DÍVIDA DE CÔNJUGES
PENSÃO DE REFORMA
BEM COMUM
COMPENSAÇÃO
FIANÇA
Sumário


I - A extinção do casamento importa a cessação da generalidade das relações patrimoniais entre os cônjuges, a extinção da comunhão entre eles e a sua substituição por uma situação de indivisão a que se põe fim com a liquidação do património conjugal comum e com a sua partilha.
II - No tocante à responsabilidade por dívidas, nos termos gerais, pode dizer-se que são devidas compensações quando as dívidas comuns dos cônjuges forem pagas com bens próprios de um dos cônjuges ou quando as dívidas de um só dos cônjuges sejam pagas com bens comuns (art. 1697º, nºs 1 e 2, do CC).
III - Estando em causa uma dívida comum (fiança prestada por autora e réu), que foi paga com bens comuns, pois no regime de comunhão de bens as pensões de reforma auferidas por qualquer dos cônjuges são bens comuns, é fácil concluir que não há lugar a qualquer compensação.
IV - Independentemente do direito do confiador solvens ser um novo direito de regresso ou o anterior direito satisfeito, em cuja titularidade ele ingressou por sub-rogação legal, a obrigação de reembolso dos outros confiadores é limitada às quotas de cada um na garantia prestada, quotas essas determinadas pela especificidade das relações internas entre eles, presumindo-se, nos termos do artigo 516º do CC, a igualdade de quotas, na ausência de estipulação em contrário.
V – Estando na origem da dívida uma fiança concedida em simultâneo e no mesmo documento por autora e ré - casados na altura -, e mostrando-se a dívida paga com um bem comum (pensão de reforma da autora), tem de considerar-se que o réu já pagou a sua quota parte que lhe cabia no âmbito da fiança prestada, não tendo a autora direito de regresso sobre o mesmo.
(Sumário elaborado pelo relator)

Texto Integral


Processo: 2029/21.6T8FAR.E1

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO
AA instaurou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB, pedindo que este seja condenado a pagar-lhe a quantia de € 28.904,66, acrescida de juros de mora vincendos até efetivo pagamento.
Alega, em síntese, que autora e réu foram casados entre ../../1973 e ../../2021, tendo a autora, na pendência do casamento, subscrito títulos de crédito e efetuado várias operações bancárias para reestruturação financeira das empresas do marido, ora réu, tendo sido pressionada e coagida para o efeito, desconhecendo o teor das dívidas existentes, as quais se deviam a uma gestão irresponsável e ruinosa do réu.
Mais alega que no contexto das garantias que prestou, a autora procedeu ao pagamento de uma dívida, através da penhora mensal da sua pensão de reforma, no âmbito de uma ação executiva que correu termos no Juízo de Execução ..., a qual foi igualmente movida contra o réu e as duas empresas deste, e que tinha como título executivo um documento particular designado “Confissão de Dívida, Fiança e Acordo de Pagamento”.
Alega ainda que o réu sempre lhe disse que iria reembolsá-la da quantia que despendeu, estando a aguardar a venda de um imóvel rústico em ... que tem em compropriedade com os seus irmãos.
Por último, refere que caso se entenda que não há lugar ao reembolso da mencionada quantia, deve o réu ser condenado a pagar metade daquele valor no âmbito das relações solidárias estabelecidas entre os coexecutados fiadores.
O réu contestou, contrapondo que a autora sempre teve conhecimento da situação financeira das empresas, nunca tendo o réu exercido qualquer coação, pressão ou ascendência sobre a autora para esta prestar as garantias que prestou, e que a mesma o fez de forma livre e esclarecida. Mais referiu que a situação financeira das empresas se agravou com alterações e perdas de concessões das marcas dos veículos automóveis que afetaram grande parte da rede de concessionários existente em Portugal.
Alegou também que a quantia que a autora pagou foi feita com dinheiro de ambos e referiu ainda que, caso não se considere que esse dinheiro seja de ambos e que exista um crédito da autora sobre o réu, o mesmo deverá ser compensado porquanto foi o réu que pagou à autora a quantia de 50.000.000$00 - com dinheiro que recebeu da venda de um bem próprio que lhe adveio de herança - a título de tornas para a mesma herdar um imóvel em ... (bem próprio), no âmbito de um processo de inventário, tendo o réu igualmente pago a quantia de 50.000.000$00 pela aquisição de um imóvel em ... que foi casa de morada de família da autora e do réu.
Aos presentes autos foram apensados os autos de procedimento cautelar de arresto, que correram termos no Juízo Local Cível ... – J..., sob o n.º 1884/21...., em que foi decretado o arresto da quota parte de um quinto (⅕) pertencente ao requerido, ora réu, no prédio rústico situado em ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...66 da freguesia ... (...), registado a favor do mesmo e demais consortes pela Ap. ...1 e inscrito na matriz predial rústica da freguesia ..., sob o artigo ...37, para garantia do crédito ora peticionado pela autora.
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador tabelar com subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Realizada a audiência final foi proferida sentença que, julgando improcedente a ação, absolveu o réu do pedido.
Inconformado, o réu apelou do assim decidido, tendo finalizado a respetiva alegação com a formulação das conclusões que se transcrevem:
«1ª. O momento em que os créditos entre cônjuges se tornam exigíveis e a que é feita menção nos artigos 1676º., nº. 3, e 1697º., nº. 1, do Código Civil – de cujas normas resulta que o crédito só é exigível no momento da partilha dos bens do casal – deve ser interpretado no sentido de que, a exigibilidade do crédito ocorre a partir do momento em que estão reunidas condições para que a partilha dos bens do casal possa ser realizada, podendo o crédito, a partir desse momento e uma vez reconhecido – maxime judicialmente – ser exigido a todo o tempo, sem prejuízo, evidentemente, das regras decorrentes dos regimes da prescrição e da caducidade.
2ª. O pagamento, por parte de apenas um dos cônjuges, através da penhora da sua pensão de reforma, da dívida emergente do accionamento de uma fiança em que ambos os cônjuges se obrigaram na qualidade de fiadores, constituída a favor de uma sociedade comercial, cuja dívida originária afiançada não foi destinada à cobertura de encargos da vida familiar do casal fiador, nem da mesma resultou qualquer benefício ou vantagem patrimonial para a comunhão conjugal, confere ao cônjuge onerado com esse pagamento, o direito de regresso contra o outro cônjuge, na proporção da quota que a este último cabia satisfazer na fiança, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 524º., 650º., nº. 2, em respeito pelo dever de cooperação e de participação por metade, no activo e no passivo da comunhão conjugal, que vigora entre os cônjuges, nos termos das disposições conjugadas dos artigo 1674º., 1676º., nºs. 1 e 2, e 1730º., nº. 1, do Código Civil. Assim sendo entendido, e ressalvando o devido respeito por melhor opinião,
3ª. A douta Sentença recorrida deverá vir a ser revogada e substituída por douto Acórdão que reconheça o direito de regresso da Apelante sobre o Apelado, condenando este último a pagar àquela o valor correspondente a metade da importância de 27.317,24 Euros, que a Apelante pagou em cumprimento da fiança em que ambos se obrigaram, ao abrigo e nos termos das disposições conjugadas dos artigos 524º., 650º., nº. 2, do Código Civil, acrescido de juros de mora, contados, à taxa legal, desde a data do trânsito em julgado da decisão que puser termo à presente lide, até integral e efectivo pagamento de capital e juros, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 559º., nº. 1, 805º., nº. 1, e 806º., nº. 1, do supra citado diploma legal.»

Não foram apresentadas contra-alegações.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a questão essencial decidenda consubstancia-se em saber se deve ser reconhecido à autora o direito de regresso relativamente ao réu, com a consequente revogação da sentença recorrida e a condenação do réu no valor correspondente a metade da quantia peticionada.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos:
1) Autora e Réu contraíram casamento civil, sem convenção antenupcial, no dia 27 de fevereiro de 1973.
2) Mostra-se inscrita a favor da Autora, AA, a aquisição das frações autónomas designadas pelas letras ..., ..., ..., ..., ..., ... e ..., do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal sito na Avenida ..., ..., da freguesia ..., Concelho ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...77 e descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...40 da freguesia ....
3) A Autora adquiriu as frações autónomas do prédio identificado em 2) em processo de inventário judicial que correu termos no extinto ... Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca ... sob o processo. n.º ...99, por óbitos dos seus falecidos pais AA e CC.
4) Ficou consignado em ata de conferência de interessados realizada em 18-06-2001 no âmbito do processo de inventário judicial identificado em 3) que: “foi dito pela interessada AA, que desiste do pedido de prestação de contas, processo apenso a este inventário” (…) “Por fim acordaram na composição dos quinhões e forma de pagamento da seguinte forma: (…) À interessada AA, casada, serão adjudicados: Totalidade das fracções que compõem a verba n.º5 ou seja: Fracção ..., pelo valor de 840.144$00; Fracção ..., pelo valor de 560.096$00; Fracção ..., pelo valor de 840.144$00; Fracção ..., pelo valor de 840.144$00; Fracção ..., pelo valor de 840.144$00; Fracção ..., pelo valor de 840.144$00; Fracção ..., pelo valor de 840.144$00;” (…) Como não há outros assuntos a submeter a esta conferência, ele Sr. Juiz deu-a por finda, e ordenou o cumprimento do disposto no art° 1373.º do C.P. Civil, declarando os interessados maiores a quem tenham que caber tornas que prescindem do depósito das mesmas, por já as haver recebido em mão.”
5) Do Mapa de Partilha elaborado naqueles autos de inventário judicial consta que “A interessada AA, casada, haverá bens adjudicados: os contantes de fls. 236 da Conferência e pelo valor de 5.600.960$20; Como só tem direito a 2.056.257$20, Dá tornas no valor de 3.544.703$20”.
6) Mostra-se inscrita a favor do Réu BB a aquisição, na proporção de 1/5, do prédio rústico sito em ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...66 da freguesia ... (...) e inscrito na respetiva matriz rústica sob o artigo ...37 da freguesia ....
7) No dia 08-08-1997, no ... Cartório Notarial ..., perante a Notária Dra. DD e EE, os Primeiros Outorgantes (FF, na qualidade de procurador e em representação de GG e HH, declararam ceder aos Segundos Outorgantes (Autora e Réu), que aceitaram, a fração autónoma designada pelas letras ..., correspondente ao ... andar, destinada a habitação, integrada no prédio urbano, sito no ..., Rua ... e Rua ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...24..., da freguesia ... e inscrito na respetiva matriz sob o artigo nº ...58, a que atribuíram o valor de 26.000.000$00.
8) No ato notarial referido em 7), Autora e Réu, na qualidade de Segundos Outorgantes, declararam que dão em troca aos Primeiros Outorgantes i) a fração identificada pela letra ..., que corresponde ao ... andar, porta 11, integrada no prédio urbano em regime de propriedade horizontal denominado “...” no conjunto “...”, em ..., inscrito na matriz sob o artigo ...56 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...57, da freguesia ..., que atribuíram o valor de 8.500.000$00 e ii) o montante da diferença de 17.500.000$00, quantia que os Primeiros Outorgantes declararam ter recebido.
9) Em ../../2021 foi decretado o divórcio da Autora e do Réu no âmbito da ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge que correu termos no Juízo de Família e de Menores ...-J..., com o n.º 796/21.....
10) Em 4.10.2013, no âmbito do processo de inventário para partilha de bens em casos especiais, que correu termos no anterior ... Juízo Cível da Comarca ..., com o n.º 3266/10...., a Autora e o Réu chegaram a acordo quanto à partilha dos bens.
11) Da Relação de Bens elaborada no âmbito do processo de inventario referido em 10), consta como verba n.º1: Fração autónoma designada pelas letras ..., correspondente ao ... andar, destinada a habitação, integrada no prédio urbano, sito no ..., Rua ... e Rua ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...24..., da freguesia ... e inscrito na respetiva matriz sob o artigo nº ...58, a que atribui o valor de € 350.000,00 (trezentos e cinquenta mil euros); verba n.º 2: Fração autónoma designada pela letra ..., correspondente a um lugar de estacionamento, integrada na cave do prédio urbano, sujeito ao regime da propriedade horizontal, sito no ..., Rua ... e Rua ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº...24..., da freguesia ... e inscrito na respetiva matriz sob o artigo nº ...58, a que atribui o valor de 7.500,00 € (sete mil e quinhentos euros); PASSIVO – Verba n.º1 “Deve o casal à Caixa Geral de Depósitos, o montante de 44.278,70€ (quarenta e quatro mil duzentos e setenta e oito euros e setenta cêntimos), correspondente a um mútuo para aquisição das verbas n° 1 e 2 do ativo supra.”
12) Na ata de conferência de interessados, realizada em 04-10-2013, naquele processo de inventário, consta que a Autora e o Réu acordaram a partilha de bens, tendo ficado consignado o seguinte: “o valor actual em dívida relativo à verba n.º1 do passivo à data é de 35.469,43€; a) Verba n.º1 – para os dois interessados; b) Verba n.º2 – para o interessado BB; c) (…); d) Relativamente ao passivo: aprovam o passivo e o pagamento fica a cargo de ambos os interessados; e) prescindem ambos os interessados das tornas a que houver lugar.”
13) O Réu é sócio (titular de uma quota) e gerente da sociedade “M... LDA”, com o NIPC ...00.
14) O Réu é sócio (titular de uma quota) da sociedade “U..., limitada”, com o NIPC ...24.
15) No âmbito do processo de insolvência com o n.º 104/12.... que correu termos no Juízo de Comércio ... (J...), a Sociedade M... LDA., foi declarada insolvente por sentença proferida em 10-10-2013 e transitada em julgado em 06-11-2013.
16) A Sociedade U..., Limitada, foi declarada insolvente por sentença transitada em julgado em 31-12-2013.
17) Em data não concretamente apurada, mas no ano 2009, em face do agravamento da situação financeira das sociedades identificadas em 13) e 14), a Autora e o Réu reuniram-se com a Caixa Geral de Depósitos, esta representada pelos Dr. II, Dra. JJ e Dra. KK, responsáveis do Departamento de Empresas no Algarve, tendo nessa reunião sido solicitado à A. e R. um reforço de garantias.
18) No dia 01-10-2009, no Cartório Notarial ..., sito em Faro, foi outorgado documento público denominado “Mútuo com hipoteca e Pacto de Preenchimento de Livrança”, em que consta como Primeiro Outorgante a Caixa Geral de Depósitos, como Segundo Outorgante o Réu, que declarou outorgar por si e na qualidade de sócio e gerente em nome e em representação da sociedade comercial U..., Limitada, e como Terceiro Outorgante a Autora, na qualidade de hipotecante.
19) Daquele documento consta que: “A Caixa Geral de Depósitos concede à representada do Segundo Outorgante (U...), um mútuo no montante de DUZENTOS E SESSENTA E CINCO MIL EUROS, importância que esta se confessa desde já devedora (…) que em garantia do a) capital emprestado (…) b) dos respectivos juros (…) c) das despesas emergentes (…) a Terceira Outorgante (Autora) constitui a favor da Caixa, que a aceita, hipoteca sobre os seguintes imóveis (…)”.
20) A hipoteca referida em 19) incidiu sobre as frações autónomas (... a ...) do prédio urbano identificado em 2).
21) Consta ainda do documento referido em 18): “Pelo Segundo Outorgante por si e em representação da sua representada e Terceira Outorgante foi dito que o empréstimo ora contratado é titulado por uma livrança em branco subscrita pela CLIENTE (U...) e por eles avalizada”.
22) No escrito particular datado de 12-11-2009, denominado “Confissão de dívida, fiança e acordo de pagamento”, figuram como primeiro outorgante a M..., Lda., como segundos outorgantes o Réu e a Autora, como terceiro outorgante a U..., Lda. e, como quarto outorgante, a LL – Viaturas e M... S.A.
23) Daquele escrito consta que “1.º - Considerando que na sequência das relações comerciais existentes entre a primeira outorgante e a quarta outorgante, aquela é devedora a esta da quantia de 62.286,03 €, valor respeitante a capital (60.333,76 €) e aos juros moratórios já vencidos e ainda os vincendos devidos pelo diferimento do prazo de pagamento por seis meses, nos termos da cláusula seguinte, juros esses calculados em 1.952,27 €, na sua globalidade; (…) 2.º- Considerando que não é possível à primeira outorgante solver de imediato e de uma só vez a dívida que tem para com a quarta outorgante, a primeira outorgante compromete-se a pagar aquele valor em 6 (seis) prestações mensais, seguidas e sucessivas, no montante de 10.380,96 €, cada, com excepção da última, cujo valor é de 10.381,23 € vencendo-se a primeira no dia 20 de Novembro deste ano e as subsequentes nos dias 20 dos meses de Dezembro de 2009 a Abril de 2010, inclusive; (…) 4.º Os segundos e a terceira outorgantes constituem-se, pelo presente instrumento, fiadores da primeira outorgante e principais pagadores da quantia referida na cláusula primeira e comprometem-se por este documento e perante a quarta outorgante a pagá-la nos precisos termos constantes da cláusula 2°”.
24) A ação executiva sob o n.º 1511/10...., a correr termos no Juízo de Execução ... – Juiz ..., em que consta como Exequente “LL – Viaturas e M... S.A.”, e como Executados a Autora, o Réu e as sociedades U... e M... identificadas em 13) e 14), teve como título executivo o escrito particular identificado em 22).
25) Do requerimento executivo consta que: “A quarta executada apenas pagou as três primeiras prestações e uma parte da quarta prestação, pelo que, em 20-02-2010, o saldo devedor dos executados para com a exequente ascende a € 24.410,31”.
26) No âmbito da ação executiva identificada em 24), em 20-09-2010, foi determinada a penhora da pensão de reforma que a Autora auferia para pagamento da quantia em dívida, tendo sido pago o valor de € 27.317,24 até 20-03-2013.
27) Por escrito enviado ao Réu, datado de 09-03-2021, a Autora comunicou ao Réu que “Como é do conhecimento de V. Exa, fui eu quem pagou a quantia exequenda e demais custos e encargos processuais com a execução mencionada (…) O montante por mim pago ascendeu a € 28.713,24, e do qual deverei ser integralmente reembolsada. Para tanto, tem V. Exa. o prazo de cinco (5) dias a contar da recepção da presente carta para, querendo, efectuar o respectivo pagamento por transferência para a conta bancária com o IBAN PTS0 ...38, de que sou titular”.

E foram considerados não provados os seguintes factos:
a) Ainda antes da declaração de insolvência das sobreditas sociedades comerciais, maxime a partir de 2007, e devido a uma gestão manifestamente irresponsável e ruinosa do Réu, este passou a exercer sobre a sua mulher uma pressão muito grande no sentido desta assinar e subscrever títulos de crédito e várias operações bancárias para reestruturação financeira das suas empresas;
b) Foi nesse contexto referido em a) que a Autora, confiando no seu marido (Réu) e muito pressionada nesse sentido pela sua filha mais velha, deu em garantia o prédio referido em 2) dos factos provados;
c) Já anteriormente a essa data, a Autora foi convencida, senão mesmo coagida, pelo marido e sua filha mais velha, para que avalizasse várias operações bancárias de que eram beneficiárias as atrás indicadas sociedades comerciais;
d) O Réu sempre ocultou à Autora a verdadeira situação das empresas;
e) No processo de inventário judicial que correu termos sob o Proc. n.º ...99, foram pagas a título de tornas a quantia de 50.000.000$00 (cinquenta milhões de escudos, o equivalente a 250.000,00€ - duzentos e cinquenta mil euros);
f) O Réu pagou as tornas com o dinheiro que recebeu da venda de um bem próprio que lhe adveio por herança do seu pai (pinhal na ..., ...), em compropriedade com mais três dos seus irmãos;
g) Este pinhal foi vendido no ano 2000, por 400.000.000$00 (quatrocentos milhões de escudos), tendo recebido 100.000.000$00 (cem milhões de escudos) cada um dos comproprietários. Dos 100.000.000$00 que o réu recebeu, pagou as ditas tornas de 50.000.000$00 devidas pela a Autora e com o restante adquiriu um imóvel em ... que ficou em nome do casal;
h) O Reu assumiu e garantiu à Autora que iria reembolsá-la da totalidade do “empréstimo” que esta pagou e referido em 26) dos factos provados;
i) A Autora e o Réu concordaram entre si compensar o crédito da Autora referido em 26) com o crédito do Réu referido em g).

O DIREITO
Autora e réu foram casados civilmente entre 1973 e 2021, tendo o casamento sido dissolvido por divórcio decretado em ../../2021 [pontos 1 e 9 dos factos provados].
Na vigência do casamento, mais concretamente em ../../2009, a autora e o réu assinaram um documento denominado “Confissão de dívida, fiança e acordo de pagamento”, no qual a autora, o réu e a sociedade U..., Lda. se declararam fiadores da devedora M..., Lda., assumindo-se como principais pagadores da quantia em dívida, no valor de € 62.286,03, comprometendo-se a pagá-la à credora LL - Viaturas e M... S.A. [pontos 22 e 23 dos factos provados].
Resultou igualmente provado que o pagamento da referida quantia seria efetuado em seis prestações mensais, seguidas e sucessivas, no montante de € 10.380,96 cada, com exceção da última, cujo valor era de € 10.381,23, sucedendo que apenas foram pagas pela devedora principal (M...), as três primeiras prestações e uma parte da quarta prestação [pontos 23 e 25 dos factos provados].
Nessa sequência, em virtude do não pagamento do remanescente da quantia em dívida, foi instaurada execução contra a autora, o réu e as sociedades U... e M..., tendo no seu âmbito sido ordenada a penhora da pensão de reforma que a autora auferia, para pagamento daquela quantia em dívida, tendo sido pago o valor de € 27.317,24 [ponto 26 dos factos provados].
Verifica-se, pois, que o pagamento da dívida da sociedade M... foi feito através do acionamento da fiança que a própria autora prestou.
Em sede de contestação, alegou o réu que o dinheiro com que foi paga a referida quantia de € 28.713,24 era de ambos.
Entendeu-se na sentença recorrida que estando em causa «uma dívida comum e encontrando-se paga com um bem comum, é forçoso concluir que o Réu já pagou a sua parte da dívida (1/2) aquando do pagamento da mesma pela Autora, não existindo qualquer crédito desta sobre aquele.»
Entende a recorrente que o pagamento, por parte de apenas um dos cônjuges, através da penhora da sua pensão de reforma, de uma dívida «emergente do accionamento de uma fiança em que ambos os cônjuges se obrigaram na qualidade de fiadores, constituída a favor de uma sociedade comercial, cuja dívida originária afiançada não foi destinada à cobertura de encargos da vida familiar do casal fiador, nem da mesma resultou qualquer benefício ou vantagem patrimonial para a comunhão conjugal, confere ao cônjuge onerado com esse pagamento, o direito de regresso contra o outro cônjuge, na proporção da quota que a este último cabia satisfazer na fiança».
Vejamos, pois, de que lado está a razão.
Como refere Cristina Dias[1], «[a]s particularidades das relações patrimoniais entre os cônjuges, traduzidas na obrigação de comunhão de vida e na realização de um equilíbrio patrimonial justo, exigem um estatuto próprio e uma regulamentação específica face às restantes relações jurídicas estabelecidas entre pessoas não casadas. Por isso, as compensações entre as diferentes massas patrimoniais só são devidas no final da comunhão de vida e partilha dos bens.
De facto, o art. 1697º, n.ºs 1 e 2, refere expressamente o “momento da partilha”. As razões da proibição da partilha dos bens comuns antes de cessarem as relações patrimoniais entre os cônjuges prendem-se com a ideia da proteção de um património comum especialmente afetado às necessidades da vida familiar. Têm a ver, além disso, com a própria natureza deste património comum, regulado pela lei como um património coletivo, tendo os cônjuges apenas direito a uma meação, em regra, só concretizável após a dissolução do casamento.
Faz sentido, portanto, que a liquidação da comunhão ocorra somente no momento da dissolução da mesma e que só nessa altura se concretize o direito de cada um dos cônjuges sobre os bens que fazem parte da comunhão [28][2].
Permite-se, assim, a correção dos desequilíbrios entre as várias massas, através do estabelecimento de uma conta entre cada um dos cônjuges e o património comum. O respetivo saldo dá lugar a uma compensação em benefício da massa empobrecida, restabelecendo-se o equilíbrio perturbado durante a vida conjugal. Tal princípio pode deduzir-se também do art. 1689º, n.ºs 1 e 3, onde se prevê a ordem das operações da partilha, estabelecendo uma hierarquia das dívidas e determinando as massas patrimoniais prioritariamente responsáveis. Assim, no momento da partilha, cada um dos cônjuges deve conferir ao património comum, e este aos patrimónios próprios dos cônjuges, tudo o que lhe dever.»
No tocante à responsabilidade por dívidas, nos termos gerais, pode dizer-se que são devidas compensações quando as dívidas comuns dos cônjuges forem pagas com bens próprios de um dos cônjuges ou quando as dívidas de um só dos cônjuges sejam pagas com bens comuns (art. 1697 nºs 1 e 2 do CC)[3].
Ora, estando em causa uma dívida comum (fiança prestada por autora e réu), que foi paga com bens comuns, pois no regime de comunhão de bens as pensões de reforma auferidas por qualquer dos cônjuges são bens comuns[4], é fácil concluir que não há lugar a qualquer compensação.
A questão deve, pois, ser analisada no âmbito da fiança prestada pela autora e pelo réu e de um eventual direito de regresso, como, aliás, se fez na sentença recorrida.
Nesta ação, estamos perante a satisfação por um confiador (a autora) de um crédito, cujo pagamento se encontrava globalmente garantido por esta e outros fiadores (réu e a sociedade U...) que se vincularam à sua satisfação, de forma solidária, com renúncia aos benefícios de divisão e excussão.
Pretende a autora (fiadora solvens), através da presente ação, que o réu confiador, à data seu marido, lhe pague o valor por ela satisfeito à sociedade credora, considerando que a sociedade devedora e a sociedade confiadora foram declaradas insolventes.
Escreveu-se na sentença recorrida:
«(…) a quota-parte da dívida cuja responsabilidade pelo seu pagamento estava a cargo das sociedades insolventes (U... e M...) tem de ser repartida pelos demais devedores, incluindo o credor de regresso. Ou seja, em termos práticos, deverá ser a dívida repartida proporcionalmente apenas pela Autora e pelo Réu (50/50), na qualidade de únicos co-fiadores e cuja responsabilidade não se extinguiu.
Nesse conspecto, uma vez que a Autora satisfez a totalidade da quantia exequenda, indo para além da proporção que, em princípio, lhe competia (1/2), caberia à Autora receber do Réu a correspondente quota-parte que lhe cabia no âmbito da fiança prestada.
Acontece que, da factualidade apurada, constata-se que a quantia em causa foi paga pela Autora durante a constância do matrimónio (o pagamento ocorreu até 2013, ou seja, muito antes do divórcio, que ocorreu em 2021) e através da penhora da sua pensão de reforma (pontos n.ºs 1, 9 e 26 dos factos provados).
Atendendo ao regime de bens vigente entre a Autora e o Réu, nos termos do artigo 1724.º al. a) do CC “Fazem parte da comunhão: a) O produto do trabalho dos cônjuges”
Por um lado, não há dúvidas que a pensão de reforma de um cônjuge é considerada como bem comum do casal, integrando a comunhão.
(…).
Por outro lado, resulta ainda do artigo 1691.º do CC que “são da responsabilidade de ambos os cônjuges: a) As dívidas contraídas, antes ou depois da celebração do casamento, pelos dois cônjuges, ou por um deles com o consentimento do outro”
Ora, resulta da factualidade provada (pontos 22, 23 e 24 dos factos provados) que, na origem da referida dívida, esteve uma fiança concedida em simultâneo e no mesmo documento por ambos os cônjuges, Autora e Réu, na constância do seu casamento.
Daqui extrai-se que, ambos os cônjuges tinham conhecimento da dívida, do seu vínculo jurídico à mesma (fiança), consentindo-a mutuamente.
Ambos sabiam que, ainda que cada um se vinculasse pessoalmente através da fiança (cada fiança prestada corresponde a uma dívida distinta), a fiança prestada por cada um dos cônjuges responsabilizava ambos os cônjuges pelo seu cumprimento.
Nesse conspecto, outra não poderá ser a conclusão de que, nos presentes autos, ainda que tivesse sido a pensão por reforma da Autora que satisfez a dívida integral, aquele montante é considerado bem comum pelo que, foi o património comum do casal que respondeu por aquela dívida.
Sendo uma dívida comum e encontrando-se paga com um bem comum, é forçoso concluir que o Réu já pagou a sua parte da dívida (1/2) aquando do pagamento da mesma pela Autora, não existindo qualquer crédito desta sobre aquele.»
E assim é efetivamente.
O artigo 650º, nº 1, do CC prevê que, havendo vários fiadores, e respondendo cada um deles pela totalidade da prestação, o que tiver cumprido fica sub-rogado nos direitos do credor contra o devedor e, de harmonia com as regras das obrigações solidárias, contra os outros fiadores.

O artigo 524º do CC, que rege o “direito de regresso” entre devedores solidários, dispõe que o devedor que satisfizer o direito do credor além da parte que lhe competir tem direito de regresso contra cada um dos condevedores, na parte que a estes compete.
Relativamente ao direito contra os outros confiadores, independentemente do direito do confiador solvens ser um novo direito de regresso ou o anterior direito satisfeito, em cuja titularidade ele ingressou por sub-rogação legal, a obrigação de reembolso dos outros confiadores é limitada às quotas de cada um na garantia prestada, quotas essas determinadas pela especificidade das relações internas entre eles, presumindo-se, nos termos do artigo 516º do CC, a igualdade de quotas, na ausência de estipulação em contrário.
Tendo um dos confiadores sido declarado insolvente (sociedade U...), é aplicável a solução do artigo 526º, nº 1, do CC, por remissão do artigo 650º, nº 1, do mesmo diploma: se um dos devedores estiver insolvente é a sua quota parte repartida proporcionalmente entre todos os demais, incluindo o credor de regresso…
Por sua vez, como bem se observa na sentença recorrida, na origem da dívida esteve uma fiança concedida em simultâneo e no mesmo documento por ambos os cônjuges, ora autora e réu, na constância do seu casamento, pelo que a fiança prestada por cada um deles responsabilizava ambos os cônjuges pelo seu cumprimento.
Assim, ainda que tenha sido a pensão de reforma da satisfazer a dívida integral, o respetivo montante, estamos, como se viu, perante um bem, pelo que tem de considerar-se que foi o património comum do casal que respondeu por aquela dívida.
Sendo uma dívida comum e encontrando-se paga com um bem comum, terá de concluir-se, como na sentença recorrida, que o réu já pagou a sua quota parte que lhe cabia no âmbito da fiança prestada, não tendo a autora direito de regresso sobre o réu.
Improcedem assim as conclusões da recorrente em sentido contrário.
Vencida no recurso, suportará a autora/recorrente as respetivas custas – art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.

*
Évora, 12 de setembro de 2024
Manuel Bargado (Relator)
Maria Adelaide Domingos
Maria João Sousa e Faro
(documento com assinaturas eletrónicas)
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[1] Responsabilidade por dívidas e compensação entre patrimónios, pp. 23-24, in REVISTA ELECTRÓNICA DE DIREITO – JUNHO 2020 – N.º 2 (VOL. 22) – WWW.CIJE.UP.PT/REVISTARED.
[2] É do seguinte teor a nota de rodapé inserida no texto que citamos:
«A compensação é o meio de prestação de contas do movimento de valores entre a comunhão e o património próprio de cada cônjuge que se verifica no decurso do regime de comunhão. A compensação aparecerá, no momento da liquidação e partilha, ou como um crédito da comunhão face ao património próprio de um dos cônjuges ou como uma dívida da comunhão face a tal património, permitindo que, no fim, uma massa de bens não enriqueça injustamente em detrimento e à custa de outra.
Para haver compensações stricto sensu, e é a estas que nos referimos no texto, tem de verificar-se um relacionamento entre o património comum e o património próprio de algum dos cônjuges. Se existirem apenas transferências de valores entre patrimónios próprios dos cônjuges (como acontece necessariamente no regime de separação, ainda que o mesmo possa também ocorrer nos regimes de comunhão), teremos créditos entre os cônjuges, que integram o conceito de compensação lato sensu, mas não de compensação em sentido estrito, por ausência de relacionamento com o património comum. Por definição, uma compensação presume um movimento de valores entre o património comum e o património próprio de um dos cônjuges. Se, durante o regime matrimonial, a transferência de valores se realizar entre os patrimónios próprios, haverá um crédito entre cônjuges, e não uma compensação. Tal distinção releva, na medida em que o regime jurídico é diferente sobretudo ao nível do seu cálculo, avaliação e exigibilidade, estando as compensações sujeitas a um regime particular, ao passo que os créditos entre cônjuges submetem-se ao regime geral do Direito das Obrigações.
Salvo convenção em contrário, tais créditos são exigíveis desde o momento do seu surgimento, não se justificando o seu diferimento para o momento da partilha, dado apenas verificar-se um relacionamento entre os patrimónios próprios dos cônjuges, não intervindo o património comum.
O art. 1697º refere as compensações devidas pelo pagamento de dívidas do casal em sentido lato, de entre as quais se destacam as compensações stricto sensu, que apenas ocorrem nos regimes de comunhão, e os créditos entre cônjuges, que podem verificar-se em qualquer regime de bens. Pelo facto de no regime de separação apenas podermos ter créditos entre cônjuges, não há qualquer diferimento para o momento da partilha, sendo aqueles imediatamente exigíveis.
[3] Cfr., inter alia, os acórdãos da Relação do Porto de 16.03.2010, proc. 3275/06.8TBPVZ.P1, e de 08.02.2024, proc. 3039/22.1T8STS.P1, e da Relação de Coimbra de 07.10,2014, proc. 741/13.2TBLRA.C1, in www.dgsi.pt. Na doutrina, Clara Sottomayor, in Código Civil Anotado, Livro IV, Direito da Família, Almedina, 2020, p. 320, citada no mencionado acórdão da Relação do Porto de 08.02.2024.
[4] Cfr., inter alia, Acórdão da Relação de Lisboa de 17.06.2021, proc. 6453/05.3YYLSB-A.L1-6, in www.dgsi.pt, também citado na sentença recorrida.