ACIDENTE DE VIAÇÃO
PRIVAÇÃO DO USO DE VEÍCULO
INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
Sumário


I. O valor da indemnização pela perda total do veículo reporta-se ao valor de uso para o proprietário e para permitir a adquisição de outro veículo com características semelhantes e apto a satisfazer as mesmas necessidades.
II. O valor dos salvados deve ser descontado no montante da indemnização a atribuir pela perda do veículo quando o veículo não é entregue à seguradora.
III. O dano decorrente da privação do uso veículo constitui dano patrimonial autónomo, quando o proprietário do veículo danificado se viu privado de um bem que faz parte do seu património, deixando de dele poder dispor e gozar livremente, com violação do respetivo direito de propriedade.
IV. Demonstrado o dano que advém da privação do uso do veículo, na falta de quantificação objetiva, é legítimo o recurso à equidade para fixar a respetiva compensação.
V. Os juros de mora sobre os danos fixados em sede de responsabilidade civil por acidente de viação são devidos desde a decisão nos termos do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do S.T.J. nº 4/2002, de 09-05-2002, se sentença refletir que foram tais quantias atualizadas; em caso contrário, são devidos desde a citação.
(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral


Processo n.º 2375/21.9T8ENT.E1 (Apelação)
Tribunal recorrido: TJ C. ..., Juízo ... – J...
Apelante: Autora /AA
Apelada: Ré/ GNB- Companhia de Seguros, S.A. (atualmente designada MUDUM – Companhia de Seguros, S.A.)

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de ÉVORA

I – RELATÓRIO[1]
Ação
Declarativa de condenação, sob a forma de processo comum.
Autora
AA

GNB- Companhia de Seguros, S.A. (atualmente designada MUDUM – Companhia de Seguros, S.A.)
Pedido
Condenação da Ré a pagar ao Autor uma compensação pelos danos não patrimoniais e uma indemnização pelos danos patrimoniais sofridos no montante global de €40.424,98 (sendo €10.000,00 a título de dados não patrimoniais; €15.000,00 de compensação pela perda total do veículo; €15.000,00 por privação de uso do veículo; €159,00€ por perda de telemóvel e €265,98 por despesa paga a título do IUC do veículo relativo ao ano de 2020), acrescido de juros de mora vencidos e vincendos desde a citação até efetivo e integral pagamento das quantias peticionadas.
Causa de pedir
Acidente de viação ocorrido na localidade de ..., ..., em ../../2019, entre o veículo propriedade do Autor (ligeiro de passageiros marca ..., com a matrícula ..-..-XS) por ele conduzido no sentido ..., e o veículo propriedade de D..., Ld.ª (ligeiro de passageiros marca ..., com a matrícula ..-..-NN) conduzido por BB, no sentido ...-..., e segurado na Ré.
O condutor do veículo ..-..-NN seguia a grande velocidade, perdeu o controlo do mesmo, entrou em despiste e invadiu a semifixa em que circulava o Autor, embatendo violentamente no mesmo, provocando-lhe os danos patrimoniais e não patrimoniais descritos na p.i.
Contestação
A Ré aceitou a responsabilidade do segurado, mas impugnou, por desconhecimento, os factos relativos à dinâmica do acidente, bem como os danos ocorridos e o seu valor.
Sentença
Julgou a ação parcialmente procedente, decidindo:
«a) condenar a R. a pagar ao A. a quantia de 10.000,00€ (dez mil euros), a título de danos não patrimoniais;
b) condenar a R. a pagar ao A. a quantia de 14.999,00€ (catorze mil novecentos e noventa e nove euros), a título de danos patrimoniais;
c) condenar a R. a pagar ao A., a título de dano de privação de uso do veículo e até ao limite total máximo de 15.000,00€ (quinze mil euros):
1) a quantia de 5.100,00 (cinco mil e cem euros);
2) a quantia diária de 5,00€ (cinco euros), desde ../../2021 e até à data do efetivo pagamento pela R. ao A. das quantias referidas em a) e b);
d) condenar a R. no pagamento de juros moratórios sobre o capital referido em a), b) e c), a contar da citação e até efetivo e integral pagamento das quantias aí indicadas, à taxa legal de juros civis sucessivamente em vigor;
e) absolver a R. do demais peticionado;
f) condenar o A. e a R. nas custas do processo, na proporção do respetivo decaimento, que se fixa em 26% para o A. e 74% para a R.»

Recurso
Apelou a Ré, pugnando pela revogação da sentença, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
I. O presente recurso jurisdicional vem interposto da sentença datada de 04.08.2023, com a referência citius n.º ...14;
II. Sempre com todo o respeito e consideração, considera a aqui Apelante que o Tribunal a quo incorreu num erro de julgamento ao decidir como decidiu, fazendo uma errada valoração da prova produzida, com isso inquinando a decisão final proferida, sendo que tal erro de julgamento implica uma decisão diversa quanto à matéria de facto e de direito;
III. Termos em que, tomando em consideração a interpretação do referido relatório de peritagem, bem como os esclarecimentos prestados pelo Sr. Perito CC, deve ser aditado ou acrescentado à matéria provada o ponto 54 e o ponto 55, com a seguinte redação:
“54. À data do sinistro, a quilometragem do veículo do A. era de 260.000 Km. 55. O valor comercial do veículo do A., à data do acidente, era de 10.000,00€, montante que permite ao A. adquirir um outro veículo de características idênticas”;
IV. Contrariamente ao decidido pelo Tribunal recorrido, não se pode considerar que o valor peticionado de €14.999,00 seja o valor adequado do veículo sinistrado, porquanto aquele deverá necessariamente corresponder ao valor venal ou comercial do veículo, que no caso concreto é €10.000,00;
V. Sendo alterado o acervo factual nos moldes ora requeridos pela ora Recorrente, deverá ser revisto o quantum indemnizatório pela perda total do veículo, sendo a indemnização a fixar no montante de €8.433,00, correspondente ao valor de mercado do veículo antes do acidente (€10.000,00), descontado o valor do salvado (€1.567,00);
VI. O Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, que regula Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, é um diploma legal cuja aplicabilidade se apura em obediência aos mais elementares princípios gerais de Direito, não estando, de forma alguma, fragmentado nos seus vários capítulos, nos quais nada se diz sobre a sua aplicação individual à fase extrajudicial ou judicial;
VII. Assim, tendo em conta que o supra referido diploma regula as relações entre empresas de seguros, tomadores de seguros e beneficiários, por consequência, o diploma terá aplicabilidade direta a todas essas relações, encontrem-se estas em fase extrajudicial ou em fase judicial;
VIII. O raciocínio do Tribunal a quo levado ao limite poderia conduzir a um resultado dificilmente aceitável: a desaplicação de alguns dos artigos contidos no capítulo III do Decreto-Lei n.º 291/2007, artigos esses que têm o propósito claro de proteção do segurado;
IX. Neste sentido, o Tribunal, ao decidir como decidiu, violou o disposto no artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto;
X. Mas mesmo que assim não se entenda, o que por mera hipótese académica se equaciona, no caso trata-se de um veículo de marca ..., modelo série..., com data de matrícula de 21.07.2004, combustível gasolina/GPL, com aproximadamente 260 000 km, em estado geral “bom”;
XI. Ainda que se entendesse que a reapreciação da matéria de facto é parcial ou totalmente improcedente, mantendo-se inalterado o acervo factual agora posto em crise, sempre, atenta a prova produzida, decorre da factualidade dada como não provada, nomeadamente dos factos h) e i), que à data do sinistro a quilometragem do veículo do ora Recorrido era de 220.000 km ou de 260.000 km, não tendo o Tribunal recorrido dado como provado que o veículo continha um número exato de quilómetros;
XII. Nesta medida, não compreende a ora Recorrente da razão pela qual o Tribunal a quo teve em consideração o documento n.º 21 junto pelo Autor, aqui Recorrido (anúncio do ... onde consta um veículo de marca ..., modelo ... IA, do ../../...., com 203.000 km, no valor de €14.999,00), na sua Petição Inicial, para decidir o caso dos autos;
XIII. Pelo que, salvo o devido respeito, nunca poderia o Tribunal a quo ter decidido que o valor necessário à substituição do veículo do Recorrido seria de €14.999,00, sob pena de tal decisão padecer de arbitrariedade e desrazoabilidade, não podendo o Tribunal a quo assumir, sem qualquer fundamento, que o veículo propriedade do ora Recorrido tinha 203.000 km.
XIV. Por outro lado, a ora Recorrente não concorda com a decisão condenatória do Tribunal em condenar a Ré, aqui Recorrente, no pagamento de €15.000,00 a título de privação de uso do veículo, por manifestamente exagerado, excessivo e injustificado, fazendo o Tribunal uma errada interpretação e aplicação do Direito ao caso concreto, nomeadamente na fixação da respetiva indemnização;
XV. Entende a ora Recorrente que a indemnização pela privação de uso depende da prova dos concretos danos, não sendo a mera privação do uso de um bem resultante da sua paralisação, sem qualquer repercussão negativa no património do lesado em termos de dano emergente ou lucro cessante, indemnizável.
XVI. Aliás, conforme resulta do número 5 do artigo 42.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21.08, assiste ao lesado o direito a ser indemnizado no excesso de despesas com transportes que incorreu no período da privação.
XVII. Pelo que, não resultando quaisquer comprovativos das despesas incorridas pelo ora Recorrido com transporte, deve a decisão recorrida ser alterada no sentido de ir absolvida a Recorrente do pedido de indemnização por privação do uso entre a data do sinistro (17.12.2019) e a data em que adquiriu um novo veículo (01.03.2020).
XVIII. Sem prejuízo, caso o Tribunal a quo assim não entenda, a ser fixada indemnização por privação do uso com recurso à equidade, afigura-se-nos que o valor diário fixado em €30,00 (trinta euros) é manifestamente exagerado, excessivo e injustificado.
XIX. Estando em causa o dano resultante da privação do uso e da correspondente utilidade que a mesma poderia proporcionar, é inquestionável que o proprietário do veículo goza do direito de a fruir de modo pleno e exclusivo, ficando na sua disponibilidade a sua utilização, ou mesmo o não uso.
XX. Nesta medida, em caso de impossibilidade material do veículo pelo proprietário, consequentemente decorrerão danos que carecem de compensação, sendo que no caso de não se poder averiguar o valor exato do prejuízo a ressarcir deverá lançar-se mão a juízos de equidade, conforme o disposto no artigo 566.º, n.º 3 e artigo 4.º do Código Civil.
XXI. No entanto, é manifesta a violação dos juízos de equidade na atribuição e fixação do valor da indemnização a título de privação do uso do veículo, uma vez que o valor diário de €10,00 constitui o padrão indemnizatório predominantemente adotado, nos casos em que não é possível quantificar o dano decorrente do lesado ter de recorrer a outras alternativas para se fazer transportar a si e à sua família, desde que essa privação não seja (totalmente) suprível pelos meios próprios já disponíveis.
XXII. É esse o montante que tem sido utilizado como referência na jurisprudência, como é o caso, entre muitos outros, dos acórdãos do TRC de 06.03.2012, no processo 86/10.0T2SVV.C1, do TRP de 07.09.2010, no processo 905/08.0TBPFR.P1, , do TRG de 20.06.2020, proferido no processo 1136/18.7T8PTL.G1, e do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 09.03.2010, no processo nº 1247/07.4TJVNF.P1.S1, de 28.09.2021, no processo 6250/18.6T8GMR.G1.S1; em todos esses acórdãos se fixou em €10,00 diários a indemnização pela privação de uso do veículo.
XXIII. Neste sentido, a ser fixada tal indemnização, o valor diário de €10,00 (dez euros), entre a data do sinistro (17.12.2019) até à data em que o ora Recorrido adquiriu um novo veículo (01.03.2020), é adequado e de acordo com a jurisprudência dos Tribunais Superiores, devendo o montante indemnizatório ser reduzido para €750,00 (setecentos e cinquenta euros), correspondente a 75 dias de paralisação do veículo.
XXIV. Acresce que desde 01.03.2020, a privação do uso deixou de gerar um dano, pois o ora Recorrido voltou a ter o mesmo grau de satisfação da totalidade das suas necessidades/utilidades que tinha à data do sinistro ao adquirir um novo veículo.
XXV. Neste sentido, não aceita a ora Recorrente a condenação do Tribunal a quo no pagamento das quantias de €2.850,00 (dois mil oitocentos e cinquenta euros) – entre ../../2020 até à data da propositura da ação – e do quantitativo diário de €5,00 (cinco euros) desde ../../2021 até à data do efetivo pagamento pela Recorrente ao Recorrido da indemnização pela perda do automóvel sinistrado.
XXVI. Dispõe o n.º 1 do artigo 496.º do Código Civil que “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”, ou seja, os danos não patrimoniais apenas são reparados quando a sua gravidade assim o sugira, sendo aqui o princípio da reparação integral limitado pela gravidade do dano;
XXVII. O montante indemnizatório deve ser proporcional à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas, da criteriosa ponderação das realidades da vida, devendo ainda atender-se ao grau de culpabilidade do responsável (o segurado), à sua situação económica deste e do lesado, e às demais circunstâncias do caso, sendo de atender aos padrões de indemnização geralmente adotados pela jurisprudência;
XXVIII. No caso dos autos, resultou provado que em decorrência do acidente dos autos (i) o autor ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 2 pontos (ii) o autor ficou com uma repercussão permanente na atividade profissional compatível com o exercício da atividade habitual, implicando, no entanto, esforços suplementares e (iii) o quantum doloris foi fixado no grau 4;
XXIX. Impondo a lei o recurso à equidade, dentro dos limites que tiver por provados e em face aos danos concretamente apurados, afigura-se-nos que o valor fixado na sentença (€10.000,00) é exagerado pelo que, caso se entenda dever fixar-se um valor pelos danos não patrimoniais, tal valor não deverá ultrapassar os €6.000,00;
XXX. Por último, e atendendo que o Tribunal fixou a indemnização de forma atualizada – quanto indemnização pela privação do uso de veículo, quer quanto aos danos não patrimoniais, os juros de mora deveriam contar somente a partir da prolação da sentença, e não da data de citação, sob pena de se originar uma duplicação dos valores indemnizáveis, pelo que a sentença recorrida deve ser revogada;
XXXI. A douta sentença recorrida viola, entre outras normas e princípios do sistema jurídico, os artigos 41.º e 42.º do Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de responsabilidade Civil Automóvel (aprovado pelo Decreto-lei n.º 291/2007, de 21.08), os artigos 483.º, 496.º, 562.º, 563.º, 564.º e 566.º do Código Civil, e ainda o artigo 607.º do Código de Processo Civil.

Resposta ao recurso
A recorrida defendeu a improcedência da apelação e a confirmação da sentença.

II- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A 1.ª instância proferiu a seguinte decisão de facto:
FACTOS PROVADOS
«1. Por inscrição de 28-11-2018, o veículo ligeiro de passageiros, da marca ..., matrícula ..-..-XS, foi registado em nome do A., tendo-se tal registo mantido, pelo menos, até ../../2022.
2. Em ../../2019, a viatura ligeira de passageiros marca ..., modelo ..., matrícula ..-..-NN, era propriedade da sociedade D..., LDA, pessoa coletiva n.º ...76.
3. Em ../../2019, a responsabilidade civil por danos causados a terceiros pela circulação do veículo referido em 2, encontrava-se transferida para a aqui R., por contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...67.
4. No dia ../../2019, cerca das 08h05m, o A. circulava na sua viatura referida em 1, na Estrada ..., na localidade de ..., concelho ..., no sentido ..., quando, ao chegar junto do ... e ao iniciar a descrição de uma curva, foi surpreendido pelo veículo de matrícula ..-..-NN, conduzido por DD, que seguia no sentido ...-....
5. O condutor do veículo ..-..-NN invadiu a faixa de rodagem em que circulava o A. e embateu violentamente na viatura deste.
6. No dia e hora em que ocorreu o acidente, a via encontrava-se com piso seco e limpo, estava bom tempo e não existiam quaisquer obstáculos na via pública.
7. Em consequência do acidente, o A. foi assistido no local, pelo INEM, e conduzido ao Hospital ..., onde chegou transportado em maca, e de onde saiu ao final desse dia.
8. Em consequência do acidente, o A sofreu traumatismo torácico e da coluna cervical, omalgia e subluxação (grau II) da articulação acromio-clavicular do ombro direito, lesão que evoluiu para artrose acromio-clavicular do ombro direito.
9. O A. nasceu em ../../1988, pelo que, à data do acidente, tinha 31 anos de idade.
10. O A. era militar de carreira, com a patente de cabo-adjunto.
11. O A. esteve de baixa médica desde ../../2019 até, pelo menos, ../../2020.
12. O A. retomou a atividade profissional em ../../2020, mas passou a ter funções na secretaria, como informático.
13. Desde, pelo menos, 04-03-2020 e até, pelo menos, 26-01-2021, o A. frequentou consultas de ortopedia.
14. Devido aos períodos de confinamento no contexto de combate à pandemia de Covid19, o A. só iniciou os seus tratamentos de fisioterapia em 02-12-2020.
15. Desde, pelo menos, 02-12-2020, e até cerca de agosto de 2022, o A. realizou exames e tratamentos médicos, nomeadamente na área da medicina física e de reabilitação (fisioterapia).
16. A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 13-10-2020.
17. As lesões sofridas pelo A. importaram um défice funcional temporário total de 184 dias (entre ../../2019 e ../../2020).
18. As lesões sofridas pelo A. importaram um défice funcional temporário parcial de 118 dias (entre ../../2020 e ../../2020)
19. As lesões sofridas pelo A. importaram uma repercussão temporária na atividade profissional total de 302 dias (entre ../../2019 e ../../2020)
20. O A. registou melhoria com tratamento conservador e foi considerado curado em 18-01-2022.
21. O A. ficou, como sequela, com ligeira deformação do ombro direito por subluxação e artrose da acromio-clavicular sem limitação significativa da amplitude do ombro e com assimetria da extremidade lateral da clavícula direita.
22. Não está medicamente excluído o agravamento futuro da sequela referida em 21, ou a necessidade de tratamentos futuros.
23. A afetação definitiva da integridade física e/ou psíquica do A., com repercussão nas atividades da vida diária, incluindo as familiares e sociais («défice funcional permanente da integridade físico-psíquica») é de 2 pontos, sendo de admitir a existência de dano futuro.
24. As sequelas do acidente para o A., em termos de «repercussão permanente na actividade profissional», são compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares.
25. Devido às lesões sofridas como consequência do acidente, antes e durante os tratamentos de fisioterapia a que foi submetido, o A. sofreu dores fortes e teve dificuldade em dormir.
26. O A. mantem dor ao nível do ombro direito e diminuição da força no membro superior direito.
27. O sofrimento físico e psíquico vivenciado pelo A. entre a data do evento e a cura ou consolidação das lesões (quantum doloris) é fixável no grau 4 numa escala de sete graus de gravidade crescente.
28. O A. fazia treino físico com frequência para poder exercer a sua atividade e as funções militares que lhe eram incumbidas.
29. O A. dedicava-se a outras atividades desportivas, tais como corrida, bicicleta, ginásio, remo e kickboxing.
30. Devido às lesões sofridas como consequência do acidente, o A. ficou incapaz de treinar até novembro de 2021, sentindo ainda algumas limitações nos treinos que realiza.
31. O A. ficou limitado na condução de veículos, pelo menos, até à primavera de 2020.
32. Por força das lesões sofridas com o acidente, o A. não concorreu à Escola de Sargentos do Exército, em maio de 2020.
33. As circunstâncias elencadas de 30 a 32 dos factos provados afetaram a afirmação pessoal e profissional do A., provocando-lhe sentimentos de frustração.
34. A viatura do A. referida em 1 era um veículo ligeiro de passageiros, da marca ... modelo ..., de 5 portas, com matrícula de 21-07-2004, equipada com sistema GPL, com 2979 cm3 de cilindrada, em bom estado de conservação a nível mecânico, equipamento interior e pintura.
35. O acidente foi participado à R.
36. Em resultado do embate ocorrido, o veículo com a matrícula XS sofreu danos cuja estimativa de reparação (dada sem desmontagem) correspondia a 17.176,71€.
37. O valor do salvado do veículo, cotado em 03-01-2020, foi de 1.567,00€.
38. Por carta datada de 07-01-2020, a R. comunicou ao A. o seguinte:
«Vimos por este meio confirmar que, em resultado da gestão do presente sinistro, o veículo com a matrícula ..-..-XS, foi considerado Perda Total de acordo com a estimativa de reparação efetuada por A..., S.A., e que poderá ser consultada, e que ascende a 17.176,71 EUR.
Por forma a podermos determinar os valores definitivos da Perda Total a considerar numa eventual proposta de indemnização, estamos ainda a aguardar a informação referente ao valor do salvado, o que esperamos para muito breve.
Oportunamente entraremos de novo em contacto com V. Ex.ª.»
39. Por carta datada de 09-01-2020, a R. comunicou ao A. o seguinte:
«No seguimento da gestão do processo acima referido, vimos informá-lo que, tendo em conta a documentação em nosso poder, entendemos que a responsabilidade pelo sinistro é imputável ao veículo ..-..-NN.
Face ao exposto, informamos que aceitamos a responsabilidade decorrente do sinistro em apreço e iremos proceder às regularizações que se mostrarem necessárias, desde agradecendo que autorize, junto da oficina, a reparação, a menos que venha a ser apurada Perda Total do veículo.»
40. Por nova carta datada de 09-01-2020, a R. comunicou ao A. o seguinte:
«Na sequência do acidente acima referido, procedemos oportunamente à vistoria da viatura propriedade de V. Ex.ª, na oficina A..., S.A., tendo os nossos serviços técnicos verificado que a reparação não se apresenta nem técnica nem economicamente viável”, pelo que a resolução deste sinistro será equacionada na base da perda total do veículo.
Deste modo, foi atribuído o valor venal do 10.000,00EUR, calculado de acordo com o valor de venda do guia Eurotax, e o valor do salvado de 1.567,00EUR, atribuído por empresa especializada.
Assim, e tendo por base os valores anteriormente indicados, o valor da indemnização será de 8.433,00EUR, ficando o salvado na posse do V. Ex.ª. A este valor será deduzido o valor da franquia, quando aplicável.
Caso V. Ex.ª entenda, desde já, proceder à comercialização do veículo sinistrado pelo valor acima referido, poderá fazê-lo contactando a empresa: (…)
Chamamos especial atenção de V. Exa para o disposto no n.º 2 do Artº 15 do DL 2/98, pela redação dada pelo DL 44/2005, no que se refere ao dever de comunicação às entidades ali referidas, informando que a GNB - Companhia de Seguros. S.A. irá proceder em conformidade.
Permitimo-nos igualmente chamar a atenção para, nos termos da atual legislação (DL 196/2003, DL 44/2005, DL 64/2008), o veículo sinistrado poder ser considerado Veículo em Fim de Vida (VFV) pelo que, neste caso o mesmo deverá ser encaminhado para um centro de receção de VFV ou para um operador de desmantelamento credenciado, para ser emitido o certificado de destruição do mesmo com vista ao cancelamento da matrícula e do respetivo registo.
Esta entrega garante que o VFV será tratado de forma ambientalmente correta e que os respetivos registos de propriedade e matrícula serão cancelados aliás a única forma de deixar de pagar o Imposto Único de Circulação (IUC), nos termos da Lei n.º 22 - A/2007)
A responsabilidade por este encaminhamento pertence ao proprietário do veículo.
Dado termos terminado a instrução do nosso processo, estamos disponíveis a regularizar de imediato este sinistro, pelo que anexamos o respetivo recibo.
Merecendo o valor de indemnização proposto a aceitação de V. Ex.ª, agradecemos a devolução do recibo juntamente com a seguinte documentação: (…)».
41. Em 14-01-2020, o A. enviou um email à R. com o seguinte teor:
«É único 530i à venda e sem sistema GPL, o qual o meu tinha instalado.»
42. Em resposta, no dia 20-01-2020, a R. enviou um email ao A. com o seguinte teor:
«Exmo. Senhor,
Reportamo-nos ao processo em epígrafe.
Depois de solicitada uma análise mais específica sobre a proposta de perda total, o nosso departamento técnico, informa que a proposta se encontra válida e que corresponde correctamente ao especificado.
Face ao exposto, mantemos a proposta anteriormente comunicada.»
43. Em 21-01-2020, o A. enviou um email à R. com o seguinte teor:
«Meus digníssimos, sendo assim comprem um carro igual a meu em questão, que eu dou os 10.000.00 Euros. Ou indiquem onde posso comprar por este valor com sistema GPL e Kit embraiagem novo junto com bimassa (PS: tenho comprovativo). Sejam racionais se faz favor. Se negarem pela segunda vez eu vou entregar o processo a advogada e em tribunal chegaremos a conclusão. Porque de momento encontro-me de baixa, derivado acidente por culpa do seu cliente. não estou em condições físicas nem psicológicas para discussões mais que óbvias.»
44. Em resposta, no dia 22-01-2020, a R. enviou um email ao A. com o seguinte teor:
«Exmo. Senhor
Acusamos a receção do seu email cujo teor mereceu a nossa melhor atenção.
Após análise ao mesmo, lamentamos informar, mas não poderemos aceder à pretensão de V. Exa.
Mais informamos que, o valor venal da viatura é de 10.000,00€ pelo que mantemos a nossa proposta de 8433,00€ ficando o salvado na sua posse.»
45. Em 25-12-2019, encontrava-se à venda, no site ..., um veículo ..., modelo ..., do ano de 2003, com quilometragem entre os 250.000 e os 299.999 km, a gasolina, pelo preço de 8.500,00€.
46. Em 12-01-2020 e em 05-05-2020, encontrava-se à venda, no site ..., um veículo ..., modelo ..., do ano de 2006, com quilometragem entre os 190.000 e os 199.999 km, a gasolina, pelo preço de 19.900,00€.
47. Em 01-06-2020, encontrava-se à venda, no site ..., um veículo ..., modelo ..., com quilometragem de 203.000km, a GPL, pelo preço de 14.999,00€.
48. O A. ficando impossibilitado de circular na sua viatura referida em 1 desde a data do acidente (../../2019).
49. A R. não disponibilizou ao A. uma viatura de substituição.
50. O A. usava a viatura referida em 1 para ir trabalhar diariamente, para ir ao supermercado e a consultas médicas.
51. Em março de 2020, o A. adquiriu outro veículo para as suas deslocações.
52. O valor diário de aluguer de uma viatura de gama baixa é superior a 30,00€ por dia.
53. O A. pagou o montante de 265,98 € referente ao Imposto Único de Circulação do ano de 2020 da viatura referida em 1.»
FACTOS NÃO PROVADOS
«a) O condutor do veículo referido em 2 seguia a grande velocidade, perdeu o controlo da viatura e entrou em despiste.
b) No local do acidente existia uma linha longitudinal contínua delimitadora de sentido de trânsito, que foi transposta pelo condutor do veículo referido em 2.
c) Antes da colisão, o A. ainda se desviou para a berma direita (atento o seu sentido de marcha), todavia, atendendo à velocidade a que o veículo de matrícula ..-..-NN circulava, não conseguiu evitar que a dita viatura embatesse no seu veículo.
d) Como consequência do acidente, o A. temeu pela sua vida e integridade física, atenta a velocidade a que o condutor da viatura matrícula ..-..-NN circulava.
e) Por causa das lesões sofridas com o acidente, o A. ficou limitado na realização de tarefas
quotidianas como carregar sacos de compras e fazer bricolage.
f) O A. jogava futebol com amigos e praticava natação.
g) Por força das lesões sofridas com o acidente, o A. ficou impossibilitado de desempenhar outras atividades desportivas ou lúdicas, para além do referido em 30 e 31.
h) À data do sinistro a quilometragem do veículo do A. era de 220.000 Km.
i) À data do sinistro, a quilometragem do veículo do A. era de 260.000 Km.
j) O valor comercial do veículo do A., à data do acidente, era de 15.000,00€.
k) O valor comercial do veículo do A., à data do acidente, era de 10.000,00€.
l) Na sequência do acidente referido em 5, o A. sofreu danos no seu telemóvel XIAOMI SPH REDMI NOTE 5 32GB GOLD, o qual havia adquirido um ano antes, pelo montante de 159,00 €.»

III – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1. O objeto do recurso
O objeto do recurso que é delimitado pelas Conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), consubstancia-se nas seguintes questões:
- Impugnação da decisão de facto (alíneas i) e k) dos factos não provados)
- Da decisão de mérito em relação às seguintes questões:
- Perda total do veículo
- Privação de uso do veículo
- Danos não patrimoniais
- Juros de mora

2. Impugnação da decisão de facto (alíneas i) e k) dos factos não provados
A Apelante pretende que a matéria das alíneas i) e k) dos factos não provados passem a constar do elenco dos factos provados sob os n.ºs 54 e 55.
Em relação à alínea k) também pretende que se adite o seguinte segmento: «montante que permite ao A. adquirir um outro veículo de características idênticas».
Os meios de prova que indica para o efeito são o relatório de peritagem e os esclarecimentos prestados pelo perito que o elaborou, CC.
Na fundamentação da decisão de facto consta o seguinte:
«No que concerne às alíneas h) e i) da matéria de facto não provada[2], nem o A., nem a R. lograram provar a quilometragem do veículo do A. à data do sinistro.

Quanto à alínea h), não produziu o A. qualquer outra prova para além das suas próprias declarações, claramente insuficientes para considerar evidenciado um dado técnico e objetivo como a quilometragem de uma viatura.

Quanto à alínea i), pese embora o relatório de peritagem/perda total, junto como doc. 1 da contestação mencione que o veiculo tinha como n.º de Km «estimados 260.000», o autor deste documento, CC, foi ouvido em julgamento e admitiu que não conseguiu ver a quilometragem do veículo. Encetou, de seguida, uma série de explicações para tentar justificar o número de quilómetros que indicara no seu relatório (referindo que o carro era de 2004 e que teria maior quilometragem em face da respetiva idade), e, só a final, sem qualquer prova documental (de simples obtenção), aduziu que, afinal, o veículo do A. já tinha sido alvo de peritagem pela empresa para a qual trabalha (U...), no início do ano de 2019, por outro sinistro, e, nessa altura, quando chegou à oficina, tinha 250.000Km

Ora, como é bom de ver, mal se compreende que, estando tal elemento documentado, essoutro documento não tenha sido junto aos autos, ou sequer mencionado (de forma transparente e leal) no relatório de peritagem realizado, como fonte da informação considerada pelo perito avaliador, suscitando-se também a dúvida (que a testemunha CC não logrou esclarecer) sobre a razão pela qual, no acidente dos autos, não foi possível ao perito apurar diretamente, pela observação do veículo sinistrado e do seu sistema, a respetiva quilometragem, se, de acordo com o próprio, no início desse ano, tal teria sido conseguido pela empresa para a qual trabalha.»

«No que diz respeito às alíneas j) e k) dos factos não provados, a prova produzida não permitiu concluir no sentido do alegado por qualquer das partes.

Assim, nas suas declarações de parte, o A. sustentou a avalização que fazia do seu automóvel dizendo que o adquiriu em novembro de 2018, depois de chegar de uma missão, dando, para o efeito, em troca, um BMW X5 e 3.000,00€ (considerando, por isso, que o carro valeria, aquando da aquisição, cerca de 19.000€). Sublinhou o A. que se tratava de um modelo raro, com sistema GPL, com cerca de 200.000Km, com uma embraiagem nova e «excelente» em termos mecânicos.

Comparando-o com o automóvel anunciado para venda no anúncio que juntou como Doc. 20 da petição inicial, sublinhou a mais-valia de não ter caixa automática, por os automóveis com este tipo de caixa de velocidades darem muitos problemas.

Ora, como é evidente, estas declarações do A. (que, para mais, não tem qualquer tipo de formação ou experiência profissional acreditada na área automóvel) não são, por si só, suficientes para que se considere provado que o seu automóvel teria o valor em que pessoal e subjetivamente o avaliou.

Pondera-se já de forma mais objetiva o teor dos anúncios juntos como docs. 19 e 20 da petição
inicial, com base nos quais se apurou o vertido em 46 e 47 da matéria de facto provada.

Já a R., para sustentar o valor no qual avaliou o automóvel do A., para além de alegar, na sua contestação, que o mesmo tinha 260.000Km, superando em cerca de 60.000km a quilometragem dos veículos cujos anúncios foram juntos com a petição inicial (alegação que, como resulta da alínea i) da matéria de facto não provada, a R. não logrou provar), sublinhou o caráter mais recente dos veículos anunciados naqueles documentos da petição inicial e remeteu para o relatório de peritagem de perda total e impressões de anúncio do site ..., que integram o doc. 1 da contestação.

Em tal relatório, elaborado pelo técnico CC, para além de se elencarem as características do veículo, conclui-se que o mesmo apresenta um estado geral bom e um estado geral da mecânica razoável, indicando-se o valor de 10.000,00€ como valor de mercado da viatura.

Ouvido este técnico como testemunha, o mesmo - contrariando a informação veiculada pela R. ao A., por carta de 09-01-2020 (onde, como transcrito no ponto 40 dos factos provados, inscreveu que o valor venal em causa foi «calculado de acordo com o valor de venda do guia Eurotax») - esclareceu que não foi por referência a este guia (que apenas contém cotações para carros com matrículas dos anos de 2010 e seguintes) que chegou ao valor indicado, mas antes pela procura em sites de venda de veículos por particulares. Ou seja, o método usado pelo técnico de sinistros em causa não diferiu do utilizado pelo A..

Ora, tais anúncios, que se mostram anexos ao aludido relatório, junto como doc. 1 da contestação, não evidenciam nenhum veículo com as mesmas características do veículo do A., mas antes veículos da mesma marca e modelo, de datas diferentes, e com diferentes tipos de combustível.

Assim, e concretizando, verifica-se que a. considerou, para estabelecer o valor de mercado
indicado:
• um veículo da mesma marca e modelo do A., com quilometragem entre os 250.000 e os 299.999 km, a gasolina, que, em 25-12-2019, estava à venda no site custo justo por 8.500,00€;
• uma pesquisa de veículos BMW ..0, 316, 320, 325 e 735 no site ..., com matrículas entre 2002 e 2004, de características não detalhadas, para além do tipo de combustível.

CC referiu ainda ter verificado um veículo da mesma marca e modelo, de 2006, com sistema GPL, à venda por 12.750,00€, embora tal anúncio não tenha sido junto aos autos.»

A impugnação da decisão de facto encontra-se sujeita aos ónus previstos no artigo 640.º do CPC, sendo que, no caso, a Apelante remete globalmente para os esclarecimentos sobre o relatório de peritagem prestados pelo Sr. Perito em audiência de julgamento, apresentado a interpretação que deles fez, mas sem mencionar (na motivação ou nas Conclusões), como lhe é imposto pelo n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a), do referido preceito legal, a «indicação com exatidão as passagens da gravação em que se funda o recurso».
Esta omissão, como decorre da norma citada, determina a «imediata rejeição do recurso na respetiva parte».
É sabido que a jurisprudência nem sempre interpreta o cumprimento dos ónus do artigo 640.º do CPC de forma unívoca.
No que concerne à indicação das concretas passagens do registo da gravação, verifica-se uma enorme tendência para a relativização deste requisito, desde logo porque, na verdade, o que se verifica é que a indicação do ficheiro e dos minutos dos depoimentos nem sempre é muito fiável, pois muitas vezes apenas é apenas indicado o início e o fim do depoimento e, por outro lado, a descontextualização que pode advier de um concreto momento do depoimento, impõe a necessidade de audição integral do depoimento.
Razão pela qual alguma jurisprudência defende que a falta ou omissão desse requisito apenas determina a rejeição «nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso».[3]
No caso, apesar da omissão total da menção às passagens da gravação, não se verifica que exista o comprometimento acima referido, pelo que, só por esta razão, não se justifica a rejeição in limine da impugnação.
O que não significa que a impugnação possa ser julgada procedente.
Na verdade, e como já referido, a discordância da Apelante assenta na interpretação que faz do relatório pericial e dos esclarecimentos do Sr. Perito quanto à quilometragem do veículo e valor venal do mesmo, mas nada diz que refute ou ponha em causa o modo como o tribunal recorrido formou a sua convicção para dar como não provada esta factualidade.
Auditada a prova em causa, não se pode apor qualquer crítica à decisão de facto em relação a factualidade ora impugnada, tendo-se formado convicção conforme à da 1.ª instância.
Efetivamente, e quanto à quilometragem, se o Sr. Perito declara um valor estimado, dizendo que não conseguiu ver a quilometragem do veículo e se o elemento probatório mais credível que invoca para justificar essa estimativa, não está junto aos autos, nem sequer o mencionou no relatório pericial, subtraindo-o desse modo ao contraditório da parte contrária, o referido valor estimado não pode ser dado como provado.
E se em relação ao valor venal do veículo antes do acidente, acolhido na peritagem, se baseia em veículos com caraterísticas diferentes (marca, modelo, data de fabrico e tipo de combustível) e se o Sr. Perito aduz que também teve em conta um veículo com caraterísticas semelhantes, mas não juntou ao relatório pericial o anúncio em que se baseou, também não se pode dar como provado o referido valor.
E sendo assim, é óbvio que também fica por provar o segmento pretendido aditar em relação à aquisição de um veículo com caraterísticas idênticas por esse mesmo valor.
Nestes termos, improcede a impugnação da decisão de facto.

3. Da decisão de mérito:
3.1. Perda total do veículo
Está provado que o veículo do Autor ficou danificado no acidente de tal modo que a seguradora considerou que havia perda total por a reparação ser técnica e economicamente inviável. Atribuiu ao veículo o valor venal de €10.000,00, ao qual deveria ser descontado o valor do salvado (€1.567,00), propondo, assim, que a indemnização pela perda total do veículo fosse de €8.433.00 (factos provados 37 a 42 e 44).
Valor que o Autor não aceitou e refutou (facto provado 43).
A sentença recorrida fixou o valor do veículo em €14.999,00.
A ora Apelante discorda, pugnando pela fixação do valor de €10.000,00.
Ademais, aduz que mesmo improcedendo a impugnação da decisão de facto em relação ao valor do veículo, não compreende, nem aceita que o tribunal a quo tenha considerado o doc. 21 junto pelo Autor para fixar o valor do veículo.
Vejamos, então, se lhe assiste razão.
Insurge-se a Apelante contra o decidido em relação ao valor venal (o valor pelo qual o veículo poderia ser substituído antes do acidente), por na sentença se ter decidido que o seu cálculo não se rege pelo disposto no artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21-09 (Regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel), o qual é aplicável apenas nos procedimentos a adotar pelas empresas de seguros na regularização pré-jurisdicional do sinistro, com vista à apresentação de uma «proposta razoável», e não na fase judicial, na qual são aplicáveis os princípios gerais da responsabilidade civil e da obrigação de indemnização, devendo proceder-se à restauração natural, colocando o lesado na situação anterior à ocorrência do dano, fixando-se a indemnização em dinheiro sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor (teoria da diferença- artigo 562.º do Código Civil- CC).
Ora, este entendimento é comumente adotado na doutrina e na jurisprudência e com os fundamentos aduzidos na sentença recorrida, como na mesma é referido citando profusamente jurisprudência que assim decidiu.
A contra argumentação da Apelante referindo que este entendimento fragmenta um diploma legal distinguindo entre fase judicial e extrajudicial, não atenta no facto de em sede de responsabilidade civil extracontratual não estar em causa a fixação de um valor que corresponda a uma «proposta razoável», mas antes a aplicação dos princípios gerais que regem a responsabilidade civil e a obrigação de indemnização, nomeadamente as regras constantes dos artigos 562.º e 566.º, n.º 1, do CC, devendo proceder-se à restauração natural, colocando o lesado na situação anterior à ocorrência do dano, e fixando-se a indemnização em dinheiro sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.
Razão pela qual, o valor patrimonial a ter em conta, não é apenas o valor venal do veículo, mas também o valor de uso para o proprietário e para permitir a adquisição de outro veículo com características semelhantes e apto a satisfazer as mesmas necessidades.
De qualquer modo, sempre se dirá que a redação do artigo 41.º, n.º 2, do citado Decreto-Lei n.º 291/2007, ao definir o valor venal como «o valor de substituição no momento anterior ao acidente» indica que, mesmo na fase extrajudicial, o valor a ter em conta é o valor do custo de aquisição no mercado de um veículo com as mesmas características e que cumpra as mesmas funções que estavam destinadas ao veículo danificado, afastando, assim, o critério estrito do valor comercial (valor de venda antes do acidente) que pode ser muito inferior, v.g., por o veículo ter muito uso e, por essa razão, não permitir a aquisição de uma viatura da mesma marca, com as mesmas características e com o mesmo uso, que satisfaça as mesmas necessidades do veículo sinistrado.[4]
Por sua vez, o n.º 3 do mesmo normativo ao estipular que na determinação do valor venal se terá em conta o valor do salvado deduzido o respetivo valor, salvo se o mesmo ficar na posse do seu proprietário, «de forma a reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à indemnização», é utilizada uma expressão que correspondente à do artigo 562.º do CC, e estando em causa uma indemnização por equivalente[5], e não a reconstituição natural, deverá ser interpretada de forma a significar que o valor da indemnização deverá ser fixado por forma a reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à indemnização.[6]
O que acaba por ir de encontro ao decidido na sentença recorrida.
Clarificado este aspeto, passemos, então, a analisar a questão suscitada pela Apelante em relação ao modo como o tribunal a quo determinou o valor do veículo.
Em termos de ónus de prova, em face do que dispõe o artigo 342.º, n.º 2, do CC, compete à seguradora, ora Apelante, o ónus de prova sobre o valor necessário para o Autor poder adquirir no mercado outro veículo que satisfaça as mesmas necessidades que eram fornecidas pela viatura sinistrada e que o custo da reparação é claramente excessivo face àquele valor patrimonial.
Ora, no caso não está questionado o valor necessário à reparação, mas a Ré não logrou provar que o valor do veículo corresponde a €10.000,00, como alegou.
Também não impugnou os factos provados 45 a 47 referentes a anúncios de venda de veículos que, nalguns itens, aparentam semelhança com o do Autor (v.g., marca, modelo, ano de fabrico), factualidade de que o tribunal a quo se socorreu para fixar o valor do veículo.
Na sentença recorrida escreveu-se a este propósito:
«Não se provou qual o valor comercial do veículo à data do acidente, mas do teor dos factos provados n.ºs 45 a 47 resulta que o valor necessário à substituição do veículo do A. por um veículo da mesma marca e modelo, a GPL, era de 14.999,00€ (quantia superior ao valor venal do veículo proposto pela seguradora - 10.000,00€).
Assim, o A. provou que, para adquirir um veículo da mesma marca, modelo e com o mesmo tipo de combustível do veículo sinistrado necessitaria de despender 14.999,00€, não tendo a R. logrado provar que o A. poderia adquirir veículo com as mesmas funcionalidades e do mesmo ano do veículo do A. por valor inferior.
Logo, e à luz dos artigos 562.º e 566.º do Código Civil, tem o A. o direito a receber, a título de indemnização pela perda total do seu veículo, a quantia de 14.999,00€.»
A ponderação do tribunal a quo afigura-se-nos ponderada e assertiva e tem um suporte objetivo, pelo que nenhuma censura nos merece.
Quanto à questão do valor do salvado, entende a Apelante que deve ser descontado, contrariando, assim, o decidido na sentença ao referir:
«A este montante não caberá deduzir o valor do salvado pois, como bem se entendeu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11-10-2018, que se vem citando «Em caso de rejeição da Proposta Razoável, nas situações de perda total do veículo, não se deve deduzir ao valor indemnizatório do dano real o valor do salvado, porque a quantia assim obtida, após essa dedução, desvirtuaria o fim da indemnização apurada: valor necessário a repor as utilidades proporcionadas pelo veículo, correspondente ao efectivo custo de substituição.»
Não descurando o argumento aduzido, acrescenta-se que a decisão a tomar deve também levar em consideração o disposto no artigo 129.º do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16-04, e alterações subsequentes (Regime Jurídico do Contrato de Seguro), que estipula: «(…) o objeto salvo do sinistro só pode ser abandonado a favor do segurador se o contrato assim o estabelecer
Devendo, igualmente, ser chamado à colação o já referido n.º 3 do artigo 41.º do citado Decreto-Lei n.º 291/2007 ao prescrever: «O valor da indemnização por perda total corresponde ao valor venal do veículo antes do sinistro calculado nos termos do número anterior, deduzido do valor do respectivo salvado caso este permaneça na posse do seu proprietário, de forma a reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à indemnização.»
E ainda o n.º 4 do artigo 44.º ao prescrever: «Verificando-se uma situação de perda total, em que a empresa de seguros adquira o salvado, o pagamento da indemnização fica dependente da entrega àquela do documento único automóvel ou do título de registo de propriedade e do livrete do veículo.»
Não se olvida que a aplicação destes normativos pode suscitar algumas dúvidas, porquanto o Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16-04, regula o contrato de seguro facultativo e o no âmbito dos acidentes de viação estamos perante um seguro obrigatório[7], e em relação ao Decreto-Lei n.º 291/2007, coloca-se sempre a questão da sua aplicabilidade em fase judicial.
Todavia, mesmo não aplicando estes normativos e diplomas sempre há que ponderar o que resulta dos factos provados no caso concreto.
A matéria de facto é omissa quanto à existência do que ficou acordado no contrato de seguro.
Mas infere-se da troca de missivas entre o Autor e Ré a este propósito (cfr. factos provados 38 a 44) que o salvado fica na posse do Autor, sem que este tal questione.
Assim sendo, e não se encontrando provado que a seguradora fica com os salvados, sendo o veículo propriedade do Autor, podendo-os transacionar (a seguradora até lhe indicou a empresa com a qual pode efetuar essa transação), o valor dos salvados deverá ser descontado no montante da indemnização a atribuir pela perda do veículo porque só assim se alcança o valor que a viatura tinha aquando do acidente.[8]
Concluindo, neste segmento procede parcialmente o recurso fixando-se o valor pela perda total do veículo em €13.432,00 (€14.999,00 - €1.567,00).

3.2. Privação de uso do veículo
A Apelante também discorda da sentença em relação à sua condenação em €15.000,000 a título de privação do uso do veículo.
Diz a Apelante que a indemnização pela privação de uso de veículo depende da prova dos concretos danos não sendo a mera privação do uso de um bem resultante da sua paralisação indemnizável sem que haja qualquer repercussão negativa no património do lesado em termos de dano emergente ou lucro cessante.
Acrescentando que, nos termos do artigo 42.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21-08, assiste ao lesado o direito a ser indemnizado no excesso de despesas com transportes que incorreu no período da privação e não tendo as mesmas sido apresentadas, deve ser absolvida do pedido de indemnização por privação do uso entre a data do sinistro (../../2019) e a data em que adquiriu um novo veículo (01-03-2020).
Em relação à ressarcibilidade do dano da privação do uso e seu quantum como dano patrimonial autónomo, apesar de ter sido objeto de alguma divergência jurisprudencial de que dá nota a sentença recorrida, e para a qual remetemos por razões de economia processual, na atualidade a questão encontra-se pacificada e consolidada no sentido da privação do uso de um veículo constituir um dano patrimonial, emergente de avaliação abstrata, não sendo, por isso, exigível a alegação e prova de concretas despesas com a utilização de meios de transporte alternativos, as quais já seriam integráveis no designado dano de cálculo (correspondente à diminuição patrimonial causada pela lesão), devendo ser determinado o seu quantum por recurso à equidade nos termos do artigo 566.º, n.º 3, do CC.
Efetivamente, o proprietário do veículo sinistrado, que careça de ser reparado ou que nem sequer o pode ser por ter havido perda total (muitas vezes por razões meramente económicas) fica privado de um bem que faz parte do seu património, deixando de dele poder dispor e gozar livremente, com violação do respetivo direito de propriedade.
Esse dano é um dano autónomo que deve ser suscetível de ser indemnizado, independentemente de eventuais despesas acrescidas com transportes que o lesado possa ter tido por não o poder utilizar.
Como se refere no Acórdão do STJ de 28-01-2021[9]:
«O dano decorrente da privação do veículo constitui dano patrimonial autónomo suscetível de indemnização, quando o proprietário do veículo sinistrado se viu privado de um bem que faz parte do seu património, deixando de dele poder dispor e gozar livremente, nos termos estabelecidos no art.º 1305º do Código Civil, cabendo, assim, pela violação do direito de propriedade, o direito a indemnização pela ocorrência desse dano.
Este entendimento vem sendo sufragado pela Doutrina e pelos nossos Tribunais superiores.
A privação do uso de um veículo automóvel, traduzindo a perda dessa utilidade do veículo, é um dano, e um dano patrimonial, porque essa utilidade, considerada em si mesma, tem valor pecuniário.
Abrantes Geraldes refere que “não custa a compreender que a simples privação do uso seja uma causa adequada de uma modificação negativa na relação entre o lesado e o seu património que possa servir de base à determinação da indemnização” in, Indemnização do Dano Privação do Uso, páginas 39-41.
Face aos artºs. 562º, a 564º e 566º do Código Civil, da imobilização de um veículo em consequência de acidente, pode resultar: a) um dano emergente - a utilização mais onerosa de um transporte alternativo como o seria o aluguer de outro veículo; b) um lucro cessante - a perda de rendimento que o veículo dava com o seu destino a uma atividade lucrativa; c) um dano advindo da mera privação do uso do veículo que impossibilita o seu proprietário de dele livremente dispor com o conteúdo definido no art.º 1305º do Código Civil, fruindo-o e aproveitando-o como bem entender, neste sentido, Abrantes Geraldes, in, obra citada páginas, 39-41.
Neste mesmo sentido damos nota da orientação doutrinária, entre muitos outros, Menezes Leitão, in, Direito das Obrigações, volume I, página 317, Cadernos de Direito Privado, anotação de Júlio Gomes, n.º 3.
Quando a privação do uso recaia sobre um veículo automóvel danificado num acidente de viação, bastará que resulte dos autos que o seu proprietário o usaria normalmente - constituindo um facto notório ou resultando de presunções naturais a retirar da factualidade provada - para que se possa exigir do lesante uma indemnização a esse título, sem necessidade de provar direta e concretamente prejuízos efetivos.»
Partilhamos desse entendimento, ou seja, que a privação do uso do veículo, em si mesmo, é um dano indemnizável, independentemente da prova da utilização concreta que o lesado dele faça, desde logo por impedir o proprietário de exercer os poderes correspondentes ao seu direito e que o cálculo da correspondente indemnização se obtenha por recurso à equidade.
E, na verdade, a Apelante nada adianta ou sustenta de novo que permita alterar tal entendimento.
Diz também a Apelante que, caso seja corroborada o entendimento da sentença, a fixação do valor diário de €30,00 por recurso à equidade é manifestamente exagerado, excessivo e injustificado, defendendo que em termos jurisprudenciais o valor diário médio tem sido fixado em €10,00, reclamando a aplicação desse valor ao caso dos autos.
Vejamos.
Para quantificar este tipo de dano, a regra geral do artigo 562.º, n.º 2, do CPC (teoria da diferença) não pode ser aplicável, como faz notar o STJ no Acórdão proferido em 13-07-2017, e também citado na sentença recorrida:
«(…) não pode ser aplicável ao dano de privação de uso, na medida em que “a comparação entre a situação patrimonial real e a situação patrimonial hipotética do lesado, na data mais recente que puder ser atendida [se] adequa a privações definitivas e não a privações limitadas no tempo” (Maria da Graça Trigo, Responsabilidade Civil – Temas Especiais, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, pág. 58). Deste modo, a indemnização pelo dano de privação de uso terá de ser fixada de acordo com a equidade (art. 566º, nº 3, do CC).»
No caso, provou-se que o Autor usava o veículo para ir trabalhar diariamente, para ir ao supermercado e a consultas médicas e que o valor diário do aluguer de uma viatura de gama baixa é superior a €30.00 por dia (factos provados 50 e 52).
O custo do aluguer da viatura de aluguer é apenas um indício a ter em conta e não pode ser tido como um critério definitivo nesta matéria.
Não se podendo olvidar que o valor do aluguer é um valor comercial, ou seja, fixado tendo em vista cobrir determinadas despesas com a circulação do veículo e, obviamente, tem um escopo lucrativo.
Por outro lado, o critério da equidade pressupõe que o julgador leve em conta todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniforme (artigo 8.º, n.º 3, do CC).
Sem descurar que tal desiderato é muito difícil de alcançar, considerando as inúmeras decisões publicadas sobre esta questão, sendo que se reportam a factos ocorridos em momentos temporais diversos e, por vezes, são citadas sem se atender a essa circunstância, a orientação que nos afigura avisada é a que passa pela ponderação da proporcionalidade e razoabilidade do valor a que se chegue tendo em conta a necessidade de cobrir o dano em causa.
Considerando que o único elemento de caráter objetivo apurado nos autos é o referido valor do aluguer diário, com as cautelas acima referidas em relação ao seu pendor comercial, julga-se mais razoável e equitativo fixar o valor diário em €20.00, até ao limite do valor peticionado (€15.000,00), procedendo parcialmente o recurso quanto a esse aspeto.
Para além disso, importa também analisar a discordância da Apelante em relação ao facto da indemnização fixada não ter tido como limite a data da aquisição de um novo veículo por parte do Autor, o que ocorreu em março de 2020 (facto provado 51), tendo sido escalonado o valor da indemnização desde essa data até à instauração da ação e, desde esse momento, até efetivo pagamento.
Sobre esta questão importa dizer que a Apelante não tem razão quando pretende fazer cessar a sua obrigação de indemnização por reporte à data da aquisição de um veículo pelo Autor para substituir o acidentado, porquanto a seguradora não pode beneficiar do esforço financeiro do Autor para suprir a necessidade que resultou de impossibilidade de utilizar o veículo que tinha, sem que a Ré lhe tivesse fornecido um veículo de substituição. Ou seja, a indemnização é devida até o Autor ser ressarcido pelo dano sofrido com a perda da utilização do veículo sinistrado, o que só ocorre, no caso, com o pagamento da indemnização pela privação do uso do veículo. Só desse modo se dá cumprimento aos princípios gerais sobre indemnização em sede de responsabilidade civil.
Assim sendo, quanto a este aspeto improcede a apelação.
Resta dizer que o diferente valor a título indemnizatório decorrendo do escalonamento feito na sentença, não vem concretamente impugnado pela Apelante, já que se limita a questionar que o Autor tenha direito a ser indemnizado após ter adquirido uma viatura e o valor da indemnização diária até esse momento, mas não os valores da indemnização diária subsequente a essa aquisição, caso se mantenha o decidido em relação ao tempo durante o qual é devido o pagamento da indemnização.
Uma vez que também o Autor não recorreu da sentença, a parte não impugnada pela Apelante não pode ser alterada, sob pena de excesso de pronúncia (artigo 608.º, n.º 2, do CPC).
Em suma, em relação a esta questão, a sentença é alterada apenas em relação ao valor diário entre a data do acidente (../../2019) e a data da aquisição de outro veículo pelo Autor (01-03-2010) que passa a ser fixado em €20.00 diários, alcançando-se o valor global de €1.500,00, referente aos período de 75 dias, mantendo-se no demais decidido.

3.3. Danos não patrimoniais
A compensação pelos danos não patrimoniais foi fixada em €10.000,00.
A Apelante discorda, defendendo que tal valor é exagerado e que o mesmo não deve ultrapassar €6.000,00, considerando que resultou provado que da decorrência do acidente «(i) o autor ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 2 pontos (ii) o autor ficou com uma repercussão permanente na atividade profissional compatível com o exercício da atividade habitual, implicando, no entanto, esforços suplementares e (iii) o quantum doloris foi fixado no grau 4;».
Na sentença recorrida a justificação para a fixação do valor da compensação baseou-se no critério legal previsto no artigo 496.º do CC que apela à ponderação das circunstâncias referidas no artigo 494.º do CC (grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso), levando sempre em conta que só são indemnizáveis os danos que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito.
Nessa ponderação, o tribunal a quo atendeu não apenas às sequelas sofridas em termos de afetação do défice funcional e ao quantum doloris, mas a todo o circunstancialismo em que ocorreu o acidente e todo o quadro doloroso subsequente, as melhoras verificadas, mas também as limitações que permanecem, bem como os sentimentos de frustração que o Autor experienciou.
Teve ainda em atenção situações que teve como similares tratadas na nossa jurisprudência.
Não descortinamos neste iter decisório falhas que justifiquem a censura aposta pela Apelante e muito menos que o critério da equidade imponha uma diminuição do valor da indemnização fixada pelo tribunal a quo, que a Apelante defende, mas que, na verdade, não justifica, nada alegando em concreto que justifique a diminuição pretendida.
Nestes termos, nenhuma censura merece a sentença neste segmento, corroborando-se o decidido, improcedendo a apelação.

3.4. Juros de mora
Alega a Apelante que o tribunal a quo fixou a indemnização de forma atualizada em relação aos valores da indemnização, pelo que os juros de mora devem ser contados a partir da prolação da sentença e não desde a citação.
Também aqui falece razão à Apelante.
O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do S.T.J. nº 4/2002, de 09-05-2002[10], fixou a seguinte jurisprudência: «Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806.º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação.»
Como se sublinhou no sumário do Acórdão do STJ 13-07-2004:[11]
«3. O Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº. 4/2002, de 9 de Maio, assenta na ideia de uma decisão actualizadora da indemnização em razão da inflação no período compreendido entre ela e o momento do evento danoso, decisão que, tendo em conta a motivação daquele Acórdão, tem que ter alguma expressão no sentido da utilização, no cálculo da indemnização ou da compensação, do critério da diferença de esfera jurídico-patrimonial a que se reporta o nº. 2 do artigo 566º do Código Civil, incluindo a menção à desvalorização do valor da moeda.
4. Se na sentença apelada nada se expressou sobre a impropriamente designada actualização à luz do nº. 2 do artigo 566º do Código Civil, designadamente à consideração da desvalorização da moeda entre o tempo do evento danoso e o da sua prolacção, queda na espécie inaplicável a interpretação da lei decorrente daquele Acórdão.»
No caso, para além da sentença nada ter declarado quanto à atualização das indemnizações, também não se descortina da sua interpretação que essa intenção tenha presidido na determinação do respetivo quantum. Aliás, ao fixar os juros moratórios desde a citação evidencia exatamente o inverso.
Assim, também improcede este segmento do recurso.

4. Dado o recíproco decaimento, as custas ficam a cargo da Apelante e do Apelado na proporção do decaimento (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.

IV- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, decidem revogar a sentença recorrida em relação à alínea b) do dispositivo, condenado a Ré a pagar ao autor a quantia de €13.432,00 (Treze mil, quatrocentos e trinta e dois euros), a título de danos patrimoniais, bem com a alínea c) do dispositivo em relação ao montante ali referido que alteram para €4.350,00 (Quatro mil, trezentos e cinquenta euros), mantendo-a em tudo o mais.
Custas nos termos sobreditos.

Évora, 12-09-2024
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
Maria João Sousa e Faro (1.ª Adjunta)
Elisabete Valente (2.ª Adjunta)
__________________________________________________
[1] Refere-se apenas a tramitação processual essencial para o conhecimento do objeto do recurso.
[2] As alíneas h) e i) diferem apenas quanto à quilometragem do veículo, razão pela qual (presume-se) foram objeto de fundamentação conjunta. O mesmo sucedendo com as alíneas j) e i) mas em relação ao valor comercial do veículo.
[3] Veja-se, por exemplo, o Ac. STJ de 12-04-2024, proc. n.º 823/20.4T8PRT.P1.S1 (Mário Belo Morgado), em www.dgsi.pt.
[4] Neste sentido, veja-se, entre outros, Ac. RG, de 25-06-2020, proc. n.º 1136/18.7T8PTL.G1 (Alcides Fernandes) e jurisprudência aí citada, em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário: «I- Quer para efeitos de se apurar se uma reparação do veículo exigida pelo lesado é ou não excessivamente onerosa, quer para efeitos de fixação da indemnização em dinheiro ou por equivalente, a doutrina e a jurisprudência maioritária têm vindo a rejeitar o critério do valor venal, enquanto valor comercial de alienação antes do acidente; por um lado, passou a tomar-se em conta o interesse do lesado na reparação e/ou na fruição da viatura e, por outro, que aquele valor deve ser medido pelo valor de substituição, isto é, pelo custo de aquisição no mercado de um veículo com as mesmas características, que cumpra as mesmas funções que estavam destinadas ao veículo danificado.»
[5] Havendo perda total do veículo, a reconstituição natural é impossível, por desaparecimento do bem infungível que era o veículo do Autor, pelo que a indemnização deverá ser fixada em dinheiro, ou seja, em dinheiro.
[6] Neste sentido, cfr. Ac. RE, de 12-10-2023, proc. n.º 2773/18.5T8PTM.E1(Ana Pessoa), em www.dgsi.pt.
[7] Neste sentido, afastando a aplicabilidade do diploma, veja-se Ac. STJ, de 28-09-2021, proc. n.º 6250/18.6T8GMR.G1.S1(Oliveira Abreu), em www.dgsi.pt
[8] Neste sentido, veja-se, Ac. RP, de 21-03-2013, proc. n.º 7269/10.0TBMAI.P1 (Teles de Menezes) e Ac. RP, de 11-09-2018, proc. n.º 3004/17.0T8OAZ.P1 (Rodrigues Pires), ambos em www.www.dgsi.pt.
[9] AC. STJ, de 28-09-2021, proc. n.º 6250/18.6T8GMR.G1.S1 (Oliveira Abreu), em www.dgsi.pt.
[10] Diário da República n.º 146/2002, Série I-A de 2002-06-27, pp. 5057-5070.
[11] Proc. n.º 04B2616 (Salvador da Costa), em www.dgsi.pt.