PROCESSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO
ACUSAÇÃO OMISSA
Sumário


I- O processo contraordenacional é um processo peculiar, com uma estrutura muito especifica, dado que comporta uma fase administrativa e uma fase judicial.
II- São-lhe aplicáveis, embora devidamente adaptados, os princípios reguladores do processo criminal – cf. artigo 41.º do RGCO – o que significa que existem princípios do processo criminal que não terão aplicação ou plena aplicação, por força da estrutura característica do processo contraordenacional.
III- Não há qualquer “omissão acusatória” correspondente a uma violação do princípio do acusatório se do auto de notícia, da decisão administrativa e da sentença recorrida resultam claramente para qualquer declaratário normal colocado na posição do real declaratário quais os factos imputados, devidamente circunstanciados no tempo, modo e lugar, e qual a infração contraordenacional cometida.
IV- Viola um dever de cuidado respeitante à segurança e saúde dos seus trabalhadores, a empregadora que sabendo que os seus trabalhadores têm de utilizar um passadiço com mais de 4 décadas em evidente estado de deterioração por corrosão, situado a 10 metros de altura, sendo esse passadiço constantemente utilizado, não avalia e identifica os riscos que o mesmo oferece, nomeadamente não analisa se os gradis sobre os quais os trabalhadores tinham de passar, estavam devidamente fixados à estrutura.
(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral


P.325/23.7T8SNS.E1

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora

I. Relatório
P..., S.A. impugnou judicialmente a decisão da Autoridade Para As Condições de Trabalho (ACT) que lhe aplicou uma coima no valor de € 2.244 e a sanção acessória de publicidade, pela prática de uma contraordenação muito grave, prevista e punida pelas disposições conjugadas dos artigos 15.º, n.º 2 alínea c) e n.º 14, da Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro, 22.º, n.º 1 alínea c) e 25.º, n.º 3 alínea c), do Decreto-Lei n.º 273/2003, de 29 de outubro e artigo 554.º, n.º 7 e n.º 4 alínea a) e 562.º, do Código do Trabalho.
A 1.ª instância julgou a impugnação improcedente e manteve, na íntegra, a decisão da entidade administrativa.
A impugnante interpôs recurso desta decisão, finalizando as suas alegações com as seguintes conclusões:
«1. A Recorrente não se conforma com a douta sentença proferida pelo Tribunal “a quo”, na medida em que entende que tal decisão incorreu em erros na apreciação de algumas questões suscitadas nos presentes autos, violando, em consequência, normas de direito substantivo e processual;
2. E, violando ainda o princípio do acusatório;
3. É notório que a douta sentença incorre num erro, outras tantas vezes cometido, que passa pela formulação de um juízo de prognose com base no apuramento do risco efetuado após a ocorrência do acidente e considerando tal ocorrência como condição suficiente para apuramento de responsabilidade;
4. O que o meritíssimo Tribunal “a quo” deveria ter feito, e não fez, era efetuar uma análise crítica assente num juízo de previsibilidade com base nos factos e conhecimento que a ora Recorrente tinha antes da ocorrência do acidente;
5. Como resultou provado, o que a Recorrente conhecia eram os elementos visíveis da estrutura (fixa, imóvel e original do complexo petroquímico) bem como a finalidade/natureza do referido passadiço: a passagem diária de pessoas;
6. Ora, com base nos factos e circunstâncias que eram do conhecimento da Recorrente antes da ocorrência do acidente, e por recurso a um juízo de prognose, é evidente que nada fazia prever que o passadiço pudesse acarretar algum risco de queda em altura;
7. Por essa razão, mas sobretudo porque legalmente nada o exige(ia) não tinha de estar prevista nem no PSS nem na FAR;
8. Em abono da verdade, aqui chegados, a Recorrente continua a não compreender os motivos pelos quais o Tribunal “a quo” considera que houve omissão de um dever de segurança;
9. Pois, nos termos da alínea a) do artigo 7.º do DL n.º 273/2003, o passadiço, em face da sua natureza, não acarreta risco de queda em altura;
10. Aliás, por consulta ao site APSEI – Associação Portuguesa de Segurança, é desde logo forçoso concluir que não se faz qualquer referência a estruturas permanentes, fixas, imóveis e com guardas laterais (proteção coletiva), na medida em que todo esse tipo de estruturas não oferece qualquer risco de “queda em altura”;
11. Ora, parece-nos assim inegável que não era de modo algum previsível que uma estrutura com todas as características já referidas, que servia de uso diário, inclusivamente, por gente qualificada na manutenção de estruturas metálicas, pudesse vir a sofrer um acidente;
12. Neste sentido, acaba precisamente por concluir o Tribunal “a quo” nos factos provados 27., 28. e 29 da sentença recorrida;
13. Nem mesmo o seu estado visível de corrosão o poderia fazer prever, como, aliás, também concluiu o Tribunal “a quo” na parte final da página 20 da sentença de que ora se recorre: “(…) Como não se trata também de colocar em causa o processo inevitável de corrosão a que o passadiço esteve sujeito, seja esta provocada pelo decurso do tempo, condições climatéricas e/ou outras envolventes, pois tanto se trata de uma inevitabilidade.”;
14. Tanto assim é que a queda do gradil em nada se deveu à existência de corrosão;
15. Na verdade, nem o dono da obra, nem a entidade executante, nem o subempreiteiro (aqui Recorrente), e nem mesmo os próprios sinistrados (AA e BB, este último chefe de equipa e dotado de formação em matéria de prevenção de riscos laborais) previram qualquer risco de queda em altura pela utilização do passadiço devido a deficiência/vício na estrutura;
16. Não era efetivamente presumível a existência de qualquer vício/deficiência, numa estrutura fixa, imóvel e que servia de uso diário à passagem dos trabalhadores, previsibilidade essa que se deve ajuizar apenas e só com base nos factos e conhecimento que a Recorrente tinha antes da ocorrência do acidente e não dos factos apurados após a ocorrência do mesmo;
17. Veja-se ainda, neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 24/09/2019, processo 268/11.7TTBRG.G1 e acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13/01/2014, processo 400/11.0TTMTS.P1;
18. Pelo que, como decorre do exposto, sempre seria necessário verificar-se um juízo critico com base nos factos e conhecimento que a Recorrente tinha antes da ocorrência do acidente
19. O que não se verificou.;
20. Acresce que, o procedimento de trabalho PT/08 e respetiva FAR n.º 08 que vieram a integrar o PSS, foram elaborados pela TSSHT da Esindus, verificados pelo RDTO, tecnicamente validados pelo CSO e aprovados pelo Dono de Obra;
21. Termos em que, e contrariamente à “conclusão” que resulta da douta decisão do Tribunal “a quo”, parece clarividente à ora Recorrente que nada havia a sugerir junto da entidade executante (Esindus) nos termos e para os efeitos do n.º 3 do artigo 11.º, do Decreto-Lei n.º 273/2003;
22. Por outro lado, desde o início do procedimento administrativo foi patente a violação do princípio do acusatório que, inevitavelmente, se traduz na nulidade do processo de contraordenação;
23. Continua a Recorrente a não encontrar na sentença qualquer resposta à alegada omissão de deveres de cuidado e diligência, como, aliás, já não encontrava na decisão do ACT que foi impugnada;
24. Pelo que, não se consegue perceber a que título a Recorrente terá omitido deveres de cuidado e diligência no caso em apreço;
25. Assiste-se, inclusivamente, a uma autêntica inversão do ónus da prova, aliás, uma verdadeira responsabilidade objetiva, onde apenas a Recorrente tem demonstrado (ónus que nem tampouco lhe deveria ser imputado) exaustivamente que não cometeu qualquer ilícito contraordenacional, enquanto a entidade que acusa apenas se cinge a uma imputação arbitrária de factos, totalmente desprovida de fundamento;
26. Assim sendo, nem os factos, nem tampouco o direito, sustentam a decisão da douta sentença de que aqui se recorre e que terá de ser substituída.».
A 1.ª instância admitiu o recurso, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
O Ministério Público ofereceu resposta, pugnando pela improcedência do recurso.
O processo subiu à Relação e, na sequência da abertura de “Vista”, a exma. procuradora-geral adjunta emitiu parecer no sentido de dever ser negado provimento ao recurso.
A recorrente respondeu, reiterando o entendimento manifestado no recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

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II. Objeto do recurso
É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, ex vi do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro (RGCO) e artigos 50.º, n.º 4 e 60.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro.
Em função destas premissas, as questões suscitadas no recurso podem ser assim elencadas:
1.ª Nulidade do processo contraordenacional, por violação do princípio do acusatório.
2.ª Não cometimento do ilícito contraordenacional imputado.
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III. Matéria de Facto
A 1.ª instância considerou provada a seguinte factualidade:
1. A arguida “P..., S.A.” tem sede no ..., s/n, ...40 CC, ..., ....
2. À data de 12.05.2018, a arguida tinha o local de trabalho no ..., em ....
3. O dono obra era a empresa “Repsol Polímeros, S.A.”.
4. O dono obra procedeu à comunicação prévia de abertura de estaleiro, identificando como subempreiteiro a entidade “P..., S.A.”.
5. A entidade executante era a empresa “E..., Unipessoal, Lda.”.
6. No dia 12 de Maio de 2018, pelas 16h:30, foi levada a cabo ação inspetiva à arguida e no local de trabalho referido.
7. Esta visita inspetiva teve lugar devido a acidente de trabalho que vitimou BB e AA, trabalhadores da arguida.
8. Decorriam então trabalhos referentes ao Projeto/Obra 4000656, com a designação “Montagem de Aerocondensador e Substituição de turbina X-2501”.
9. Acompanhavam os trabalhos o DD e a TSST da entidade executante, EE, a TRS da arguida/empregadora, FF, em substituição da TST GG e o encarregado geral/chefe de obra da arguida, HH, que geria a manobra.
10. Cerca das 11h45, aquando da manobra do Módulo 4 sobre a plataforma de betão do aerocondensador, aquele ficou imobilizado devido a possíveis interferências com a estrutura metálica do passadiço pré-existente e as respetivas proteções coletivas.
11. Os trabalhadores BB e AA, por determinação da arguida, entraram no passadiço pré-existente na estrutura do aerocondensador para verificarem visualmente o assentamento da peça e darem instruções precisas aos colegas que se encontravam a auxiliar a manobra a partir da laje de betão, fora do passadiço.
12. Quando BB se dirigiu para o gradil onde se encontrava AA e no momento em que o pisou, o gradil perdeu o suporte, deslizou e os trabalhadores caíram a uma altura aproximada de 10 metros, provocando a sua queda no solo.
13. O passadiço encontrava-se fixado na plataforma de betão da estrutura intervencionada (Aerocondensador E8201) e consistia em plataformas metálicas com 7,50 metros de comprimento e 1,50 metros de largura apoiadas na estrutura de betão sobre os ventiladores do aerocondensador da fábrica de Etileno que se encontravam a aproximadamente 10 (dez) metros do solo, sendo cada plataforma composta por 5 grelhas metálicas (gradis) de dimensões variáveis.
14. O acesso ao aerocondensador era realizado por meio de passadiços cuja estrutura é a original do Complexo Petroquímico, de 1977, inexistindo evidências de terem sido objeto de alterações/modificações.
15. Os passadiços são utilizados no dia a dia da fábrica.
16. Os elementos constituintes do passadiço, designadamente perfis, gradis e varandim (proteção coletiva), encontravam-se em visível estado de deterioração, por corrosão.
17. O Projeto/Obra 4000656 não incluía qualquer intervenção programada à estrutura do passadiço.
18. O gradil que caiu apenas se encontrava apoiado nos topos/extremidades, sem qualquer apoio lateral e não possuía um sistema de fixação à estrutura e nas zonas de apoio/extremidades, encontrando-se resíduos resultantes da decomposição/corrosão da estrutura metálica e areia.
19. A entidade executante procedeu ao desenvolvimento de Plano de Segurança e Saúde (PSS) para a execução da obra e entregou-o á arguida, no dia 5 de Abril de 2018.
20. No dia do acidente decorriam trabalhos da atividade de montagem dos blocos do aerocondensador e foi produzido um procedimento específico – Procedimento de Trabalho PT/08 – Transporte e Montagem de Aerocondensador – revisão 01 e respetiva ficha de avaliação de riscos que passaram a fazer parte do PSS.
21. O Procedimento de Trabalho PT/08 tinha como “objetivo geral descrever de forma sucinta, os Trabalhos de Transporte e Montagem do Aerocondensador, identificar os recursos (pessoal e equipamento) utilizados na mesma, identificar os riscos associados e definir procedimentos de segurança e respetivas medidas de prevenção e proteção, com o intuito de tornar possível o seu objetivo específico, o controlo dos trabalhadores e dos seus riscos associados”.
22. Aquando do acidente, estavam em execução a montagem do segundo módulo do aerocondensador, na laje de betão, com recurso a uma grua para elevação do mesmo.
23. A Ficha de Avaliação de Risco (FAR) não mencionada para o perigo “utilização de grua” qualquer risco de “queda em altura”.
24. O PSS para a execução da obra não continha uma avaliação dos riscos profissionais adequada aos trabalhos em curso e não contemplava as respetivas medidas de prevenção adequadas, pois na eventualidade da necessidade de utilização do passadiço para auxiliar a manobra de colocação/encaixe do aerocondensador, a mesma deveria estar prevista e acautelada no PSS e nas fichas de procedimento de segurança e não estava.
25. No dia 12.05.2018, pelas 19h:30, o Sr. Inspetor do Trabalho procedeu á suspensão imediata dos trabalhos para a utilização do passadiço existente na estrutura intervencionada, como via de circulação ou para qualquer trabalho.
26. A arguida atuou de forma livre e espontânea, omitindo um dever objetivo de cuidados e diligência, no sentido de evitar a produção daquele resultado, não procedendo com o cuidado a que, de acordo com as circunstâncias, estava obrigada e de que era capaz, pois como subempreiteira e entidade patronal estava também obrigada a proceder á identificação dos riscos associados á tarefa de colocação e montagem do aerocondensador e a definir medidas de prevenção adequadas, o que, em parte, preteriu.
27. Por o passadiço se tratar de uma estrutura fixa e terem confiado que a mesma se encontraria estável, integrando o Complexo Petroquímico, sendo do uso diário de trabalhadores, inclusivamente, por pessoas qualificadas na manutenção de estruturas metálicas no local, nenhuma das entidades envolvidas, dono da obra, executante e subempreiteiro (a arguida), bem como os trabalhadores AA e BB previu o risco de queda em altura pela sua utilização devido a deficiência/vício na sua estrutura.
28. Por isso, não foi sequer equacionado pela arguida que a utilização do passadiço requeresse qualquer medida complementar de segurança como a utilização de linha de vida ou uso de arnês, na medida em que se tratava de um passadiço fixo e confiou que se encontraria estável para a passagem de pessoas.
29. Assim, a utilização dessa estrutura não foi contemplada no PSS.
30. Aquando do sinistro, os trabalhadores acidentados encontravam-se a utilizar os Equipamentos de Proteção Individual (EPI’S) de uso obrigatório.
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IV. Nulidade do processo contraordenacional
A recorrente veio invocar a nulidade do processo contraordenacional por, no seu entender, ter sido violado o princípio do acusatório.
Analisemos a questão.
Preliminarmente, importa evidenciar que os presentes autos constituem um processo contraordenacional laboral.
Este tipo processual é regulado por legislação especial – Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro – e, subsidiariamente, pelos seguintes diplomas legais em relação de subsidiariedade: Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro (RGCO) e Código Penal – cf. artigos 60.º da Lei n.º 107/2009 e 32.º do RGCO.
Importa referir que o processo contraordenacional é um processo peculiar, com uma estrutura muito especifica, dado que comporta uma fase administrativa e uma fase judicial.
São-lhe aplicáveis, embora devidamente adaptados, os princípios reguladores do processo criminal – cf. artigo 41.º do RGCO – o que significa que existem princípios do processo criminal que não terão aplicação ou plena aplicação, por força da estrutura característica do processo contraordenacional.
João Soares Ribeiro, em “Contraordenações laborais”, 2.ª edição, Almedina, pág. 151, escreveu:
«A Lei (art. 41.º do DL433/82) no capítulo subordinado à epígrafe “Princípios e Disposições Gerais” determina que se aplicam no processo contraordenacional os preceitos do processo criminal “devidamente adaptados”. O que, se por um lado, não pode deixar de constituir alguma estranheza, face à vontade manifesta de o processo penal se autonomizar destes casos menores de infracionalidade, por outro, permite a conclusão de que haverá preceitos daquele ramo que, pela sua própria natureza ou estrutura do processo contraordenacional, não terão aqui aplicação ou, ao menos, plena aplicação».
A recorrente invoca a violação do princípio do acusatório - princípio este que constitui um pilar do nosso processo penal - para justificar a arguida nulidade do processo contraordenacional.
Ora, o princípio do acusatório significa que só se pode ser julgado pela prática de um crime mediante prévia acusação que o contenha, deduzida por entidade distinta do julgador, estabelecendo essa acusação os limites do julgamento - cf., por todos, o Acórdão da Relação de Coimbra de 12-04-2018 (Proc. n.º 3/17.6GCIDN.C1), acessível em www.dgsi.pt.
Para justificar a acusada violação deste princípio, a recorrente utiliza os seguintes argumentos:
a) - O tribunal a quo, tal como já se havia verificado em sede administrativa (quer nos factos que resultam do auto de notícia, quer da decisão posteriormente proferida pelo ACT), ao invés de fazer um juízo de previsibilidade com base nos factos e conhecimentos que a recorrente tinha antes da ocorrência do acidente, apenas se preocupou em formular um juízo de prognose com base no apuramento efetuado após o acidente e considerando tal ocorrência como condição suficiente para apuramento de responsabilidade.
b) - É imputado à recorrente a omissão de um dever objetivo de cuidado e diligência no sentido de evitar a produção do acidente. Todavia, para além da “sugestão” junto da entidade executante de alternativa à utilização do passadiço, não é identificada qualquer outra omissão que tenha sido levada a cabo pela recorrente ou que atos alegadamente omitidos deveriam ter sido praticados. Na sequência, entende que existe uma omissão acusatória que se traduz numa insuficiência de factos trazidos aos autos, o que impediu que exercesse o direito de defesa consagrado no n.º 10 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
Vejamos.
No que respeita ao primeiro argumento, salvaguardado o devido respeito, que é imenso, não conseguimos vislumbrar como é que por via da crítica apresentada ao julgamento (raciocínio) jurídico realizado pelo tribunal a quo e pela ACT se chega à acusada violação do princípio do acusatório.
O que se nos afigura é que o argumento em causa tem cabimento no âmbito da segunda questão suscitada no recurso – não cometimento do ilícito contraordenacional -, mas constitui uma absoluta ausência de fundamento para a acusada violação do aludido princípio.
Por conseguinte, não pode deixar de claudicar o primeiro argumento utilizado.
Relativamente ao segundo argumento apresentado, adianta-se, desde já, que o mesmo também não constitui suporte para a apontada violação.
Primeiramente, importa referir que nem o auto de notícia, nem a decisão administrativa (e, consequentemente, a acusação do Ministério Público – cf. artigo 37.º da Lei n.º 107/2009), nem a sentença recorrida, sofrem de “omissão acusatória”.
No que respeita ao auto de notícia, o mesmo menciona especificadamente os factos que constituem a contraordenação, o dia, a hora, o local e as circunstâncias em que foram cometidos, para além dos demais elementos também exigidos pelo artigo 15.º da Lei n.º 107/2009 – cf. os factos elencados no auto de notícia e a identificação da infração cometida.
Ou seja, lendo o teor do auto de notícia, qualquer declaratário normal conseguiria compreender a concreta factualidade que, no entender da entidade administrativa, consubstanciava a prática de uma infração contraordenacional e em que é que esta consistia.
Consequentemente, a partir da (suficiente) informação transmitida, a ora recorrente tinha na sua posse todos os elementos exigidos por lei que permitiriam defender-se em sede instrutória do processo administrativo, como, aliás, o fez.
Por seu turno, a decisão administrativa observou todos os elementos exigidos no artigo 25.º da Lei n.º 107/2009.
Entre eles, destacam-se a narração dos factos imputados – cf. ponto “VI. Factos provados” – e a identificação da infração cometida (“não assegurou condições de segurança e saúde dos trabalhadores, de forma continuada e permanente”, tendo violado o n.º 1 e a alínea c) do n.º 2 do artigo 15.º da Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro e a alínea c) do n.º 1 do artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 273/2003, de 29 de outubro).
E, mais uma vez, o direito de defesa da ora recorrente foi assegurado, como se pode inferir através da apresentação e conteúdo da impugnação judicial deduzida – cf. artigo 32.º da Lei n,º 107/2009.
Por fim, destaca-se que na sentença recorrida constam igualmente descritos os factos que se imputam à ora recorrente e a identificação da infração contraordenacional.
Respondeu a acusada e condenada por via da interposição do (legítimo) recurso
Em suma, não só os autos evidenciam que não existiu qualquer “omissão acusatória”, como o direito de audiência e de defesa consagrado no n.º 10 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa foi sempre respeitado.
O objeto do processo foi sempre o mesmo.
E, com todo o respeito, não tem a recorrente qualquer razão para afirmar que nunca conseguiu perceber a que título omitiu deveres de cuidado e diligência.
Tanto que percebeu que, em sede de recurso, veio alegar:
«Ora, considerando os factos que acima se identificaram, qual/quais a(s) probabilidade(s) da Recorrente prever ou sequer equacionar a possibilidade do passadiço em causa constituir risco na sua utilização?
Note-se que estamos a falar de passadiços cuja estrutura era fixa, imóvel, original do Complexo Petroquímico e cuja finalidade era a passagem diária de pessoas. Sendo que o mesmo estava inclusivamente integrado numa rede de Kms de passadiços (parte integrante do Complexo Petroquímico).
Pois bem, face à natureza destes passadiços, porquê e a que título a utilização dos mesmos deveria estar prevista e acautelada no PSS e na FAR?
Com o devido respeito, para além de, legalmente, não fazer qualquer sentido, a utilização dos passadiços, face à sua natureza, também não tinha de estar prevista no PSS nem na FAR.».
Enfim, resta-nos concluir que nos autos não vislumbramos qualquer violação do princípio do acusatório, nem qualquer restrição ao direito de audição e defesa da ora recorrente.
Uma última nota: a alegada inversão do ónus da prova não é verdadeira. A acusação concretizou o ónus de provar a prática da infração contraordenacional imputada.
Finalizando, improcede a primeira questão suscitada no recurso.
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V. Do alegado não cometimento do ilícito contraordenacional
A recorrente nega o cometimento do ilícito.
Apreciemos.
Na decisão recorrida entendeu-se que a recorrente praticou uma infração contraordenacional muito grave, prevista e punida pelas disposições conjugadas dos artigos 15.º, n.º 2 alínea c) e n.º 14, da Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro, 22.º, n.º 1 alínea c) e 25.º, n.º 3 alínea c), do Decreto-Lei n.º 273/2003, de 29 de outubro.
Desde já adiantamos que esta decisão não nos merece reparo.
Vejamos.
De acordo com o artigo 15.º, n.º 2 alínea c) da Lei n.º 102/2009, a recorrente, na qualidade de empregadora, estava obrigada a identificar em todas as atividades, locais, e processos de trabalho, os riscos previsíveis, com vista à eliminação dos mesmos ou, pelo menos, à redução dos seus efeitos (se a eliminação não fosse viável), por forma a assegurar que os seus trabalhadores executassem o trabalho com as máximas condições de segurança e de saúde.
A identificação dos riscos é um ato de extrema importância e que tem de ser levado com o maior rigor pelos empregadores.
O incumprimento da mencionada alínea c), prescreve a lei, constitui uma contraordenação muito grave – cf. n.º 14 do referido artigo 15.º.
Por seu turno, o artigo 22.º, n.º 1, alínea c) do Decreto-Lei n.º 273/2003, dispõe no sentido que durante a execução da obra, os empregadores devem observar as respetivas obrigações gerais resultantes do regime regulador da segurança, higiene e saúde no trabalho e, em especial, devem garantir as condições de acesso, deslocação e circulação necessária à segurança de todos os postos de trabalho no estaleiro.
O artigo 25.º do mesmo diploma legal elenca, classifica e imputa as infrações muito graves.
Exposto o enquadramento jurídico, passemos à análise dos factos.
No dia 12-05-2018, a recorrente tinha o local de trabalho no ..., em ....
A recorrente era o subempreiteiro da obra em curso no estaleiro.
Decorriam então trabalhos referentes ao Projeto/Obra 4000656, com a designação “Montagem de Aerocondensador e Substituição de turbina X-2501”.
Nesse dia, a recorrente tinha no referido local a trabalhar na obra os seus trabalhadores BB e AA.
Cerca das 11h45, aquando da manobra do Módulo 4 sobre a plataforma de betão do aerocondensador, aquele ficou imobilizado devido a possíveis interferências com a estrutura metálica do passadiço pré-existente e as respetivas proteções coletivas.
Os trabalhadores BB e AA, por determinação da recorrente, entraram no passadiço pré-existente na estrutura do aerocondensador para verificarem visualmente o assentamento da peça e darem instruções precisas aos colegas que se encontravam a auxiliar a manobra a partir da laje de betão, fora do passadiço.
Quando BB se dirigiu para o gradil onde se encontrava AA e no momento em que o pisou, o gradil perdeu o suporte, deslizou e os trabalhadores caíram a uma altura aproximada de 10 metros, provocando a sua queda no solo.
O passadiço encontrava-se fixado na plataforma de betão da estrutura intervencionada (Aerocondensador E8201) e consistia em plataformas metálicas com 7,50 metros de comprimento e 1,50 metros de largura apoiadas na estrutura de betão sobre os ventiladores do aerocondensador da fábrica de Etileno que se encontravam a aproximadamente 10 (dez) metros do solo, sendo cada plataforma composta por 5 grelhas metálicas (gradis) de dimensões variáveis.
O acesso ao aerocondensador era realizado por meio de passadiços cuja estrutura é a original do Complexo Petroquímico, de 1977, inexistindo evidências de terem sido objeto de alterações/modificações.
Os passadiços são utilizados no dia a dia da fábrica.
Os elementos constituintes do passadiço, designadamente perfis, gradis e varandim (proteção coletiva), encontravam-se em visível estado de deterioração, por corrosão.
O gradil que caiu apenas se encontrava apoiado nos topos/extremidades, sem qualquer apoio lateral e não possuía um sistema de fixação à estrutura e nas zonas de apoio/extremidades, encontrando-se resíduos resultantes da decomposição/corrosão da estrutura metálica e areia.
O Projeto/Obra 4000656 não incluía qualquer intervenção programada à estrutura do passadiço.
A entidade executante da obra procedeu ao desenvolvimento de Plano de Segurança e Saúde (PSS) para a execução da obra e entregou-o à recorrente, no dia 5 de Abril de 2018.
No dia do acidente, decorriam trabalhos da atividade de montagem dos blocos do aerocondensador e foi produzido um procedimento específico – Procedimento de Trabalho PT/08 – Transporte e Montagem de Aerocondensador – revisão 01 e respetiva ficha de avaliação de riscos que passaram a fazer parte do PSS.
O Procedimento de Trabalho PT/08 tinha como “objetivo geral descrever de forma sucinta, os Trabalhos de Transporte e Montagem do Aerocondensador, identificar os recursos (pessoal e equipamento) utilizados na mesma, identificar os riscos associados e definir procedimentos de segurança e respetivas medidas de prevenção e proteção, com o intuito de tornar possível o seu objetivo específico, o controlo dos trabalhadores e dos seus riscos associados”.
A Ficha de Avaliação de Risco (FAR) não mencionava para o perigo “utilização de grua” qualquer risco de “queda em altura”.
O PSS para a execução da obra não continha uma avaliação dos riscos profissionais adequada aos trabalhos em curso e não contemplava as respetivas medidas de prevenção adequadas, pois na eventualidade da necessidade de utilização do passadiço para auxiliar a manobra de colocação/encaixe do aerocondensador, a mesma deveria estar prevista e acautelada no PSS e nas fichas de procedimento de segurança e não estava.
A recorrente atuou de forma livre e espontânea, omitindo um dever objetivo de cuidados e diligência, no sentido de evitar a produção daquele resultado, não procedendo com o cuidado a que, de acordo com as circunstâncias, estava obrigada e de que era capaz, pois como subempreiteira e entidade patronal estava também obrigada a proceder á identificação dos riscos associados á tarefa de colocação e montagem do aerocondensador e a definir medidas de prevenção adequadas, o que, em parte, preteriu.
Por o passadiço se tratar de uma estrutura fixa e terem confiado que a mesma se encontraria estável, integrando o Complexo Petroquímico, sendo do uso diário de trabalhadores, inclusivamente, por pessoas qualificadas na manutenção de estruturas metálicas no local, nenhuma das entidades envolvidas, dono da obra, executante e subempreiteiro, bem como os trabalhadores AA e BB previu o risco de queda em altura pela sua utilização devido a deficiência/vício na sua estrutura.
Por isso, não foi sequer equacionado pela recorrente que a utilização do passadiço requeresse qualquer medida complementar de segurança como a utilização de linha de vida ou uso de arnês, na medida em que se tratava de um passadiço fixo e confiou que se encontraria estável para a passagem de pessoas.
Assim, a utilização dessa estrutura não foi contemplada no PSS.
Eis os factos.
E o que se infere dos mesmos é que para os trabalhadores da recorrente exercerem as suas funções e nomeadamente acederem ao aerocondensador tinham necessariamente de utilizar o passadiço onde ocorreu o acidente.
Esse passadiço era uma estrutura original do Complexo Petroquímico, existente desde 1977, sem evidências de ter sido objeto de alterações/modificações.
O mesmo era constituído por perfis, gradis e um varandim que se encontravam em visível estado de deterioração, por corrosão, e situava-se a 10 metros de altura.
Ou seja, estamos a falar de uma estrutura que, em 2018, tinha 41 anos e que, à vista desarmada, estava num estado de deterioração por corrosão.
Ademais, o gradil que caiu nem sequer estava devidamente fixado á estrutura.
Ora, um equipamento com mais de 4 décadas, situado a 10 metros de altura, visivelmente deteriorado, e que tinha de ser utilizado pelos trabalhadores da recorrente, obrigava a que sobre esta recaísse a obrigação de avaliar e identificar que riscos o mesmo oferecia que pudessem pôr em causa a segurança e saúde dos seus trabalhadores, e com base nessa avaliação, tomar as necessárias medidas.
Nomeadamente, importava analisar se os gradis, sobre os quais os trabalhadores tinham de passar, estavam devidamente fixados à estrutura.
A recorrente, porém, assim não diligenciou.
Ademais, teve acesso ao PSS para a execução da obra, elaborado pela entidade executante, tendo, pois, tomado conhecimento da absoluta omissão da avaliação dos riscos relacionados com a utilização do passadiço.
O Procedimento do Trabalho PT/08 – Transporte e Montagem de Aerocondensador – revisão 01 e respetiva ficha de avaliação de riscos que passaram a fazer parte do PSS e que foi elaborado no dia do acidente também não se ocupava dos riscos, nomeadamente nem sequer referia medidas de prevenção adequadas na eventualidade da necessidade de utilização do passadiço para auxiliar a manobra de colocação/encaixe do aerocondensador,
Em suma, os factos evidenciam que a avaliação e identificação sobre a existência de riscos inerentes à utilização do passadiço pelos seus trabalhadores não foi feita pela recorrente, nem sequer sugerida à entidade executante, como se lhe impunha.
Houve, assim, uma absoluta omissão do dever de cuidado prescrito nas normas jurídicas mencionadas supra.
Mostra-se, pois, preenchido o elemento objetivo do tipo de ilícito em causa.
Quanto ao elemento subjetivo, com arrimo nos factos provados, infere-se que a recorrente tinha condições para atuar com o cuidado e diligência a que estava obrigada e de que era capaz, pelo que, ao não o ter feito, atuou negligentemente.
Como tal, mostra-se igualmente preenchido o elemento subjetivo do ilícito contraordenacional.
Em suma, bem andou a decisão recorrida ao confirmar a decisão administrativa quanto à prática da contraordenação.
Nesta sequência, resta-nos concluir pela improcedência do recurso e, por consequência, pela manutenção da decisão recorrida.
Concluindo, o recurso mostra-se improcedente.

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VI. Decisão
Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, e consequentemente, confirmam a sentença recorrida.
Custas a cargo da recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.

Évora, 12 de setembro de 2024
Paula do Paço
Emília Ramos Costa
João Luís Nunes
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[1] Relatora: Paula do Paço; 1.ª Adjunta: Emília Ramos Costa; 2.º Adjunto: João Luís Nunes