ARBITRAGEM VOLUNTÁRIA
REFORMA DA DECISÃO
INADMISSIBILIDADE
NULIDADE DA DECISÃO
ARGUIÇÃO
Sumário

1. A atual Lei da Arbitragem Voluntária (LAV) não prevê a possibilidade de reforma da decisão final proferida. Não é subsidiariamente aplicável ao processo arbitral o regime previsto no n.º 2 do art. 616.º do Cód. Proc. Civil. Inexiste lacuna na atual LAV, em matéria de admissibilidade da reforma da decisão final proferida pelo tribunal arbitral.
2. Proferida a decisão final pelo tribunal arbitral, mais do que esgotado (extinto) o seu poder jurisdicional, é o próprio tribunal que está esgotado, com as ressalvas excecionalmente previstas no art. 45.º e no n.º 8 do artigo 46.º da LAV.
3. O ato praticado pelos ex-juízes árbitros que supostamente reforma a decisão final anteriormente proferida pelo tribunal arbitral é absolutamente nulo, subsistindo na ordem jurídica tal decisão final (anteriormente proferida).
4. O conhecimento deste vício não está sujeito às limitações previstas no art. 46.º da LAV.

Texto Integral

Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

A. Relatório
A.A. Identificação das partes e indicação do objeto do litígio
União Desportiva Oliveirense – Futebol SAD instaurou a presente ação de anulação de decisão arbitral contra Futebol Clube Felgueiras 1932, pedindo a anulação da decisão do tribunal arbitral que a condenou:
a pagar ao Clube requerente “Futebol Clube Felgueiras 1932”, a quantia de 2.083,20 € (...), correspondente a 60% da quantia que lhe caberia nos termos resultantes da que viesse a ser apurada nos termos do art. 39.º, n.º 2 e 3.º, do RECITJ
Para tanto, alegou que:
a) A decisão impugnada reforma supostamente a decisão final inicialmente proferida, sendo que a LAV não admite, nem diretamente, nem por remissão, a reforma das decisões arbitrais;
b) Ainda que se entenda que a LAV consente a reforma das decisões arbitrais, o acórdão reformador impugnado não se limita a reformar o acórdão inicialmente proferido;
c) A decisão impugnada pronunciou-se sobre um objeto distinto do objeto da ação (pronunciando-se sobre um pedido subsidiário apenas apresentado com o requerimento de reforma do acórdão final).
Citada a contraparte, ofereceu esta a sua contestação, defendendo-se por exceção e por impugnação. No essencial, alegou que:
a) o pedido formulado pela autora é inadmissível, não se enquadrando no n.º 3 do art. 46.º da LAV;
b) o disposto nos arts. 45.º e 30.º da LAV cauciona a aplicação, por decisão da Comissão de Arbitragem, do regime previsto no art. 616.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil (reforma da sentença);
c) o lapso manifesto que levou ao decidido no primeiro acórdão está abrangido pelo regime da reforma da decisão, previsto no n.º 2 do art. 616.º do Cód. Proc. Civil. À demandante foi oferecido contraditório sobre matéria nova alegada pela contraparte. As partes foram notificadas para, querendo se pronunciarem sobre a nulidade absoluta do acórdão impugnado, por ter sido proferido depois de esgotado o poder jurisdicional do tribunal arbitral, bem como para completarem a exposição das razões de direito das suas pretensões, com vista ao imediato conhecimento do mérito da causa.
A.B. Questões que ao tribunal cumpre solucionar
São as seguintes as questões que ao tribunal cumpre solucionar:
a) Admissibilidade da reforma das decisões arbitrais;
b) Caso a resposta à questão anterior seja afirmativa, ser a decisão impugnada uma verdadeira reforma da decisão;
c) No contexto da questão anterior, ocorrência de excesso de pronúncia da decisão impugnada.
B. Fundamentação
B.A. Factos assentes
1. Começo da instância arbitral
1 – Em 27 de julho de 2023, a Futebol Clube Felgueiras 1932 (adiante FCFelgueiras) requereu a constituição da Comissão de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol (adiante, apenas, Comissão de Arbitragem), com vista à apresentação de uma reclamação de pagamento de uma compensação, dirigida contra a União Desportiva Oliveirense – Futebol SAD (adiante UDOliveirense).
2 – Para tanto, alegou que tem direito a receber da UDOliveirense uma compensação pela formação e promoção de um jogador que identifica.
3 – Conclui pedindo:
Termos em que se requer de V. Exa. constituição da Comissão de Arbitragem da FPF, a qual
deverá julgar o presente pedido totalmente procedente, por provado, e por conseguinte:
a) reconhecer o direito do Futebol Clube De Felgueiras 1932 a ser compensado pela formação e valorização do jogador (...), em virtude da sua inscrição como profissional de futebol pela União Desportiva Oliveirense, Futebol, SAD;
b) condenar a União Desportiva Oliveirense, Futebol, SAD ao pagamento de uma compensação ao requerente no valor de 3.472,00 € (...), acrescida de juros de mora vencidos desde 05/09/2022 e vincendos ate efetivo e integral pagamento.
4 – Designado o presidente da Comissão de Arbitragem para o processo arbitral ao qual foi atribuído o n.º 04/CA2023/2024, e notificada a UDOliveirense, respondeu esta requerendo que a “ação seja julgada totalmente improcedente, por não provada, e em consequência deverá a ré ser absolvida no pedido”.
2. Julgamento do tribunal arbitral
5 – Em 9 de novembro de 2023, no processo n.º 04/CA2023/2024, a Comissão de Arbitragem proferiu acórdão final, deliberando nos seguintes termos:
I. – Considerar improcedente o pedido do “Futebol Clube Felgueiras 1932,” no sentido de lhe ser atribuída uma compensação a pagar pelo Clube requerido, “União Desportiva Oliveirense, SAD”, no montante de 3.472,00 € (...) acrescido de juros de mora vencidos até efetivo e integral pagamento.
II. – Absolver “in totum” o Clube requerido “União Desportiva Oliveirense, SAD”, do pedido formulado pelo Clube requerente. (...)
6 – Em 15 de dezembro de 2023, a FCFelgueiras pediu a reforma do acórdão referido no ponto 5 – factos assentes –, concluindo nos seguintes termos:
Termos em que se impõe a reforma do acórdão, devendo este ser corrigido e concluindo-se pela procedência integral do pedido inicial do requerente, considerando que obteve a certificação como entidade formadora em todas as épocas desportivas em causa (facto público).
Caso assim não seja entendido, sem prescindir e por mera cautela,
Deverá ser atribuído ao clube requerente 60% (sessenta por cento) do valor da compensação, nos termos do disposto no artigo 59.º, n.º 4, do RECITJ.
7 – Em 26 de fevereiro de 2024, a UDOliveirense respondeu ao pedido de reforma referido
no ponto 6 – factos assentes –, concluindo nos seguintes termos:
(...) requerer-se que:
a) a reclamação apresentada não seja admitida.
b) caso assim não entenda, que o acórdão proferido seja mantido na integra com a consequente absolvição da requerida no pedido.
8 – Em 5 de março de 2024, no processo n.º 04/CA2023/2024, a assim designada “Comissão de Arbitragem” proferiu um assim designado acórdão, concluindo nos seguintes termos:
I. – Considerar improcedente o pedido do “Futebol Clube Felgueiras 1932,” no sentido de lhe ser atribuída uma compensação a pagar pelo Clube requerido, “União Desportiva Oliveirense, SAD”, no montante de 3.472,00 € (...) acrescido de juros de mora vencidos até efetivo e integral pagamento, atenta a falta de certificação como entidade formadora.
II. – Condenar o Clube requerido “União Desportiva Oliveirense, SAD”, a pagar ao Clube requerente “Futebol Clube Felgueiras 1932”, a quantia de 2.083,20 € (...), correspondente a 60% da quantia que lhe caberia nos termos resultantes da que viesse a ser apurada nos termos do art. 39.', n.' 2 e 3.', do RECITJ. (...)
9 – Na fundamentação do assim designado acórdão referido no ponto 8 – factos assentes –, a assim designada “Comissão de Arbitragem” sustenta, além do mais que aqui se dá por transcrito, que:
Tem, efetivamente, razão a requerida quando defende que o RECITJ (...) não contempla a figura da reclamação sobre a decisão proferida.
Por outro lado, a lei da Arbitragem Voluntária (...), dispõe, no art. 46.º, n.º 1, que a impugnação de uma sentença arbitral só pode revestir a forma de pedido de anulação.
Deste modo, a apresentação da “reclamação” pelo requerente não tem enquadramento legal.
Todavia, o art. 45.' da LAV, com a epígrafe “Retificação e Esclarecimento de Sentença”, prevê no seu n.º 5 a possibilidade de qualquer das partes solicitar a retificação de decisão já produzida: “... qualquer das partes pode, notificado disso a outra, requerer ao tribunal arbitral, nos 30 dias seguintes à data em que recebeu a notificação da sentença, que profira uma sentença adicional sobre partes do pedido ou dos pedidos apresentados no decurso do processo arbitral, que não haja sido decidas na sentença”.
Acresce que, o n.' 3 do art. 30.' da LAV estatui que: “3 – Não existindo tal acordo das partes e na falta de disposições aplicáveis na presente lei, o tribunal arbitral pode conduzir a arbitragem do modo que considerar apropriado, definindo as regras processuais que entender adequadas, devendo, se for esse o caso, explicitar que considera subsidiariamente aplicável o disposto na lei que rege o processo perante o tribunal estadual competente”.
Ação de Anulação da Decisão Arbitral
Ora, entendo esta CA aplicar subsidiariamente o C.P.C. que prevê no seu artigo 616.º n.º 2, com a epígrafe do título “Reforma da Sentença”, o seguinte:
“Não cabendo recurso da decisão, é ainda lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz:
a) Tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos;
b) Constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida”.
O caso em apreço cumpre os pressupostos estabelecidos pelo art.º 616.º n.º 2, do CPC, no que respeita a não existir possibilidade de recurso do Acórdão da Comissão Arbitral.
B.B. Motivação da convicção
A decisão da matéria de facto resultou da admissão de factos por acordo e dos documentos juntos, tendo-se presente o disposto nos arts. 414.º do Cód. Proc. Civil e 342.º, n.º 1, do Cód. Civil.
B.C. Análise dos factos e aplicação da lei
São as seguintes as questões de direito parcelares a abordar:
1. Arguição de nulidades (vícios processuais)
1.1. Reforma da decisão final pelo tribunal arbitral
1.1.1. Decisão que admitiu a reforma do acórdão final
1.1.2. Extinção do tribunal arbitral, em geral
1.1.3. Extinção do tribunal arbitral constituído (Comissão de Arbitragem)
1.2. Existência de uma lacuna
1.3. Conclusão
2. Responsabilidade pelas custas
1. Arguição de nulidades (vícios processuais)
Reza o n.º 3 do art. 46.º da Lei da Arbitragem Voluntária (LAV), aprovada pelo n.º 1
do art. 1.º da Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro, (“Pedido de anulação”):
A sentença arbitral só pode ser anulada pelo tribunal estadual competente se:
a) A parte que faz o pedido demonstrar que:
i) Uma das partes da convenção de arbitragem estava afetada por uma incapacidade; ou que essa convenção não é válida nos termos da lei a que as partes a sujeitaram ou, na falta de qualquer indicação a este respeito, nos termos da presente lei; ou
ii) Houve no processo violação de alguns dos princípios fundamentais referidos no n.º 1 do artigo 30.º com influência decisiva na resolução do litígio; ou
iii)A sentença se pronunciou sobre um litígio não abrangido pela convenção de arbitragem ou contém decisões que ultrapassam o âmbito desta; ou
iv) A composição do tribunal arbitral ou o processo arbitral não foram conformes com a convenção das partes, a menos que esta convenção contrarie uma disposição da presente lei que as partes não possam derrogar ou, na falta de uma tal convenção, que não foram conformes com a presente lei e, em qualquer dos casos, que essa desconformidade teve influência decisiva na resolução do litígio; ou
v) O tribunal arbitral condenou em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido, conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento ou deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar; ou
vi) A sentença foi proferida com violação dos requisitos estabelecidos nos n.os 1 e 3 do artigo 42.º; ou
vii) A sentença foi notificada às partes depois de decorrido o prazo máximo para o efeito fixado de acordo com ao artigo 43.º ; ou
b) O tribunal verificar que:
i) O objeto do litígio não é suscetível de ser decidido por arbitragem nos termos do
direito português;
ii) O conteúdo da sentença ofende os princípios da ordem pública internacional do Estado português.
O(A) demandante invoca como causa de pedir da presente ação os vícios específicos descritos nas subalíneas i) e v) da al. a) deste artigo. Vejamos se com fundamento.
1.1. Reforma da decisão final pelo tribunal arbitral
1.1.1. Decisão que admitiu a reforma do acórdão final
Analiticamente, no (putativo) acórdão final objeto desta ação podem ser surpreendidas duas decisões distintas: (i) a decisão de introduzir no rito processual o instituto da reforma (que caucionou a alteração do ‘acórdão reformado’) e (ii) o novo (putativo) acórdão final da causa (‘acórdão reformador’). É sobre a primeira decisão que incide, primeiramente, a impugnação objeto desta ação, isto é, sobre a admissibilidade de reforma das decisões proferidas no processo arbitral.
Dispõe o art. 45.º da LAV, na parte que para os presentes autos releva:
Artigo 45.º
Retificação e esclarecimento da sentença; sentença adicional
1 – (...) [N]os 30 dias seguintes à receção da notificação da sentença arbitral, qualquer das partes pode (...) requerer ao tribunal arbitral que retifique, no texto daquela, qualquer erro de cálculo, erro material ou tipográfico ou qualquer erro de natureza idêntica.
2 – (...) [Q]ualquer das partes pode (...) requerer ao tribunal arbitral que esclareça alguma obscuridade ou ambiguidade da sentença ou dos seus fundamentos. (...)
3 – (...).
5 – (...) [Q]ualquer das partes pode (...) requerer ao tribunal arbitral (...) que profira uma sentença adicional sobre partes do pedido ou dos pedidos apresentados no decurso do processo arbitral, que não hajam sido decididas na sentença (...). (...)
Afigura-se-nos incontroverso, e assim também o considerou a dita “Comissão de Arbitragem”, que não é admissível o pedido de reforma do acórdão arbitral, considerando apenas o regime diretamente previsto na LAV. Não é aceitável qualquer extensão teleológica de uma norma que regula a possibilidade de retificação de erros materiais ou “de natureza idêntica”, no sentido de permitir ao tribunal revisitar o julgamento do mérito da causa. (Antes de avançarmos, esclarecemos que nos referimos à “Comissão de Arbitragem” sem que com isto estejamos a afirmar que a mesma sobreviveu à prolação do acórdão final objeto do pedido de reclamação).
Nos capítulos VI e VII da LAV, dedicados à decisão final arbitral e à sua impugnação, não consta nenhuma norma remissiva que determine a aplicação subsidiária do Cód. Proc. Civil ao processo arbitral. Não obstante, a dita “Comissão de Arbitragem” entendeu ser aplicável à questão vertente o disposto no n.º 3 do art. 30.º da LAV. Consequentemente, aplicou ao requerimento da então requerente o regime previsto no n.º 2 do art. 616.º do Cód. Proc. Civil, introduzindo-o no rito processual concreto.
Tem o art. 30.º da LAV o seguinte teor, na parte que ora releva:
Artigo 30.º
Princípios e regras do processo arbitral
1 – O processo arbitral deve sempre respeitar os seguintes princípios fundamentais:
a) O demandado é citado para se defender;
b) As partes são tratadas com igualdade e deve ser-lhes dada uma oportunidade razoável de fazerem valer os seus direitos, por escrito ou oralmente, antes de ser proferida a sentença final;
c) Em todas as fases do processo é garantida a observância do princípio do contraditório, salvas as exceções previstas na presente lei.
2 – As partes podem, até à aceitação do primeiro árbitro, acordar sobre as regras do processo a observar na arbitragem, com respeito pelos princípios fundamentais consignados no número anterior do presente artigo e pelas demais normas imperativas constantes desta lei.
3 – Não existindo tal acordo das partes e na falta de disposições aplicáveis na presente lei, o tribunal arbitral pode conduzir a arbitragem do modo que considerar apropriado, definindo as regras processuais que entender adequadas, devendo, se for esse o caso, explicitar que considera subsidiariamente aplicável o disposto na lei que rege o processo perante o tribunal
estadual competente. (...)
Poderíamos começar por apreciar a validade da decisão da “Comissão de Arbitragem” (objeto desta ação) considerando o seu sentido aparentemente atentatório da certeza e segurança jurídicas. Com efeito, afigura-se que a “Comissão de Arbitragem” fixa uma regra nova, não apenas depois de o “jogo ter começado” (criando normação sobre a admissibilidade de uma faculdade processual depois da questão concreta ter surgido, e não previamente), mas mesmo depois de o “jogo ter acabado”. Veja-se que, do segmento final da al. b) do n.º 1 e da tutela dos “princípios fundamentais” do rito processual, prevista no n.º 2, ambos do art. 30.º da LAV, bem como o n.º 1 do art. 4.º da mesma lei, parece resultar que tal rito deve estar definido até à prolação da decisão final.
No entanto, a montante desta apreciação, uma outra ordem de questões deve ser enfrentada. Referimo-nos ao esgotamento do poder jurisdicional do tribunal e à sua extinção, por força da prolação do acórdão final.
1.1.2. Extinção do tribunal arbitral, em geral
Tem o art. 44.º da LAV o seguinte teor, na parte que ora releva:
Artigo 44.º
Encerramento do processo
1 – O processo arbitral termina quando for proferida a sentença final ou quando for
ordenado o encerramento do processo pelo tribunal arbitral (...). (...)
3 – As funções do tribunal arbitral cessam com o encerramento do processo arbitral, sem
prejuízo do disposto no artigo 45.º e no n.° 8 do artigo 46.°. (...)
Por seu turno, dispõe o n.º 7 do art. 42.º da LAV (Forma, conteúdo e eficácia da
sentença):
7 – A sentença arbitral de que não caiba recurso e que já não seja suscetível de alteração
nos termos do artigo 45.º tem o mesmo carácter obrigatório entre as partes que a sentença de

um tribunal estadual transitada em julgado e a mesma força executiva que a sentença de um tribunal estadual.
Importa ter presente, por um lado, que a norma enunciada no n.º 3 do art. 30.º da LAV se inscreve no poder jurisdicional do tribunal arbitral. Ora, este poder extingue-se com a prolação da decisão final de mérito (arts. 42.º, n.º 7, 44.º, n.os 1 e 3, da LAV). Tanto basta para que se deva questionar a validade da decisão impugnada: depois de proferido o acórdão final, o tribunal arbitral não tem poder para proferir decisões jurisdicionais, designadamente, em matéria adjetiva – com as exceções previstas no art. 45.º e no n.º 8 do artigo 46.º da LAV. Aliás, ainda ressalvando os referidos casos, e vista a questão sob um prisma um pouco distinto, com a prolação da decisão final, a convenção de arbitragem perde a sua eficácia (art. 46.º, n.º 10, a contrario, da LAV), pelo que o fundamento do poder jurisdicional do tribunal arbitral cessa.
Por outro lado, proferida a decisão final, mais do que esgotado (extinto) o poder jurisdicional do tribunal arbitral – o que, por si só, pode gerar o “vício da inexistência jurídica”; cfr. o Ac. do TRL de 12-09-2023 (7624/15.0T8LSB.L1-7) –, é mesmo este tribunal que fica esgotado (extinto), com as ressalvas excecionalmente previstas no art. 45.º e no n.º 8 do artigo 46.º da LAV. O mesmo é dizer que, ressalvados estes casos, a putativa decisão jurisdicional proferida após a decisão final não pode ser adjudicada a um tribunal (arbitral).
Como é evidente, extinto o tribunal arbitral, qualquer ato produzido pelos ex -juízes árbitros é processual e juridicamente inexistente (com o âmbito pretendido pelos seus autores) ou absolutamente nulo.
1.1.3. Extinção do tribunal arbitral constituído (Comissão de Arbitragem)
No caso dos autos, o acórdão arbitral foi proferido em 9 de novembro de 2023. Notificadas as partes, não veio a então parte ativa (FCFelgueiras) pedir a retificação nem esclarecimento do acórdão arbitral; veio, sim, pedir a sua reforma – faculdade que a  “Comissão de Arbitragem” – melhor, os ex-membros da Comissão de Arbitragem –, bem, entendeu não estar coberta pelo disposto no art. 45.º da LAV.
O mesmo é dizer que, quando, em 5 de março de 2024, a autointitulada “Comissão de Arbitragem” decidiu (ope judicis) introduzir no rito processual concreto a admissibilidade da reforma da decisão, há muito se tinha esgotado, não só o poder jurisdicional da Comissão de Arbitragem (também nesta matéria adjetiva de conformação do rito processual), como a própria existência desta. O ato praticado pelos ex-juízes árbitros, que se ‘autoqualifica’ de deliberação da (putativa) Comissão de Arbitragem, é processualmente absolutamente nulo (ou inexistente).
Aplicando ao caso a afamada comparação de Winston Churchill, aceitar que a Comissão de Arbitragem, depois de extinto o seu poder jurisdicional (e o próprio tribunal), pode decidir (no uso dessa mesma jurisdição) introduzir no rito processual uma regra processual que ressuscita tal poder (criando-a ou importando-a ope judicis do processo judicial estadual), é como aceitar que um homem de pé, dentro de um balde, pode levantar-se a si próprio puxando pela pega.
1.2. Existência de uma lacuna
Todo o raciocínio expendido poderia ser afastado, se considerássemos que o pedido de reforma é admissível, não por força da decisão da “Comissão de Arbitragem”, proferida, pretensamente, a coberto da norma enunciada art. 30.º, n.º 3, da LAV, mas sim por existir uma falha não intencional de regulamentação (por parte do legislador) numa matéria dela carecida. Neste caso, e a admitir-se a integração da lacuna com recurso à norma prevista no n.º 2 do art. 616.º do Cód. Proc. Civil, poder-se-ia entender que o tribunal arbitral subsiste até ao decurso do prazo para apresentação do pedido de reforma, em termos paralelos ao que ocorre nos quadros do art. 45.º da LAV. Isto significa que a questão sub judice ficou reduzida a saber se a omissão de regulamentação corresponde a uma lacuna, em sentido próprio, ou, diferentemente, a uma legítima opção do legislador da LAV (em não consentir a reforma da decisão arbitral).
Para bem se compreender o contexto normativo da questão, é útil convocar o regime correspondente na lei anterior. No Cód. Proc. Civil de 1961, esta matéria encontrava-se regulada no art. 1522.º, o qual, através de uma dupla remissão, determinava ser aplicável à decisão dos árbitros o disposto em matéria de “vícios e reforma da sentença” proferida no processo judicial estadual.
Esta norma não transitou para a primeira lei da arbitragem voluntária (Decreto-Lei n.º 243/84, de 17 de julho), não sendo nesta dedicada à matéria nenhuma disposição específica. O mesmo sucedendo com a segunda LAV (Lei n.º 31/86, de 29 de agosto). Com a aprovação da atual LAV pelo n.º 1 do art. 1.º da Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro, como vimos, a matéria volta a ser contemplada no regime privativo da arbitragem voluntária, mas não com a amplitude outrora prevista no Cód. Proc. Civil – não se prevendo agora, designadamente, a possibilidade de reforma da decisão.
Não pode esta sucessão se soluções legais deixar de ser portadora de significado. Ela revela que o legislador não desconhece a problemática das irregularidades da decisão final, não caucionando, pois, o entendimento de que, se a tivesse previsto, tê-la-ia regulamentado no sentido de permitir a reforma da decisão arbitral pelo próprio tribunal.
Em suma, inexiste qualquer lacuna na LAV em matéria de admissibilidade da reforma da decisão final proferida pelo tribunal arbitral.
1.3. Conclusão
Concluímos acima – cfr. o ponto 1.1.3 – que o ato praticado pelos ex-juízes árbitros, que se ‘autoqualifica’ de deliberação da (putativa) Comissão de Arbitragem, é processualmente absolutamente nulo (ou inexistente). Ora, conforme resulta dos n.os 1 e 9 do art. 46.° da LAV, salvo se as partes tiverem acordado em sentido diferente, “a impugnação de uma sentença arbitral perante um tribunal estadual só pode revestir a forma de pedido de anulação”, com um dos fundamentos previstos no n.° 3 deste artigo, estando vedado ao tribunal estadual “conhecer do mérito da questão ou questões” decididas pelo acórdão arbitral.
Ora, o vício de nulidade absoluta sinalizado não se encontra, de modo patente, expressamente previsto na LAV (nem no Cód. Proc. Civil, diga-se).
No entanto, a nulidade absoluta transcende a relatividade da anulação prevista no art. 46.º da LAV, assim como transcende a taxatividade das causas de nulidade (relativa) da sentença judicial (art. 615.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil) – cfr. JOSÉ LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, Coimbra, Almedina, 2017, p. 735, e JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A Ação Declarativa Comum, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, p. 330. O conhecimento deste vício, imposto por razões de ordem pública, não está sujeito às limitações previstas no art. 46.º da LAV (ou no art. 615.º do Cód. Proc. Civil), inscrevendo-se diretamente no poder da justiça estadual previsto nos arts. 286.º e 295.º do Cód. Civil de conhecer da total ineficácia e invalidade dos atos jurídicos objeto da demanda.
De todo o modo, a previsão desta forma de viciação encontra-se latente e pode ser extraída de praticamente todas as normas que preveem a anulabilidade da sentença arbitral. Assim, por exemplo, sendo a putativa decisão assinada por quem (já) não é juiz árbitro (por se ter extinto o tribunal e cessado a eficácia da convenção), não pode deixar de ser subsumida à norma enunciada na subalínea vi) da al. a) do art. 46.º da LAV. Estamos perante uma questão adjetiva relativamente à qual não foi dada às partes possibilidade de se pronunciarem sobre os seus direitos processuais antes da decisão final reformada (subalínea ii) da al. a) do art. 46.º e al. b) do n.º 1 do art. 30.º da LAV). Sendo inválida a decisão que contém decisões que ultrapassam o âmbito da convenção de arbitragem, por maioria da razão é inválida a decisão putativa assente numa convenção caducada (subalínea iii) da al. a) do art. 46.º da LAV). Se a desconformidade da composição do tribunal à normação aplicável gera a invalidade da decisão, por maioria de razão a inexistência de normação, convencional ou legal, que sustente a sua existência também a gera (subalínea iv) da al. a) do art. 46.º da LAV). Se a pronúncia exorbitante do tribunal gera a invalidade da decisão, por maioria de razão a pronúncia de um putativo tribunal ao qual falece o poder jurisdicional também a gera (subalínea v) da al. a) do art. 46.º da LAV).
Em suma, o putativo acórdão impugnado – proferido em 5 de março de 2024 pelos ex-juízes árbitros da já extinta Comissão de Arbitragem – é absolutamente nulo. Isto significa que subsiste na ordem jurídica o acórdão proferido em 9 de novembro de 2023 pela Comissão de Arbitragem.
2. Responsabilidade pelas custas
A responsabilidade pelas custas cabe à ré, por ter ficado vencida (art. 527.º do Cód. Proc. Civil).
C. Dispositivo
C.A. Do mérito da ação
Em face do exposto, na procedência da ação, acorda-se em julgar nulo o putativo acórdão arbitral impugnado, datado de 5 de março de 2024.
C.B. Das custas
Custas a cargo da ré.
*
Notifique.
Comunique à Federação Portuguesa de Futebol.

Lisboa, 24-09-2024,
Paulo Ramos de Faria
Alexandra de Castro Rocha
José Capacete