RESPONSABILIDADE CIVIL
VIOLAÇÃO DOS DEVERES CONJUGAIS
DIREITOS DE PERSONALIDADE
Sumário


1- Só quando a violação dos deveres conjugais tem como consequência a violação dos deveres de personalidade do outro cônjuge, deveres estes absolutos, é que pode ser acionada a responsabilidade civil extracontratual, visto que os deveres conjugais pessoais não atribuem ao outro cônjuge direitos subjetivos, embora também não retirem a generalidade dos seus direitos de personalidade inerentes à personalidade humana.
2- Assim, a obrigação de ressarcimento a que se reporta o artigo 1792º nº 1 do Código Civil não se basta, no que ao ilícito concerne, com o simples incumprimento de um qualquer dever conjugal que se traduza num poder dever dirigidos à manutenção dos vínculos subjacentes ao casamento; apenas opera quando a infração desses deveres, pela sua gravidade, também viole um direito subjetivo de personalidade do outro cônjuge.

Texto Integral


Autor e Apelante:  AA
Ré e Apelada: BB
Autos de: ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum

Acórdão
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

.I- Relatório

O Autor pediu que fosse proferida sentença a:
condenar a Ré no pagamento ao Autor de indemnização por danos não patrimoniais em valor não inferior a € 50.000,00 (cinquenta mil euros), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, contados desde a data da citação até efetivo e integral pagamento, com as legais consequências, bem como a condenar a Ré no pagamento de indemnização ao Autor por danos patrimoniais no valor de € 1.111,20 (mil cento e onze euros e vinte cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, contados desde a data da citação até efetivo e integral pagamento, com as legais consequências, assim como no pagamento dos tratamentos médicos e nos tratamentos de psicoterapia  necessários  até  ao  total restabelecimento físico e psicológico do Autor.
Alegou, em síntese, que na sequência de uma discussão, a 23 de agosto de 2021, a Ré abandonou o lar conjugal, levando consigo as filhas do casal e foi viver para casa dos pais, deixando de contactar com ele, votando-o ao abandono. No dia ../../2021, a Ré propôs ação de divórcio. A Ré tem incumprido o regime de visitas provisório fixado pelo Tribunal e deixou de contribuir para as obrigações comuns que haviam assumido. Como consequência do desmoronar do casamento, da circunstância de ter sido abandonado no seu lar pela ré, da separação e do corte abrupto de relações com as suas filhas, da solidão, do peso de assumir sozinho o pagamento das dívidas comuns do casal em ... e da humilhação de ter de se socorrer do auxílio de terceiros para conseguir sobreviver, perdeu o seu equilíbrio emocional, com a necessidade de recurso a auxílio psicológico e oftalmológico. Estas violações dos deveres conjugais da Ré são ofensivas do respeito, do amor‐próprio, da sensibilidade e suscetibilidade do Autor.  O abandono do lar conjugal, o desprezo e o afastamento da Ré e a privação de contacto com as suas duas filhas causaram, e causam, grande mágoa ao Autor, os quais culminaram nos graves problemas de saúde supra descritos de que padece.
 A ré contestou, afirmando que já foi proferida sentença que decidiu não ter existido qualquer incumprimento do regime de visitas e foi o Autor que a abandonou, com as suas filhas, em Portugal e que deixou de contribuir para o sustento das mesmas. O Autor bloqueou o seu acesso às contas bancárias, que eram de ambos e, transferiu, sem o seu conhecimento e consentimento, várias quantias monetárias para a conta da sua irmã, o que é objeto de outra ação.
Em sede de audiência prévia, foi proferido despacho com vista a evitar decisões surpresa, dando às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a possibilidade de conhecimento imediato do mérito, faculdade que as partes usaram por escrito.
Veio a ser proferido saneador-sentença que absolveu a Ré do pedido, por se entender que a ação era manifestamente improcedente.

É desta decisão que o Autor Recorreu, apresentando as seguintes:
conclusões:

1. O Recorrente não se pode conformar com a douta sentença recorrida.
2. Na verdade, o conhecimento imediato do mérito da causa só se realiza no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito, o que é o caso.  
3. A sentença recorrida ignorou, assim, um conjunto de factos alegados na petição, relevantes segundo outros enquadramentos possíveis do objeto da ação, de cuja prova poderia resultar uma diferente decisão de direito.
4. Estes factos, a provarem-se, constituem fundamento suficiente para a procedência do direito que pela ação se pretende fazer valer.  
5. A douta sentença decidiu o seguinte: “Não basta, portanto, que a R. tenha, alegadamente, violado os deveres matrimoniais estabelecidos no art. 1672º e ss. do CC. É necessário que essas alegadas violações atinjam igualmente a esfera de tutela dos direitos de personalidade previstos nos art. 70.º e ss e 484.º do CC, o que não aconteceu nos autos, atenta a alegação do Recorrente. Salvador da Costa (in “A Injunção e as Conexas Ação e Execução, 5ª ed., 2005, pág. 95”), afirma que “a pretensão formulada pelo Recorrente é manifestamente improcedente ou manifestamente inviável porque a lei a não comporta ou porque os factos apurados, face ao direito aplicável, a não justificam”. O Tribunal entende que a presente ação é manifestamente improcedente, pelo que decide absolver a Recorrida, integralmente, do pedido”.
6. A decisão recorrida interpretou e aplicou erradamente o disposto no artigo 1792.º, 483.º e 496.º do Código Civil.
7. A decisão recorrida viola o princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, bem como, por violação do direito a um processo equitativo, nos termos do artigo 20. °, n.º 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa.
8. A interpretação da mesma lei de forma diferente por diversos tribunais viola também os princípios da certeza e segurança jurídicas e previsibilidade, que são apanágio do princípio do Estado de direito previsto no artigo 2.º da CRP e no artigo 13.º da CRP.
9. A douta sentença recorrida padece de erro na interpretação e aplicação das normas legais aplicáveis, devendo a mesma ser revogada, seguindo-se os ulteriores termos do processo.
10. Com a Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro, o cônjuge lesado pode requerer, nos termos gerais da responsabilidade civil (arts. 483.º e segs.), e não na ação de divórcio, a reparação dos danos causados pelo outro cônjuge (art. 1792.º, n.º 1). Na ação de divórcio são apenas indemnizados os danos não patrimoniais causados ao cônjuge pela dissolução do casamento requerida pelo outro cônjuge por alteração das faculdades mentais daquele (arts. 1792.º, n.º 2, e 1781.º, al. b)). Ao admitir a possibilidade de um cônjuge intentar uma ação de responsabilidade civil contra o outro afastamse os resquícios ainda existentes da teoria da fragilidade da garantia, admitindo o funcionamento das regras da responsabilidade civil por incumprimento dos deveres conjugais [Neste sentido, v., por exemplo, HÖRSTER, Heinrich – A Respeito da Responsabilidade Civil dos Cônjuges… loc. cit., pp. 113-124, e A responsabilidade civil entre os cônjuges. in AAVV. “E foram felizes para sempre…? Uma análise crítica do novo regime jurídico do divórcio”. Coordenação de M.ª Clara Sottomayor e M.ª Teresa Féria de Almeida. Coimbra: Coimbra Editora/Wolters Kluwer, 2010, pp. 108-110; XAVIER, Rita Lobo – Recentes alterações ao regime jurídico do divórcio e das responsabilidades parentais – Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro. Coimbra: Almedina, 2009, p. 37, e Direito ao divórcio, direitos recíprocos dos cônjuges e reparação dos danos causados: liberdade individual e responsabilidade no novo regime do divórcio. In “AAVV. Estudos em homenagem ao Professor Doutor Heinrich Ewald Hörster”. Coimbra: Almedina, 2012, pp. 499 e segs.; DIAS, Cristina – Uma análise do novo regime jurídico do divórcio (Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro). 2.ª ed. Coimbra: Almedina, 2009, pp. 23 e 24, e Breves notas sobre a responsabilidade civil dos cônjuges entre si: o novo regime do art. 1792.º do Código Civil (na redacção dada pela Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro) e a manutenção da irresponsabilidade ao nível dos efeitos patrimoniais do casamento. in AAVV. “Estudos dedicados ao Professor Doutor Luís Alberto Carvalho Fernandes, Direito e Justiça”. Vol. I. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2011, pp. 389-419; PINHEIRO, Jorge Duarte – ob. cit., pp. 760 e segs., e O Direito da Família Contemporâneo. 7.ª ed. Coimbra: Gestlegal, 2020, pp. 465 e segs; e CAMPOS, Diogo e CAMPOS, Mónica Martinez de – Lições de Direito da Família. 3.ª ed. Coimbra: Almedina, 2016, pp. 352-354].
11. E nem se admita que, conforme pugnou a Recorrida na Contestação, a indemnização prevista no art. 1792.º do CC respeita aos concretos factos que fundamentaram o decretamento do divórcio litigioso e que constam da respetiva sentença, sendo que, no caso, houve um divórcio por mútuo consentimento.
12. Por outro lado, contrariamente ao expendido pela Recorrida em sede de contestação, não se pode inferir da circunstância de o Recorrente ter optado por acordar divorciar-se por mútuo consentimento no âmbito da ação de Divórcio Sem Consentimento do Outro Cônjuge contra si intentada pela Recorrida, que o mesmo estava a renunciar expressa ou tacitamente aos direitos indemnizatórios que a lei lhe confere.
13. Para este efeito é irrelevante o modelo de divórcio seguido pelos cônjuges - conforme defendido no Acórdão da Relação de Coimbra, de 10/11/2015, processo nº 360/14.6TBCTB.C1, disponível in www.dgsi: “o divórcio por mútuo consentimento que as partes escolheram para dissolver o casamento não retira à Autora interesse em agir, enquanto pressuposto processual que consiste na necessidade de tutela judiciária, e também não significa, sem mais, uma renúncia tácita ao direito de indemnização por danos não patrimoniais, agora reclamados”, o que conduz à conclusão da inutilidade de alegação de qualquer facto ou de averiguação de factos que possam vir a sustentar um futuro pedido de indemnização em ação autónoma.
14. Neste novo contexto legal, a doutrina maioritária vem reforçando a argumentação sobre o fim da doutrina da fragilidade da garantia dos deveres conjugais e sobre a admissibilidade do direito de indemnização do cônjuge lesado pelos danos resultantes da violação dos deveres conjugais, seja em articulação simultânea com a tutela da personalidade nos termos do artigo 483.º, n.º 1, do CC, seja mesmo em casos de inexistência de tal simultaneidade, desde que a gravidade dos danos mereçam a tutela do direito, nos termos do artigo 496.º, n.º 1, do CC [Vide, a este propósito, HEINRICH HÖRSTER, A Responsabilidade Civil entre os Cônjuges, in obra colectiva intitulada E Foram Felizes Para Sempre …? Uma Analise Critica do Novo Regime Jurídico do Divórcio – Actas do Congresso de 23, 24 e 25 de Outubro de 2008, sob a coordenação de Maria Clara Sottomayor e Maria Teresa Féria de Almeida, Coimbra Editora, 2010, pp. 91 e seguintes; CRISTINA ARAÚJO DIAS, Uma Análise do Novo Regime do Divórcio - Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, Almedina, 2.ª Edição, 2009; AIDA FILIPA FERREIRA DA SILVA, dissertação de Mestrado apresentada na Faculdade de Direito da Universidade do Porto, sob o título Responsabilidade Civil entre Cônjuges no Divórcio – As alterações ao artigo 1792.º do Código Civil com a Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, acessível na Internet; artigo científico de Andreia Cruz, sob o título Deveres Conjugais – índole Jurídica à Luz do Novo Regime do Divórcio (Lei n.º 16/2008), também disponível na Internet].
15. No plano da jurisprudência, continua também a manter-se a linha de orientação no sentido da admissibilidade do direito de indemnização do cônjuge lesado pelos danos não patrimoniais decorrentes da violação dos deveres conjugais nos termos gerais da responsabilidade civil. Foram nesse sentido, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 09/02/20012, proferido no processo n.º 819/09.7TMPRT.P1.S1, e de 17/09/2013, proferido no processo n.º 5036/11.3TBVNG.P1.S1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt. 
16. Em primeiro lugar, há que reconhecer que o estado físico e psíquico do Recorrente, retratado nos artigos 72.º a 116.º da Petição Inicial, foram consequência direta dos comportamentos imputados à Recorrida no plano da violação dos deveres conjugais.
17. Com efeito, a Recorrida violou reiteradamente e com grave culpa os deveres conjugais de respeito, coabitação, cooperação, assistência e o dever de contribuir para os encargos da vida familiar, e com isso lesou a integridade psíquica e física do Recorrente, dando causa à doença psíquica (depressão) de que o Recorrente ora padece.
18. Ora, a violação de qualquer dos deveres conjugais mencionados, por ação ou omissão, de forma ilícita e culposa é suscetível de provocar danos morais e patrimoniais e de gerar, consequentemente, a obrigação de indemnizar o lesado por esses mesmos prejuízos, nos termos conjugados dos artigos 1792.º, n.º 1, e 483.º e seguintes do CC. 
19. A partir do dia 29 de agosto de 2021, a Recorrida, de forma dolosa e voluntária, impediu que o Recorrente estabelecesse qualquer tipo de contacto com as suas duas filhas, pelo que pese embora o Recorrente tenha, por inúmeras vezes, tentado contactar telefonicamente com as suas filhas, todas as suas tentativas revelaramse infrutíferas.
20. Acontece que, apesar do convencionado no “Acordo de Regulação das Responsabilidades Parentais”, desde o dia ../../2022 em diante, as duas filhas do Recorrente e da Recorrida passaram a ignorar por completo as chamadas telefónicas do Recorrente, votandoo também ao abandono.
21. A separação da Recorrida nos moldes ocorridos, através do abandono do lar conjugal, a privação de contacto com suas filhas e o corte abrupto de relações com as mesmas causaram, e causam, ao Recorrente um enorme desgosto, angústia e grande sofrimento, ofendendo a integridade física e psíquica do Recorrente, consubstanciando uma violação do dever de respeito entre os cônjuges pela Recorrida.
22. A Recorrida, agindo com dolo direto, e de forma voluntária e consciente, recusouse a regressar a ... juntamente com o Recorrente e as duas filhas do casal, tendo votado o Recorrente ao abandono.
23. Trata-se, com efeito, de um facto voluntário e sem justificação, que não seja a da própria vontade da Recorrida. Uma saída de casa da família, voluntária e sem explicação, para passar a residir noutro local, é injustificada. Como tal, constitui uma violação culposa do dever de coabitação.
24. É mister ressaltar que desde que abandonou o lar conjugal,- em 24 de agosto de 2021 - a Recorrida deixou de contribuir para os encargos da vida familiar e de assumir a respetiva responsabilidade pelo cumprimento das obrigações financeiras comuns do casal.
25. A Recorrida, de forma dolosa e premeditada, incumpriu a sua obrigação de contribuir conjuntamente com o Recorrente para os encargos e compromissos financeiros que impendiam e ainda impendem sobre o ora excasal, sem revelar qualquer preocupação se o Recorrente, totalmente sozinho e votado ao abandono em ..., conseguia prover, a seu exclusivo encargo, ao pagamento de todas as avultadas despesas e obrigações financeiras comuns do casal, violando, de forma ilícita e culposa, os deveres de cooperação, assistência e o dever de contribuir para os encargos da vida familiar,
26. Até à data da separação conjugal, o Recorrente era uma pessoa saudável, alegre, comunicativo e bem-disposto, não padecendo de quaisquer problemas de saúde. 
27. Da análise criteriosa dos documentos 14.º a 29.º juntos aos autos com a Petição Inicial, resulta manifesto que tantos os problemas oftalmológicos, como a doença depressiva de que o Recorrente padece, foram causados, única e exclusivamente, pelos comportamentos perpetrados pela Recorrida após o abandono do lar conjugal, sendo inequívoco o nexo de causalidade entre os comportamentos da Recorrida e os danos sofridos pelo ora Recorrente.
28. No caso sub judice, os danos que advieram para o Recorrente foram não só os problemas oftalmológicos de que padece, como ainda a doença psíquica (não se trata de uma simples tristeza, mas sim de um grave estado depressivo medicamente atestado) de que sofre, os quais, pela sua manifesta gravidade, merecem a tutela do Direito.
29. In casu, verifica-se, inequivocamente, uma relação de causa-efeito entre o comportamento culposo e ilícito da Recorrida e os problemas de saúde do Recorrente, registados a esse nível.
30. Verificados aqueles atos ilícitos e culposos da Recorrida, temos, igualmente, os restantes pressupostos da responsabilidade civil, ou seja, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
31. A doutrina e a jurisprudência dominantes têm defendido a plena aplicação de toda a responsabilidade civil, incluindo a responsabilidade contratual por violação dos deveres conjugais, ainda que os atos não tenham ofendido direitos de personalidade do lesado.
32. A este respeito, os Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-09-2013, processo n.º 5036/11.3TBVNG.P1.S1, e de de 8/9/2009, de que foi Relator o Conselheiro Sebastião Póvoas, postularam expressamente que: “quer os danos eventualmente decorrentes da dissolução do casamento quer os que resultem de factos (ilícitos) que possam ter ocorrido durante a relação conjugal, são indemnizáveis nos termos do regime geral da responsabilidade civil”.
33. Salientese que o cônjuge lesado deve poder pedir ao outro uma indemnização quer pelos danos patrimoniais quer pelos não patrimoniais (art. 496º); e quer pelos danos resultantes diretamente dos factos que servem de fundamento ao divórcio quer pelos danos resultantes do próprio divórcio, e que são consequência indireta daqueles factos - cfr. CRISTINA DIAS, Responsabilidade civil entre os cônjuges – o afastamento da fragilidade da garantia e o papel dos Tribunais, in Dizer O Direito: O Papel Dos Tribunais No Século XXI,  https://doi.org/10.21814/uminho.ed.30.8. 
34. À luz das considerações vertidas, a apreciação do desvalor da conduta culposa da Recorrida e da medida dos danos causados por essa conduta na esfera jurídica pessoal e patrimonial do Recorrente, está hoje remetida para a lei civil geral da responsabilidade por factos ilícitos - art. 483.º do CC.
35. No caso vertente destes autos, não existem dúvidas relativamente à verificação dos pressupostos da responsabilidade civil: a) facto ilícito; b) culpa; c) dano; d) nexo causal.
36. São pressupostos da responsabilidade em que a Recorrida incorreu, a livre vontade com que praticou os atos, a ilicitude destes, a culpa com que os praticou, os danos que causou e o nexo de causalidade entre os atos e os danos.
37. In casu constata-se que os comportamentos descritos, perpetrados pela Recorrida, não só constituem a violação de deveres conjugais a que a Recorrida estava adstrita, como acarretam danos não patrimoniais para o Recorrente, resultantes quer da violação dos deveres conjugais na constância do matrimónio, quer da cessação do vínculo matrimonial,
38. Em face do exposto, estão reunidos todos os pressupostos da responsabilidade civil, nomeadamente para que possam ser assacadas à Recorrida responsabilidades pelos danos não patrimoniais e patrimoniais sofridos pelo Recorrente, nos termos do artigo 496.º do Código Civil.
39. Ao não decidir em conformidade com o supra exposto, violou a douta sentença recorrida o disposto nos artigos 1792.º, 483.º e 496.º do Código Civil.
40. Ainda que se entenda que a responsabilidade a que se refere o art. 1792.º apenas ocorre se paralelamente à violação de um dever conjugal houver violação de um direito de personalidade do cônjuge, o que por mera cautela de patrocínio se concede, sempre se dirá que as condutas da Recorrida para além de terem constituído uma violação grave, reiterada, ilícita e dolosa dos deveres de respeito, coabitação, cooperação, assistência e o dever de contribuir para os encargos da vida familiar, atentaram contra os direitos de personalidade do Recorrente, enquanto pai e homem, merecendo a tutela do Direito.
41. Ora, contrariamente ao que foi decidido na sentença recorrida, as violações dos deveres conjugais perpetradas pela Recorrida atingiram inequivocamente a
esfera de tutela dos direitos de personalidade previstos nos art. 70.º e ss e 484.º do CC, conforme resulta clarividente do teor dos artigos 72.º a 116.º da Petição Inicial, e dos documentos n.º 14.º a 29.º juntos com a mesma. 
42. Conforme se decidiu a este respeito no douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12-05-2016, processo n.º 2325/12.3TVLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt: “Não se suscitará, pois, grande dúvida de que, pelo menos nos casos de concomitância da violação dos deveres conjugais e da tutela da personalidade, o mesmo é dizer, da violação dos direitos de personalidade ainda que através da violação dos direitos conjugais, assista ao cônjuge lesado o direito a ser indemnizado pelos danos daí decorrentes nos termos gerais da responsabilidade civil”.
43. Compulsada a Petição Inicial, verifica-se que as fundamentações dos pedidos de condenação da Recorrida, por danos morais e patrimoniais, assentam na invocada violação, por esta, de deveres conjugais que a vinculavam na constância do matrimónio, e que se consubstanciaram, igualmente, na violação dos direitos de personalidade do Recorrente.
44. Ao arrepio das considerações supra vertidas, pretende o Recorrente ver compensado o seu direito à liberdade de autodeterminação, à saúde física e psíquica e dignidade de pessoa humana, decorrente da atitude ilícita, culposa, prepotente e reiterada da Recorrida.
45. Agindo como agiu, a Recorrida violou, ilicitamente e de forma continuada, o direito à integridade física, o direito a um corpo e a uma mente saudável, o direito à dignidade, o direito a uma convivência fundada no respeito mútuo, na colaboração e na igualdade, do Recorrente.
46. Tudo obrigações legais que vinculam todos os cidadãos portugueses desde há muitos anos e que, por isso, constituem a Recorrida. na obrigação de indemnizar o Recorrente pelos danos resultantes daquelas violações – art. 483.º do CC.
47. Face a todo o exposto dúvidas não existem de que a pretensão indemnizatória formulada pelo Recorrente tem consagração legal, impondo-se, consequentemente, o prosseguimento dos autos, com a sua normal tramitação, para apreciação dos pedidos formulados pelo Recorrente.

TERMOS EM QUE, Deve o recurso ser julgado totalmente procedente, revogando totalmente a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento da ação para  apreciação  dos  pedidos de  condenação da Ré/Recorrida, com as devidas consequências legais“.

A Ré respondeu, com as seguintes
conclusões:

“- 1. 1. Salvo o devido e merecido respeito, não merece o Tribunal a quo qualquer censura na decisão proferida, nomeadamente, as que o Recorrente lhe desfere.
2. Dispõe o artigo 590º  (art.º 234.º-A/508.º CPC 1961), n.º1 do Cód. Proc. Civil que “ (…) a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 560.º.”
3. Está em causa na 1ª parte deste preceito (“ quando o pedido seja manifestamente improcedente), a também chamada inviabilidade ou inconcludência, que implica um vício de conteúdo, uma situação em que o pedido formulado, no todo ou em parte, não encontra acolhimento na ordem jurídica. 
4. A falta de acolhimento do pedido na ordem jurídica configura-se como “manifesta” quando as razões para assim concluir sejam evidentes, ostensivas e, por assim ser, tanto quanto possível, não geradoras de controvérsia jurídica.
5. E, é esta inviabilidade da pretensão do Autor, que se verifica nos presentes autos. 
6. O Autor não tem o direito a que se arroga e a sua tese não possui possibilidade de ser acolhida face à lei em vigor e à interpretação que dela fazem a doutrina e a jurisprudência
7. Ora, o Autor peticiona nos presentes autos uma indemnização por danos não patrimoniais resultantes quer da violação dos deveres conjugais na constância do matrimónio, quer da cessação do vínculo matrimonial, por divórcio, nos termos gerais dos artigos 483º e 496º, ambos do Cód. Civil.
8. A responsabilidade civil que o art. 1792.º menciona é somente aquela que se funda na violação de direitos absolutos, independentemente da condição de cônjuge do lesante ou do lesado; é, pois, a responsabilidade extracontratual.
9. O casamento tem ínsito um projeto de vida em comum e o seu termo representa o ruir desse projeto, o que causa dor, sendo esse sofrimento normal em todas as situações de rutura (“situações psicológicas negativas”), contudo só por si não merece a tutela do direito.
10. O Autor, aqui Recorrente não queria divorciar-se da Ré.
11. Foi a Recorrida que intentou a ação de divórcio, imputando os factos objetivos que originaram a rutura conjugal.
12. Ainda assim e, como foi o caso, se na tentativa de conciliação, a parte que não intentou a ação de divórcio, por inicialmente não ser essa a sua vontade, por não considerar estra perante a rutura definita do casamento, acabar por aceitar divorciar-se, a convolação do divorcio litigioso, por reciproco acordo é inevitável.: - cfr. artigo 1778.º-A e 1779º do Cód. Civil.
13. Para o Recorrente contudo, nunca houve qualquer motivo suficientemente grave, que justificasse o divórcio.
14. O Autor não considerou existirem violações dos deveres conjugais específicos, que pela sua gravidade motivassem o divórcio, mas após este ser decretado afirma a existência de graves violações de deveres gerais de respeito, de ofensas a direitos de personalidade e a direitos fundamentais.
15. Foram as condutas do Recorrente que levaram à rutura familiar e, consequentemente que deterioraram a relação, que o mesmo tinha com as filhas. 
16. A Recorrida não abandonou o Recorrente, nem nunca proibiu qualquer contacto com as filhas. 
17. O Recorrente, por sua vontade deixou de procurar as suas filhas e de manter contacto elas, o que naturalmente originou um afastamento, mas que só a si é imputável.
18. E, sempre se diga que a simples rutura do matrimónio, ainda que configurando uma rutura de um projeto de vida, causando o sofrimento normal, pela sua falta de gravidade, não merece tutela do direito, não constituindo fundamento suficiente para que se justifique a existência do dever de indemnizar de um dos cônjuges. 19. Não corresponde à verdade que : Com efeito, a Recorrida violou reiteradamente e com grave culpa os deveres conjugais de respeito, coabitação, cooperação, assistência e o dever de contribuir para os encargos da vida familiar, e com isso lesou a integridade psíquica e física do Recorrente, dando causa à doença psíquica (depressão) de que o Recorrente ora padece.”
20. Os documentos 14º a 29º, a que o Recorrente se refere foram juntos por si aos autos como “relatórios médicos”, e estão escritos em Francês , qualquer tradução, e por isso destituídos da sua finalidade. 
21. Ainda assim, parte deles, possuem um conteúdo muito limitado, com designações que sugerem ser apenas receitas/prescrição de medicamentos. 
22. Pelo que, dos mencionados documentos não se retira qualquer conclusão, muito menos que “ resulta manifesto que tantos os problemas oftalmológicos, como a doença depressiva de que o Recorrente padece, foram causados, única e exclusivamente, pelos comportamentos perpetrados pela Recorrida”.
23. Poderá comprovar, quanto muito, que o Recorrente sofre de algumas patologias, para as quais são prescritos medicamentos. 
24. Pelo, que em momento algum, com a junção destes documentos o Recorrente pode concluir pela existência de qualquer nexo entre as doenças/défices de que alega ser portador e a rutura do seu casamento com a Recorrida. 
25. O Recorrente sabe, que não estão preenchidos os requisitos para que haja lugar à responsabilidade extracontratual nos termos do 483.º do Cód. Civil. 
26. Porquanto a Recorrida nunca praticou qualquer facto ilícito que tenham comportados danos na esfera jurídica do Recorrente. 
27. Além disso, no que concerne às obrigações financeiras e despesas conjuntas do casal, quer em Portugal, quer em ..., todas as despesas feitas pelo casal relativamente aos bens comuns estão a ser consideradas no processo de Inventário 2534/21...., que corre termos no Juízo de Família e Menores de Viana do Castelo - Juiz .... 
28. E no processo na ..., instaurada pelo Recorrente ser dar conhecimento aos autos Inventário 2534/21..... 
29. Além do mais, correu termos o processo de divisão de coisa comum n.º 1251/23...., no Juízo Local Cível de Viana do Castelo - Juiz ..., no qual foi realizada a venda do prédio urbano, sito na freguesia ...,  do qual eram Recorrente e Recorrida comproprietários. 
30. No que respeita às filhas do casal, a questão já foi julgada, sendo proferida sentença, que julgou não ter existido qualquer incumprimento do regime de visitas: conforme documento n.3 junto pela Requerida aos presentes autos, com a Contestação. 
31. A Ré cumpre e sempre cumpriu com as suas obrigações enquanto mãe e, ao contrário do que o Autor afirma, não incumpriu qualquer das suas obrigações relativamente às suas filhas e referente aos bens comuns do casal.
32. O Autor e a Ré divorciaram-se por acordo e, por isso não são imputáveis a nenhum dos ex-cônjuges, a violação de quaisquer deveres conjugais.
33. Do mesmo modo a Ré não praticou qualquer ato suscetível de violação ilícita da tutela geral da personalidade do Autor.
34. As condutas cuja ilicitude venham do matrimónio, ou que só relevem a partir dele por ofenderem valores especificamente matrimoniais em vez de violarem direitos prévios de que toda a pessoa nasce titular, não desencadeiam responsabilidade civil (responsabilidade extracontratual).
35. Estes atos apenas são suscetíveis de causar um dano endofamiliar e que só pode ser avaliado dentro do âmbito do casamento. 
36. Condenar a Recorrida ao pagamento de um indemnização ao Autor, quando não se encontram preenchidos quaisquer dos requisitos do 483º do Cód. Civil, considerando que todos os atos que o mesmo imputa à Ré foram causados na integra por si, e além do mais não constituem a violação de qualquer direito absoluto, seria um claro abuso de direito.
37. E limitaria o efeito prático introduzido pela Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro, que modificou substancialmente o modelo do divórcio litigioso, que passou a ser designado divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, permitindo a qualquer um dos cônjuges requerer o divórcio e abolindo a declaração de culpa.
38. Pois, culminaria à semelhança num regime sancionatório, que condicionaria a opção dos cônjuges pelo divórcio em virtude da reparação dos danos, que arbitrariamente o outro cônjuge lhe decidisse imputar.
39. Constituindo uma grave limitação e restrição aos direitos de personalidade da Ré e, consequentemente, configurando uma violação do artigo 26º da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado como não provado e improcedente, mantendo-se a douta Sentença recorrida.“

II- Objeto do recurso

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso ou se versarem sobre matéria de conhecimento oficioso, desde que os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.

Face ás conclusões dos recursos e respostas importa verificar:
- se foram alegados factos que, provados, pudessem justificar a condenação da Ré a indemnizar os danos invocados pelo Autor.

III- Fundamentação de Facto

Segue o elenco da matéria de facto provada selecionada na sentença:
O Autor e a Ré encontram-se divorciados, por sentença proferida a 17 de fevereiro de 2022, no processo n.º 2534/21...., que correu termos no Juízo de Família e Menores – Juiz ..., do Tribunal Judicial de Viana do Castelo.
 A ação de divórcio sem consentimento do cônjuge foi intentada pela Ré, convertendo-se, por acordo, em divórcio por mútuo consentimento.
  
IV- Fundamentação de Direito

A presente situação exige uma tomada de posição sobre se a responsabilidade civil a que alude o artigo 1792º nº 1 do Código Civil apenas abrange os danos que resultem da violação de direitos de personalidade do cônjuge ou toda e qualquer violação de um dever conjugal que cause sofrimento ao outro cônjuge.
Esta norma determina que “O cônjuge lesado tem o direito de pedir a reparação dos danos causados pelo outro cônjuge, nos termos gerais da responsabilidade civil e nos tribunais comuns.”
Anteriormente à sua alteração, pela lei 61/2008, lia-se neste normativo: “ 1. O cônjuge declarado único ou principal culpado e, bem assim, o cônjuge que pediu o divórcio com o fundamento da alínea c) do artigo 1781.º devem reparar os danos não patrimoniais causados ao outro cônjuge pela dissolução do casamento.”
 Atrás desta alteração do Código Civil esteve a evolução social dos conceitos de casamento e de divórcio. O casamento deixou de ser considerado essencialmente como um acordo pelo qual os cônjuges assumem um conjunto de obrigações perante si com vista à criação de uma família (o modelo de casamento/família — instituição), e o divórcio, com uma característica essencialmente sancionatória, como um falhanço social. O casamento passou a ser visto como o espaço de realização comum de ambos os cônjuges, assumindo uma comunhão de vida talhada pelos laços afetivos dos cônjuges, sem esquecer o bem-estar individual de cada um deles (casamento/família — convivência) sujeitos a determinados deveres e comportamentos, a fim de permitir o desenrolar dessa relação. Passou a considerar-se o divórcio como uma consequência do princípio da liberdade, fundado na ideia que um cônjuge que entenda que houve quebra do laço afetivo não deve ser obrigado a manter-se casado: é o divórcio remédio, reconhecimento da rutura da vida em comum.
 A desilusão pelo terminar do casamento traduzido no divórcio que não se funde na alteração das faculdades mentais do outro cônjuge, deixa de ser indemnizável, por ser observado como um remédio para uma situação que terminou, a qual não se tem como tendencialmente perpetua até à morte dos cônjuges e para a qual não se procura a culpa.
“…porque a dissolução do casamento por divórcio corresponde ao exercício de um direito potestativo, na falta de previsão legal expressa a estatuir a obrigação de compensação desses danos com base em facto lícito, tais danos não patrimoniais derivados da dissolução do casamento não são compensáveis. III - Quanto aos restantes danos não patrimoniais e patrimoniais, causados por um cônjuge ao outro, são ressarcíveis, nos termos gerais da responsabilidade civil e mediante ação a intentar nos tribunais comuns.- cf acórdão  do Tribunal da Relação do Porto de 09/26/2016, no processo 7191/15.4T8VNG.P1 (o qual, no entanto, cita jurisprudência em sentido contrário).
Como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09/02/2012,   no processo n.º 819/09.7TMPRT.P1.S1: «A família transforma-se num espaço privado, de exercício da liberdade própria de cada um dos seus membros, na prossecução da sua felicidade pessoal, livremente entendida e obtida, deixando o casamento de assumir, progressivamente, um carácter institucional, maxime, sacramental, sobretudo na componente da afirmação jurídico-estadual da sua perpetuidade e indissolubilidade, para passar a constituir uma simples associação de duas pessoas, que buscam, através dela, uma e outra, a sua felicidade e realização pessoal, e em que a dissolução jurídica do vínculo matrimonial se verifica quando, independentemente da culpa de qualquer dos cônjuges, se haja dissolvido de facto, por haver pedido, definitivamente, e sem esperança de retorno, a possibilidade de vida em comum».
A violação dos deveres conjugais deixou de ser o fundamento do divórcio, mesmo nas situações não consensuais, não se procedendo à avaliação da culpa dos cônjuges na dissolução do matrimónio, a qual deixou de ter quaisquer consequências no âmbito da partilha.
Passou a exigir-se um equilíbrio entre os interesses pessoais de cada cônjuge e o interesse familiar.
 Embora exista também ampla doutrina e jurisprudência no sentido oposto, que também abordaremos, esta ideia leva-nos a não aceitar que aos deveres conjugais correspondam direitos subjetivos de um cônjuge sobre o outro:  os cônjuges não têm o poder de livremente exigir do outro determinado comportamento, sem ter em vista o interesse comum de ambos os cônjuges, visto que foi para tanto que o casamento foi instituído. Não pode, pois, ser livremente exercido pelo seu beneficiário, sem tal vinculação: pressupõem, sempre, que se mantenha o vinculo afetivo e de comunhão de vida que sustenta o casamento.
 Estes são poderes deveres, que têm como beneficiária a vinculação do casamento, a qual pode ter como contraponto a individualidade dos cônjuges e a sua liberdade de ação para o desenvolvimento da personalidade.
Assim, apenas quando a violação dos deveres conjugais tem como consequência a violação dos deveres de personalidade do outro cônjuge, deveres estes absolutos, é que pode ser acionada a responsabilidade civil extracontratual. “Visivelmente, (…) o legislador não quis que à violação culposa dos deveres conjugais fossem associadas quaisquer consequências patrimoniais desvantajosas — não quis que o cônjuge “respondesse” nesse plano dos efeitos patrimoniais do divórcio (em matéria de partilha, de perda das liberalidades recebidas, de alimentos), pelo que não se compreende, sob pena de incoerência do sistema, que ele venha agora “responder” no plano da responsabilidade civil comum.” como tão bem justifica Francisco Brito Pereira Coelho, Deveres conjugais e responsabilidade civil – estatuto matrimonial e estatuto pessoal (não matrimonial) dos cônjuges,   p. 62.
Também Guilherme de Oliveira seguia este entendimento: “A dissolução do casamento assenta num princípio de rutura objetiva, baseada em factos que mostram a cessação definitiva do projeto matrimonial. Sendo assim, não se procura um culpado nem um principal culpado; nem um inocente, que possa ser considerado o lesado e, portanto, o titular de um direito de indemnização pela violação dos deveres conjugais.”
Logo, os direitos pessoais familiares não são direitos subjetivos propriamente ditos, mas poderes funcionais, poderes-deveres. Neste sentido, além dos citados, depõem autores como Antunes Varela, Almeida Costa, Capelo de Sousa, Mafalda Miranda Barbosa. Pode haver interesses tutelados pelo direito objetivo, a que, todavia, não corresponde um direito subjetivo, porque a respetiva tutela é organizada por outro meio.
Isto não significa que os direitos subjetivos de um cônjuge deixam de ter tutela perante uma violação cometida pelo outro cônjuge, antes pelo contrário, atenta a especial obrigação de respeito que o contrato celebrado criou:  os cônjuges nas relações entre si não perdem a generalidade dos seus direitos de personalidade, pelo que têm que os respeitar mutuamente (até com maior intensidade que pessoas estranhas entre si, face ao vínculo que os une) e por isso respondem pelos danos, mesmo que não patrimoniais, que lhes causem (como na honra, na reputação, no amor próprio, na liberdade e na intimidade. Cf neste sentido Capelo de Sousa in O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, 1995, p. 451).
Entre tais direitos de personalidade realça-se o direito ao respeito (tendo o correspondente dever, pela sua intensidade no âmbito do casamento, sido erigido a dever conjugal). O direito ao respeito é um direito absoluto que se traduz na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da pessoa, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.
Há um outro conjunto de autores, citados pelo Recorrente (Cristina Dias, Heinrich Ewald Hörster, Jorge Duarte Pinheiro) que defendem que aos deveres a que os cônjuges estão vinculados correspondem, no lado ativo, direitos subjetivos e não poderes funcionais. Defendem, pois, que os deveres conjugais pessoais atribuem ao outro cônjuge direitos subjetivos, pelo que a sua violação, mesmo que não contenda com direitos absolutos pessoais do cônjuge, podem levar á responsabilização civil.
Esta posição tem sido erigida como a mais adotada na jurisprudência, mas parece-nos que tem vindo a perder seguidores, embora se mantenha bem atual, como é exemplo o acórdão de 09/26/2023, no processo 1630/22.5T8CTB.C1 “A Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro ao eliminar o conceito de “culpa” no âmbito do processo judicial de divórcio litigioso, veio consagrar expressamente a possibilidade de o cônjuge lesado peticionar uma indemnização ao cônjuge lesante, nos termos gerais da responsabilidade civil (artº 483 do C.C.), não já restrito aos danos sofridos pela dissolução do matrimónio, mas conferindo-lhe o direito à tutela de todos os danos causados pelo cônjuge lesante, independentemente da violação de outros direitos abso­lutos pessoais.”
De qualquer forma, é pacífico para todos que “pelo menos em caso de concomitância de violação dos deveres conjugais pessoais e dos direitos de personalidade do cônjuge lesado, impõe-se reconhecer a admissibilidade do direito a indemnização com base nos termos gerais da responsabilidade civil”, como o determinou o Supremo Tribunal de Justiça no processo 2325/12.3TVLSB.L1.S1, em acórdão de 05/12/2016.
Da mesma forma, mesmo os mais francos defensores da atribuição de direitos subjetivos como reverso da medalha de deveres conjugais antemuram que não é suficiente para a responsabilização civil  situações como: «a mera extinção do afeto de um cônjuge pelo outro, causadora de profunda mágoa com reflexos psicológicos e até patrimoniais no cônjuge lesado», «a recusa de um cônjuge em manter relações sexuais com o respetivo cônjuge» ou a violação do dever de fidelidade sem qualquer projeção pública e numa situação em que ocorrera já assumidamente a perda de afeto.
Assim, a obrigação de ressarcimento a que se reporta o artigo 1792º nº 1 do Código Civil não se basta, no entanto, no que ao ilícito concerne, com o simples incumprimento do dever conjugal que, como vimos, não atribui um clássico direito subjetivo aos cônjuges, sendo poderes-deveres dirigidos a um fim, mas na violação do direito ao respeito inerente a cada ser humano e que no caso dos cônjuges se torna ainda mais forte e abrangente.
Veja-se, a favor desta posição que vimos defendendo, os seguintes trechos de muito relevo de acórdãos recentes:
Por força do Art.º 1792.º n.º 1 do C.C., com a redação dada pela Lei n.º 61/2008, de 31/10, o cônjuge lesado tem direito a indemnização por danos não patrimoniais causados durante a vigência do casamento, decorrentes da violação dos deveres conjugais (v.g. Art.ºs 1672.º e ss. do C.C.), que importem essencialmente na lesão dos seus direitos de personalidade, nos termos gerais da responsabilidade civil prevista no Art.º 483.º do C.C., sendo a indemnização de atribuir quando os danos assumam gravidade suficiente para merecerem a tutela do direito (Art.º 496.º n.º 1 do C.C.)”. (Tribunal da Relação de Lisboa, 09/12/2023, 1978/19.6T8FNC.L1-7)
«I –O cônjuge que se sinta lesado pela prática, pelo outro cônjuge, na constância do matrimónio, de factos ilícitos violadores dos deveres conjugais, que consubstanciem também a violação dos seus direitos de personalidade, pode demandar o cônjuge lesante, peticionando indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, nos termos gerais da responsabilidade civil, através de ação intentada nos tribunais comuns e independente da dissolução do matrimónio por divórcio e, consequentemente, dos factos que serviram de fundamento à sentença que o decretou A responsabilidade civil entre cônjuges decorrente do art.º 1792º/1, do CCivil, abrange apenas a responsabilidade extracontratual, abrangendo os danos que resultem da violação de direitos de personalidade. II – Assim, o cônjuge que se sinta lesado e pretenda pedir o pagamento da respetiva indemnização terá de alegar e provar os pressupostos da responsabilidade civil previstos nos art.ºs 483º e seguintes do CCivil». (Tribunal da Relação de Lisboa, 28/5/2019, processo nº 7865/18.8T8LSB.L1-7, cujo entendimento também foi seguido em 25/3/2021, no processo nº 4195/19.1T8ALM.L1)
É legítimo ao cônjuge cuja lesão decorra da prática, pelo outro cônjuge, na constância do matrimónio, de factos ilícitos violadores dos deveres conjugais, que consubstanciem também a violação dos seus direitos de personalidade, demandar o cônjuge lesante, peticionando indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, nos termos gerais da responsabilidade civil aquiliana” (Tribunal da Relação de Évora, 26-01-2017, processo nº 18/16.1TBSRP.E1)

concretização
Ora, o presente caso é, do nosso ponto de vista, paradigmático: é imputado à Ré o abandono do lar conjugal (sendo que passados 15 dias intentou ação em que pediu o divórcio), causador de sofrimento intenso e um grave sentimento de abandono ao cônjuge Autor. Como melhor veremos infra, nada mais é concretizado em imputação à Ré que se possa ter aqui em atenção.
Ora, com este abandono do lar, apesar de se poder em abstrato, visto que ainda se não discutiram as suas causas, considerar ser uma violação do dever de coabitação, nenhum direito pessoal do autor foi violado: o dever em causa é inerente à relação familiar formada pelo casamento, não tendo qualquer correspondência nos direitos absolutos das pessoas.
No momento em que o sofrimento causado pelo divórcio pedido pelo cônjuge principal responsável pelo findar do casamento não é um dano indemnizável, não se vê como o simples abandonar do lar comum (nos 15 dias que precederam o pedido de divórcio) o poderia ser, mesmo que essa saída e ausência cause ao cônjuge que fica desgosto, sofrimento e sentimento de solidão, profundos e compreensíveis. Não é exigível, nos parâmetros do atual quadro do casamento, que se imponha ao cônjuge que verifica que a vida em comum se tornou impossível que fique a viver na casa de morada de família representando um papel numa relação conjugal que já não existe ou que suporte essa situação para não causar sofrimento ao outro cônjuge (até que o divórcio seja decretado?)
O mesmo ocorre com a total ausência de atenção que lhe foi votada na sequência da separação, que também é invocada pelo Autor.
Assim, embora ainda casados, porque a coabitação é um dever que apenas tem sentido enquanto vocacionados para a comunhão conjugal e não atribui aos cônjuges um direito subjetivo ao seu cumprimento, a sua simples violação não é suscetível de despoletar o dever de indemnizar, nos termos do artigo 1792º do Código Civil.
Por seu turno, a imputada violação de deveres parentais pela Ré (privar o Autor de quaisquer contactos e notícias das suas filhas) é questão a ser abordada nos Tribunais de Família, no âmbito do processo para tanto desenhado: o artigo 41º do Regime Geral Do Processo Tutelar Cível (“ Lei n.º 141/2015) determina “Se, relativamente à situação da criança, um dos pais ou a terceira pessoa a quem aquela haja sido confiada não cumprir com o que tiver sido acordado ou decidido, pode o tribunal, oficiosamente, a requerimento do Ministério Público ou do outro progenitor, requerer, ao tribunal que no momento for territorialmente competente, as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa até vinte unidades de conta e, verificando-se os respetivos pressupostos, em indemnização a favor da criança, do progenitor requerente ou de ambos.” Não pode, pois, ser objeto da indemnização a atribuir nesta sede.
As despesas com consultas, tratamentos médicos e aquisição de óculos de visão originadas, no entender do Autor, na violação destes deveres, não podem também, por natureza, ser objeto de indemnização, pelas razões que expressámos supra.
 Da mesma forma, o não pagamento das despesas que haviam sido assumidas pelo casal, podendo levar a responsabilidade patrimonial perante os patrimónios em causa, não implica a violação de qualquer direito subjetivo pessoal do Autor, sendo questões patrimoniais a avaliar em sede de partilhas.
Assim, há que dar toda a razão à sentença quando refere que “Dito por outras palavras, os comportamentos cuja ilicitude nasça do casamento, ou que só relevem a partir dele por ofenderem valores especificamente matrimoniais em vez de violarem direitos prévios de que toda a pessoa nasce titular, não suscitam responsabilidade civil, que seria a responsabilidade extracontratual. 
 O dever de coabitação, citado pelo Autor, não tem existência própria antes ou fora de um matrimónio. Estabelece-se dentro da relação bilateral do casamento, e as suas violações também não ofendem qualquer direito de personalidade, com efeitos absolutos, que seja inerente à personalidade humana; só podem configurar um dano endofamiliar”, alargando-se o mesmo ao dever de cooperação conjugal, nas várias formas que assume.
Desta forma, concorda-se integralmente com o decidido na sentença recorrida, que se encontra muito bem elaborada, considerando que mesmo que se provassem todos os factos alegados pelo Autor e não os invocados pela parte contrária, a ação não poderia proceder, por não ter sido alegada a violação de um direito subjetivo do autor a que a lei dê tutela autónoma como fonte de responsabilidade civil extracontratual.

V- Decisão

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em confirmar integralmente a sentença proferida.
Custas pelo Recorrente (artigo 527º nº 1 e 2 do Código de Processo Civil).
 

Guimarães, 19-09-2024

Sandra Melo
Maria Amália dos Santos
José Manuel Flores