CONTRA-ORDENAÇÃO LABORAL
AUDIÇÃO DE TESTEMUNHAS
DECISÃO QUE PONHA TERMO AO PROCESSO
Sumário


I – Uma vez que decorre do disposto do artigo 29.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), do Código dos Regimes Contributivos do Sistema de Segurança Social – CRCSPSS), que é obrigatória a comunicação da empregadora à segurança social quanto à admissão de trabalhadores, a efetuar nas vinte e quatro horas anteriores ao início da produção de efeitos do contrato de trabalho, no sítio da internet da referida entidade pública, a prova dessa inscrição deve ser feita por documento e não por outro meio de prova, designadamente testemunhal;
II – Em tal circunstância, é irrelevante a não audição de testemunhas na fase administrativa do processo, não configurando, pois, nulidade do processo administrativo;
III – Não se tendo a recorrente oposto a que a decisão judicial fosse proferida por despacho, sem necessidade de produção de prova em audiência, não pode posteriormente vir invocar que a falta de audição de testemunhas na fase administrativa não se mostra sanada na fase judicial com a produção da prova testemunhal.
(Sumário elaborado pelo relator)

Texto Integral


Proc. n.º 5733/21.5T8STB.E1

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]:

I. Relatório
A arguida Accelerated Contact Consulting – Empresa de Trabalho Temporário, Lda., impugnou judicialmente a decisão de 29-06-2021 da ACT - Autoridade para as Condições do Trabalho (Unidade Local ...) que lhe aplicou (i) uma coima de € 450,00, por uma contraordenação grave, na forma negligente, p. e p. pelos n.ºs 1, 2 e 7, do artigo 29.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social (CRCSPSS), aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16/09 e alterado pela Lei n.º 119/2009, de 30/12 e com a redação dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31/12, e (ii) uma coima de € 4.284,00, por uma contraordenação muito grave, na forma negligente, p. e p. pelo artigo 79.º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, conjugado com o n.º 5, do artigo 283.º, do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009 de 12 de fevereiro.
Em cúmulo jurídico foi a arguida condenada na coima única de €4.284,00 e na sanção acessória de publicidade da decisão.

Por sentença de 12-01-2024, do Juízo do Trabalho de Setúbal – Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., foi negado provimento à impugnação judicial e confirmada a decisão recorrida.

Inconformada com o assim decidido, a arguida interpôs recurso para este tribunal, tendo na motivação de recurso apresentado as seguintes conclusões:
«Veio o tribunal “a quo” condenar a arguida, ora recorrente, no pagamento de uma coima no valor de 4.248,00€ (quatro mil duzentos e quarenta e oito euros) por, alegadamente, ter praticado as seguintes infracções:
1ª infracção: Violação da disposição legal que obriga a entidade empregadora a comunicar a admissão dos trabalhadores à Segurança Social, nas vinte e quatro horas anteriores ao início do contrato de trabalho celebrado entre as partes, nos termos da alínea a) do nº2 do artigo 29º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social.
b) 2ª infracção: A empresa não tinha transferido a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho relativamente ao trabalhador AA, dado que não comunicou a sua admissão à Segurança Social.
1. Entendeu a aqui recorrente que a decisão administrativa era nula porquanto as testemunhas que arrolou na fase administrativa não foram inquiridas por aquela entidade que nunca notificou as mesmas ou sequer a arguida justificando o porquê de não realizar aquela diligencia de prova.
2. O tribunal a quo veio considerar que esta nulidade é inexistente alegando para tanto que “a previsão da excepção consagrada no nº2 do artigo 29 do CRCSPSS não é questão de prova (a prova testemunhal não vem substituir ou complementar a prova documental pois tudo o que ali consta assenta em documentos exigidos por lei, cuja existência não pode se suprida por testemunhas.”
3. E acrescentado, “a não concordância com a interpretação aplicação feita pela ACT não gera nulidade do procedimento de contraordenação ou da decisão da autoridade administrativa, sendo, antes, motivo para discordância quanto ao seu mérito.”
4. Não pode a aqui recorrente concordar com esta posição.
5. Consagra o artigo 60º da Lei 107/2009 de 14/09 que “o processo iniciar-se-á oficiosamente mediante participação das autoridades policiais ou fiscalizadoras ou ainda mediante denuncia particular.
6. A autoridade administrativa procederá à sua investigação e instrução, finda a qual arquivará o processo ou aplicará a coima.
7. Não obstante ser consabido que cabe à autoridade administrativa, que possui autonomia para decidir se as diligencias de prova requeridas pelos arguidos são ou não realizados, também é consabido que, caso não o façam devem fundamentar essa decisão.
8. No caso em crise a autoridade administrativa fez completa tábua rasa das testemunhas arroladas pela recorrente.
9. Nunca as ouviu, nunca justificou perante a arguida porque não o fez ou sequer porque considerava a realização daquelas diligencias de prova extemporâneas ou até desnecessárias. A autoridade administrativa nada disse, nada fez e nada justificou, tendo chegado a referir, no que aos factos não provados diz respeito, que “não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a decisão por ausência de prova.”.
10. Nos termos do artigo 121º nº1 alínea c) do CPP, ainda que ocorra nulidade, designadamente por falta de fundamentação pela autoridade administrativa da não realização de determinada diligência requerida pela arguida a mesma poderia considerar-se sanada em sede de impugnação judicial, caso os arguidos viessem a requerer a realização dessa mesma diligencia de prova e a mesma se viesse a realizar nessa fase judicial. Não foi o que aconteceu na medida em que na fase judicial o Mmo. Juiz a quo proferiu a decisão de que agora se recorre por despacho, e em face disso considera a ora recorrente que a decisão da autoridade administrativa ficou ferida de nulidade tornando assim o acto inválido e os que dele dependerem, tudo nos termos e para os efeitos do disposto no nº1 do artigo 122º do CPP.
11. Assim, a sentença sob recurso viola o artigo 120º nº2 alínea d) do CPP, aplicável às contraordenações laborais e padece de nulidade.
12. Pelo que deve o acto que lhe deu origem ser considerado inválido e todos os que dele dependerem, conforme supra se disse».
Concluiu pela procedência do recurso, com consequente revogação da decisão recorrida.

O recurso foi admitido na 1.ª instância – com subida imediata, nos autos e efeito devolutivo –, mas apenas quanto à coima de € 4.284,00 (por uma contraordenação muito grave, na forma negligente, p. e p. pelo n.º 1 do artigo 79.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, conjugado com o n.º 5, do artigo 283.º, do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009 de 12 de fevereiro), o que não foi objeto de discordância da recorrente.

Na 1.ª instância, o Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo nos seguintes termos:
«1) Considerando que a recorrente apenas conseguiria afastar as duas contraordenações, uma prevista no art. 29.º, n.º 2, als. a) e b) do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social e outra no art. 79.º, n.º 1 da Lei n.º 98/2009, de 04/09, aplicadas pela autoridade administrativa, exclusivamente, através de prova documental, a inquirição das testemunhas que arrolou não era essencial à descoberta da verdade.
2) No processo administrativo, a inquirição de testemunhas também não é um ato legalmente obrigatório, pelo menos, que se conheça, não está legalmente previsto como tal.
3) Arrolar testemunhas é um direito facultativo atribuído ao arguido, devendo aquelas ser inquiridas, sempre que arroladas por este, caso o instrutor considere que a prova poderá ser feita através de testemunhas (cfr. art. 17.º, n.º 2 da Lei n.º 107/2009, de 14/09)
4) Sendo a prova a produzir, neste caso, estritamente documental, como já se referiu, a inquirição de testemunhas teria, no processo administrativo, efeito meramente dilatório, pelo que o instrutor do processo optou pela sua não inquirição.
5) Ora, não sendo a inquirição de testemunhas um ato de inquérito legalmente obrigatório, nem este tipo de prova ser, no caso concreto, essencial à descoberta da verdade, conclui-se pela inexistência de qualquer nulidade do processo administrativo, nomeadamente a prevista no art. 120.º, n.º 2, al. d) do Código de Processo Penal, aplicável ex vi art. 60.º da Lei n.º 107/2009, de 14/09 e 41.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27/10.
6) Assim, a sentença recorrida não violou, o disposto nos artigos 29.º, n.º 2, als. a) e b) do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social, 79.º, n.º 1 da Lei n.º 98/2009, de 04/09, 120.º, n.º 2, al. d), 121.º, n.º 1, al. c) e 122.º, todos do Código de Processo Penal.
Termos em que deve ser negado provimento ao recurso interposto, mantendo-se na íntegra a sentença recorrida».

Recebidos os autos nesta Relação, neles a exma. procuradora-geral adjunta emitiu douto parecer, que não foi objeto de resposta, no qual se pronunciou pela improcedência do recurso.

Elaborado projeto de acórdão e colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso
Como é sabido, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso, que aqui não se detetam – artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, ex vi do artigo 41.º, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (Regime Geral das Contraordenações e Coimas) e do artigo 50.º, n.º 4, da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro (Regime processual aplicável às contraordenações laborais e de segurança social).
Assim, tendo em conta as conclusões da motivação de recurso, a única questão trazida à apreciação deste tribunal consiste em saber se a decisão da autoridade administrativa é nula, por não ter procedido à audição das testemunhas (alegadamente) arroladas pela arguida nem justificado essa não audição.

III. Factos e Subsunção Jurídica
A decisão recorrida não consignou expressamente os factos provados, remetendo, ao invés, face ao disposto no artigo 39.º, n.º 4, da Lei n.º 107/2009, de 14-09, para a fundamentação constante da decisão da autoridade administrativa.
Uma vez que o texto em causa não se encontra em word, ou em modo editável, remete-se, também aqui, quanto à matéria de facto, para o que consta da decisão da autoridade administrativa.
Para além disso, alegou a recorrente – sendo esse o elemento fáctico essencial em que se ancorou no presente recurso – que aquando da sua resposta escrita, elaborada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17.º, n.º 2, da Lei n.º 107/2009, arrolou testemunhas, que nunca foram ouvidas pela autoridade administrativa, ou sequer por ela notificadas para tal, assim concluindo que (a autoridade administrativa) rejeitou tal diligência de prova, sem fundamentar, tendo em conta que proferiu decisão final sem se pronunciar sobre a requerida prova.
Adiante-se desde já que a matéria de facto dada como provada pela autoridade administrativa nada reflete a tal respeito.
Mas para além disso, compulsados os autos, maxime o processo administrativo que se encontra inserido na tramitação eletrónica do processo, não se localiza qualquer requerimento da arguida, aqui recorrente, referente a prova testemunhal.
Tal conduziria a que concluíssemos que o recurso não tem objeto!
Todavia, admitindo-se que o processo administrativo não tenha sido integralmente junto aos autos e, assim, que a arguida/recorrente tenha, efetivamente, junto requerimento no âmbito da instrução do processo a arrolar prova testemunhal, e que o mesmo não tenha sido objeto de qualquer pronúncia, passa-se a analisar a questão tendo em conta tal pressuposto.

Recorde-se que a recorrente sustenta, ao fim e ao resto, que a não audição das testemunhas por si arroladas na fase de instrução administrativa, nem a justificação para essa não audição, determina, face ao disposto no artigo 120.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal, a nulidade da decisão (da autoridade administrativa).
Não anuímos a esse entendimento.
Expliquemos porquê.

Impõe-se desde logo deixar uma advertência, no sentido de que não se podem aplicar ao direito contraordenacional, tout court, as regras do direito penal, pois, como é sabido, o direito contraordenacional ou direito de mera ordenação social encontra-se no nosso ordenamento jurídico autonomizado em relação ao direito penal. O Decreto-Lei n.º 433/82, de 27-10, com as alterações sucessivamente introduzidas, regula tal ramo do direito e, especificamente em relação a contraordenações laborais e da segurança social, a Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro.
Não obstante, assinalam Oliveira Mendes e Santos Cabral (Notas ao Regime Geral das Contraordenações e Coimas, 3.ª Edição, Almedina, pág. 27), face às alterações operadas no Direito de mera ordenação social pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, as bases normativas deste regime e as soluções da Parte Geral do Código Penal acentuaram-se, «(…) recorrendo agora o legislador na maior parte dos casos à importação pura e simples das soluções do Direito Penal».
Tal aproximação ou “importação” verifica-se, designadamente, na vertente adjetiva, através de um reforço do garantismo.
Todavia, tal não pode significar que se desprezem por completo as regras existentes no Direito de mera ordenação social, maxime tendo presente a simplicidade da tramitação processual, seja na fase administrativa, seja, até, na fase de impugnação judicial.
Como tem assinalado o Tribunal Constitucional (vide, designadamente o acórdão n.º 336/2008, de 19-06-2008, disponível em www.tribunalconstitucional.pt), «[n]o plano infraconstitucional, à semelhança do que sucede em direito penal, o direito de mera ordenação social português também repudia a responsabilidade objectiva, pois, segundo o disposto no n.º 1, do artigo 1.º, do regime geral das contra-ordenações, aprovado pelo Decreto-lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (RGCO), na redacção do Decreto-lei n.º 244/95, “constitui contra-ordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima”.
Todavia, não obstante este ponto de contacto, existem, desde sempre, razões de ordem substancial que impõem a distinção entre crimes e contra-ordenações, entre as quais avulta a natureza do ilícito e da sanção (vide FIGUEIREDO DIAS, em “Temas Básicos da Doutrina Penal”, pág. 144-152, da ed. de 2001, da Coimbra Editora).
A diferente natureza do ilícito condiciona, desde logo, a eventual incidência dos princípios da culpa, da proporcionalidade e da sociabilidade.
É que “no caso dos crimes estamos perante condutas cujos elementos constitutivos, no seu conjunto, suportam imediatamente uma valoração – social, moral, cultural – na qual se contém já a valoração da ilicitude. No caso das contra-ordenações, pelo contrário, não se verifica uma correspondência imediata da conduta a uma valoração mais ampla daquele tipo; pelo que, se, não obstante ser assim, se verifica que o direito valora algumas destas condutas como ilícitas, tal só pode acontecer porque o substrato da valoração jurídica não é aqui constituído apenas pela conduta como tal, antes por esta acrescida de um elemento novo: a proibição legal.” (FIGUEIREDO DIAS, na ob. cit., pág. 146).
Não se trata aqui “de uma culpa, como a jurídico-penal, baseada numa censura ética, dirigida à pessoa do agente e à sua atitude interna, mas apenas de uma imputação do facto à responsabilidade social do seu autor; dito de outra forma, da adscrição social de uma responsabilidade que se reconhece exercer ainda uma função positiva e adjuvante das finali­dades admonitórias da coima” (FIGUEIREDO DIAS em “O movimento da descriminalização e o ilícito de mera ordenação social”, in “Jornadas de Direito Criminal: O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar”, I, pág. 331, da ed. de 1983, do Centro de Estudos Judiciários).
E por isso, se o direito das contra-ordenações não deixa de ser um direito sancionatório de carácter punitivo, a verdade é que a sua sanção típica “se diferencia, na sua essência e nas suas finalidades, da pena criminal, mesmo da pena de multa criminal (…) A coima não se liga, ao contrário da pena criminal, à personalidade do agente e à sua atitude interna (consequência da diferente natureza e da diferente função da culpa na responsabilidade pela contra-ordenação), antes serve como mera admoestação, como especial advertência ou reprimenda relacionada com a observância de certas proibições ou imposições legislativas; e o que esta circunstância representa em termos de medida concreta da sanção é da mais evidente importância. Deste ponto de vista se pode afirmar que as finalidades da coima são em larga medida estranhas a sentidos positivos de prevenção especial ou de (re)socialização.” (FIGUEIREDO DIAS, em “Temas Básicos da Doutrina Penal”, pág. 150-151, da ed. de 2001, da Coimbra Editora).
Daí que, em sede de direito de mera ordenação social, nunca há sanções privativas da liberdade. E mesmo o efeito da falta de pagamento da coima só pode ser a execução da soma devida, nos termos do artigo 89.º, do Decreto-lei n.º 433/82, e nunca a da sua conversão em prisão subsidiária, como normalmente sucede com a pena criminal de multa.
Por outro lado, para garantir a eficácia preventiva das coimas e a ordenação da vida económica em sectores em que as vantagens económicas proporcionadas aos agentes são elevadíssimas, o artigo 18.º, n.º 2, do Decreto-lei n.º 433/82 (na redacção dada pelo Decreto-lei n.º 244/95), permite que o limite máximo da coima seja elevado até ao montante do benefício económico retirado da infracção pelo agente, ainda que essa elevação não possa exceder um terço do limite máximo legalmente estabelecido, erigindo, assim, a compensação do benefício económico como fim específico das coimas.
Estas diferenças não são nada despiciendas e deverão obstar a qualquer tentação de exportação imponderada dos princípios constitucionais penais em matéria de penas criminais para a área do ilícito de mera ordenação social» (em idêntico sentido, quanto à não verificação do regime garantístico coincidente entre os procedimentos criminal e contra-ordenacional, vejam-se, entre outros, os acórdãos do mesmo tribunal n.º 659/2006 e n.º 487/2009).
Ora, a propósito da instrução do processo perante a ACT ou o ISS.I.P., mais concretamente do disposto no artigo 21.º da Lei n.º 107/2009 quanto à prova testemunhal, quando a decisão é objeto de impugnação, escreve João Soares Ribeiro (Contra-Ordenações Laborais, 2011 – 3.ª Edição, Almedina, pág. 52), que valendo a apresentação dos autos pelo Ministério Público ao juiz como acusação (artigo 37.º da mesma lei), «(…) isso significa que, em caso de impugnação da matéria de facto, a prova produzida não tem grande relevo, pelo que, na prática, a bem pouco se resumirá o interesse da norma aqui contida. É que na fase judicial, antes se aplicam as normas que constam da tramitação do recurso em processo penal (…)».
E logo a seguir remata: «A propósito das testemunhas, que são um dos principais meios de defesa do arguido, pode aqui referir-se que não há nenhuma consequência negativa para o facto de o arguido prescindir em absoluto da defesa na fase administrativa do processo. Mesmo que não tenha oferecido qualquer resposta à acusação que lhe foi feita, nem oferecido qualquer meio de prova, pode o arguido, apresentando impugnação judicial atempada, vir a fazer no tribunal a prova de que não cometeu a infracção em que foi condenado, sem que aquela sua atitude possa ter qualquer reflexo negativo na decisão judicial».
Do que se deixa referido, entende-se resultar à evidência que a falta de audição de testemunhas arrolada, jamais poderia ter a consequência que é assacada pela recorrente, de nulidade do processo administrativo.
Mas ainda para que assim se não entendesse, para que a omissão em causa (não realização da audição das testemunhas) pudesse configurar qualquer nulidade ou irregularidade da instrução levada a cabo pela autoridade administrativa era necessário que se reputasse essencial para a descoberta da verdade.
Ora, estando em causa a necessidade de comunicação obrigatória pela empregadora à segurança social da admissão de um trabalhador, a efetuar nas vinte e quatro horas anteriores ao início da produção de efeitos do contrato de trabalho (e não, como parece sustentar a recorrente, a partir da data em que o trabalhador se veio a apresentar pela primeira vez ao serviço), no sítio da internet da referida entidade pública (artigo 29.º, n.º 1 e 2 alínea a) do Código dos Regimes Contributivos do Sistema de Segurança Social – CRCSPSS), não se lobriga como possa substituir-se tal comunicação escrita por prova testemunhal, o que vale por dizer que a audição da testemunha não se revelava essencial à descoberta da verdade.
Tenha-se presente que exigindo a lei um documento para prova de um facto, não pode este ser substituído por outro meio de prova (artigo 364.º do Código Civil).
Por consequência, entende-se que a audição das testemunhas não apresentava relevância para a descoberta da verdade, pelo que, a verificar-se, redundava na prática de um ato inútil.

Saliente-se, a propósito, que a própria recorrente, com a conduta processual que assumiu nos autos, parece concluir pela irrelevância da audição das testemunhas.
Com efeito, de acordo com o disposto no artigo 32.º e segts. da referida Lei n.º 107/2009, a decisão da autoridade administrativa de aplicação de coima é suscetível de impugnação judicial, dirigida ao tribunal de trabalho competente, a quem compete conhecer da mesma.
O juiz decide do caso mediante audiência de julgamento ou através de simples despacho (n.º 1 do artigo 39.º da referida lei); o juiz decide por despacho quando não considere necessária a audiência de julgamento e o arguido ou o Ministério Público não se oponham, podendo então ordenar o arquivamento do processo, absolver o arguido ou manter ou alterar a condenação (n.ºs 2 e 3 do mesmo artigo).
Assim, do referido normativo legal decorre que o juiz só pode decidir por despacho se, cumulativamente: (i) considerar desnecessária a realização da audiência; (ii) o arguido e o Ministério Público se não opuserem à decisão do recurso por despacho.
Como parece medianamente aceite, os casos em que o juiz pode/deve decidir por despacho serão aqueles em que a decisão final não dependa da realização de diligências de prova, devendo, em caso contrário, ter lugar a realização da audiência.
Perante a notificação que decorre do disposto no artigo 39.º, n.º 2, da Lei n.º 107/2009, o recorrente e/ou o Ministério Público podem ter uma de três posições: (i) oposição à decisão por simples despacho; (ii) anuência à decisão por simples despacho; (iii) não expressarem qualquer posição.
Pois bem: no caso em apreço, através de requerimento que apresentou em 23-01-2021, a requerente informou expressamente a 1.ª instância que «(…) não se opõe a que a decisão a proferir nos presentes autos ocorra por despacho»; e tendo já anteriormente o Ministério Público declarado não se opor a que fosse proferida decisão por despacho, compreende-se e justifica-se que, em conformidade, a decisão tenha sido proferida por tal forma.
Aliás, no n.º 10 das conclusões da motivação de recurso a recorrente parece contrariar o que afirmou anteriormente nos autos – quanto à não oposição a que a decisão fosse proferida por despacho –, ao escrever: «Nos termos do artigo 121º nº1 alínea c) do CPP, ainda que ocorra nulidade, designadamente por falta de fundamentação pela autoridade administrativa da não realização de determinada diligência requerida pela arguida a mesma poderia considerar-se sanada em sede de impugnação judicial, caso os arguidos viessem a requerer a realização dessa mesma diligencia de prova e a mesma se viesse a realizar nessa fase judicial. Não foi o que aconteceu na medida em que na fase judicial o Mmo. Juiz a quo proferiu a decisão de que agora se recorre por despacho, e em face disso considera a ora recorrente que a decisão da autoridade administrativa ficou ferida de nulidade tornando assim o acto inválido e os que dele dependerem, tudo nos termos e para os efeitos do disposto no nº1 do artigo 122º do CPP.
Ora, se foi a própria recorrente que, na sequência da impugnação judicial, afirmou não se opor a que a decisão final fosse proferida por despacho, tal só pode significar que não considerava relevante a audição das testemunhas: por isso, afigura-se comportamento contraditório, venire contra factum proprium, que perante a decisão por despacho venha entretanto afirmar que se verifica a nulidade da decisão da autoridade administrativa por não ter sido sanada na fase judicial com a produção da prova testemunhal!

Nesta sequência, sem necessidade de mais considerandos e sem desdouro pela argumentação da recorrente, o recurso não pode proceder, pelo que deve confirmar-se a decisão recorrida.

IV. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso, e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas pela arguida/recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.
(Documento elaborado e integralmente revisto pelo relator).

Évora, 12 de setembro de 2024
João Luís Nunes (relator)
Mário Branco Coelho
Paula do Paço
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[1] Relator: João Luís Nunes; Adjuntos: (1) Mário Branco Coelho, (2) Paula do Paço.