INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
IDENTIFICAÇÃO PARCELA DE TERRENO
INDEMNIZAÇÃO POR DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DOLO
Sumário


I- A ineptidão da petição inicial apenas pode ser invocada pelos RR na contestação e apenas pode ser conhecida pelo tribunal no despacho saneador ou na sentença final, caso não haja lugar àquele.
II – A identificação física de uma parcela de terreno não tem de ser feita, necessariamente por referência á sua área, desde que a mesma esteja devidamente identificada por outros elementos físicos, como a sua localização e confrontações.
III- Age com culpa dolosa o R que contrariamente ao acordado com o A, derruba a totalidade do muro delimitador das propriedades de ambos, e constrói outro novo, alterando as confrontações dos prédios, e apropriando-se voluntariamente de uma parcela de terreno pertencente aos AA.

Texto Integral


Processo: 1008/22.0T8VVD.G1
Tribunal Judicial da Comarca de Braga
Juízo Local Cível de ...

Relatora: Maria Amália Santos
1ª Adjunta: Anizabel Sousa Pereira
2ª Adjunta: Paula Ribas

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AA, solteiro, maior, residente em Alameda ..., ..., União de freguesias ... e ..., concelho ... e distrito ..., e BB, solteiro, maior, residente em Rua ..., ..., freguesia ..., concelho e distrito ...., intentaram a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra CC e marido DD, ambos residentes em Rua ..., Porto ... ... ..., formulando contra os mesmos o seguinte pedido:

“A. Ser reconhecido que os AA. são donos e legítimos possuidores do prédio identificado no artigo 1º da PI nos exatos termos em que se encontra definido nos Documentos 1., 2. 5., 6. e 7.; e
B. Ser reconhecido que dele faz parte integrante a parcela de terreno de que os RR. se apoderaram,
E, consequentemente, sejam os RR. condenados:
C. A restituir aos AA. essa parcela de terreno, no exato estado em que se encontrava antes de a ocupar e, se abstenham, de futuro, de praticarem quaisquer atos que perturbem a sua posse e direito de propriedade sobre esse prédio, incluindo (…) sobre a parcela de terreno reivindicada, parte integrante daquele prédio.
D. E, ainda, a eliminar a saída para o prédio dos AA. de todo e qualquer tipo de emissão de fumo, fuligem, vapores, cheiros, calor ou ruídos, e/ou produção de trepidações.

E, SEMPRE,
E. Serem os RR em virtude da conduta sempre ilícita e culposa e, bem assim geradora dos danos morais e prejuízos supramencionados decorrentes da ocupação abusiva e ilegítima do prédio dos AA., desde pelo menos, 05.09.2022, condenados solidariamente ao pagamento a cada um dos AA. de uma indemnização no valor de €1.500,00, no total de €3.000,00, acrescida de € 500,00 por cada mês que decorra desde a sua citação até à efetiva desocupação”.
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Alegam para tanto e em síntese, que são donos e legítimos proprietários do prédio urbano identificado no artigo 1.º da petição inicial, o qual na estrema norte sempre foi delimitado, em parte por um muro e na outra parte pela construção existente no prédio dos Réus e que, por isso, a parcela de terreno que se inicia no caminho público e que se estende por todo o seu prédio, com uma largura aproximada de 1 metro a 1,25, e pelo menos 17 metros, faz parte integrante do seu prédio.
Mais alegam que sobre o prédio e designadamente sobre a parcela supra referida exercem atos de posse, por si e seus ante possuidores, desde pelo menos 1971, ininterruptamente, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, convictos de que exercem um direito próprio, pelo que ainda que outro título não tivessem sempre o teriam adquirido por usucapião.
Alegam ainda que no ano de 2019 os Réus, alegando pretenderem fazer obras de requalificação da sua moradia, solicitaram aos AA. que lhes permitissem demolir, no estritamente necessário, o muro acima referido, que até então delimitava ambos os prédios, com a promessa de o reporem exatamente no mesmo local após a conclusão das obras, o que não fizeram, construindo um novo muro na estrema norte do prédio dos AA, criando uma nova linha divisória de ambos os prédios, e ocupando a parcela de terreno acima referida, pertencente aos AA.
Procederam ainda os RR ao encaminhamento de tubagem na fachada sul da sua edificação, com saída para o seu prédio, sem qualquer autorização.
Interpelados para reporem o muro nos exatos termos em que sempre existiu, e para se absterem de encaminhar quaisquer fumos/gases para o prédio do AA, os RR não o fizeram, causando-lhes com a sua conduta extrema ansiedade, angústia e nervosismo.
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Regularmente citados, os Réus contestaram, reconhecendo que os Autores são proprietários do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...05, mas que a parcela de terreno em causa lhes pertence.
Relativamente à tubagem, referem que a mesma não viola o direito urbanístico, nem a legislação vigente, impugnando, assim, os factos alegados pelos Autores.
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Tramitados regularmente os autos foi então proferida a seguinte decisão:

“Em face do exposto, decide-se julgar a ação parcialmente procedente e, em consequência:
7.1. Declaram-se os Autores donos e legítimos possuidores do prédio urbano, sito em ..., inscrito na matriz predial urbana n.º ...27 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...05, incluindo da parcela de terreno com uma área não concretamente apurada, que se estende por todo o prédio dos Autores, com a largura aproximada de 1 a 1,25 metros e com pelo menos 17 metros de comprimento, com saída para o caminho público por um portão.
7.2. Condenam-se os (…):
7.2.1. A restituírem a parcela de terreno referida em 7.1. no estado em que se encontrava e a absterem-se de perturbar a posse e a propriedade exercida pelos Autores;
7.2.3. A pagar, solidariamente, a cada um dos Autores a quantia de € 400,00, perfazendo o total de € 800,00 (oitocentos euros), a título de danos não patrimoniais.
7.3. Absolve-se os Réus do demais peticionado.
Custas por ambas as partes, na proporção do respetivo decaimento que se fixa em 39% para os Autores e 61% para os Réus (artigos 527.º, n.º 2 do Código de Processo Civil)…”.
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Não se conformando com a sentença proferida, dela vieram os RR interpor o presente recurso de Apelação, apresentando Alegações e formulando as seguintes Conclusões:

“1. No ponto 3.1 da douta sentença ficou consignado que o prédio cuja propriedade foi reconhecida aos A.A. incluía uma parcela de terreno com uma área não concretamente apurada. ORA,
2. Perante o pedido genérico, vago e impreciso, sem descrever, georreferenciar e delimitar concretamente a parcela de terreno que os AA. recorridos alegam ter sido ocupada pelos RR. recorrentes, não poderiam estes ter sido condenados, como foram, nos pontos 7.2. da douta sentença em recurso, impondo-se a sua revogação.
3. Caso assim se não entenda, atendendo ao disposto no art.º 609º nº 2 do C.P.C., que estipula, sob o título “Limites da Condenação”, que no caso de não existirem elementos que permitam fixar o montante objeto da sentença, o tribunal condene no que vier a ser liquidado,
4. Deveria, “in casu” a sentença remeter para liquidação posterior a determinação da área e limites da parcela que integrava o prédio dos AA. recorridos.
5. A conduta dos R.R. não se pode qualificar de dolosa ou culposa, pelo que, não deveriam ter sido condenados no pagamento de qualquer quantia a título de danos não patrimoniais, devendo revogar-se tal decisão.
6. Caso se discorde e se entenda deverem os mesmos ser condenados a tal título, o que, não se aceitando, se equaciona, não deveria o montante de tal condenação, atendendo às concretas circunstâncias verificadas, exceder o total de €200,00, €100,00 a cada um dos AA. recorridos.
7. A decisão, embora douta, violou o disposto nos artigos 483º, 487º, 494º e 496º do C. Civil e 609º nº 2 do C.P.C.
Nestes termos e, invocando, ainda, o douto suprimento de V. Excias, deve ser dado provimento ao presente recurso em conformidade com as antecedentes conclusões…”.
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Os AA vieram Responder ao recurso interposto pelos Réus, pugnando pela sua improcedência.
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Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes (acima transcritas), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso (artigos 635º e 639º do CPC), as questões a decidir na presente Apelação são as seguintes:
- A de saber se a condenação dos RR foi uma condenação além do pedido;
- E se não deveriam os RR ser condenados a título de danos morais.
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Foram dados como provados na primeira instância os seguintes factos:
“3.1.1. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o número ...05, na freguesia ... (...) o prédio urbano sito em ..., inscrito na matriz predial urbana n.º ...27, composto por uma morada de casas com dois pavimentos, com área total de 251 m2, área coberta de 86,1 m2 e área descoberta de 164,9 m2, com inscrição de aquisição a favor dos Autores.
3.1.2. Por escritura de Partilha Hereditária, celebrada em 03.07.2009 no Cartório Notarial do Notário Dr. EE, em ..., exarada a folhas 63 a 67 do livro de escrituras nº ...-O, por óbito de FF, avô dos Autores, falecido em ../../2007, foi adjudicada a cada um dos Autores 1/6 do referido prédio.
3.1.3. Posteriormente, no dia 25 de julho de 2011 foi celebrado Escritura de Compra e Venda na Conservatória do Registo Predial ..., sob o processo nº ...11, entre GG e HH e os Autores, na qual as primeiras declararam vender, respetivamente, 2/12 e 6/12 do prédio referido em 3.1.1. aos Autores.
3.1.4. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o número ...72, na freguesia ... (...) o prédio urbano sito em ..., inscrito na matriz predial urbana n.º ...93, composto por casa de ... e ... andar, com inscrição de aquisição a favor dos Réus.
3.1.5. O prédio referido em 3.1.4 confina de sul com o prédio referido em 3.1.1.
3.1.6. Há mais de 30 anos que o prédio referido em 3.1.1. é delimitado, na sua extrema norte (que confronta com o prédio referido em 3.1.4), em parte por um muro e noutra parte pela construção que existe no prédio referido em 3.1.4 (prédio dos Réus), implantada no limite da sua extrema.
3.1.7. O muro referido em 3.1.6. era de alvenaria com pilares de sustentação de rede com início no limite com o caminho público, seguindo até à esquina da edificação que existe no prédio dos Réus.
3.1.8. Entre o muro referido em 3.1.6 e a edificação no prédio dos Réus e a moradia dos Autores existe uma parcela de terreno com uma área não concretamente apurada, com a largura aproximada de 1 metro a 1,25 metros, e que se estende por todo o comprimento do prédio dos Autores, com pelo menos 17 metros de comprimento e com saída para o caminho público por um portão.
3.1.9. Há mais de 30 anos que os Autores, por si e seus antepossuidores, de forma contínua, utilizam a parcela referida em 3.1.8., cultivando-a e aí plantando árvores e colhendo os seus frutos, utilizando-a para aceder do caminho público às traseiras do seu prédio e para circular em torno do seu prédio,
3.1.10. Os atos descritos em 3.1.9. são feitos sem oposição de quem quer que fosse, à vista de toda a gente, na convicção de que exercem direito próprio e ignorando lesar direitos alheios.
3.1.11. No ano de 2019 os Réus, alegando que pretendiam fazer obras de requalificação da sua moradia, mormente na fachada sul, solicitaram aos Autores permissão para demolir, no estritamente necessário, o muro que até então delimitava ambos os prédios.
3.1.12. Os Autores assentiram ao solicitado, na condição de que findos os trabalhos fosse o muro reposto no estado em que se encontrava anteriormente, o que foi garantido pelos Réus.
3.1.13. Os Réus, contrariamente ao acordado, findo os trabalhos, procederam à construção de um novo muro com rede suportada por pilares metálicos, alterando as delimitações anteriormente existentes e ocupando a parcela referida em 3.1.8. e 3.1.9.
3.1.14. Para levarem a cabo a construção do novo muro, além de terem procedido à destruição em toda a extensão do muro existente, os Réus removeram as vigas e remadas que se encontravam implantadas naquela parcela, depositando-as no prédio referido em 3.1.1.
3.1.15. Os factos descritos em 3.1.13. e 3.1.14. causaram ansiedade, angústia e nervosismo aos Autores.

3.2. Factos Não Provados:
Não se provaram outros factos alegados nos articulados, designadamente os seguintes:
3.2.1. Em 5 de setembro de 2022, constataram os Autores que os Réus procederam ao encaminhamento de tubagem na fachada sul da sua edificação construída, com saída para o seu prédio.
3.2.2. Nunca os Réus informaram e, muito menos pediram autorização aos Autores para que pudessem encaminhar para o seu prédio qualquer tipo de emissão de fumo, fuligem, vapores, cheiros, calor ou ruídos, e/ou produção de trepidações…”.
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I- Da alegada condenação dos RR além do pedido:

Alegam os recorrentes que a sentença recorrida reconheceu que a propriedade dos AA incluía uma parcela de terreno com uma área não concretamente apurada.
E que perante o pedido genérico, vago e impreciso formulado pelos AA, sem descrever, georreferenciar e delimitar concretamente a parcela de terreno que alegam ter sido ocupada pelos recorrentes, não poderiam os RR ter sido condenados, como foram, a reconhecer e a restituir tal parcela.
Caso assim se não entenda, atendendo ao disposto no art.º 609º nº 2 do C.P.C., deveria a sentença remeter para liquidação posterior a determinação da área e limites da parcela que integrava o prédio dos AA.

Vejamos:

Das conclusões de recurso não se percebe (sequer) qual o vício que os RR apontam à formulação do pedido feita pelos AA na ação, apelidando-o de “pedido genérico, vago e impreciso, sem descrever, georreferenciar e delimitar concretamente a parcela de terreno que os AA. recorridos alegam ter sido ocupada pelos RR”. Pedem apenas a sua absolvição do mesmo.
Já nas suas Alegações de recurso apelidam tal vício de “ineptidão da petição inicial”, dizendo que procurando pelos limites e área dessa parcela nos articulados, encontra-se nos artºs 11º e 12º da p.i. a indicação de uma parcela de terreno diretamente ligada ao caminho público por um portal, com uma área aproximada de, pelo menos, 25m2, que se inicia no supra referido caminho público e que detém largura aproximada de 1 metro a 1,25 metros, medida desde o muro até à edificação, e que se estende por todo o comprimento do prédio dos AA., numa extensão de comprimento superior a 17 metros.
E que cabia aos AA. ter procedido, na petição inicial, à concreta e precisa identificação e delimitação da parcela de terreno que dizem ter sido ocupada pelos RR.
Que a identificação imprecisa que fazem dessa parcela de terreno não cumpre tal ónus, pelo que a presente ação estaria sempre condenada à improcedência, devendo os RR, por ineptidão da petição inicial quanto ao respetivo pedido, alíneas B e C, ter sido, nessa parte, absolvidos da instância.
Ora, embora o não refiram, o vício imputado pelos recorrentes ao pedido formulado, só pode ser o da sua “ininteligibilidade”.
Efetivamente, o pedido é um dos elementos da petição inicial e, mais do que isso, é um elemento essencial da mesma, pois constitui a sua verdadeira razão de ser, o que explica que a sua falta ou a sua ininteligibilidade torne a petição inepta, vício que acarrete a nulidade de todo o processo e a absolvição do réu da instância (artigos 193.º, n.º 1 e n.º 2, al. a) e 288.º, n.º 1, al. b), do CPC).
Acontece que analisada a contestação dos RR, não vemos nela arguida a nulidade processual por ineptidão da petição inicial, por falta ou ininteligibilidade do pedido, decorrendo aliás de toda a contestação que todo o pedido se revelou aos RR perfeitamente inteligível.
Ora, a ineptidão da petição inicial, sendo embora de conhecimento oficioso (art.º 196º do CPC), deve ser arguida pelo Réu até à contestação ou nessa peça (art.º 198º, nº 1), e deve ser conhecida no despacho saneador ou até à sentença final, quando não houver despacho saneador (art.º 200º, nº 2), pelo que a arguição dessa exceção nesta fase (em sede de recurso) apresenta-se manifestamente intempestiva.
Decorre ademais do nº1 e 2 do art.º 186º do CPC, intitulado “Ineptidão da petição inicial”, que “É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial. Diz-se inepta a petição: a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir…”. Mas acrescenta o nº 3 do preceito, que “Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial”.
Ora, o que verificamos é que os RR nunca revelaram ao longo do processo desconhecer a parcela de terreno à qual os AA se referiam, a qual foi por eles descrita suficientemente, com a sua descrição, confrontações, e até fotos, pelo que os RR perceberam bem de que parcela de terreno se tratava, dizendo mesmo que ela lhes pertencia.
Por outro lado, a identificação da parcela de terreno – como de resto de qualquer prédio reivindicado -, não tem necessariamente que ser feita por referência a áreas concretas, ou outros elementos específicos; mais importante é que se faça uma correta identificação dos prédios, sobretudo a sua delimitação ou confrontação geográfica.
E nessa medida, os AA descreveram bem na petição inicial o seu prédio, assim como a parcela reivindicada, que os RR abusivamente ocuparam, identificando bem onde começa e onde termina a mesma, e quais são as suas limitações, com referência a confrontações e aos respetivos pontos cardeais.
Não se vê assim, nem os recorrentes indicam, qual a utilidade da identificação, quer do prédio dos AA, quer da parcela ocupada, por referência à sua área.
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Adiantam ainda os recorrentes que caso assim se não entenda, atendendo ao disposto no art.º 609º nº 2 do C.P.C., deveria a sentença remeter para liquidação posterior a determinação da área e limites da parcela que integrava o prédio dos AA. recorridos.
Mas também sem razão, adiantamos já.
O preceito legal citado tem o seu campo de aplicação nos “limites da condenação”, prevendo-se no nº 1 que “A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir”, acrescentando o nº 2, que “Se não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo na condenação imediata na parte que já seja liquida”.

Ora, os AA formularam contra os RR os seguintes pedidos:
“A. Ser reconhecido que os AA. são donos e legítimos possuidores do prédio identificado no artigo 1º da PI nos exatos termos em que se encontra definido nos Documentos 1., 2. 5., 6. e 7.; e
B. Ser reconhecido que dele faz parte integrante a parcela de terreno de que os RR. se apoderaram,
E, consequentemente, sejam os RR. condenados:
C. A restituir aos AA. essa parcela de terreno, no exato estado em que se encontrava antes de a ocupar e, se abstenham, de futuro, de praticarem quaisquer atos que perturbem a sua posse e direito de propriedade sobre esse prédio, incluindo (…) sobre a parcela de terreno reivindicada, parte integrante daquele prédio…”.
E a condenação dos RR foi no seguinte sentido:
“Em face do exposto, decide-se julgar a ação parcialmente procedente e, em consequência:
7.1. Declaram-se os Autores donos e legítimos possuidores do prédio urbano, sito em ..., inscrito na matriz predial urbana n.º ...27 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...05, incluindo da parcela de terreno com uma área não concretamente apurada, que se estende por todo o prédio dos Autores, com a largura aproximada de 1 a 1,25 metros e com pelo menos 17 metros de comprimento, com saída para o caminho público por um portão.
7.2. Condenam-se os Réus (…):
7.2.1. A restituírem a parcela de terreno referida em 7.1. no estado em que se encontrava, e a absterem-se de perturbar a posse e a propriedade exercida pelos Autores…”
Ora, o que verificamos é que o tribunal recorrido respeitou, genericamente, o pedido formulado pelos AA, acrescentando apenas na condenação a descrição da área da parcela, com a sua concretização, inferior à descrita no corpo da p.i., mas sem deixar de respeitar, no geral, o pedido formulado, que era o da restituição da parcela de terreno no estado em que se encontrava antes do derrube do muro e da sua reconstrução.
No fundo, o que verificamos, é que o pedido formulado na conclusão da petição inicial foi integrado com o que havia sido alegado na parte narrativa da petição, tendo o sr. juiz procedido a uma concretização daquela parte da petição, sem que dessa concretização tenha resultado um pedido diferente daquele que o autor realmente quis, nem uma violação do princípio dispositivo (art.º 3.º, n.º 1, do CPC).
Tal condenação respeitou, ademais, o que ficou provado nos autos no ponto 8, e que os RR não põem em causa: “Entre o muro referido em 6. e a edificação do prédio dos Réus e a moradia dos Autores existe uma parcela de terreno com uma área não concretamente apurada, com a largura aproximada de 1 metro a 1,25 metros, e que se estende por todo o comprimento do prédio dos Autores, com pelo menos 17 metros de comprimento e com saída para o caminho público por um portão”.
Também não questionam os recorrentes a subsunção dos factos aos preceitos legais e aos institutos jurídicos aplicáveis, não questionando também a solução jurídica dada à questão colocada nos autos.
Improcede assim esta primeira questão colocada pelos recorrentes.
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II- Da condenação dos RR na indemnização aos AA a título de danos morais:
Discordam também os recorrentes da decisão recorrida, na parte em que os condena a pagar aos AA a quantia de € 800,00, a título de danos morais, alegando que a sua conduta não se pode qualificar de dolosa ou culposa, pelo que não deveriam ter sido condenados no pagamento de qualquer quantia a título de danos não patrimoniais.
Caso se discorde e se entenda deverem os mesmos ser condenados a tal título, não deveria o montante de tal condenação, atendendo às concretas circunstâncias verificadas, exceder o total de €200,00, €100,00 a cada um dos AA. recorridos.
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Mas também sem razão.
Resulta da sentença recorrida, fundamentação à qual aderimos integralmente, o seguinte:
“Quanto ao pedido de indemnização por danos morais, importa ter presente que, de acordo com o artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, o direito ao peticionado ressarcimento e a consequente assunção da obrigação de indemnizar reconduz-se à verificação dos seguintes pressupostos: 1) a ocorrência de um facto voluntário e ilícito, que lese interesses diretamente protegidos (violação dos direitos de outrem) ou interesses indiretamente protegidos (disposição legal destinada a proteger interesses alheios); 2) a verificação de um comportamento culposo, ou seja, que o lesante, pela sua capacidade e, em face das circunstâncias concretas da situação, pudesse e devesse ter agido de outro modo, tornando-se, ainda, necessário averiguar se existiu ou não um nexo psicológico entre o facto e a vontade do lesante (sob a forma de dolo ou mera culpa), tendo como paradigma o padrão do homem médio (artigo 487.º Código Civil); 3) a verificação de um dano ou prejuízo sofrido pelo lesado refletido na sua situação patrimonial (dano patrimonial ou material) ou insuscetível de avaliação pecuniária, mostrando-se digno de satisfação (dano não patrimonial ou moral); 4) a existência de um nexo de causalidade que coloca a exigência de que uma causa seja em concreto, como em abstrato (pela sua natureza geral), apropriada a produzir determinado efeito típico (cfr. Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, Volume I, 10.ª Edição, Almedina, 2000, pág. 536 e ss., Almeida Costa, in “Direito das Obrigações”, 6.ª edição, Almedina, 1994, págs. 465 e ss.).
No caso em apreço, de acordo com a factualidade que se deu como provada, não restam dúvidas que os Réus ao agir da forma descrita violaram ilicitamente o direito de propriedade dos Autores.
Acresce que, em virtude dessa conduta, os Autores ficaram ansiosos, angustiados e nervosos, mostrando-se assim verificada a existência de danos, bem como o nexo de causalidade entre o facto ilícito e os danos.
Estão, assim, verificados os pressupostos da responsabilidade civil, ao abrigo do disposto no artigo 483.º do Código Civil…”.
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Alegam os recorrentes que não resulta dos autos que as suas condutas fossem culposas, antes decorrentes de uma errada ou imperfeita interpretação dos factos e normas legais.
Mas sem razão, como é bom de ver.
O que ficou provado nos autos, foi que há mais de 30 anos que o prédio dos AA é delimitado, na sua extrema norte, em parte por um muro, e noutra parte pela construção que existe no prédio dos Réus, implantada no limite da sua extrema.
Que o muro referido era de alvenaria com pilares de sustentação de rede, com início no limite com o caminho público, seguindo até à esquina da edificação que existe no prédio dos Réus.
E que no ano de 2019 os Réus, alegando que pretendiam fazer obras de requalificação da sua moradia, mormente na fachada sul, solicitaram aos Autores permissão para demolir, no estritamente necessário, o muro que até então delimitava ambos os prédios.
Ao que os Autores assentiram, na condição de que findos os trabalhos fosse o muro reposto no estado em que se encontrava anteriormente, o que foi garantido pelos Réus.
Acontece que os Réus, contrariamente ao acordado, findos os trabalhos, procederam à construção de um novo muro com rede suportada por pilares metálicos, alterando as delimitações anteriormente existentes, e ocupando a parcela de terreno pertencente aos AA.
Sendo que, para levarem a cabo a construção do novo muro, além de terem procedido à destruição, em toda a extensão, do muro existente, os Réus removeram as vigas e remadas que se encontravam implantadas naquela parcela, depositando-as no prédio dos AA.
Os factos descritos causaram ansiedade, angústia e nervosismo aos Autores.
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Ora, é manifesto que os Réus bem sabiam não lhes assistir qualquer direito de demolição total do muro até então existente (apenas o seu derrube na parte estritamente necessária à reparação da sua fachada), e de construção de um novo muro, alterando as delimitações anteriormente existentes, ocupando a parcela de terreno propriedade dos Autores/Recorridos.
É assim inquestionável, na situação em apreço, a culpa dos Réus, na modalidade de culpa mais gravosa – de dolo (direto).
A ideia de culpa está de facto no cerne da imputação delitual, como expressamente vem previsto no art.º 483º nº 1 do CC, culpa aqui entendida em sentido normativo, ou seja, como expressão de um juízo de reprovabilidade pessoal da conduta do agente (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 3ª ed., vol. 1º, pág. 456).
O dolo é tratado na nossa legislação, como a modalidade mais grave da culpa, aquela em que a conduta do agente, pela mais estreita identificação estabelecida entre a vontade deste e o facto, se torna mais fortemente censurável.
E no dolo cabem, em primeira linha, os casos em que o agente quis diretamente realizar o facto ilícito – dolo direto -, ou seja, aqueles em que o agente representa determinado efeito da sua conduta, e quer esse efeito como fim da sua atuação, apesar de conhecer a ilicitude dele (Antunes Varela, ob. citada, pag. 538), assim como outras situações menos gravosas, nomeadamente aquela em que, não querendo diretamente o facto ilícito, o agente o prevê como consequência necessária da sua conduta (dolo necessário), ou ainda, não querendo realizar diretamente o facto ilícito, prevê-o como uma consequência possível da sua conduta (dolo eventual).
Para além dos elementos volitivo ou emocional do dolo, este abarca também um elemento de natureza intelectual, sendo por isso essencial o conhecimento das circunstâncias de facto que integram a violação do direito ou da norma tuteladora de interesses alheios e a consciência da ilicitude.
Ora, no caso dos autos, de acordo com a matéria de facto provada, a conduta dos Réus, é censurável e deve configurar-se como dolosa, na modalidade de dolo direto: eles previram o resultado ilícito da sua conduta, a apropriação da parcela de terreno pertencente aos AA, e atuaram nessa direção, derrubando a totalidade do muro existente, e contruindo outro, não no lugar do anterior, mas de modo a ocupar uma faixa de terreno pertencente ao AA. E bem sabiam da ilicitude da sua conduta – pois que até pediram permissão aos AA para derrubarem o muro existente, com a promessa de que o voltariam a repor no seu lugar.
Não há dúvidas de que a conduta dos RR foi culposa, na sua modalidade mais gravosa, de dolo.
Ante o exposto, bem andou o Tribunal recorrido ao concluir, como concluiu, pela verificação de todos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, ao abrigo do disposto no artigo 483.º do CC e, consequentemente, pela condenação dos Réus na obrigação de indemnizar os Autores.
E na fixação do montante a atribuir aos AA a título de danos morais, considerou-se o seguinte:
“…No caso, os danos sofridos pelos Autores revestem gravidade suficiente para merecer a tutela do direito, por não se reconduzirem a meros incómodos.
A indemnização pelos danos não patrimoniais não é uma verdadeira indemnização, mas antes uma reparação, ou seja, a atribuição de uma soma pecuniária que, não eliminando o dano sofrido, permite de alguma forma compensar o lesado, atribuindo determinadas utilidades que proporcionem um certo número de alegrias que, de alguma forma, atenuem ou minorem esse sofrimento ou essa dor.
Assim, a determinação do quantum da reparação do dano não patrimonial deve ser feita com recurso a critérios de equidade (artigo 496.º, n.º4 do Código Civil), tomando-se em consideração a gravidade dos danos causados mas também o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso (artigo 494.º do Código Civil por remissão do artigo 496.º, n.º4 do mesmo diploma).
Atentos os factos provados, deverá ter-se em conta a conduta dos Réus, que atuaram em violação do direito de propriedade, sendo certo que as consequências que daí decorreram não são de acentuada gravidade.
Assim sendo, segundo o referido juízo de equidade (…), julga-se adequada e equitativa uma indemnização atualizada de € 400,00 a cada um dos Autores, perfazendo o total de € 800,00 (oitocentos euros) para compensação dos danos não patrimoniais”.
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Discordam também os recorrentes do montante da indemnização em que foram condenados, considerando que não deveria tal montante, atendendo às concretas circunstâncias verificadas, exceder o total de €200,00, €100,00 a cada um dos AA. recorridos.
Mas também nenhum reparo temos a fazer ao montante da indemnização fixada.
A respeito dos danos não patrimoniais, determina o artigo 496º, nº 1, do CC que “Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam tutela do direito”, apelando-se no nº 3 do mesmo preceito à equidade para a fixação do seu montante, na medida do grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso, ou seja, remete o julgador para os denominados “conceitos gradativos” - por remissão para o artigo 494ºCC.
Antunes Varela (Das Obrigações em geral, vol. I, 9ª ed, pág. 630), sublinha que “a indemnização reveste, no caso dos danos não patrimoniais, uma natureza acentuadamente mista: por um lado, visa reparar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente.”
E quanto ao montante da indemnização, defende aquele Autor que ele “deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida” (Código Civil Anotado, 4ª ed., vol. I, pág. 501).
Finalmente, na esteira da jurisprudência do STJ, considera-se que na fixação da indemnização por danos não patrimoniais, os tribunais não se devem guiar por critérios miserabilistas; tal compensação deverá ser significativa e não meramente simbólica (Ac. STJ de 24/02/05, disponível em www.dgsi.pt).
Ora, perante tudo quanto se expôs, nada temos a censurar ao montante da indemnização fixado na primeira instância, considerando a relevante culpa dos RR – na sua modalidade mais gravosa, de dolo -, e as consequências da sua atuação, manifestadas nos sentimentos de angustia, ansiedade e nervosismo que causaram aos AA, sem contar com os transtornos que uma ação judicial sempre acarreta (como é facto público e notório).
Assim sendo, deverá manter-se o montante indemnizatório fixado na sentença recorrida.
Improcede, assim, na íntegra, a Apelação dos RR.
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IV- DECISÃO:

Por todo o exposto, Julga-se Improcedente a Apelação e confirma-se, na íntegra, a sentença recorrida.
Custas da Apelação pelos recorrentes (art.º 527º nº 1 e 2 do CPC).
Notifique e DN
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Sumário do Acórdão:
I- A ineptidão da petição inicial apenas pode ser invocada pelos RR na contestação e apenas pode ser conhecida pelo tribunal no despacho saneador ou na sentença final, caso não haja lugar àquele.
II – A identificação física de uma parcela de terreno não tem de ser feita, necessariamente por referência á sua área, desde que a mesma esteja devidamente identificada por outros elementos físicos, como a sua localização e confrontações.
III- Age com culpa dolosa o R que contrariamente ao acordado com o A, derruba a totalidade do muro delimitador das propriedades de ambos, e constrói outro novo, alterando as confrontações dos prédios, e apropriando-se voluntariamente de uma parcela de terreno pertencente aos AA.
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Guimarães, 19.9.2024