PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
CONTAGEM DO PRAZO PARA A CONTESTAÇÃO
PRAZO DA CONTESTAÇÃO
PRORROGAÇÃO DO PRAZO
EXPECTATIVA JURÍDICA
Sumário


1. Os princípios da certeza, da segurança jurídica, da confiança, da boa-fé e da proporcionalidade, protegem as expectativas dos cidadãos afectados por uma alteração das regras processuais aplicáveis, podendo concluir-se que quando o órgão jurisdicional tenha adoptado comportamentos capazes de gerar expectativas de continuidade dessa alteração de regras, tais expectativas serão justificadas, em especial se as partes moldaram a sua actuação processual em conformidade.
2. Tal não é o caso, quando o réu requer e vê deferida a prorrogação do prazo de contestação, e mesmo assim apresenta esse articulado após o 3.º dia útil do prazo assim prorrogado.
3. Também não se pode afirmar que o tribunal criou a legítima expectativa de aceitação desse articulado, quando num primeiro momento concedeu prazo à demandante para responder às excepções, mas no despacho seguinte constatou e declarou a intempestividade da contestação.
(Sumário elaborado pelo relator)

Texto Integral


Acordam os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo Central Cível de Setúbal, Fundo de Garantia Automóvel propôs acção declarativa com processo comum contra AA…, alegando que este causou um acidente de viação quando conduzia um veículo sem dispor de seguro de responsabilidade civil, motivo pelo qual o A. pagou diversas indemnizações aos lesados.
Em consequência, pediu a condenação do R. a pagar-lhe a quantia de € 138.053,74, acrescida de juros.
Foi remetida carta registada para citação do R., a qual foi devolvida.
Passado mandado para citação por funcionário judicial, este citou o R., por contacto pessoal, no dia 15.12.2023.
O R. tem residência na área da comarca de Setúbal.
De acordo com a nota de citação, o R. foi informado que dispunha do prazo de 30 dias para contestar a acção; foi advertido que a falta de contestação importava a confissão dos factos articulados pelo A.; foi informado que com a contestação deveria apresentar o rol de testemunhas e requerer outros meios de prova; que o prazo era contínuo suspendendo-se, no entanto, nas férias judiciais; que terminando o prazo em dia que os tribunais estiverem encerrados, transferia-se o seu termo para o primeiro dia útil seguinte; que era obrigatória a constituição de mandatário judicial; e foi-lhe entregue um duplicado da petição inicial e cópias dos documentos que se encontravam nos autos.
Mais foi informado que as férias judiciais decorriam, entre outras datas, entre 22 de Dezembro e 3 de Janeiro.
No dia 26.01.2024, o R. juntou procuração a mandatário forense e requereu a prorrogação do prazo para contestar por 10 dias, afirmando que o prazo de contestação terminava a 29.01.2024 e invocando dificuldades na organização da sua defesa.
No dia 26.01.2024 foi proferido despacho com o seguinte teor: “Atentas as razões invocadas, defere-se à requerida prorrogação do prazo para apresentação da contestação, por 10 dias (artº 569º nº 5 do CPC).”
Este despacho foi notificado por comunicações expedidas nessa mesma data, através do Citius.
A contestação deu entrada no dia 12.02.2024 e o R. liquidou e pagou multa invocando a prática do acto no 2.º dia útil após o termo do prazo.
Em 21.02.2024 foi proferido despacho concedendo ao A. o prazo de 10 dias para responder às excepções invocadas na contestação.
O A. respondeu às excepções através de requerimento de 29.02.2024.
Em 17.04.2024 foi proferido o despacho recorrido, no qual se declarou que o prazo de contestação havia findado a 06.02.2024, podendo o acto ser praticado até 9 seguinte. Assim, a contestação foi declarada extemporânea e ordenada a sua eliminação do sistema. Mais se declararam confessados os factos articulados pelo A., nos termos do art. 567.º n.º 1 do Código de Processo Civil, sendo as partes notificadas para alegarem por escrito.

Deste despacho interpõe o R. recurso, concluindo:
(…)

Não foi oferecida resposta.
Corridos os vistos, cumpre-nos decidir.
Os factos a ponderar no recurso são os constantes do relatório.

Aplicando o Direito.
Da tempestividade da contestação
Argumenta o R. que foi violado o princípio da confiança, quer porque foi proferido um despacho a deferir a prorrogação do prazo de contestação, reconhecendo implicitamente que o prazo inicial findava a 29.01.2024, quer porque o tribunal recorrido concedeu prazo à A. para responder às excepções, criando assim no R. a expectativa legítima do seu articulado de defesa ter sido tempestivo.
É certo que os princípios da certeza, da segurança jurídica, da confiança, da boa-fé e da proporcionalidade, protegem as expectativas dos cidadãos afectados por uma alteração das regras processuais aplicáveis, podendo concluir-se que quando o órgão jurisdicional tenha adoptado comportamentos capazes de gerar expectativas de continuidade dessa alteração de regras, tais expectativas serão justificadas, em especial se as partes moldaram a sua actuação processual em conformidade[1].
No caso, o despacho que deferiu o pedido de prorrogação do prazo da contestação, não se pronunciou sobre qual a data em que findava o prazo inicial, pois não era a questão que tinha para apreciação. O que tinha a decidir, naquele momento processual, era se os motivos invocados pelo R. para pedir a prorrogação do prazo eram atendíveis, e decidir se prorrogava ou não o prazo.
Quanto ao despacho que concedeu prazo para a A. responder às excepções, também não apreciou a questão do prazo da contestação. Limitou-se a providenciar pelo encerramento da fase dos articulados, nada mais.
A prolação destes despachos não demonstra a criação de qualquer legítima expectativa quanto à aceitação definitiva da tempestividade da contestação, nem demonstra que as partes tenham passado a pautar o seu comportamento de acordo com essa expectativa.
Bem andou, pois, a primeira instância ao não admitir a contestação, por apresentada mais de três dias úteis após o termo do prazo de contestação, prorrogado por mais 10 dias, conforme foi deferido pelo despacho de 26.01.2024 (o prazo de 30+10 dias findou a 06.02.2024, com o 3.º dia útil posterior a cair a 9 seguinte). Note-se, ainda, que o prazo processual é por regra contínuo, pelo que prorrogado o prazo inicial de contestação (nos termos do art. 569.º n.º 5 do Código de Processo Civil), “fica a haver um único prazo com a duração do tempo do prazo legal acrescido do tempo da prorrogação, sendo irrelevante, para efeitos de contagem do prazo, a data da notificação do despacho que defira tal pedido.”[2]

Decisão.
Destarte, nega-se provimento ao recurso e confirma-se o despacho recorrido.
Custas pelo Recorrente.

Évora, 12 de Setembro de 2024

Mário Branco Coelho (relator)
Maria Adelaide Domingos
Ana Pessoa
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[1] Acerca do princípio da protecção da confiança, cfr. os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 128/2009, 413/2014 e 408/2015, disponíveis no sítio daquele Tribunal, e os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 09.07.2014 e de 17.05.2016, publicados em www.dgsi.pt.
[2] Acórdão desta Relação de Évora de 05.11.2020 (Proc. 1884/19.4T8EVR-A.E1), acompanhado pelo Acórdão da Relação do Porto de 18.03.2024 (Proc. 3589/23.2T8VNG-A.P1), ambos publicados em www.dgsi.pt.