Porém, consta dos pontos 14 e 15 dos factos provados (cuja alteração não vem pedida pela recorrente, não incidindo o recurso sobre a decisão acerca da matéria de facto) que, em 9/5/2019, a embargada remeteu à embargante, para a sede desta, carta registada, com aviso de recepção, comunicando o preenchimento da livrança e a respectiva data de vencimento, carta essa que foi devolvida, com a menção «objecto não reclamado».
Ora, conforme resulta do disposto no art. 224.º n.º2 do Código Civil, é considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele oportunamente recebida. Deste modo, tendo a carta sido remetida para a sede da embargante e não tendo esta alegado que tenha comunicado à embargada qualquer alteração de morada, ou sequer que tenha ocorrido qualquer outro facto impeditivo do recebimento da missiva, a falta de conhecimento dessa declaração da embargada só à própria embargante pode ser imputada (por não ter diligenciado pelo levantamento da correspondência), pelo que tem de se considerar eficaz tal declaração (não resultando de qualquer norma legal ou contratual que à embargada fosse exigível recorrer a qualquer outro meio de comunicação).
Considera-se, pois, atempadamente comunicado à embargante o preenchimento da livrança, pelo que improcede igualmente a excepção de falta de interpelação para pagamento do título, assim improcedendo todas as conclusões do recurso e devendo manter-se a decisão recorrida, relativamente à qual nada existe a censurar.

DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante – arts. 527.º do Código de Processo Civil e 6.º n.º2, com referência à Tabela I-B, do Regulamento das Custas Processuais –, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.

Lisboa, 24-12-2024
Alexandra de Castro Rocha
Paulo Ramos de Faria
José Capacete
_______________________________________________________
[1] Documento junto ao processo principal em 12/7/2019, conforme ref.ª CITIUS 8573270, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
[2] Cfr., entre outros, os Ac. RG de 5/4/2018 e STJ de 6/12/2018, ambos proferidos no proc. 653/14, disponíveis e http://www.dgsi.pt.
[3] Cfr. A. Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, vol. III, 1975, págs. 39 e ss..
[4] In C.J., t. V, pág. 122.
[5] Cfr. Ricardo Ragageles Vigário, Garantias prestadas entre sociedades coligadas, FDUL, 2020, págs. 54 e ss., estudo disponível em https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/55032/1/ulfd0150848_tese.pdf .
[6] Ibidem.
[7] Ibidem.
[8] Cfr., a este propósito, o Ac. RC de 28/6/2022, proc. 2464/20, disponível em https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/fdb1884d5c737fbf8025888e0055db50?OpenDocument . No mesmo sentido, pode ver-se o Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 9/5/2023, proc. 3318/16, disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/3d738284cb34b24e802589b1002c5e0f?OpenDocument
[9] Cfr. Baptista Machado, C.J., 1984, t. II, pág. 17, citando Castanheira Neves; e ainda Baptista Machado, Tutela da Confiança e venire contra factum proprium, in R.L.J., nº3725, pág. 231.
[10] Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 6ª ed., pág. 516, cit. pelo Ac. STJ de 5-3-1996, CJ STJ, ano IV, t. I, págs. 115 e ss..
[11] Cfr. Fernando Augusto Cunha de Sá, Abuso do Direito, págs. 171 e ss..
[12] Cfr. Ac. RC de 9/1/2017, proc. 102/11, disponível em http://www.dgsi.pt.
[13] Cfr. Ac. STJ de 12/11/2013, proc. 1464/11.2, disponível em http://www.dgsi.pt.
[14] Cfr., a este respeito, o Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 14/3/2006, proc. 06A195, disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/5d3a31e4cf29b0708025713e00475b60?OpenDocument .
[15] Proc. 6645/17, disponível em http://www.dgsi.pt.
[16] Os quais não há que excluir, já que não se provou que tenham sido antecipadamente declaradas vencidas todas as prestações.
[17] Proc. nº1847/08.5TBBRR-A.L1-6, disponível em http://www.dgsi.pt; no mesmo sentido, e disponíveis no mesmo sítio, podem ver-se os Ac. RL de 14/9/2017, proc. 818/15, e de 10/2/2009, proc. 9001/2008-1.
[18] Cfr., entre outros, o Ac. RL de 12/5/2022, proc. 1516/14, disponível em http://www.dgsi.pt.