INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA
CRÉDITO GARANTIDO POR HIPOTECA SOBRE UM BEM DE TERCEIRO
PERDA DO BENEFÍCIO DO PRAZO
Sumário


1. Pretendendo o embargante impugnar o recebimento das cartas de interpelação que lhe foram dirigidas pela credora, não pode alegar apenas que as não recebeu.
2. Compete-lhe o ónus de alegar e provar que não ocorreu culpa sua no não recebimento de tais cartas – em especial, quando estava acordado que as comunicações eram realizadas por escrito, para as moradas já comunicadas, e que qualquer alteração de morada deveria ser informada à contraparte, no prazo de 30 dias.
3. Face ao art. 782.º do Código Civil, a perda de benefício do prazo pelo devedor não se estende ao terceiro garante hipotecário.
4. Porém, este regime tem natureza supletiva, podendo as partes convencionar o contrário.
5. Tal é o que sucede quando está convencionado que o não cumprimento de quaisquer obrigações da mutuária produzia “o vencimento antecipado e a exigibilidade imediata de todas as demais obrigações”, e que a hipoteca se destinava a garantir “o bom, integral e pontual cumprimento das obrigações e responsabilidades decorrentes d(o) empréstimo, designadamente o reembolso do capital, pagamento dos juros, comissões, despesas judiciais e extrajudiciais e demais encargos”.
6. O credor pode exigir do terceiro garante hipotecário o imediato pagamento da totalidade da dívida antecipada se previamente o tiver interpelado para esse efeito.
(Sumário elaborado pelo relator)

Texto Integral


Acordam os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo de Execução de Loulé, Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Sotavento Algarvio, C.R.L. moveu execução contra AA…, para pagamento da quantia de € 224.204,37, invocando a concessão de mútuo a uma terceira entidade, garantido por hipoteca prestada pelo executado.
O executado deduziu embargos de executado, alegando que é mero terceiro garante do empréstimo, que não foi interpelado para pagamento do crédito, que não renunciou ao benefício do prazo de pagamento em prestações acordado e que se deve proceder à excussão prévia dos bens da devedora.
Após contestação da embargada, o saneador-sentença julgou os embargos improcedentes.

São as seguintes as conclusões do recurso apresentado pelo embargante:
(…)

A resposta sustenta a manutenção do julgado.
Corridos os vistos, cumpre-nos decidir.

Os factos julgados provados na decisão recorrida são os seguintes:
(…)

Aplicando o Direito.
Impugnação da matéria de facto
Alega o Recorrente que não se poderia considerar demonstrada a realidade dos factos inscritos nos pontos 8 a 12 – a remessa das cartas datadas de 15.07.2022, de 31.08.2022 e de 11.05.2023, e a não recepção das duas primeiras.
Mas diremos que pretendendo o embargante impugnar a eficácia das interpelações contidas nas duas primeiras missivas (a terceira foi recebida, conforme informação dos CTT anexa à contestação e não impugnada), competia-lhe alegar e provar factos aptos à formulação de um juízo de inexistência de qualquer culpa no seu não conhecimento.
Mesmo para os que argumentam que, face ao art. 224.º n.º 2 do Código Civil, ao declarante cabe o ónus de alegar e provar que a declaração foi colocada ao alcance do destinatário em condições de, segundo a normalidade das circunstâncias, ser conhecida, e ao declaratário o ónus de alegar e provar factos que coloquem em dúvida ou demonstrem a inexistência de qualquer culpa no não conhecimento da declaração (arts. 346.º e 342.º n.º 2 do Código Civil)[1], a conclusão que se obtém é a mesma: tendo as cartas sido remetidas pela embargada, era o embargante, enquanto declaratário, que deveria ter alegado a inexistência de culpa no seu não recebimento, assim obstando aos efeitos que decorrem do art. 224.º n.º 2 do Código Civil.
Ora, é o próprio embargante quem reconhece na sua petição de embargos que as cartas foram endereçadas para o seu domicílio – respectivo art. 18.º, onde afirma que os registos dos correios têm a sua direcção – pelo que a ele competia o ónus de alegar factos demonstrativos da inexistência de culpa sua no não recebimento de tais missivas.
Tanto mais que, face à cláusula 13.ª do documento complementar à escritura de 18.04.2011, as partes haviam acordado que as comunicações deveriam ser feitas por escrito, por carta ou por telecópia, para os respectivos endereços mencionados na escritura, que se consideravam também como os seus domicílios para efeitos de citação e notificação judicial, e cujas alterações se obrigavam a comunicar nos 30 dias posteriores à sua ocorrência, mais acordando que as comunicações expedidas pela mutuante sob registo se consideravam feitas e recebidas no 3.º dia posterior ao do seu registo ou no 1.º dia útil seguinte, se aquele o não for salvo se a efectiva recepção não tiver ocorrido por facto a que o destinatário seja alheio.
Não pode pois, o embargante escudar-se no não recebimento das cartas de 15.07.2022 e de 31.08.2022 para alegar o desconhecimento do seu teor. O facto de ter procedido ao arrendamento, em 01.05.2022, do local que havia anteriormente comunicado à embargada para recepção da correspondência que lhe era dirigida, não o inibia de tomar as providências adequadas a garantir o recebimento dessa correspondência.
Ou acordava com a arrendatária a redirecção da correspondência que lhe era dirigida, ou informava a embargada da alteração de morada, no prazo de 30 dias, como contratualmente se havia obrigado a fazer.
Se não o fez, sibi imputat.
Em consequência, a impugnação fáctica improcede.

Da exigibilidade da obrigação
Sendo o embargante mero proprietário do imóvel dado em hipoteca, mas não o devedor da quantia mutuada, aplica-se o disposto no art. 698.º n.º 1 do Código Civil, o qual prevê que “sempre que o dono da coisa ou o titular do direito hipotecado seja pessoa diferente do devedor, é-lhe lícito opor ao credor, ainda que o devedor a eles tenha renunciado, os meios de defesa que o devedor tiver contra o crédito, com exclusão das excepções que são recusadas ao fiador.”
A embargada pretende prevalecer-se do disposto no art. 781.º do Código Civil, face à falta de pagamento da prestação vencida a 18.09.2019, que implicou o vencimento das demais, assim dando a hipoteca à execução, de acordo com o estabelecido na cláusula sétima do documento complementar à escritura.
Antunes Varela[2] chama a atenção que do art. 781.º não decorre o vencimento, automático ou ex legis, das prestações restantes, devendo antes ser interpretado no sentido de que o inadimplemento do devedor gera no credor “o direito de exigir a realização, não apenas da prestação a que o devedor faltou, mas de todas as prestações restantes, cujo prazo ainda se não tenha vencido. (…) O vencimento imediato das prestações cujo prazo ainda se não vencera constitui um benefício que a lei concede – mas não impõe – ao credor, não prescindindo consequentemente da interpelação do devedor. A interpelação do devedor para que cumpra imediatamente toda a obrigação (realizando todas as prestações restantes) constitui a manifestação da vontade do credor em aproveitar o benefício que a lei lhe atribui.”
Está em causa, pois, um mero benefício concedido ao credor que, para se prevalecer dele, deverá interpelar o devedor para cumprir imediatamente a totalidade da obrigação. Em consequência, enquanto não ocorrer essa interpelação, não se pode afirmar que o devedor entrou em mora em relação às restantes prestações, tornando-se exigível que o credor demonstre ter interpelado o devedor para o mencionado fim.
Na situação em análise, verifica-se que o embargante não é o devedor da quantia mutuada, tendo meramente constituído hipoteca sobre um imóvel de que é proprietário, para garantia daquela obrigação. Tem, pois, lugar a aplicação do art. 782.º do Código Civil, que estabelece uma excepção ao regime geral consagrado no art. 781.º, ao estatuir que a perda do benefício do prazo não se estende aos co-obrigados do devedor, nem a terceiro que a favor do crédito tenha constituído qualquer garantia.
Em consequência, a faculdade concedida ao credor de exigir antecipadamente o cumprimento de toda a obrigação, em caso de inadimplemento em relação a alguma das prestações acordadas, não é extensiva aos garantes da obrigação, como é o caso do embargante, que continua, assim, a beneficiar do prazo de pagamento em prestações inicialmente acordado.
Citando de novo Antunes Varela[3], “tratando-se, por conseguinte, do fiador ou do terceiro que constituiu o penhor ou a hipoteca, o credor terá que aguardar o momento em que a obrigação normalmente se venceria para poder agir contra eles. E como não se distingue entre garantias reais e garantias pessoais, igual regime será aplicável ao terceiro (fiador) que tenha afiançado a dívida.”
A jurisprudência tem admitido, porém, que estes preceitos têm natureza supletiva, admitindo-se que ao abrigo do princípio da liberdade contratual – art. 405.º do Código Civil – o terceiro garante renuncie à protecção que lhe é conferida pelo citado art. 782.º, deixando de beneficiar do plano de pagamento em prestações acordado em caso de incumprimento de alguma delas.
No entanto, tal renúncia deverá ser prestada de forma expressa, não relevando para este efeito, por exemplo, a renúncia do fiador ao benefício da excussão prévia.
No caso dos autos, foi convencionado na cláusula sexta do documento complementar à escritura que o não cumprimento de quaisquer obrigações da mutuária produzia “o vencimento antecipado e a exigibilidade imediata de todas as demais obrigações”, acrescentando a cláusula sétima que a hipoteca se destinava a garantir “o bom, integral e pontual cumprimento das obrigações e responsabilidades decorrentes d(o) empréstimo, designadamente o reembolso do capital, pagamento dos juros, comissões, despesas judiciais e extrajudiciais e demais encargos”.
Logo, o embargante, na sua qualidade de terceiro garante, aceitou hipotecar o seu imóvel para garantir o cumprimento de todas as obrigações decorrentes do mútuo, inclusive as resultantes do vencimento antecipado em caso de incumprimento de alguma das prestações acordadas, e para o efeito a embargada procedeu à sua interpelação.
Ora, já se afirmou no Supremo Tribunal de Justiça o seguinte:
“IV – A perda de benefício do prazo pelo devedor a favor do credor não se estende, porém, ao seu fiador, e bem como aos seus demais co-obrigados e a terceiros (artº. 782º, do C. Civil).
V – Só assim não sucederá, num regime que igualmente se apresenta com natureza supletiva, se as partes outorgantes, à luz do princípio liberdade contratual (ínsito no artº. 405º, nº. 1, do CC), tiverem expressamente convencionado o contrário.
VI – Não o tendo feito, o credor só poderá exigir do fiador do devedor principal (ou dos demais co-obrigados deste) o imediato pagamento da totalidade da dívida antecipada se previamente o tiver interpelado, com essa cominação/advertência, para por termo à mora, pagando as quantias em dívida vencidas pelo decurso do prazo contratual para elas estipulado.” [4]
No caso, a interpelação para cumprimento foi realizada, através do envio das missivas de 15.07.2022, 31.08.2022 e 11.05.2023, pelo que nada obsta ao prosseguimento da execução.
E visto que outras questões não são lançadas no recurso, resta julgá-lo improcedente.

Decisão.
Destarte, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a sentença recorrida.
Custas pelo embargante.

Évora, 12 de Setembro de 2024

Mário Branco Coelho (relator)
Elisabete Valente
Maria João Sousa e Faro
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[1] É o caso do Acórdão da Relação de Lisboa de 16.01.2007 (Proc. 8929/2006-1), disponível em www.dgsi.pt.
[2] In Das Obrigações em Geral, vol. II, 4.ª ed., pág. 52.
[3] Loc. cit., pág. 54.
[4] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.05.2022 (Proc. 1511/19.0T8STB-A.E1.S1), publicado em www.dgsi.pt.