ALIMENTOS A EX-CÔNJUGE
MONTANTE DA PENSÃO
Sumário


1. A obrigação de alimentos entre ex-cônjuges funda-se no princípio da solidariedade, tendo como finalidade suprir a situação de carência do alimentando.
2. Esta situação de carência alimentar deve ser reconhecida à ex-cônjuge com uma idade que lhe condiciona decisivamente a capacidade de ganho – quase 75 anos de idade – e cujo único rendimento consiste numa pensão de velhice de € 283,28.
3. E deve ser exigida a prestação alimentar se o outro ex-cônjuge dispõe de capacidade económica bastante, e não existem razões de equidade que levem à negação desse direito – art. 2016.º n.º 3 do Código Civil.
4. Não pode ser fixado, a priori, um limite temporal à prestação de alimentos, pois a modificação dessa obrigação ou a sua cessação será verificada se e quando ocorrerem as circunstâncias previstas nos arts. 2012.º e 2013.º do Código Civil.
(Sumário elaborado pelo relator)

Texto Integral



Acordam os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo de Família e Menores de Setúbal, AA (marido) instaurou acção de divórcio sem consentimento contra BB (mulher).
Na contestação, a Ré deduziu pedido reconvencional, pedindo a atribuição de uma pensão de alimentos no valor mensal de € 705,00.
Após réplica, na qual o A. pugnou pela improcedência da reconvenção, foi proferido despacho convolando a acção em divórcio por mútuo consentimento e determinando o prosseguimento dos autos para conhecimento do pedido reconvencional.
Após julgamento, a sentença decidiu julgar o pedido reconvencional parcialmente procedente e condenar o A. no pagamento de uma prestação de € 225,00 mensais, a título de alimentos devidos à Ré, a pagar até ao dia 8 de cada mês.

São as seguintes as conclusões do recurso apresentado pelo A.:
(…)

A resposta sustenta a manutenção do julgado.
Corridos os vistos, cumpre-nos decidir.

Os factos julgados provados na sentença recorrida são os seguintes:
1. A Ré/Reconvinte e o Autor/Reconvindo contraíram casamento civil em …/…/2010, na Conservatória do Registo Civil do Seixal.
2. O Autor/Reconvindo nasceu em …/…/1968 e a Ré/Reconvinte em …/…/1949.
3. Autor/Reconvindo e Ré/Reconvinte residiam em união de facto desde 1991.
4. Autor e Ré não têm filhos em comum e, actualmente, não partilham o mesmo leito e habitação.
5. A Ré/Reconvinte, a 22 de Março de 2021, saiu da habitação onde residia com o Autor/Reconvindo, encontrando-se a residir com a prima em habitação arrendada e cuja renda é paga pela última.
6. Nos meses de Março de 2001 e Março de 2007, o Autor/Reconvindo apresentava o seu vencimento parcialmente penhorado.
7. A Ré/Reconvinte não é proprietária de qualquer imóvel.
8. A Ré, actualmente, não exerce qualquer actividade profissional e já exerceu a actividade de cabeleireira numa loja e, posteriormente, em casa.
9. A Ré iniciou a sua actividade com o código 96021, descrição “salão de cabeleireiro” em 02-02-2008 e encerrou-a em 31-12-2008.
10. Em sede de consulta da carreira contributiva da Segurança Social, verifica-se que a Ré registou as seguintes remunerações:
a) No ano de 2020: 2.270,12;
b) No ano de 2019: € 3.100,00;
c) No ano de 2018: € 750,00;
d) No ano de 1990: € 399,04;
e) No ano de 1989: € 1.995,20.
11. Para efeitos de IRS, Autor e Ré declararam rendimentos no valor global de:
a) No ano de 2019: € 29.432,82;
b) No ano de 2018: € 25.283,64.
12. Para efeitos de IRS, a Ré, no ano de 2020, declarou rendimentos no valor de € 2.270,12 e não apresentou declarações de IRS, por falta de rendimentos, nos anos de 2021 e 2022.
13. A Ré encontra-se, desde 05 de Julho de 2023, a auferir pensão social de velhice no montante mensal de € 283,28.
14. O Autor é pensionista e aufere uma pensão de reforma no montante mensal ilíquido de € 1.548,15.
15. O Autor exerceu actividade profissional na empresa (…), Lda. desde o dia 09-07-2019 até ao dia 31-12-2023.
16. A remuneração mensal do mês de Dezembro de 2023 ascendeu a € 1.108,63.
17. O Autor procedeu à denúncia do contrato de trabalho invocando motivos de saúde.

Aplicando o Direito.
Da obrigação alimentar
O Recorrente alega, no essencial, que a Recorrida não demonstrou estar impossibilitada de prover ao seu sustento, atenta a actividade profissional que sempre realizou, e que é inaplicável o critério da idade da Recorrida, pois torna vitalícia a obrigação alimentar.
Assim, no seu entender, ou deve ser julgado totalmente improcedente o pedido reconvencional, ou deve ser fixada uma prestação inferior, e por um prazo não superior a 2 anos.
A sentença recorrida entendeu que obrigação alimentar se justificava, atenta a idade da Recorrida (já com 74 anos) e o facto de se ter demonstrado que aufere apenas uma pensão de velhice no valor de € 283,28, não exercendo já qualquer actividade profissional.
Paula Távora Vítor, in “Os Alimentos Pós-Divórcio – Entre a Solidariedade e a Responsabilidade”[1], observa que “O novo regime da obrigação alimentícia pós-divórcio ancora-se hoje num quadro de pressupostos que, pelo menos matricialmente, comunga com a obrigação alimentar comum – o binómio constituído pelas necessidades do alimentando e pelas possibilidades do obrigado. A situação de “necessidade” do obrigado assume, todavia, um significado diferente – é esta que justifica e desencadeia o recurso ao mecanismo alimentar, que, grosso modo, só se efectivará se o chamado tiver “possibilidades” de lhe corresponder. Por isso, não é apenas um dos pressupostos da obrigação alimentícia – é o pressuposto central desta. E é na centralidade da necessidade que se pode apoiar uma primeira conclusão de que a obrigação de alimentos entre ex-cônjuges tem como finalidade suprir uma carência, assumindo, desta forma, natureza alimentar. Persiste, assim, uma ideia de solidariedade, o fundamento tradicional dos regimes alimentares.”
A prevalência desta ideia de solidariedade entre ex-cônjuges também foi afirmada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31.01.2023, com o seguinte sumário: “I – O fundamento último, ético e jurídico, da obrigação de alimentos entre ex-cônjuges encontra-se num princípio de solidariedade pós-conjugal. Não se pode, com efeito, tratar os ex-cônjuges como se nunca houvessem sido casados, pois o divórcio não pode apagar o passado nem obstar ao desenvolvimento actual de determinadas consequências do matrimónio. II – A obrigação de alimentos entre ex-cônjuges, tem uma natureza sobretudo alimentar, não interferindo a culpa, ficando afastada qualquer carácter indemnizatório do direito, mostrando-se a obrigação alimentar entre ex-cônjuges estribada na necessidade do alimentando/possibilidades do alimentante, num entendimento de ultrapassadas considerações de merecimento ou desmerecimento que estariam traduzidas na declaração de culpa no divórcio. III – Cada ex-cônjuge deve prover à sua subsistência, nesse sentido a obrigação de alimentos assume-se como excepcional e necessariamente transitória, com decorrentes implicações no seu conteúdo, mais restrito, inexistindo o direito a exigir a manutenção de um padrão de vida de que beneficiava na pendência do casamento.”[2]
Atentos estes critérios, não temos dificuldade em reconhecer uma situação de carência à Recorrida: tem uma idade que lhe condiciona decisivamente a capacidade de ganho – fará 75 anos de idade já no próximo mês de Outubro – e o único rendimento que lhe é conhecido consiste numa pensão de velhice de apenas € 283,28, reconhecidamente insuficiente para a satisfação digna das necessidades de uma pessoa, face ao actual custo de vida.
Quanto às possibilidades do Recorrente, este aufere uma pensão de reforma de € 1.548,15, valor este que, mesmo deduzido o da pensão decretada, se afigura bastante para satisfazer as suas despesas normais com habitação, alimentação, vestuário e saúde.
Deste modo, constatamos não apenas a situação de carência da Recorrida, como a existência de uma capacidade económica ao Recorrente bastante para prestar solidariedade à sua ex-cônjuge, motivo pelo qual o direito a alimentos deve ser reconhecido, tanto mais que não ocorrem razões de equidade que levem à negação desse direito – art. 2016.º n.º 3 do Código Civil.
Sobre a determinação do montante da pensão, Paula Távora Vítor também escreve que “está excluída uma asséptica determinação da medida da necessidade a satisfazer em função de um “cabaz de compras” de montante mais ou menos generoso. E, nessa medida, cremos que a opção do regime jurídico português não se reporta à adopção de um nível, um referente quantitativo de alimentos, a que se deva aspirar. Os dados do sistema, mais propriamente a enunciação dos critérios do art. 2016.º-A, apontam-nos não para um propósito de definição de um nível de necessidade relevante, de um padrão a impor na fixação do montante dos alimentos, mas para a importância de considerar factores diversos na determinação dos pressupostos da obrigação alimentar e, em particular, da necessidade, que a justifica e modela. Tais factores incluem dados de natureza quantitativa, mas também de natureza qualitativa, que devem concorrer para determinar a necessidade relevante e se há meios para lhe fazer face. Ora, essa fasquia, dependendo do concurso de tais circunstâncias, pode colocar-se em níveis muito distintos, tal como temos vindo a exemplificar. Estes níveis são, portanto, traçados em função da situação concreta dos sujeitos da relação alimentar, sem que sejam compulsivamente determinados por referência a uma medida fixa, exterior a esse processo de modelação – seja o nível de vida do casamento ou o limiar de uma existência condigna. De algum modo, pode ser convocada a ideia de uma medida razoável – razoável porque determinada pela ponderação concreta de uma constelação de factores relevantes. O montante em concreto da pensão alimentícia será fixado tendo em conta a medida desta necessidade, na sua relação com as possibilidades do devedor.”[3]
Procurando aplicar os critérios previstos no art. 2016.º-A n.º 1 do Código Civil, a sentença recorrida ponderou que não existiam filhos comuns, que a relação persistiu entre 1991 e 2021 – primeiro como união de facto, depois como casamento – e que não se apuraram especiais responsabilidades que o Recorrente houvesse de satisfazer, a não ser as necessárias ao seu sustento.
Deste modo, a sentença fixou a pensão em € 225,00, que permitiria à Recorrida atingir, somando a pensão de velhice já auferida, o valor de referência do indexante dos apoios sociais, actualmente fixado em € 509,26.
Não encontramos fundamento para divergir deste valor, pois enquadra-se na situação concreta dos sujeitos da relação alimentar: pode ser suportado pelo Recorrente e é apto a satisfazer a situação de carência em que se encontra a Recorrida.
Quanto à limitação temporal pretendida pelo Recorrente, de dois anos, não tem cabimento legal.
O art. 2012.º do Código Civil prevê as circunstâncias em que pode ocorrer a modificação da obrigação alimentar, enquanto o art. 2013.º n.º 1 al. a) admite a cessação dessa obrigação “quando aquele que os presta não possa continuar a prestá-los ou aquele que os recebe deixe de precisar deles.”
A seu tempo, se tais circunstâncias ocorrerem, o Recorrente poderá peticionar a redução ou cessação da pensão de alimentos.
Por ora, não é possível concluir que a situação que determinou a fixação da pensão se vai manter por menos ou mais de dois anos.
Por tais motivos, o recurso deve improceder.

Decisão.
Destarte, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a sentença recorrida.
Custas pelo Recorrente.

Évora, 12 de Setembro de 2024

Mário Branco Coelho (relator)
Manuel Bargado
Maria Adelaide Domingos
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[1] Artigo publicado na Revista Julgar, n.º 40, 2020, págs. 181 e ss., encontrando-se a passagem citada na pág. 184.
[2] Proferido no Proc. 242/12.6TMLSB.L1.S1 e publicado em www.dgsi.pt.
[3] Loc. cit., págs. 201 e 202.