SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO
PRESTAÇÃO DE CAUÇÃO
Sumário


I. A suspensão da execução sem prestação de caução depende da verificação de três requisitos cumulativos: (i) a alegação da inexigibilidade e/ou iliquidez da obrigação exequenda nos termos previstos nos artigos 713.º e 729.º, alínea e), do CPC (sendo irrelevante para este efeito a invocação da inexequibilidade do título executivo); (ii) a audição prévia do embargado; e (iii) a existência de um juízo judicativo positivo sobre a suspensão da execução sem prestação de caução.
II. O primeiro requisito encontra-se preenchido se o embargante alegar e juntar prova donde decorra de forma consistente que é controvertido se a obrigação exequenda se encontra incumprida, a par da existência de erros e deficiências na liquidação da obrigação exequenda.
III. O segundo requisito verifica-se se tiver sido dado cumprimento ao princípio do contraditório.
IV. O terceiro requisito exige uma ponderação crítica das particularidades do caso concreto, prevalecendo a relevância do interesse do executado em suspender a execução em ordem a evitar a venda executiva de bens já garantidos por hipoteca e penhora, e que se encontram afetos ao serviço e gestão pública camarária.
(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral


Processo n.º 3631/22.4T8LLE-D.E1 (Apelação em Separado)
Tribunal recorrido: Tribunal Judicial da Comarca ..., ... – J...
Apelante: Banco Comercial Português, S.A.
Apelado: V...., S.A. – Em Liquidação

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO
BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS, S.A., Exequente na execução para pagamento de quantia certa em que é Executada V..., E.M., S.A. – EM LIQUIDAÇÃO, inconformado com a decisão proferida em 18-10-2023 (Ref.ª ...66) que decidiu suspender a execução, sem necessidade de prestação de caução, interpôs recurso de apelação apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
«DA NULIDADE DA DECISÃO DO TRIBUNAL A QUO
A. O despacho do tribunal a quo de 23.10.2023[1] no qual se decidiu, ao abrigo do artigo 733.º, n.º 1, al. c) do CPC, a suspensão da execução é nulo, por falta de fundamentação (cf. artigo 154.º do CPC), pois a fundamentação apresentada é meramente aparentemente e invoca considerações que nada tem que ver com o que está a ser discutido.
B. O primeiro fundamento apresentado é a invocação da existência de elementos carreados para os presentes autos e para os autos de execução, porém, nada mais é referido sobre estes elementos, pelo que, como bem se compreende, não pode esta invocação ser considerada como preenchendo o dever de fundamentação a que estão sujeitos os tribunais.
C. O segundo e terceiro fundamentos apresentados pela Executada relacionam-se com o crédito do Recorrente já estar duplamente garantido, através de penhora e hipoteca (2.º argumento) e que a venda executiva dos imóveis implicaria a retirada dos serviços camarários (arrendatários dos imóveis) dos imóveis (3.º argumento).
D. Também esta linha de fundamentação não pode ser aceite para estes efeitos, pois a análise que o juiz deve fazer no âmbito do artigo 733.º, n. º1, al. c) do CPC implica (“tão somente”) atender à factualidade apresentada pelo executado que serviu de base à impugnação da obrigação exequenda e/ou à liquidação da mesma e analisar se a mesma foi apresentada de forma verissímil e com base em meios de prova com forte valor probatório.
E. Visto que tanto o 2.º e 3.º fundamentos apresentados pelo tribunal a quo em momento algum respeitam à inexigibilidade ou liquidação da obrigação exequenda, então, a sua invocação é manifestamente deslocada do que aqui se discute, e, por isso, não se pode considerar que tais argumentos impliquem o cumprimento do dever de fundamentação, pelo que deve ser considerada nula a decisão do tribunal a quo por falta de fundamentação (cf. artigo 154.º do CPC).
DO NÃO PREENCHIMENTO DOS PRESSUPOSTOS DE APLICABILIDADE DO ARTIGO 733.º, N.º 1, AL. C) DO CPC
F. Mesmo que se considere que a decisão não é nula por falta de fundamentação, o que não se aceita, a Decisão não pode ser mantida, pois não estão verificados os pressupostos de aplicabilidade do artigo 733.º, n.º 1, al. c) do CPC.
G. Os pressupostos de aplicabilidade do artigo 733.º, n.º 1, al. c) do CPC são i) que o executado tenha impugnado, na sua oposição, a exigibilidade e/ou a liquidação da obrigação exequenda e ii) o juiz considerar, ouvido o embargado, que se justifica a suspensão sem prestação de caução, entendendo os tribunais portugueses que estes dois pressupostos estão interligados, pois, o executado tem de impugnar a exigibilidade e/ou liquidação da obrigação exequenda e essa exata alegação tem de assentar numa versão factual consistente, com base em meios de prova com forte valor probatório, e que se anteveja de difícil superação em sede de audiência de julgamento.
H. Assim, qualquer fundamentação, para efeitos do artigo 733.º, n.º 1, al c) do CPC, que não recaia sobre a exigibilidade e/ou liquidação da obrigação exequenda, não pode fazer operar o mencionado artigo e, consequentemente, não pode o tribunal decretar a suspensão da execução.
I. A fundamentação invocada pelo tribunal a quo em momento nenhum incide sobre a factualidade alegada pela Executada quanto à exigibilidade e/ou liquidação da obrigação exequenda, logo nunca podia a suspensão da execução operar com base no artigo 733.º, n.º 1, al. c) do CPC.
J. O primeiro fundamento apresentado pelo tribunal a quo para decidir pela procedência da suspensão do processo foi a menção aos elementos carreados para o processo, mas como o tribunal a quo não identifica, de todo em todo, os referidos elementos, tal argumento não pode ser aceite como fundamento para suspender a execução.
K. O segundo fundamento do tribunal a quo – o crédito do Exequente está duplamente garantido, através de penhora e hipoteca sobre os mesmos bens – não só não alude, uma vez mais, à exigibilidade e/ou liquidação da obrigação exequenda, que é, como se viu, o pressuposto de aplicabilidade do artigo 733.º, n.º 1, al. c) do CPC, como é incorreto: se os direitos de garantia em questão (hipoteca e penhora) incidem ambos sobre os imóveis, então não existe nenhuma dupla garantia, dado continuarem apenas a ser aqueles imóveis a garantir o crédito do Exequente.
L. Por fim, o terceiro fundamento invocado pelo tribunal a quo – os serviços camarários estão a utilizar os Imóveis e a sua venda judicial implicaria a sua saída dos mesmos – não pode ser aceite, pois, por um lado, não é líquido – nem sequer foi alegado - que a venda judicial de um imóvel não provoca a extinção dos arrendamentos que incidam sobre os mesmos, e, por outro lado, também esta argumentação nada revela sobre a exigibilidade e/ou liquidação da obrigação exequenda que é, como se viu, o pressuposto necessário que deve ser invocado e demonstrado para que o tribunal possa decretar a suspensão da execução, com base no artigo 733.º, n.º 1, al. c) do CPC.
M. Assim, não oferece dúvidas que os pressupostos para aplicação do artigo 733.º, n.º 1, al. c) do CPC não estão verificados, devendo, por isso, ser revogada a decisão do tribunal a quo de suspender o processo executivo.
DO NÃO PREENCHIMENTO DOS PRESSUPOSTOS DE APLICABILIDADE DO ARTIGO 733.º, N.º 1, AL. A) DO CPC
N. Por fim, bem sabendo que a Executada apenas requereu, ao abrigo do artigo 733.º, n.º 1, al. c) do CPC a suspensão da execução, o certo é que o tribunal, ao longo do seu despacho, vai fazendo referências, ainda que indiretamente, ao artigo 733.º, n.º 1, al. a) do CPC, (suspensão da execução mediante a prestação de caução)..
O. A caução a ser prestada no âmbito do artigo 733.º, n.º 1, al. a) do CPC, deve ser idónea, ou seja, o seu valor deve abarcar não só o valor do crédito do Exequente, como os acréscimos que resultarão, no decorrer da suspensão da execução, sendo que se já tiver sido prestada uma garantia a favor do exequente, pode a caução ficar dispensada se tal garantia assegurar o referido valor.
P. É evidente que esta demonstração cabe ao executado: deve o executado demonstrar i) qual o valor que o crédito do exequente poderá atingir no fim da suspensão da execução, ii) que o exequente já tem uma garantia prestada a seu favor e iii) que tal garantia cobre o valor do crédito do exequente e demais acréscimos.
Q. A Executada apenas alegou, singelamente, que o valor dos imóveis era suficiente para assegurar o reembolso dos Contratos de Empréstimo (cf. Artigo 265.º dos embargos de Executada), nada mais alegando quanto a esta matéria, não fazendo, assim, a devida demonstração das circunstâncias acima identificadas, o que, como se viu, implica a inaplicabilidade do artigo 733.º, n.º 1, al. a) do CPC.
R. Aliás, a única afirmação da Executada quanto a este tema peca, para além do mais, por insuficiente, dado que não considera sequer os juros de mora que já se encontram a vencer, pois, neste momento, o crédito do Exequente já não se cinge ao valor constante dos Contratos de Empréstimo.
S. Quanto à questão do crédito estar duplamente garantido, apenas se reforça o que já antes se disse: tal pensamento encontra-se viciado, pois se o crédito está garantido por dois direitos de garantia diferentes mas que se reportam aos mesmos bens (in casu, aos mesmos imóveis), então é evidente que não existe qualquer dupla garantia. Assim, também esta linha argumentativa não pode ser utilizada nesta sede.
T. Por estas razões, também se deve considerar que nunca poderia o artigo 733.º, n.º 1, al. a) do CPC ser aplicável in casu.
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exa. doutamente suprirá, deve o despacho de dia 18.10.2023 ser:
a) Considerado nulo, por falta de fundamentação, ao abrigo do artigo 154.º do CPC;
b) Caso assim não se entenda, deve o despacho de dia 18.10.2023 ser revogado, por falta de verificação dos pressupostos do artigo 733.º, n.º 1, al. c) do CPC.»

Foi apresentada resposta ao recurso pugnando a Recorrida pela confirmação do despacho recorrido.

II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objeto do Recurso
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), no caso, impõe-se apreciar:
- Nulidade do despacho recorrido;
- Da suspensão da execução sem prestação de caução.

B- De Facto
Os factos e ocorrências processuais relevantes para o conhecimento do recurso constam do antecedente Relatório.

C- Do Conhecimento das questões suscitadas no recurso
1. Nulidade do despacho recorrido
Defende o Recorrente que o despacho recorrido (que determinou a suspensão da execução ao abrigo do artigo 733.º, n.º 1, alínea c), do CPC), é nulo por «falta de fundamentação» como é exigido pelo artigo 154.º do CPC, alegando que «a fundamentação apresentada é meramente aparente[mente] e invoca considerações que nada tem que ver com o que está a ser discutido», o que decorre, em seu entender, do facto do tribunal a quo se basear em elementos carreados para os autos sem os identificar, em considerar que o crédito exequendo está duplamente garantido (por penhora e hipoteca) olvidando que as garantias incidem sobre os mesmos bens imóveis, em considerar que a venda executiva dos imóveis implicaria a retirada dos serviços camarários, não obstante a existência de contratos de arrendamento que não caducam com a venda executiva, para além, de desconsiderar por completo na análise da decisão o requisito de aplicação do artigo 733.º, n.º 1, alínea c), do CPC, ou seja, exigibilidade e/ou liquidação da obrigação exequenda.
Vejamos, então.
Começando-se pela identificação da arguida nulidade.
O Recorrente invoca em abono da arguição de nulidade que a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação remetendo para o disposto no artigo 154.º do CPC, que estabelece o dever de fundamentação de todas as decisões judiciais em conformidade com o comando constitucional vertido no artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (cfr., para além do artigo 154.º do CPC, o artigo 607.º, n.º 4, do mesmo diploma legal).
Alega, ademais, que a fundamentação que qualifica de meramente aparente por desconexionada com as questões a decidir, também viola o dever de fundamentação por aplicação do n.º 2 do artigo 154.º do CPC.
Em face do teor e sentido da alegação, é posto em causa o conteúdo do despacho em crise que, no entender, do Recorrente não se encontra fundamentado, ou se encontra apenas aparentemente fundamentado, para além da fundamentação apresentada se apresentar como juridicamente incorreta pelas razões acima sintetizadas.
Ora, a falta de fundamentação é, sem dúvida, o vício qualitativamente mais grave e remete-nos para a nulidade da decisão (em sentido lato, abrangendo os despachos – cfr. artigo 613.º, n.º 3, do CPC) conforme prescrito no artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC, podendo a nulidade ser arguida em sede de recurso, se a decisão o admitir (artigo 615.º, n.º 4, do CPC), como sucede no caso em apreço.
Já a incorreção da fundamentação por existência de erro de direito remetemos para a apreciação do mérito do decidido, extravasando, assim o campo de aplicação das nulidades da decisão.
Ainda que o Recorrente não venha invocar expressamente a nulidade do despacho recorrido por aplicação do artigo 615.º do CPC (nem sequer mencionando o preceito na motivação do recurso ou nas conclusões), do teor das conclusões do recurso é patente que a arguida nulidade apenas se pode reconduzir à nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC, por ser na previsão deste normativo que se encontra prevista a nulidade da decisão por falta de fundamentação.
Ora, como é consabido (e as partes dão precisamente nota disso na alegação de recurso e na resposta à mesma), existe um claro consenso na doutrina e na jurisprudência no sentido da nulidade da decisão por falta de fundamentação (de facto ou de direito), apenas ocorrer quando exista falta absoluta de fundamentação, o que exclui as situações de motivação ou fundamentação deficiente, incompleta, errada e/ou não convincente ou outros vícios que lhe possam ser assacados, como a situação invocada pelo Recorrente (aparência de fundamentação pelas razões que menciona), que enformam, antes, erros de julgamento de facto ou de direito e não nulidades da decisão.
Decorrendo do teor do despacho recorrido que o decidido assenta nas razões de facto e de direito que o tribunal a quo analisa e expressamente menciona (o próprio Recorrente até identifica três fundamentos, ainda que os critique e deles dissida), e independentemente de desacertos de natureza formal ou substancial que o Recorrido lhes possa assacar, com razão ou sem ela, o que se verifica é que não ocorre omissão ou falta total de fundamentação, pelo que é de concluir que o despacho recorrido não é nulo por falta de fundamentação.
Em relação ao acerto dos fundamentos do despacho recorrido, como acima já referido, não constitui o mesmo fundamento de nulidade, mas apenas fundamento para o questionamento do mérito do decidido.
Improcede, assim, a arguição de nulidade.

2. Da suspensão da execução sem prestação de caução
Na petição de embargos, a Executada requereu a suspensão da execução sem prestação de caução ao abrigo do artigo 733.º, n.º 1, alínea c), do CPC.
Para o efeito fundou-se na alegação que produziu ao longo daquele articulado onde questionou a existência de título executivo, a exequibilidade da obrigação e a sua liquidez, ou, pelo menos, a correção dessa liquidação.
Nos artigos 268.º e 269.º da petição de embargos, especificamente mencionou que não requeria a prestação de caução por si ou pelo Município, alegando que tal «não decorre da falta de vontade de garantir a obrigação exequenda mediante caução (…), mas sim de uma verdadeira impossibilidade objetiva de prestar garantias (adicionais)» por já ter sido celebrada a «escritura de dissolução e encerramento da liquidação».
Na contestação dos embargos, a Exequente opõe-se à suspensão da execução por considerar não se verificarem os pressupostos da alínea c) do n.º 1, do artigo 733.º do CPC, pelas razões que ali invoca. Nunca sequer menciona a aplicação ao caso da alínea a), do n.º 1, do mesmo preceito legal, ou seja, a suspensão da execução por via de prestação de caução.
Também a decisão recorrida fundamenta a decisão na aplicação ao caso da alínea c), do n.º 1, do artigo 733.º do CPC.
A referências que ali se faz citando um acórdão da Relação de Coimbra que se pronunciou sobre a eventual necessidade de reforço da prestação de caução, irreleva para o caso dos autos, porquanto o que está em causa é precisamente a suspensão da execução sem prestação de caução e não o reforço desta.
Consequentemente, também as conclusões recursivas sobre a (in)aplicação da alínea a), do n.º 1 do artigo 733.º do CPC ao caso em apreço são irrelevantes porque não se conformam com o objeto da decisão recorrida, sendo este o substrato essencial à reapreciação em curso. Assim, estas conclusões não podem sequer ser apreciadas, o que aqui se deixa decidido.
Analisemos, então, a magna questão do recurso que se traduz na verificação dos pressupostos da suspensão da execução sem prestação de caução, tendo em conta o disposto na alínea c), do n.º 1, do artigo 733.º do CPC, que estabelece uma exceção à regra da não suspensão da execução por via do recebimento da oposição mediante embargos, estipulando que a execução se suspende se «Tiver sido impugnada, na oposição deduzida, a exigibilidade ou a liquidação da obrigação exequenda e o juiz considerar, ouvido o embragado, que se justifica a suspensão sem prestação de caução.»
Como decorre do normativo são três os pressupostos/requisitos cumulativos da sua aplicação: (1) a alegação da inexigibilidade e/ou iliquidez da obrigação exequenda nos termos previstos nos artigos 713.º e 729.º, alínea e), do CPC (sendo irrelevante para este efeito a invocação da inexequibilidade do título executivo); (ii) a audição prévia do embargado; e (iii) a existência de um juízo judicativo positivo sobre a suspensão da execução sem prestação de caução.
Realçando-se que esse juízo não é uma antecipação da decisão de mérito sobre os embargos, nem sequer uma mera apreciação perfunctória da procedência dos mesmos, reservada para a decisão que irá apreciar de fundo as questões ali suscitadas em face da prova produzida, mas antes a mera verificação da existência de uma alegação fundamentada e suportada em provas em relação à impugnação da exigibilidade e/ou iliquidez da obrigação exequenda.
Igualmente é de sublinhar que esse juízo positivo deve atender à concreta situação em apreço, mas não é arbitrário, embora pressuponha uma certa dose de discricionariedade, devendo ser devidamente fundamentado como todas as decisões judiciais o devem ser por imposição constitucional e legal (artigo 205.º, n.º 1, da CRP, e artigo 154.º do CPC).
No caso, a decisão recorrida assentou num juízo crítico e ponderado que o tribunal a quo fez do alegado e das provas juntas aos autos, tendo concluído pela verificação de todos os pressupostos da previsão normativa do artigo 733.º, n.º 1, alínea c), do CPC.
O Recorrente discorda, pelo que se impõe proceder à reapreciação dos fundamentos da decisão recorrida à luz da argumentação recursiva.
Em relação ao cumprimento do princípio do contraditório, o Recorrente nenhuma questão suscita, pelo que se dá esse requisito como preenchido.
Em relação ao primeiro requisito (impugnação da exigibilidade e/ou iliquidez da obrigação exequenda), o tribunal a quo considerou-o preenchido, aduzindo o Recorrente que tal não se verifica, por a fundamentação da decisão não incidir sobre a factualidade alegada pela Executada em relação à impugnação da exigibilidade e/ou liquidação da obrigação exequenda, acrescentado que o tribunal recorrido se limitou a mencionar os elementos carreados para o processo, sem sequer os identificar.
Não assiste razão à Recorrente, porquanto a fundamentação da decisão recorrida não se resume à parte final da mesma onde o julgador concluiu remetendo para os «os elementos carreados para os presentes autos e também para os autos de execução», pois anteriormente tinha explicitado em que termos a Embargante impugnou a exigibilidade da obrigação exequenda e o modo como foi impugnada a liquidação da mesma, mencionando expressamente que a impugnação da exigibilidade decorre da invocação de um acordo entre as partes de suspensão (moratória) do pagamento das prestações sujeita a termo suspensivo incerto, de um acordo das mesmas traduzido numa cessão da posição contratual da Executada para o Município ... no âmbito dos contratos de empréstimos dados à execução, em ordem a permitir a conclusão do processo de fiscalização prévia por parte do Tribunal de Contas do processo de revisão do Programa de Ajustamento Municipal (PAM) daquele Município, fecho do processo de dissolução e liquidação da Executada e internalização das atividades da mesma no Município abrangendo o ativo e passivo, e, por fim, substituição das garantias hipotecárias por garantias autónomas a prestar pelo Fundo de Apoio Municipal (FAM).
Como também consta do despacho a referenciação ao modo como a Executada impugnou a liquidação, direcionada a alegadas insuficiências sobretudo no cálculo dos juros de mora peticionados.
Sendo assim, é inquestionável que o julgador identificou na decisão recorrida os elementos fáticos e probatórios que constam dos autos e que se reportam aos fundamentos da impugnação da exigibilidade e liquidação da obrigação exequenda.
E, na verdade, a alegação dos fundamentos da impugnação é consistente e assenta na prova documental junta aos autos, não se apresentando, pois, como meramente dilatória com vista a obter a suspensão da execução sem prestação de caução, uma vez que da alegação das partes resulta que existe profunda controvérsia quanto à questão do (in)cumprimento da obrigação exequenda precisamente por as partes não estarem de acordo quanto à duração temporal da moratória acordada quanto ao pagamento das prestações e (in)verificação da condição suspensiva introduzida no acordo de cessão relacionada com a obtenção do visto do Tribunal de Contas.
O que resulta de forma clara e inquestionável das alegações das partes e documentos de suporte às mesmas e que constam mormente dos artigos 125.º e seguintes da petição de embargos e artigos 209.º e seguintes da contestação dos mesmos.
Também em relação à liquidação da obrigação exequenda, o Embargante alegou nos artigos 209.º e seguintes da petição de embargos a insuficiência e incorreta liquidação da quantia exequenda.
Por sua vez, a Embargada nos artigos 351.º e seguintes da contestação dos embargos retificou a liquidação apresentada no requerimento executivo e refez os cálculos, reconhecendo erros na liquidação apresentada, pedindo que seja considerada a alteração do valor da quantia exequenda (cfr. artigo 351.º da contestação dos embargos).
De que vem sendo dito, impõe-se concluir que a alegação das partes suportada pelas provas que juntam e interpretação que delas fazem, permite objetivamente concluir que se encontra preenchido o primeiro requisito supra referido (impugnação da exigibilidade e/ou iliquidez da obrigação exequenda) imprescindível ao decretamento da suspensão da execução sem prestação de caução.
Vejamos, agora, o requisito referente ao juízo positivo sobre as razões e provas juntas em ordem a justificarem a suspensão da execução sem prestação de caução.
A decisão recorrida fundamenou-se em dois vetores: (i) a dupla garantia (hipoteca e penhora) de que goza a obrigação exequenda; (ii) e a utilização dos imóveis penhorados por, num deles, se encontrarem instalados a Câmara Municipal ..., a Assembleia Municipal e outros serviços camarários, e nos noutros dois, o ....
Discorda o Apelante, dizendo que não existe dupla garantia por as hipotecas e penhoras incidirem sobre os mesmos imóveis e que os imóveis em causa se encontram arrendados não determinando a venda executiva a extinção de tais contratos de locação.
A discordância do Recorrente, salvo o devido respeito, não procede.
Quanto à questão da dupla garantia, afigura-se inquestionável que existe a duplicação referida na decisão recorrida, porquanto os créditos exequendos se encontravam garantidos pelas garantias reais constituídas pelas hipotecas voluntárias que incidem sobre os ditos imóveis, e agora, por força desta execução, também por via das penhoras sobre os mesmos imóveis.
Se, no caso concreto, a penhora constitui um acréscimo garantístico quanto ao pagamento da quantia exequenda, depende de vários fatores, como sejam, o valor final da quantia exequenda, o valor máximo garantido pelas hipotecas, o valor que vier a ser arrecadado na venda executiva e as garantias concorrentes que possam vir a ser invocadas no processo pelos credores reclamantes em sede de reclamação e graduação de créditos.
Todavia, o certo é que a penhora e a sua anterioridade em relação a outras eventuais penhoras serão relevantes no confronto com outros credores comuns.
Não sendo despiciendo referir que a Executada tem outros credores (bancos e sociedades comerciais) como bem revela o Relatório Final de Liquidação elaborado nos termos previstos no artigo 157.º do Código das Sociedades Comerciais que se encontra junto nestes autos. Assim, e caso a execução prossiga, também esses credores serão chamados a reclamar os seus créditos, sendo a graduação final feita tendo em conta essas potenciais reclamações e garantias que venham a ser apresentadas em relação a essas dívidas.
Por conseguinte, não é de todo correto dizer que não existe uma dupla garantia dos créditos exequendos, sendo que, pelas razões sobreditas, essa dupla garantia não deixa potencialmente de ser relevante aquando do pagamento em sede executiva.
Quanto ao segundo argumento, a Recorrente desconsidera-o alegando que os imóveis penhorados são objeto de contratos de arrendamento. Porém, nos autos não existe qualquer prova nesse sentido.
Recorrendo novamente ao Relatório Final de Liquidação da Executada verifica-se que ali são mencionados contratos de arrendamento e contratos de arrendamento (concessão), mas não se descortina em tal documento (ou em qualquer dos demais juntos aos autos) que os imóveis agora penhorados se encontram arrendados.
Por conseguinte, não se coloca a questão dos efeitos da venda executiva em relação aos ditos contratos de arrendamento, não documentados nos autos, como se disse.
A questão, a nosso ver e como se refere na decisão recorrida, prende-se com o tipo de utilização que é dada a esses imóveis.
Independentemente da natureza jurídica da Executada, o certo é que tais imóveis estão afetos ao serviço e gestão pública camarária, servindo os munícipes em particular e todo os demais utentes em geral, ou seja, a utilização dos imóveis está ao serviço do interesse público das populações com evidente relevância social, cultural, económica, desportiva, turística, etc.
Interesse que contraposto ao da Exequente, e sem descurar o seu legítimo interesse em ser devidamente ressarcido dos valores mutuados nos termos acordados, deverá prevalecer.
Sendo que, e sublinha-se, o que está em causa não é o ressarcimento do crédito da Exequente, mas apenas a paragem da tramitação da execução, evitando-se dessa forma a venda executiva, sem que esteja decidido se efetivamente estão preenchidos os pressupostos para a demanda executiva.
Estando o crédito da Exequente garantido nos moldes supra referidos, o que está em causa é apenas o retardamento do ressarcimento, que sempre será minorado com a contagem dos juros devidos.
Em face de todo o exposto, não se nos suscitam dúvidas sobre o preenchimento do último requisito supra referido, impondo-se a confirmação da decisão recorrida e, consequentemente, a improcedência do recurso.

Dado o decaimento, as custas ficam a cargo do Apelante (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.

III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas nos termos sobreditos.
Évora, 12-09-2024
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
Manuel Bargado (1.º Adjunto)
Francisco Xavier (2.º Adjunto)
__________________________________________________
[1] A menção ao dia da decisão incorre em mero lapso percetível em face da restante alegação.