ESTAFETA
AÇÃO DE RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE CONTRATO DE TRABALHO
PRESUNÇÃO DE CONTRATO DE TRABALHO
PRESUNÇÃO JURIS TANTUM
Sumário


I – O artigo 12.º-A, n.º 1, do Código do Trabalho, presume a existência de um contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital quando na relação entre o prestador de atividade e a plataforma digital se verifiquem, pelo menos, duas das características constantes das diversas alíneas.
II – Essa presunção é ilidível.
III – Mostra-se ilidida a presunção, não sendo de considerar a existência de um contrato de trabalho entre cada um dos prestadores da atividade/estafeta e a plataforma digital, no circunstancialismo fáctico em que se apura, no essencial, que:
(i) o estafeta pode aceitar, não responder, ou rejeitar o serviço proposto;
(ii) essa rejeição pode verificar-se mesmo após o estafeta já ter aceitado o serviço proposto, sem que tal afete o estatuto da sua conta na aplicação, a apresentação de futuros serviços e o preço de tais futuros serviços;
(iii) após a aceitação do serviço, os estafetas podem permitir ou não que a plataforma tenha acesso à sua localização, sem que isso tenha impacto na realização do serviço ou leve a alguma penalização;
(iv) são eles que, após a aceitação do serviço, escolhem o meio de transporte utlizado, definem o percurso a seguir, podendo desligar a geolocalização do telemóvel;
(v) os estafetas, uma vez por dia, podem alterar um multiplicar que permite aumentar o valor total recebido por cada serviço;
(vi) os estafetas escolhem os dias e horas que pretendem ligar-se à aplicação da ré;
(vii) os estafetas podem subcontratar outro prestador de serviços de entrega.
(Sumário elaborado pelo relator)

Texto Integral


Proc. n.º 3842/23.5T8PTM.E1

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]:

I. Relatório
O Ministério Público intentou, no Juízo do Trabalho de Portimão - Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., ao abrigo do disposto no artigo 12.º-A do Código do Trabalho, artigos 2.º, n.º 3 e 15.º-A, da Lei n.º 107/2009, de 14-09, e artigos 186.º-K a 186.º-R, estes do Código de Processo do Trabalho, ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho contra Glovoapp Portugal Unipessoal, Lda., pedindo, a final, que seja reconhecida a existência de um contrato de trabalho firmado entre o trabalhador AA e a ré, com início em 20 de setembro de 2023, por tempo indeterminado.

Alegou, para o efeito e no essencial, que no exercício da sua atividade profissional, a ré gere a aplicação informática digital “...” e que o referido AA realiza, mediante pagamento, entrega de refeições e outros produtos, na área de Portimão, conforme pedidos/tarefas que são distribuídas através da “Plataforma Glovo”.
Acrescentou que pese embora a atividade de estafeta prestada por AA seja “aparentemente autónoma”, a mesma tem as caraterísticas de contrato de trabalho – como sejam (a) o facto da retribuição do trabalho ser fixada pela plataforma Glovo, que determina os limites máximos e mínimos, (b) a plataforma determinar as regras específicas quanto à prestação do trabalho, (c) a plataforma controlar e supervisionar a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão de algorítmica (d) e ainda exercer o poder disciplinar sobre o prestador da atividade mediante a exclusão de futuras atividades na plataforma através da desativação da conta –, e daí que deva ser reconhecida e como tal declarada, com início em 20 de setembro de 2023 e por tempo indeterminado.

A ré contestou a ação, a pugnar, no que ora releva, pela sua improcedência.
Para tanto sustentou, no essencial, que não explora uma plataforma de organização do trabalho, mas sim uma plataforma de intermediação tecnológica, que ainda que na relação que mantém com o “prestador de atividade se possa” verificar algum(ns) indício(s) de presunção de laboralidade consignado(s) nos artigo 12.º-A do Código do Trabalho, a presunção mostra-se ilidida, uma vez que o prestador de atividade pode ligar-se ou desligar-se livremente à plataforma, rejeitar um serviço, prestar serviço para concorrentes e até fazer-se substituir por outra pessoa contratada para o efeito.

Entretanto, por despacho de 8-02-2024 foi determinada a apensação dos seguintes processos que pendiam no mesmo juízo e que tinham o mesmo pedido e causa de pedir, idênticos fundamentos de contestação, sendo apenas diversos os “prestadores de atividade” e a data em que iniciaram a atividade para a ré:
1. Proc. n.º 3845/23.0T8PTM (apenso A), que tem como prestador de atividade BB, com início em 1 de agosto de 2023;
2. Proc. n.º 3849/23.2T8PTM (apenso B), que tem como prestador de atividade CC, com início em 1 de maio de 2023;
3. Proc. n.º 3846/23.8T8PTM (apenso C), que tem como prestador de atividade DD, com início em 12 de setembro de 2023;
4. Proc. n.º 3856/23.5T8PTM (apenso D), que tem como prestador de atividade EE, com início em 1 de maio de 2023;
5. Proc. n.º 3861/23.1T8PTM (apenso E), que tem como prestador de atividade FF, com início em 28 de agosto de 2023;
6. Proc. n.º 3864/23.6T8PTM (apenso F), que tem como prestador de atividade GG, com início em 1 de abril de 2023;
7. Proc. n.º 3869/23.7T8PTM (apenso G), que tem como prestador de atividade HH, com início em 1 de outubro de 2023;
8. Proc. n.º 3873/23.5T8PTM (apenso H), que tem como prestador de atividade EE, com início em 1 de maio de 2023;
9. Proc. n.º 3882/23.4T8PTM (apenso I), que tem como prestador de atividade II, com início em 1 de maio de 2023;
10. Proc. n.º 3889/23.1T8PTM (apenso J), que tem como prestador de atividade JJ, com início em 4 de março de 2023;
11. Proc. n.º 3890/23.5T8PTM (apenso K), que tem como prestador de atividade KK, com início em 1 de maio de 2023;
12. Proc. n.º 3964/23.2T8PTM (apenso L), que tem como prestador de atividade LL, com início em 1 de maio de 2023;
13. Proc. n.º 3968/23.5T8PTM (apenso M), que tem como prestador de atividade MM, com início em 17 de agosto de 2023;
14. Proc. n.º 4008/23.0T8PTM (apenso N), que tem como prestador de atividade NN, com início em 22 de maio de 2023;
15. Proc. n.º 3960/23.0T8PTM (apenso O), que tem como prestador de atividade OO, com início em 3 de julho de 2023;
16. Proc. n.º 3876/23.0T8PTM (apenso P), que tem como prestador de atividade PP, com início em 1 de maio de 2023;
17. Proc. n.º 3853/23.0T8PTM (apenso Q), que tem como prestador de atividade QQ, com início em 1 de julho de 2023;
18. Proc. n.º 3862/23.0T8PTM (apenso R), que tem como prestador de atividade RR, com início em 1 de maio de 2023;
19. Proc. n.º 3867/23.0T8PTM (apenso S), que tem como prestador de atividade SS, com início em 1 de maio de 2023;
20. Proc. n.º 3872/23.7T8PTM (apenso T), que tem como prestador de atividade TT, com início em setembro de 2023;
21. Proc. n.º 3894/23.8T8PTM (apenso U), que tem como prestador de atividade UU, com início em 3 de julho de 2023;
22. Proc. n.º 3892/23.1T8PTM (apenso V), que tem como prestador de atividade EE, com início em outubro de 2023;
23. Proc. n.º 3962/23.6T8PTM (apenso W), que tem como prestador de atividade VV, com início em junho de 2023;
24. Proc. n.º 3852/23.2T8PTM (apenso X), que tem como prestador de atividade WW, com início em 1 de maio de 2023;
25. Proc. n.º 3844/23.1T8PTM (apenso Y), que tem como prestador de atividade XX, com início em 1 de maio de 2023;
26. Proc. n.º 3843/23.3T8PTM (apenso Z), que tem como prestador de atividade YY, com início em 17 de junho de 2023.

Os autos prosseguiram os trâmites legais, tendo-se procedido à audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença, cuja parte decisória é do seguinte teor:
«Nestes termos e por tudo o exposto, decide-se julgar os pedidos improcedentes e, em consequência, absolve-se a ré “Glovoapp Portugal Unipessoal, Lda.” (…) dos pedidos deduzidos pelo Ministério Público neste processo principal e todos os seus apensos (A a Z)».

Inconformado com o assim decidido, o Ministério Público interpôs recurso para este tribunal, tendo nas alegações apresentadas formulado as seguintes conclusões:
«1. A sentença proferida nestes autos, que abrange a relação entre 27 estafetas e a Ré Glovo, decidiu que, nos casos em que a relação contratual entre os estafetas/prestadores de atividade e a Ré Glovo se iniciou antes de 01.05.2023 não seria aplicável o regime decorrente do art. 12.º-A do Código do Trabalho (na redação dada pela Lei n.º 13/2023, de 03/04), mas apenas o regime decorrente do art. 12.º do Código do Trabalho.
2. Estão abrangidos nessa situação os seguintes estafetas:
- RR, NIF ...97 (apenso R), que iniciou umarelação contratual com a ré em Agosto de 2020;
- KK, NIF ...15 (apenso K), que iniciou uma relação contratual com a ré em 12/10/2021;
- PP, NIF ...17 (apenso P), que iniciou uma relação contratual com a ré em 10/12/2021;
- II, NIF ...76 (apenso I), que iniciou uma relação contratual com a ré em 06/06/2022;
- SS, NIF ...36 (apenso S), que iniciou uma relação contratual com a ré em 06/06/2022; e
- CC, NIF ...30 (apenso B), que iniciou uma relação contratual com a ré em 02/11/2022.
3. Decidiu a sentença recorrida, em face das regras da aplicação da lei no tempo e do estipulado no art. 12.º do C.T., não reconhecer a existência de contratos de trabalho entre esses prestadores de atividade e a Ré - o Ministério Público concorda com essa parte da decisão, a qual não é, por isso mesmo, objeto de impugnação.
4. O Ministério Público não concorda, porém, quanto ao decidido na sentença relativamente aos demais prestadores de atividade/”estafetas”, que iniciaram a sua atividade para a Ré Glovo já depois da entrada em vigor da norma prevista no art. 12.º-A do C.T. (ou seja, depois de 01.05.2023). É dessa parte da sentença que se recorre.
5. Desse modo, importa verificar se resulta dos factos provados a verificação de algumas das características referidas nas alíneas do n.º 1, do referido artigo 12.º-A do Código do Trabalho.
6. Nos termos do art. 12.º-A, n.º 1, al. a), do C.T., cumpre averiguar se “A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela”.
7. De acordo com a sentença recorrida, “a retribuição por cada serviço não é fixado unilateralmente pela ré, antes é proposto por esta ao estafeta antes de o mesmo aceitar ou não o serviço (e este pode, mesmo, rejeitar o serviço depois de o ter aceite – cf. ponto 33 dos factos provados). Por outras palavras, dificilmente se poderá falar de uma fixação da retribuição (como aconteceria se o pagamento do serviço fosse apresentado depois de ele ser realizado ou se o estafeta não pudesse recusar a sua realização com a inerente imposição do seu pagamento).
Podendo o estafeta recusar o serviço (incluindo pelo motivo de não concordar com o preço proposto) já se está no domínio da possibilidade de uma negociação e, portanto, não se prova que a ré fixa a retribuição.”
8. Discordamos. Conforme resulta dos factos provados, é a plataforma Glovo que, unilateralmente, fixa a retribuição e, além disso, estabelece também um limite mínimo e um limite máximo para o prestador de atividade/estafeta por cada serviço prestado. O estafeta pode, é verdade, recusar o serviço, mas isso não traduz qualquer possibilidade de negociação da sua parte - contrariamente ao que se lê na sentença, rejeitar o serviço não é, em parte alguma, sinónimo de negociar o preço do mesmo. Se os estafetas aderiram à plataforma para exerceram as funções respetivas, naturalmente não o fizeram para rejeitarem os pedidos por ela submetidos – só o fazem se, v.g., o local de recolha ou o local de entrega se situarem bastante longe do local onde se encontrem.
9. Ademais, os “estafetas” podem alterar o chamado multiplicador – por forma a modificarem o limite mínimo do valor de cada serviço. Mas se o fizerem, conforme constitui regra de mercado, poucos ou nenhuns pedidos receberão. E mesmo nesse caso, o “limite mínimo” de cada serviço não deixa de ser fixado unilateralmente pela plataforma – os estafetas apenas lograrão “subir” esse limite mínimo, sem que consigam proceder, inversamente, à redução desse montante (“mínimo”) já previamente determinado pela plataforma.
10. Constitui por isso uma falácia afirmar que não é a plataforma que fixa o valor da retribuição, uma vez que – face à matéria de facto provada (vide Pontos 27., 32., 35., e 39.) – esta se encontra, na sua totalidade, dependente do seu critério unilateral.
11. Pelo exposto, deve considerar-se preenchida a característica de contrato de trabalho prevista no art. 12.º-A, n.º 1, al. a), do Código do Trabalho.
12. Nos termos do art. 12.º-A, n.º 1, al. b): “A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade”.
13. De acordo com a sentença recorrida, “existem regras para que os estafetas iniciem o seu relacionamento com a ré, como a forma de inscrição na plataforma (pontos 14 e 15 dos factos provados) mas nessa fase não se pode falar em qualquer prestação de actividade, pelo que tais regras não têm a virtualidade de fazer funcionar a presunção.
Por outro lado, resultou provado que as únicas regras (reconhecimento facial e ligação à geolocalização) existem para acesso à aplicação por forma a estarem prontos a receber pedidos de recolhas (pontos 17 a 19 dos factos provados), pois a partir daí, ou seja, quando prestam a sua actividade, podem desligar a aplicação (ver ponto 30dos factos provados), pelo que não há qualquer controlo por parte da ré na forma como os estafetas se apresentam ou como prestam a sua actividade (ver, também, o ponto 44 dos factos provados).
Ainda que existissem regras, estabeleceu o legislador que exista necessariamente uma direcção por parte da plataforma, pelo que falhando a prova da direcção (ou controlo) por parte da ré não pode funcionar, no caso concreto, esta característica como base para a presunção.”
14. A nosso ver, basta uma leitura dos factos provados (vide Pontos 2. a 7., 10., 14. a 21., 24. a 33., 35., 39., 44. e 47. dos factos provados), para concluir que a Ré Glovo, além de estipular as regras (rectius, todas as regras) para acesso/inscrição na plataforma por parte dos “estafetas” – fase que não se pode excluir de todo o processo de prestação da atividade, conforme erradamente faz a sentença recorrida –, igualmente dirige, estipula, concretiza e define a forma como toda a atividade deve ser por eles prestada.
15. Citando a sentença proferida no âmbito do processo n.º 1980/23.3T8CTB, do Juízo do Trabalho ..., em ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho movida contra a plataforma digital “UberEats”, a qual tem aqui igual aplicação, “O procedimento de entrega da UBER encontra-se perfeitamente padronizado e decorrerá da mesma forma, independentemente do local onde é prestado e da pessoa concreta do estafeta, que se limitará a seguir todo um esquema previamente definido pela ré, que assim, segundo se entende, determina as regras especificas quanto à prestação da atividade por parte do estafeta mostrando-se nessa medida também verificado o indicio previsto no artigo 12º-A, nº 2, al. b) do Código do Trabalho.”
16. Já quanto à alínea e) do art.12.º-A, n.º1,doCódigo de Trabalho, é a própria sentença do Tribunal “a quo” que reconhece estar preenchida esta característica de contrato de trabalho. Efetivamente, aí se lê que: “Neste ponto, perante os factos provados (ver ponto 42 dos factos provados) verifica-se o preenchimento desta característica: a ré pode desactivar a conta de um estafeta “a seu critério exclusivo”.
17. Por fim, diz-se na alínea f) do art. 12.º-A, n.º 1, do Código de Trabalho, que “Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação”.
18. O Mmo. Juiz “a quo”, para afastar a aplicação desta alínea, justificou do seguinte modo: “Como acima se disse, não se provou que os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam à ré (ver ponto 50 dos factos provados). Os veículos e as mochilas isotérmicas são os essenciais para realizar tal tarefa e pertencem aos estafetas; a aplicação – programa informático – depois de instalada no telemóvel do estafeta, apesar de desenvolvida pela ré e a esta caber o direito de autoria ou de produção da mesma, não se pode dizer que seja um instrumento ou equipamento para estes efeitos – ou seja, um elemento físico –, como será o telemóvel (e este também pertence aos estafetas).
19. A nosso ver, a verdade é que o principal “instrumento de trabalho” (a aplicação informática GlovoApp) é da exclusiva propriedade da Ré, conforme resulta dos factos provados, sendo que, sem ela, seria impossível a prestação da atividade em análise.
20. Socorrendo-me de novo da fundamentação expressa na mencionada sentença do Juízo do Trabalho ..., “se os estafetas em questão pretendessem ser verdadeiramente autónomos e não utilizassem a marca de que a ré é titular, estariam condenados ao fracasso, já que o êxito deste tipo de plataformas deve-se à publicidade que elas fazem nas redes sociais e nos motores de busca, sendo estes os sites que os clientes procuram quando querem o tipo de produtos que a plataforma anuncia. Assim para o desenvolvimento da atividade, os meios que o trabalhador usa e de que é proprietário, o veículo ou o telemóvel, têm um valor escasso quando comparado com a plataforma ou com o valor da marca no mercado, que são da titularidade de ré.”
21. Aqui chegados, não podemos deixar de aludir à conclusão expressa por João Leal Amado (ob. cit. pág. 89) de que “ao olhar para um qualquer estafeta, daqueles que percorrem velozmente as ruas nas suas motos (ou, mais lentamente, pedalando nas suas bicicletas), creio que nenhum de nós se convence, seriamente, de que ali vai um empresário - seja um microempresário, um motoempresário ou um cicloempresário… Não (…) Ali vai, motorizado ou pedalando, um trabalhador dependente, um trabalhador do século XXI, diferente, decerto, dos seus pais, avós ou bisavós, mas, afinal, ainda um trabalhador dependente um subordinado de novo tipo, com contornos distintos dos tradicionais, mas, em última instância, ainda dependente e subordinado na forma como desenvolve a sua atividade”.
22. Nestes termos, concluindo-se pela verificação das presunções enunciadas nas alíneas a), b), e) e f) do art. 12.º-A do Código do Trabalho, deverá a douta sentença ser revogada e substituída por outra que condene a Ré no reconhecimento dos contratos de trabalho relativamente aos seguintes trabalhadores e por referência às datas assinaladas:
- AA, NIF ...22 (processo principal), desde 06/09/2023; - BB, NIF ...04 (apenso A), desde 30/08/2023;
- DD, NIF ...46 (apenso C), desde 12/09/2023; - ZZ, NIF ...50 (apenso D), desde 29/08/2023;
- FF, NIF ...53 (apenso E), desde 29/08/2023; - GG, NIF ...60 (apenso F), desde 04/07/2023;
- HH, NIF ...83 (apenso G), desde 18/07/2023; - AAA, NIF ...79 (apenso H), desde 18/07/2023;
- JJ, NIF ...72 (apenso J), desde 11/07/2023;
- LL, NIF ...50 (apenso L), desde 27/09/2023; - MM, NIF ...88 (apenso M), desde 20/09/2023;
- NN, NIF ...77 (apenso N), desde 22/05/2023; - OO, NIF ...90 (apenso O), desde 20/09/2023;
- QQ, NIF ...40 (apenso Q), desde 30/06/2023; - TT, NIF ...57 (apenso T), desde 25/08/2023;
- UU, NIF ...57 (apenso U), desde 03/07/2023; - BBB, NIF ...93 (apenso V), desde 12/09/2023;
- VV, NIF ...57 (apenso W), desde 20/09/2023 - WW, NIF ...47 (apenso X), desde 15/06/2023;
- XX, NIF ...05 (apenso Y), desde 28/06/2023;
- YY, NIF ...80 (apenso Z), desde 30/06/2023».

Contra-alegou a ré, a pugnar pela improcedência do recurso, que concluiu com as (muito extensas) conclusões, que se transcrevem (sem notas de rodapé):
«A. O Autor concorda e aceita que a relação contratual dos estafetas/prestadores de atividade e a Ré iniciada antes de 01.05.2023 (que totalizam 6 estafetas), não é passível de se reconduzir nem qualificar como contrato de trabalho, porquanto não cabe na noção do artigo 11.º do Código do Trabalho e porque não se verificam quaisquer características que pudessem ativar a presunção prevista no artigo 12.º do Código de Trabalho.
B. Sucede que a forma como a atividade é desenvolvida por uns (os que se registaram antes de 01.05.2023) e outros estafetas (os que se registaram após 01.05.2023), independentemente da data em que iniciaram a utilização da aplicação gerida pela Ré, é a mesma, pelo que se nuns casos considera inexistir contrato de trabalho, nos outros também não!
C. Contudo, mesmo que, por mera hipótese teórica se considerasse estarem preenchidos dois ou mais indícios de entre os previstos no artigo 12.º-A do Código do Trabalho, o que não se concede e por mero dever de patrocínio se teoriza, a presunção daí decorrente é iuris tantum (artigo 350.º do Código Civil), ou seja, ilidível.
D. Da matéria de facto provada resulta demonstrado que a Ré ilidiu a presunção da existência de contrato de trabalho, porquanto resultou provado que um estafeta que se registe na aplicação tecnológica gerida pela Ré tem liberdade para:
a. Definir onde, quando e por quanto tempo, pretende ligar-se à aplicação tecnológica da Ré;
b. Quando decidir estar ligado à aplicação e colocar-se disponível para receber propostas de pedidos, decidir se aceita ou se rejeita pedidos de entrega solicitados por utilizadores clientes registados na plataforma da Ré, sendo que pode rejeitar todos e quaisquer pedidos que lhe sejam oferecidos e se rejeitar não tem qualquer penalização;
c. Escolher a área em que presta serviços de estafeta;
d. Escolher a roupa que usa e executar o serviço da forma que entende;
e. Escolher a forma como pretende realizar a atividade de estafeta;
f. Escolher o itinerário para a realização do serviço;
g. Escolher os instrumentos utilizados na sua atividade, que são da sua propriedade, mantidos e escolhidos por si;
h. Definir o preço e os rendimentos que pretende auferir pelos serviços a prestar, não apenas pelo multiplicador que escolhe, mas também pelo facto de poder rejeitar ou aceitar os serviços que não pretende ou pretende realizar;
i. Subcontratar terceiros para utilizar a sua conta registada na Ré;
j. Prestar atividade de estafeta ou qualquer outra para terceiros.
E. Ao contrário do que é sugerido pelo Autor:
a. A Ré não estabelece limites mínimos nem máximos para os rendimentos que o estafeta poderá receber, sendo que os rendimentos do estafeta dependem do número de serviços que pretenda aceitar e, para além disso, pode o estafeta determinar um multiplicador que pretende aplicar ao preço do serviço e, independentemente disso, decidir se aceita ou rejeita o preço do serviço, sem qualquer penalização;
b. A Ré não exerce poder de direção sobre o estafeta quanto à forma de apresentação, à sua conduta perante um utilizador cliente ou à prestação de atividade;
c. A Ré não controla nem supervisiona a atividade do estafeta;
d. A Ré não determina percursos ou itinerários que o estafeta deva fazer na execução dos seus serviços nem faz qualquer controlo por geolocalização;
e. A Ré não avalia a atividade do estafeta;
f. A Ré não aplica sanções nem penalizações ao utilizador estafeta.
F. O ora exposto é suficiente para se concluir que inexiste aquilo que verdadeiramente caracteriza o contrato de trabalho: inexiste a subordinação jurídica dos estafetas à Ré e o que se comprova é que a atividade dos estafetas não é feita no âmbito de organização nem sob a autoridade da Ré.
G. Ora, é de acordo com o supra exposto que se deverá confirmar o teor da douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, cuja decisão final não merece reparo, concluindo-se, à semelhança do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.10.2015, que resultou provado que o estafeta, na execução da atividade que lhes é permitido executar com a utilização da aplicação gerida pela Ré:
a. É livre de escolher quais os serviços que pretende realizar ou não, não sofrendo qualquer represália ou penalização;
b. Gerir, a seu exclusivo critério, o tempo por si despendido no desempenho, os dias de atividade, bem como por quanto tempo pretende exercer serviços de estafeta utilizando a aplicação gerida pela Ré;
c. Utiliza o seu veículo próprio, telemóvel e mochila térmica;
d. Recebe por serviço executado e não por disponibilidade de tempo ou meios, inexistindo quaisquer limites mínimos e máximos para a faturação dos serviços, inexistindo qualquer remuneração periódica.
H. A Ré desconhece o teor da referida sentença proferida pelo Tribunal de Castelo Branco em que é Ré “UberEats”, que não se encontra junta aos autos, pelo que vai impugnado todo o seu teor, bem como os efeitos que o Autor dele pretende retirar.
I. Por seu turno, a Ré foi absolvida na ação de reconhecimento e existência de contrato de trabalho n.º 4116/23.7T8VFR, proferida no dia 13.05.2024, que correu termos no Juízo do Trabalho de Santa Maria da Feira, Juiz ..., numa ação semelhante à dos presentes autos.
J. A junção desta sentença, ao contrário da citada pelo Autor, é pertinente e muito relevante, devido ao facto de os casos destes autos serem similares ao também decidido pelo Juízo do Trabalho de Santa Maria da Feira, que concluiu da seguinte forma:
“Reiteramos, pois, que analisada a relação contratual estabelecida entre a Ré “GLOVOAPP” e a estafeta CCC, os factos que resultaram provados apontam no sentido contrário ao estabelecimento de uma presunção de laboralidade, sobretudo tendo em conta a ausência de exclusividade, a possibilidade de o estafeta escolher e definir o seu horário de trabalho e o local onde presta atividade, bem como de recusar qualquer serviço proposto e sem qualquer consequência, a circunstância de o risco de perda das coisas transportadas correr por conta do estafeta, e sobretudo a possibilidade de poder subcontratar a sua conta, designando outra pessoa para sua substituição no exercício da atividade, demonstrativo de que o que interessa à Ré não é a atividade em si mesma, elemento inerente a um contrato de trabalho que é celebrado intuitu personae, mas antes o resultado da sua atividade, característica do contrato de prestação de serviço.
Deste modo, a Ré logrou demonstrar que a estafeta CCC trabalha com efetiva autonomia, sem estar sujeita a qualquer poder de direção ou poder disciplinar por parte da Ré “GLOVOAPP” (cfr. artigo 12º-A, n.º 4 do Código de Trabalho).
Em conclusão, entendemos não estarem presentes na relação trazida a juízo pelo Ministério Público as características essenciais do contrato de trabalho, não se tendo demonstrado a existência de uma subordinação jurídica em relação à Ré.
Assim, deverá a ação aqui em apreço ser julgada totalmente improcedente, absolvendo se a Ré do pedido contra si deduzido”, conforme documento n.º 1 junto.
K. A aplicação gerida pela Ré não “fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela”.
L. Desde logo, o trabalho não é efetuado na plataforma, sendo que a atividade de estafeta é efetuada, genericamente, “na rua”, consistindo no transporte de um determinado bem entre o ponto “a” e o ponto “b”.
M. Posto isto, com relevância para a análise da característica constante da alínea a) do n.º 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho, resultou da matéria de facto provada da sentença o seguinte:
“22. Pelo menos a partir de Maio de 2023, o utilizador-estafeta pode aceitar, não responder ou rejeitar o serviço proposto que, por sua vez, pode ter sido anteriormente rejeitado por outros utilizadores-estafeta”.
“23. Após aceitar um serviço o utilizador-estafeta pode ainda rejeitá-lo”.
“26. A aplicação apresenta aos referidos estafetas aquando da oferta de um serviço o preço do serviço, o mapa com os pontos de recolha e entrega assinalados e a rua da morada do ponto de recolha, sem o número de porta.
27. Quando os estafetas pretendem aceitar o serviço, após aceitação do serviço na aplicação, esta apresenta ao estafeta o preço do serviço, um mapa com os pontos de recolha (morada do parceiro) e entrega (morada do utilizador-cliente) assinalados, o nome e morada do parceiro (ponto de recolha), informações de contacto no parceiro (quando existam), estimativa do tempo de espera no parceiro, o nome e morada do utilizador-cliente (ponto de entrega), a distância estimada, os detalhes do pagamento, a lista de artigos do pedido e valor do mesmo.
28. Os estafetas escolhem o itinerário que vão utilizar para a realização do serviço, tanto desde o ponto onde efectuaram a aceitação do serviço até ao ponto de recolha, como desde o ponto de recolha até ao ponto de entrega, pois a aplicação da ré exibe um mapa com ambos os pontos assinalados e a morada de cada ponto, sem apresentar qualquer itinerário ou rota proposta.”
“33. Os estafetas podem aceitar ou recusar qualquer serviço através da aplicação, mesmo depois de terem inicialmente aceitado esse serviço, sem que tal afete o estatuto da sua conta na aplicação, a apresentação de futuros serviços e o preço de tais serviços futuros.
34. Quando os estafetas rejeitam o serviço proposto, após a rejeição desse serviço na aplicação é apresentada uma interface de confirmação da rejeição para evitar rejeições acidentais, não havendo qualquer penalização pela rejeição de serviços propostos.
35. O preço base do serviço que é apresentado aos estafetas é calculado pela plataforma de acordo com um valor base, compensação pela distância e compensação pelo tempo de espera consumido na realização desse serviço; sobre o preço base podem incidir promoções da aplicação.
36. Os estafetas podem seleccionar e alterar um “multiplicador”, uma vez por dia, para valores iguais ou superiores a 1.0, o que permite aumentar o valor total recebido por cada serviço.
37. Adicionalmente, os estafetas podem receber gratificações dos clientes.
38. Os estafetas são remunerados por cada serviço e depois de os terem realizado, independentemente do tempo que tenham estado previamente online na aplicação, nem recebem qualquer valor pela espera entre a conclusão de uma entrega e a aceitação de novo pedido”.
N. No caso concreto, o utilizador estafeta recebe um preço se decidir aceitar efetuar e concluir a entrega de um determinado bem do ponto “A” ao ponto “B” a pedido de um utilizador cliente.
O. O utilizador estafeta não recebe qualquer contrapartida pelo tempo que se encontra ligado à aplicação da Ré.
P. Aliás, pode estar ligado 24h sobre 24 horas, e se rejeitar todos os pedidos que lhe sejam propostos a pedido do utilizador cliente, não irá receber qualquer montante.
Q. Em suma, o utilizador estafeta é pago pelas entregas que conclui, ou seja, pela conclusão de uma determinada tarefa, individualmente considerada.
R. Logo, o oposto do conceito de retribuição devido a um trabalhador pela obrigação de prestar trabalho!
S. Ao contrário do que é alegado pelo Autor, resulta da prova documental junta pela Ré no dia 20.03.2024, conforme requerimento com a referência citius n.º 48365378, que os estafetas rejeitam imediatamente ou rejeitam após aceitarem num primeiro momento a execução de um determinado serviço. Os estafetas não justificam à Ré, nem têm que fazê-lo, as razões pelas quais rejeitam os pedidos.
T. Os estafetas é que definem, a seu exclusivo critério, se lhes interessa aceitar realizar serviços de entregas mais longas ou mais curtas, se lhes interessa ir para determinada área ou permanecer noutra, etc..
U. Conforme resulta do facto provado n.º 35., “O preço base do serviço que é apresentado aos estafetas é calculado pela plataforma de acordo com um valor base, compensação pela distância e compensação pelo tempo de espera consumido na realização desse serviço; sobre o preço base podem incidir promoções da aplicação”.
V. A alegação que a plataforma fixa a retribuição e define os limites mínimos e máximos, são dois termos incompatíveis entre si. Se a retribuição é fixa, não existem limites mínimos nem máximos e vice-versa. Ou seja, o preço pelo serviço de entrega de uma mercadoria seria sempre o mesmo, independentemente da distância, da hora e do multiplicador.
W. O preço desses serviços é variável, pois dependerá, nomeadamente, da distância que o estafeta tenha que percorrer entre o ponto “A” e o ponto “B”, da hora em que esses pedidos pelos utilizadores ocorrem, mas, também, de um fator de multiplicação que cabe ao estafeta, e a mais ninguém, escolher.
X. É totalmente falso que a escolha dos diferentes multiplicadores tenha qualquer influência no número global de serviços que é proposto aos estafetas. Este facto depende, exclusivamente da oferta e procura verificada a cada momento.
Y. Mais, uma componente importante da retribuição, totalmente alheio à Ré, é a gratificação/gorjeta do utilizador cliente, aspeto esse omitido nas alegações de recurso, livremente atribuída pelo utilizador cliente.
Z. Tendo conhecimento do valor sugerido para cada pedido, o prestador da atividade tem a liberdade de aceitar ou de recusar o pedido.
AA. Assim, é o prestador da atividade que, dispondo de liberdade quanto à realização da sua atividade, determina o número de serviços e também as plataformas para que desejasse trabalhar, podendo, assim, conformar livremente o montante global da sua remuneração, cfr. resulta do documento n.º 1 junto, pelo que não se pode considerar preenchida a característica prevista no artigo 12.º-A, n.º 1, alínea a) do Código do Trabalho.
BB. O Autor alega que é a Ré que “define e dirige a forma como os estafetas prestam a sua atividade, desde o momento da inscrição na plataforma até ao exercício concreto da prestação da atividade…”, sendo que a matéria de facto considerada provada na sentença transcrita pelo Autor infirma a sua própria conclusão.
CC. A este respeito, em conformidade com a sentença do Tribunal a quo, a sentença do Juízo do Trabalho de Santa Maria da Feira refere:
“Quanto a aferir se a plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade, também entendemos que não resultou provada factualidade que se subsuma a tal presunção.
Com efeito, provou-se que, para iniciar a sua atividade, os estafetas, e em concreto CCC, têm que se registar na plataforma e remeter documentos pessoais, bem como identificar o veículo com o qual efetuam entregas, e posteriormente descarregar a aplicação no seu telemóvel. É também obrigatório possuir uma mochila isotérmica para o transporte de refeições. Porém, neste caso estão em causa requisitos prévios ao início da atividade, não podendo ainda falar-se de regras específicas conformadoras dessa atividade. Acresce que a mochila isotérmica é mesmo um requisito obrigatório de segurança alimentar, sendo certo que resultou provado que a Ré não exige que a mesma tenha o seu logotipo.
Quanto ao mais, não se provou que a Ré determine regras específicas quanto à forma de apresentação de CCC, ou que esta tenha sido advertida de que tem de tratar os clientes finais com regras de boa educação, que não pode ser mal educado com eles, sob pena de ter avaliações negativas dos mesmos e, até, no caso de uso de linguagem ou atitudes abusivas, ser temporária ou permanentemente impedida de prestar atividade” (negrito e sublinhado nosso)
DD. Os contratos de prestação de serviços exigem que o prestador da atividade alcance o resultado acordado nos termos acordados.
EE. Num contrato de trabalho, o trabalhador é contratado devido às suas capacidades para executar as suas funções, estando vinculado a deveres gerais de obediência a superiores hierárquicos, a executar as suas funções com zelo e diligência e a promover atos tendentes à melhoria da produtividade, tendo uma vertente marcadamente intuito personae.
FF. Os contratos de trabalho obrigam o trabalhador a prestar atividade independentemente dos respetivos resultados, sendo amplamente aceite que o risco do resultado é assumido exclusivamente pelo empregador.
GG. Desta forma, os contratos de trabalho constituem o trabalhador na obrigação de estar disponível para executar o trabalho, mas não para alcançar determinados resultados – uma obrigação de meios.
HH. Ora, no caso de um estafeta inscrito na aplicação da Ré, este não tem qualquer obrigação de estar disponível.
II. Para além disso, quando aceita realizar um serviço, sendo que não é obrigado a fazê-lo, está obrigado a um resultado, isto é, transportar um bem de um ponto “A” ao ponto “B”, sendo irrelevante para o utilizador cliente, as características, capacidades ou experiência prévia da pessoa para executar esses serviços.
JJ. O risco do resultado, isto é, entregar um bem no ponto “B”, recai, exclusivamente, sobre o utilizador-estafeta43, contrariamente ao que acontece num contrato de trabalho.
KK. Os utilizadores estafetas são totalmente livres de se substituírem, pelo tempo e quando entenderem.
LL. Neste contexto, a Ré não exige que os estafetas estejam disponíveis durante uma determinada hora do dia, que estejam ligados à aplicação, que cumpram um determinado número de entregas ou que prestem serviços durante um determinado número de horas, isso cabe exclusivamente ao estafeta decidir.
MM. A Ré não organiza a atividade dos estafetas, pois nem sequer sabe, de antemão, quem é que vai estar ou não disposto a realizar serviços.
NN. Os prestadores de atividade são livres de determinar como, onde e quando exercem a sua atividade. Tal é incompatível com a configuração da relação estabelecida entre a Ré e os prestadores de atividade como tendo por base um contrato de trabalho.
OO. O registo na aplicação da Ré pelos estafetas é feito proativa e livremente por aqueles, que decidem, motu proprio, aceder ao site da Ré e inscrever-se como utilizador-estafeta, para poder receber propostas de serviços de estafeta através da aplicação.
PP. Foram os prestadores de atividade que escolheram exercer serviços de estafeta na zona de Portimão e Albufeira, não foi a Ré, sendo livres de alterar a zona que inicialmente escolheram.
QQ. O estafeta é livre de escolher e utilizar o veículo que entender na sua atividade de estafeta, sendo certo que a Ré, nem sequer controla, nem tem os meios humanos ou outros para o efeito, se o estafeta está a utilizar o veículo que comunicou à Ré que iria utilizar para exercer a sua atividade de prestação de serviços de estafeta.
RR. Um estafeta que quiser fazer serviços de estafeta sem ser através de ofertas apresentadas através da aplicação da Ré, é totalmente livre de fazê-lo – não há obrigação de exclusividade nem de não concorrência.
SS. Os requisitos de inscrição e utilização da plataforma não podem ser confundidos com
regras quanto à prestação da atividade de estafeta, como bem se referiu na sentença junta como documento n.º 1.
TT. Quanto aos documentos que tem de remeter à Ré, os mesmos também não têm nada que ver com qualquer determinação da Ré, mas com o cumprimento de obrigações legais, nomeadamente para aferir se o estafeta está autorizado legalmente a exercer atividade profissional em Portugal.
UU. Não é verdade que é a Ré que escolhe os clientes, apenas fazendo a ligação entre pedidos e prestadores da atividade.
VV. Mais, o estafeta tem acesso ao estabelecimento comercial e ao nome do cliente, pelo que se não quiser efetuar essa entrega, pode recusá-la sem qualquer consequência ou penalização.
WW. Resulta provado que a plataforma não impõe nem sugere uma determinada rota ao prestador da atividade, sendo este que escolhe qual o trajeto que pretende efetuar para executar o serviço.
XX. O prestador da atividade até pode ter a aplicação gerida pela Ré desligada durante a rota, ou utilizar outra ferramenta de planeamento da rota ou não utilizar nenhuma.
YY. Resulta da matéria de facto provada44 que a plataforma não exerce o poder direção nem determina regras específicas.
ZZ. Com igual e fundamental importância, resulta dos factos não provados da sentença:
“b. A actividade dos estafetas é controlada em tempo real através do sistema de geolocalização.
c. Os estafetas têm de ter a localização sempre activa no telemóvel enquanto utiliza a aplicação Glovo, selecionado a opção “Permitir sempre a localização”.
d. A atribuição/distribuição dos pedidos ao prestador da atividade é determinada em função do critério da distância entre aquele, a loja e o consumidor, ou o tempo de preparação da encomenda pelo parceiro.
e. Os estafetas são classificados na plataforma de acordo com a avaliação dos diversos clientes a quem efectuaram entregas”.
AAA. Fica assim claro que os estafetas são livres e autónomos na execução dos serviços que entendam prestar, não se verificando preenchida a característica prevista no artigo 12.º-A, n.º 1 al. b) do Código do Trabalho.
BBB. Na página 43 da sentença e omitida pelo Autor, conclui o Mmo. Juiz do Tribunal a quo:
“Por outro lado, a possibilidade de a ré desactivar a conta do estafeta não distingue especialmente os estafetas dos outros utilizadores da plataforma (clientes e comerciantes) que, igualmente, podem ver a sua conta desactivada (e impedidos de aceder à plataforma – ver ponto 43 dos factos provados) e nem por isso podem ser considerados trabalhadores da ré”.
CCC. Em suma, concluiu o Tribunal a quo que aquela característica não se verifica, nem da mesma decorre qualquer indício de laboralidade.
DDD. A Ré apenas procede à desativação da conta em casos que assumem gravidade, nomeadamente quando se verificam situações de violação de lei ou de fraude (entendida como violação dos Termos e Condições, do modo a garantir uma plataforma idónea e segura para todos os utilizadores, nomeadamente, se o utilizador Prestador de Atividade introduzir vírus ou trojans na aplicação da Ré, se facultar dados de identificação ou dados fiscais falsos, etc.).
EEE. O mesmo se aplica aos restaurantes ou clientes, uma vez que as suas contas também podem ser desativadas em caso de violação de lei ou de fraude e não é por isso que se considera que existem indícios de os clientes e restaurantes serem trabalhadores da Ré.
FFF. Trata-se de uma prorrogativa dos serviços de intermediação em linha, como o da Ré, que se encontra prevista no artigo 4.º do Regulamento (UE) 2019/1150 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, relativo à promoção da equidade e da transparência para os utilizadores profissionais de serviços de intermediação em linha (Regulamento P2B).
GGG. Um “homem médio” concebe que uma aplicação tenha o direito de desativar a respetiva conta se os termos e condições forem violados, por exemplo, na utilização de uma aplicação de um banco, de uma rede social, de um site de vendas em segunda mão, etc., e ninguém se lembraria de dizer que um utilizador é trabalhador dessas aplicações pelo facto de poder ver a sua conta suspensa ou bloqueada.
HHH. Conclui-se assim que também este critério (artigo 12.º-A n.º 1 al. e) do Código do Trabalho) não se verifica.
III. O Autor aceita e concorda que o veículo, a mochila e o telemóvel são pertença do estafeta.
JJJ. É falso que sem a aplicação informática GlovoApp, seria impossível a prestação de atividade de estafeta.
KKK. Em primeiro, não resulta da matéria de facto provada que a aplicação informática seja um instrumento de trabalho.
LLL. Em todo o caso, a referida aplicação não é um instrumento, mas antes código informático que é utilizado pelo telemóvel.
MMM. Ou seja, o telemóvel é que é apto a constituir um instrumento de trabalho.
NNN. Os Prestadores de Atividade, querendo, poderão utilizar a aplicação do Google Maps, Waze GPS, Apple Maps ou qualquer outra para auxiliar na decisão das rotas a adotar, ou, querendo, podem não utilizar qualquer aplicação de GPS.
OOO. Seguindo a linha de raciocínio do Autor, os softwares de GPS poderiam ser instrumentos de trabalho e, portanto, os Prestadores da Atividade poderiam reclamar ser trabalhadores da Google, Waze ou da Apple, o que, naturalmente, não se concede.
PPP. É evidente que o instrumento de trabalho de um trabalhador de escritório será o computador que utiliza e não o software.
QQQ. O instrumento de trabalho de um Juiz e de um Advogado também poderá ser o computador, mas já não será a plataforma Habilus ou a plataforma Citius, respetivamente.
RRR. Mais, se assim fosse, os Prestadores de Atividade poderiam reclamar ser trabalhadores das operadoras telefónicas, que é quem lhes garante o acesso à internet no telemóvel, no que também não se concede.
SSS. Seguindo o raciocínio do Autor, também os trabalhadores dos estabelecimentos parceiros, nomeadamente dos restaurantes, que aceitam realizar serviços a clientes que lhes são apresentados via aplicação gerida pela Ré, também poderiam reclamar ser trabalhadores da Ré, o que, evidentemente, não se concede nem concebe.
TTT. Resulta do conhecimento geral, e é de senso comum, que os instrumentos essenciais à atividade de estafeta são o eventual meio de transporte e um recipiente para colocar os artigos a transportar.
UUU. A receção de propostas de serviços de estafeta pode ser feita por diversas formas, nomeadamente, por contacto telefónico, por sms, por whatsapp, por e-mail, etc..
VVV. Recorda-se que a aplicação da Ré permite, inclusivamente, que os estabelecimentos comerciais e/ou os utilizadores clientes utilizem outras pessoas não registadas na aplicação da Ré para efetuarem os serviços de estafeta (facto provado 8)!
WWW. Em suma, a aplicação gerida pela Ré não é um meio essencial nem imprescindível à realização da atividade de estafeta!
XXX. De acordo com o ponto 4.1 dos Termos e Condições, o prestador da atividade declarou que “Atuará em seu próprio nome e interesse, também usando os seus próprios equipamentos para exercer a atividade”.
YYY. Pois, para os estafetas, o acesso à plataforma gerida pela Ré (pela qual pagam uma taxa de acesso – facto provado 7 da sentença) significa a possibilidade de oferecerem voluntária e livremente os seus serviços de entrega, podendo conectar-se ou desconectar-se em qualquer altura de acordo com a possibilidade de escolherem livremente os pedidos que pretendem realizar – e podendo conectar-se a outras plataformas, ou exercer atividade de estafeta, ou outra, sem estar conectado a qualquer plataforma – e construir, assim, a seu critério, a sua base de rendimentos!
ZZZ. Neste conspecto, impugna-se novamente a fundamentação da sentença relativa à “UberEats” a que se socorre o Autor, porquanto não tem aplicação na Ré, sendo que, ao contrário do que é aí referido nessa sentença, sucede de forma diametralmente diferente no caso da Ré:
a. Os estafetas registados na aplicação gerida pela Ré são responsáveis pela perda ou danificação dos produtos que transportam (factos provados 51), ao contrário do exemplo referido na sentença da “UberEats”;
b. A Ré não dá nem confere gratuitamente o acesso a qualquer tipo de seguro, o que se impugna. Resulta do facto provado 54. da sentença que “Com o pagamento da taxa de serviço, os estafetas têm acesso a um seguro de acidentes pessoais enquanto estiverem ligados na aplicação da Ré”. Em suma, ao contrário do que sucede com a “UberEats”, com a inscrição na aplicação da Ré, o estafeta não fica coberto por qualquer seguro. O estafeta só fica coberto por seguro se pagar à Ré a taxa de acesso para esse efeito.
AAAA. Assim, pelo exposto, não merece qualquer censura a sentença proferida pelo Tribunal a quo, sendo forçoso concluir que não está alegada a verificação deste critério (artigo 12.º-A n.º 1 al. f) do Código do Trabalho).
BBBB. É necessário ter em conta (i) o elevado grau de autonomia, evidenciado, entre outros aspetos, pela possibilidade de se ligar ou desligar livremente ou pela possibilidade de rejeitar um serviço é um forte indício negativo de laboralidade, (ii) a possibilidade de prestar serviço para concorrentes e (iii) a possibilidade contratual de o prestador de serviços se fazer substituir por outra pessoa contratada para o efeito.
CCCC. Tudo ponderado, a Ré logrou provar a não verificação de nenhum dos indícios imputados na Petição Inicial e nas alegações de Recurso (e do artigo 12.º e 12.º-A em geral), ilidindo, assim, a referida presunção de laboralidade.
DDDD. Andou bem o Tribunal a quo, não merecendo a sua apreciação qualquer censura:
“Não estando preenchidas duas ou mais características das diversas alíneas do n.º 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho, não pode funcionar a presunção aí estabelecida.
Ainda que numa leitura mais benevolente ou criativa se pudesse afirmar pelo preenchimento de qualquer outra característica dessa norma, existem outros elementos que apontam no sentido da inexistência de uma relação com carácter de subordinação.
(…)
sobressaem importantes elementos provados e que apontam em sentido contrário ao estabelecimento de uma presunção de laboralidade:
- regime fiscal dos prestadores da actividade (que não é o dos trabalhadores dependentes);
- ausência de exclusividade, com especial enfoque na possibilidade de prestar o mesmo serviço para as empresas que directamente concorrem no mercado com a ré;
- possibilidade de fixação de horário e local de exercício de actividade por parte dos estafetas;
- possibilidade de os estafetas designarem outras pessoas para substituição no exercício da actividade (demonstrativo de que o que interessa à ré não é a actividade em si mesma, elemento inerente a um contrato de trabalho que é celebrado intuitu personae, mas antes o resultado da sua actividade, característica do contrato de prestação de serviço);
- a circunstância de o risco de perda das coisas transportadas correr por conta dos estafetas (que sugere inexistir qualquer relação laboral);
- e, sobretudo e decisivamente, a possibilidade de recusar qualquer serviço proposto e sem qualquer consequência (o que é, naturalmente, prova da inexistência de qualquer subordinação: não se vislumbra que relação laboral poderia resistir baseada na possibilidade de o prestador da actividade se poder recusar a prestá-la).
Na verdade, este conjunto de elementos apontam no sentido da inexistência de uma relação com carácter de subordinação.
Dos factos não se pode retirar que a relação contratual estabelecida entre as pessoas indicadas pelo Ministério Público e a ré se reconduz à existência de contratos de trabalho.
Como tal, deve improceder a pretensão deduzida nos autos (e todos os apensos)”
Sem conceder,
EEEE. Caso se venha a considerar verificada a presunção constante do artigo 12.º-A do Código do Trabalho, o que não se aceita e teoriza para efeitos de patrocínio, a aplicação do disposto no artigo 12.º-A do Código do Trabalho à situação nos presentes autos seria ilegal, porquanto o teor daquele artigo é manifestamente inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 13.º, 18.º n.º 2 e 3 e 61.º da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que:
O presente recurso deve ser considerado improcedente por manifestamente infundado e mantida a douta sentença recorrida».

A acompanhar as contra-alegações juntou dois documentos: (i) um que corresponde a uma sentença da 1ª instância, datada de 13 de maio de 2024, de uma Comarca diferente da que julgou os presentes autos, em que foi ré a aqui ré/recorrida e em que estava em causa, em síntese, a existência de um contrato de trabalho entre aquela e um “prestador de atividade”, tendo a decisão da 1.ª instância ali proferida sido favorável à mesma ré, à semelhança, de resto, do que se verificou nos presentes autos; (ii) outro, datado de 23 de outubro de 2023, que corresponde ao pedido dirigido pela Senhora Provedora de Justiça ao Tribunal Constitucional a requerer a inconstitucionalidade das normas constantes do n.º 3 do artigo 10.º do Código do Trabalho, na redação que foi introduzida pela Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, e dos n.ºs 1 e 2 do artigo 383.º-A do mesmo Código, aditado pela referida Lei n.º 13/2023, de 3 de abril.

Seguidamente, o recurso foi admitido na 1.ª instância, como de apelação, com subida imediata, nos autos, e efeito devolutivo.

Subidos os autos a esta Relação, elaborado projeto de acórdão, colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso
Como é sabido são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o objeto deste (cfr. artigo 635.º, n.º 4 e artigo 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho).
E o recorrente pode restringir o recurso a parte da decisão (artigo 635.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
No caso, o recorrente excluiu expressamente do recurso a decisão quanto aos prestadores da atividade que constam, respetivamente, do apenso B) (n.º 2 do relatório supra), do apenso I) (n.º 9 do relatório), do apenso K) (n.º 11 do relatório), do apenso P) (n.º 16 do relatório), do apenso R) (n.º 18 do relatório) e do apenso S) (n.º 19 do relatório).
Por isso, o objeto do recurso incidirá apenas sobre os outros prestadores de atividade: e a questão essencial objeto do recurso centra-se em determinar se entre a ré e cada um dos prestadores de atividade se verifica, a partir das respetivas datas indicadas, a existência de contrato de trabalho.
Tal questão envolve a análise de três sub-questões:
1. se se mostra verificada a presunção prevista no artigo 12.º-A do Código do Trabalho;
2. se tal presunção é inconstitucional;
3. se, tratando-se de uma presunção ilidível, a mesma se mostra ilidida (cfr. artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil).

Porém, importa desde já apreciar e decidir da admissibilidade ou não dos documentos juntos pela recorrida com as contra-alegações.
É o que se passa a fazer.
De acordo com o disposto no artigo 63.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, «[c]om os articulados, devem as partes juntar os documentos, apresentar o rol de testemunhas e requerer quais outras provas».
Todavia, por aplicação subsidiária do Código de Processo Civil (artigo 1.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo do Trabalho), mais concretamente dos seus artigos 651.º, n.º 1, 423.º e 425.º, as partes podem juntar documentos às alegações.
Tratam-se de situações excecionais que exigem a alegação e prova pelo interessado nessa junção de uma de duas situações: (i) não possibilidade de apresentação do documento no momento anterior determinado na lei; (ii) a apresentação do documento se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.
Na primeira situação, estão em causa situações atendíveis de superveniência objetiva (produção posterior do documento) ou subjetiva (possibilidade de acesso ao documento posteriormente), que a parte não controla; já na segunda situação, é necessário que a decisão da 1.ª instância tenha introduzido na ação um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional.
Mas, como já advertia Antunes Varela (et alii), no âmbito do anterior Código de Processo Civil (Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 2.ª Edição, págs. 533-534), nesta última situação «(…) a lei não abrange a hipótese de a parte se afirmar surpreendida com o desfecho da ação (ter perdido, quando esperava obter ganho de causa) e pretender, com tal fundamento, juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em 1.ª instância. O legislador quis manifestamente cingir-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objeto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida».
Também Abrantes Geraldes sustenta, já no âmbito do atual Código de Processo Civil (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, pág. 184), que «[p]odem ainda ser apresentados documentos quando a sua junção apenas se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido, maxime quando este se revele de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo»; e logo a seguir acrescenta (excluem-se notas de rodapé): «[a] jurisprudência anterior sobre a matéria não hesita em recusar a junção de documentos para provar factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado».
Nesta linha interpretativa, é assertivo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30-04-2019 (Proc. n.º 22946/11.0T2SNT-A.L1.S2) quando afirma que «(…) não é admissível a junção de documentos quando tal junção se revele pertinente ab initio, por tais documentos se relacionarem de forma directa e ostensiva com a questão ou as questões suscitadas».

No caso em apreço, não se localiza que nas contra-alegações a recorrente tenha justificado o porquê da junção nesta altura dos documentos.
Não obstante, sempre se dirá que em relação ao documento n.º 1 (sentença da 1.ª instância em que foi ré a aqui recorrida e em que estava em causa a existência de um contrato de trabalho entre a mesma e um prestador de atividade), sendo embora certo que a sentença/documento é posterior aos articulados, pois foi proferida em 13-05-2024, não o é menos que não se trata de um parecer de um jurisconsulto – caso em que seria admissível a sua junção nos termos do n.º 2 do referido artigo 651.º –, e que não se descortina qualquer relevância jurídica do documento para os presentes autos, não só porque este tribunal não está vinculado a uma decisão de um tribunal da 1.ª instância, como também porque a matéria de facto não é de todo coincidente em ambas as ações, e só perante a factualidade concreta haverá que fazer a respetiva subsunção jurídica.
Já em relação ao documento n.º 2, datado de 23 de outubro de 2023 (pedido dirigido pela Senhora Provedora de Justiça ao Tribunal Constitucional a requerer a inconstitucionalidade das normas constantes do n.º 3 do artigo 10.º do Código do Trabalho, na redação que foi introduzida pela Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, e dos n.ºs 1 e 2 do artigo 383.º-A do mesmo Código, aditado pela referida Lei n.º 13/2023, de 3 de abril), atenta a sua data, 23-10-2023, não está em causa a superveniência objetiva do documento, e quanto à eventual superveniência subjetiva nada foi alegado.
Por isso, apenas poderá fundamentar a sua junção se o documento se tornar necessário para o julgamento do recurso.
Ora, quanto a este importa ponderar, por um lado, que a recorrida não ficou vencida na decisão proferida na 1.ª instância, pelo que se entendia que o documento podia ter relevância para a decisão da causa já o poderia e deveria ter apresentado na 1.ª instância; por outro lado, da leitura do documento não se extrai, nem a recorrente alega a concreta relevância do mesmo para os presentes autos.
Para tanto, tenha-se presente que as normas cuja inconstitucionalidade aí é requerida não são aqui diretamente aplicáveis.
Por tal motivo, não poderão os documentos ser admitidos, devendo, por consequência, ser desentranhados e devolvidos à apresentante, condenando-se a mesma em multa pelo incidente a que deu causa, no valor de 1 UC (artigo 7.º, n.ºs 4 e n.º 8, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela II anexa), o que será ordenado a final.

III. Factos
A) 1. A 1.ª instância deu como provados os seguintes factos:
1. A ré é uma sociedade que tem como objeto o desenvolvimento e exploração de uma
plataforma tecnológica, comércio a retalho por via eletrónica, comércio não especializado de produtos alimentares e não alimentares, bebidas e tabaco e, de um modo geral, de todos os produtos de grande consumo, comercialização de medicamentos não sujeitos a receita médica, produtos de dermocosmética e de alimentos para animais, a importação de quaisquer produtos, o comércio de refeições prontas a levar para casa e a distribuição ao domicílio de produtos alimentares e não alimentares, entre outros.
2. No exercício da sua atividade profissional, a ré gere a aplicação informática/plataforma
digital “Glovoapp”.
3. Através dessa plataforma certos estabelecimentos comerciais oferecem os seus produtos e, quando solicitado pelos utilizadores clientes – através de uma aplicação móvel (App) ou através da internet –, propõe a entrega dos produtos encomendados.
4. Para efetuar a recolha dos produtos nos estabelecimentos comerciais aderentes e realizar o transporte e a entrega desses produtos aos utilizadores clientes, são utilizados os serviços de estafetas que se encontram registados na sua plataforma para esse efeito.
5. A ré atua na intermediação entre os diferentes utilizadores da plataforma: os utilizadores parceiros (estabelecimentos comerciais, como restaurantes); os utilizadores estafetas; e os utilizadores clientes.
6. A atividade da ré inclui a intermediação dos processos de recolha nos estabelecimentos
comerciais e o pagamento dos produtos encomendados através da plataforma; e a intermediação entre a venda dos produtos e a respetiva recolha, transporte e entrega aos utilizadores que efetuaram as encomendas.
7. A ré recebe pagamentos provenientes desses utilizadores: os estabelecimentos comerciais pagam uma taxa de acesso e utilização da plataforma; os utilizadores que fazem o transporte pagam uma taxa de acesso e utilização da plataforma; os utilizadores clientes finais pagam uma taxa de acesso e utilização da plataforma.
8. A plataforma está aberta a outras possibilidades de utilização e prestação de serviços bilaterais: os estabelecimentos comerciais podem receber pedidos via plataforma e, continuando obrigados ao pagamento da respetiva taxa de acesso, optar por recorrer aos seus próprios serviços de entrega, sem se conectar, via aplicação, com os utilizadores que fazem transportes; os utilizadores finais, via plataforma, podem solicitar serviços de entrega de produtos entre dois locais, sem efetuar qualquer aquisição junto dos estabelecimentos comerciais utilizadores da plataforma; os utilizadores finais podem, através da plataforma, dirigir pedidos de compra de produtos aos estabelecimentos comerciais e usar a opção “take away”, levantando-os pessoalmente, sem fazer qualquer uso dos serviços de entrega dos estafetas registados na plataforma.
9. A sociedade “Glovoapp23, S.L.” (com sede em ... 94, ...05, ..., ...) é a única sócia da Ré “Glovoapp Portugal Unipessoal., Lda.”, sendo a entidade que fornece o acesso à aplicação (App) GLOVO e ao software, websites e aos vários
serviços de suporte da plataforma GLOVO.
10. A aplicação “Glovo” destina-se a ser utilizada pelos utilizadores-cliente, enquanto a
aplicação “Glovo Couriers” destina-se a ser utilizada pelos utilizadores-estafeta.
11. Inspetores da Autoridade para as Condições do Trabalho (A.C.T.) identificaram, nas
seguintes datas e locais, as seguintes pessoas a realizar, mediante pagamento, a entrega de
refeições e outros produtos ou a preparar-se para o fazer:
11.1. AA, NIF ...22 (PRINCIPAL), em 27/09/2023, junto ao Centro Comercial Continente Portimão;
11.2. BB, NIF ...04 (apenso A), em 14/09/2023, junto ao Mac Donald's V6 Portimão;
11.3. CC, NIF ...30 (apenso B), em 01/09/2023, junto ao Centro Comercial Aqua Portimão;
11.4. DD, NIF ...46 (apenso C), em 20/09/2023, junto ao Centro Comercial Aqua Portimão;
11.5. ZZ, NIF ...50 (apenso D), em 25/09/2023, junto ao Centro Comercial Continente Portimão;
11.6. FF, NIF ...53 (apenso E), em 1/10/2023, junto ao Centro Comercial Continente Portimão;
11.7. GG, NIF ...60 (apenso F), em 04/08/2023, junto ao Centro Comercial Continente Portimão;
11.8. HH, NIF ...83 (apenso G), em 14/10/2023, junto ao Centro Comercial Continente Portimão;
11.9. AAA, NIF ...79 (apenso H), em 17/08/2023, junto ao Mac Donald's V6 Portimão;
11.10. II, NIF ...76 (apenso I), em 20/09/2023, junto ao Centro Comercial Aqua Portimão;
11.11. JJ, NIF ...72 (apenso J), em 20/09/2023, junto ao Centro Comercial Aqua Portimão;
11.12. KK, NIF ...15 (apenso K), em 07/09/2023, junto ao Centro Comercial Aqua Portimão;
11.13. LL, NIF ...50 (apenso L), em 27/09/2023, junto ao ...;
11.14. MM, NIF ...88 (apenso M), em 20/09/2023, junto ao Algarve Shopping Guia;
11.15. NN, NIF ...77 (apenso N), em 17/08/2023, junto ao Mac Donald's V6 Portimão;
11.16. OO, NIF ...90 (apenso O), em 20/09/2023, junto ao Algarve Shopping Guia;
11.17. PP, NIF ...17 (apenso P), em 20/09/2023, junto ao Centro Comercial Aqua Portimão;
11.18. QQ, NIF ...40 (apenso Q), em 20/09/2023, junto ao Centro Comercial Continente Portimão;
11.19. RR, NIF ...97 (apenso R), em 11/08/2023, junto ao Centro Comercial Aqua Portimão;
11.20. SS, NIF ...36 (apenso S), em 27/09/2023, junto ao Centro Comercial Aqua Portimão;
11.21. TT, NIF ...57 (apenso T), em 14/09/2023, junto ao Centro Comercial Continente Portimão;
11.22. UU, NIF ...57 (apenso U), em 20/09/2023, junto ao Centro Comercial Aqua Portimão;
11.23. BBB, NIF ...93 (apenso V), em 20/10/2023, junto ao Centro Comercial Aqua Portimão;
11.24. VV, NIF ...57 (apenso W), em 20/09/2023, junto ao Algarve Shopping Guia;
11.25. WW, NIF ...47 (apenso X), em 11/08/2023, junto ao Centro Comercial Aqua Portimão;
11.26. XX, NIF ...05 (apenso Y), em 23/08/2023, junto ao Centro Comercial Continente Portimão;
11.27. YY, NIF ...80 (apenso Z), em 20/09/2023, junto ao Centro Comercial Continente Portimão.
12. Cada um dos identificados, nos dias e locais indicados, estava equipado com uma mochila isotérmica para o transporte de refeições, tinha um veículo para transportar as encomendas e tinha a aplicação (App) da plataforma GLOVO instalada e ativa no seu telemóvel
“smartphone”.
13. Cada um desses identificados tem atividade registada na plataforma GLOVO:
13.1. AA, NIF ...22 (principal), desde pelo menos 06/09/2023;
13.2. BB, NIF ...04 (apenso A), desde pelo menos 30/08/2023;
13.3. CC, NIF ...30 (apenso B), desde pelo
menos 02/11/2022;
13.4. DD, NIF ...46 (apenso C), desde pelo menos 12/09/2023;
13.5. ZZ, NIF ...50 (apenso D), desde pelo menos 29/08/2023;
13.6. FF, NIF ...53 (apenso E), desde pelo menos 29/08/2023;
13.7. GG, NIF ...60 (apenso F), desde pelo menos 04/07/2023;
13.8. HH, NIF ...83 (apenso G), desde pelo menos 18/07/2023;
13.9. AAA, NIF ...79 (apenso H), desde pelo menos 18/07/2023;
13.10. II, NIF ...76(apenso I), desde pelo menos 06/06/2022;
13.11. JJ, NIF ...72 (apenso J), desde pelo menos 11/07/2023;
13.12. KK, NIF ...15 (apenso K), desde pelo menos
12/10/2021;
13.13. LL, NIF ...50 (apenso L), desde pelo menos
27/09/2023;
13.14. MM, NIF ...88 (apenso M), desde pelo menos 20/09/2023;
13.15. NN, NIF ...77 (apenso N), desde pelo menos 22/05/2023;
13.16. OO, NIF ...90 (apenso O), desde pelo menos 20/09/2023;
13.17. PP, NIF ...17 (apenso P), desde pelo menos 10/12/2021;
13.18. QQ, NIF ...40 (apenso Q), desde pelo menos 30/06/2023;
13.19. RR, NIF ...97 (apenso R), desde pelo menos Agosto de 2020;
13.20. SS, NIF ...36 (apenso S), desde pelo menos 06/06/2022;
13.21. TT, NIF ...57 (apenso T), desde pelo menos 25/08/2023;
13.22. UU, NIF ...57 (apenso U), desde pelo menos 03/07/2023;
13.23. BBB, NIF ...93 (apenso V), desde pelo menos 12/09/2023;
13.24. VV, NIF ...57 (apenso W), desde pelo menos 20/09/2023;
13.25. WW, NIF ...47 (apenso X), desde pelo menos 15/06/2023;
13.26. XX, NIF ...05 (apenso Y), desde pelo menos 28/06/2023;
13.27. YY, NIF ...80 (apenso Z), desde pelo menos 30/06/2023;
14. Cada um deles inscreveu-se na plataforma através de uma página web com introdução de dados pessoais em formulário elaborado pela ré, com possibilidade de visualização de vídeos com informações sobre a plataforma, com adesão aos termos e condições da plataforma para utilizadores estafetas, escolha da localização geográfica e posterior acesso às credenciais de acesso à aplicação “Glovo Couriers” para instalação no telemóvel.
15. Nos dados fornecidos por cada um deles à ré está o início de atividade nas finanças, o ATCUD (código único de documento), regime de IVA e IRS, documento de identificação,
IBAN e veículo que vai utilizar.
16. Cada um deles escolheu fazer entregas de refeições e outros produtos nas áreas de Portimão e Albufeira.
17. Para que lhes sejam distribuídas tarefas/pedidos na plataforma GLOVO, cada um deles tem que aceder ao seu “perfil da conta” na aplicação “Glovo Couriers” que instalaram no seu telemóvel, o qual deve estar atualizada, podendo a aplicação pedir reconhecimento facial efetuado através do telemóvel.
18. Só quando efetuam o “login” na aplicação “Glovo Couriers” é que lhe podem ser aí
apresentados pedidos de recolhas e entregas de refeições e outros bens entre dois endereços.
19. Um utilizador-cliente pode efetuar um pedido na plataforma, através da aplicação “Glovo”, consistindo num conjunto de artigos comercializados por um utilizador parceiro (restaurantes ou outros).
20. A plataforma transmite a encomenda dos artigos ao parceiro, através da sua interface da plataforma e o parceiro aceita ou rejeita a encomenda.
21.Caso seja aceite a encomenda, a plataforma, através da aplicação “Glovo Couriers”, oferece a um utilizador-estafeta o serviço de entrega associado ao referido pedido; caso o utilizador-cliente opte por recolher o pedido diretamente junto do parceiro (take-away), esta oferta não será efetuada ao estafeta.
22. Pelo menos a partir de maio de 2023, o utilizador-estafeta pode aceitar, não responder ou rejeitar o serviço proposto que, por sua vez, pode ter sido anteriormente rejeitado por outros utilizadores-estafeta.
23. Após aceitar um serviço o utilizador-estafeta pode ainda rejeitá-lo.
24. Caso o utilizador-estafeta tenha aceitado o serviço, dirige-se para a morada do parceiro (ponto de recolha) e aguarda que os artigos que constituem o pedido lhe sejam disponibilizados pelo parceiro, efetuando a recolha dos mesmos.
25. Já na posse dos artigos que constituem o pedido, o utilizador-estafeta dirige-se para a
morada do utilizador-cliente (ponto de entrega) e efetua a entrega, ao utilizador-cliente, dos mesmos.
26. A aplicação apresenta aos referidos estafetas aquando da oferta de um serviço o preço do serviço, o mapa com os pontos de recolha e entrega assinalados e a rua da morada do ponto de recolha, sem o número de porta.
27. Quando os estafetas pretendem aceitar o serviço, após aceitação do serviço na aplicação, esta apresenta ao estafeta o preço do serviço, um mapa com os pontos de recolha (morada do parceiro) e entrega (morada do utilizador-cliente) assinalados, o nome e morada do parceiro (ponto de recolha), informações de contacto no parceiro (quando existam), estimativa do tempo de espera no parceiro, o nome e morada do utilizador-cliente (ponto de entrega), a distância estimada, os detalhes do pagamento, a lista de artigos do pedido e valor do mesmo.
28. Os estafetas escolhem o itinerário que vão utilizar para a realização do serviço, tanto desde o ponto onde efetuaram a aceitação do serviço até ao ponto de recolha, como desde o ponto
de recolha até ao ponto de entrega, pois a aplicação da ré exibe um mapa com ambos os pontos assinalados e a morada de cada ponto, sem apresentar qualquer itinerário ou rota proposta.
29. No decurso do serviço de entrega a aplicação, quando ligada, solicita aos estafetas que os mesmos assinalem a conclusão das seguintes atividades: chegada à morada do parceiro (ponto de recolha); recolha dos artigos no parceiro; chegada à morada do utilizador-cliente (ponto de entrega); entrega dos artigos ao utilizador-cliente e conclusão do serviço; mas quando os estafetas não assinalam na aplicação a conclusão dessas atividades, não comprometem a execução do serviço, apenas recebendo o preço do serviço e ficando disponíveis para aceitar novos serviços quando comunicam a última das atividades que é a conclusão do serviço.
30. A aplicação indica necessidade de ter acesso à geolocalização dos estafetas enquanto estes se encontram online a aguardar por uma oferta de serviço; a partir da aceitação do serviço os estafetas podem permitir ou não que a plataforma tenha acesso à sua localização, sem que isso tenha impacto na realização do serviço ou leve a alguma penalização.
31. Os estafetas após aceitarem o serviço na aplicação podem escolher o meio de transporte utilizado, definir o percurso a seguir e podem desligar a geolocalização do telemóvel.
32. Após entregar as encomendas e caso os clientes tenham optado pelo pagamento em
dinheiro, os estafetas têm de receber destes o pagamento do pedido em dinheiro, ficando com a obrigação de proceder ao depósito da quantia cobrada na conta determinada pela plataforma, a favor da ré.
33. Os estafetas podem aceitar ou recusar qualquer serviço através da aplicação, mesmo depois de terem inicialmente aceitado esse serviço, sem que tal afete o estatuto da sua conta na
aplicação, a apresentação de futuros serviços e o preço de tais serviços futuros.
34. Quando os estafetas rejeitam o serviço proposto, após a rejeição desse serviço na aplicação é apresentada uma interface de confirmação da rejeição para evitar rejeições acidentais, não havendo qualquer penalização pela rejeição de serviços propostos.
35. O preço base do serviço que é apresentado aos estafetas é calculado pela plataforma de acordo com um valor base, compensação pela distância e compensação pelo tempo de espera consumido na realização desse serviço; sobre o preço base podem incidir promoções da aplicação.
36. Os estafetas podem selecionar e alterar um “multiplicador”, uma vez por dia, para valores iguais ou superiores a 1.0, o que permite aumentar o valor total recebido por cada serviço.
37. Adicionalmente, os estafetas podem receber gratificações dos clientes.
38. Os estafetas são remunerados por cada serviço e depois de os terem realizado, independentemente do tempo que tenham estado previamente online na aplicação, nem recebem qualquer valor pela espera entre a conclusão de uma entrega e a aceitação de novo pedido.
39. A ré paga, quinzenalmente, através de transferência bancária, diretamente aos estafetas os valores correspondentes às entregas efetuadas e processa os pagamentos a efetuar, mediante a emissão de uma fatura em nome da ré e que tem por emissor os prestadores de atividade (estafetas).
40. Por autorização dos estafetas, mediante adesão no Portal das Finanças, os recibos emitidos são registados no Portal das Finanças pela ré.
41. Nos “Termos e condições de utilização da plataforma GLOVO para estafetas”, estão previstas várias situações que podem determinar a desativação temporária ou permanente da conta do prestador de atividade, designadamente as enumeradas no ponto 5.2., de onde se destacam as possibilidades de tal acontecer se o estafeta: utilizar a Plataforma para insultar, ofender, ameaçar e/ou agredir Terceiros, nomeadamente, Utilizadores Cliente, Estabelecimentos Comerciais, outros Estafetas e pessoal da GLOVO; violar a lei ou quaisquer outras disposições dos Termos e Condições Gerais ou outras políticas da GLOVO; participar em atos ou conduta violentos; e violar os seus direitos na aplicação da GLOVO, causando danos materiais e/ou imateriais a outro Utilizador da plataforma (Estafetas, Utilizadores Cliente e/ou Estabelecimentos Comerciais).
42. E tal como resulta do ponto 5.4.2. dos referidos “Termos e condições de utilização da
plataforma GLOVO para estafetas”, “A GLOVO pode, mas não é obrigada, a monitorizar, rever e/ou editar a sua Conta. A GLOVO reserva-se o direito de, em qualquer caso, eliminar ou desativar o acesso a qualquer Conta por qualquer motivo ou sem motivo, até mesmo se considerar, a seu critério exclusivo, que a sua Conta viola os direitos de terceiros ou direitos protegidos pelos Termos e Condições”.
43. A ré pode, igualmente, desativar a conta de comerciantes e de clientes em caso de violação de lei ou de fraude.
44. Desde maio de 2023 os utilizadores clientes finais são convidados a avaliar a forma como o estafeta realizou o seu trabalho e a plataforma torna-a visível apenas para o estafeta, da mesma forma que os clientes são convidados a avaliar os comerciantes que vendem os seus produtos, sem que tal seja usado para avaliar a qualidade da atividade ou a forma como é executada e sem influenciar a oferta de novos pedidos.
45. Os estafetas escolhem os dias e horas em que pretendem ligar-se à aplicação da ré.
46. Os estafetas podem subcontratar noutro prestador de serviços de entrega.
47. Antes de iniciar a sua ligação à aplicação da ré e caso pretendam usar veículos a motor, os estafetas devem declarar dispor de carta de condução e seguro de responsabilidade civil do veículo usado.
48. Os estafetas podem alterar livremente na plataforma a zona geográfica em que pretendem executar entregas.
49. Os estafetas podem receber e aceitar ofertas de serviços de entrega em diferentes
localizações dentro da zona geográfica que escolhem.
50. São os estafetas que suportam os custos de aquisição, manutenção e reparação dos veículos, mochilas, luvas, capacetes e telemóveis que usam para procederem às entregas e para se ligarem à aplicação da ré.
51. Os estafetas são responsáveis pela perda ou danificação dos produtos que transportam.
52. Os estafetas não são obrigados a utilizar uniforme identificativo da Ré, podendo, como qualquer outra pessoa, comprar merchandising da Ré (incluindo a mochila isotérmica para
transporte de comida) na loja on-line desta.
53. A ré não controla nem limita que os estafetas prestem a mesma atividade para plataformas concorrentes nem controla nem limita que os mesmos prestem outras atividades.
5. Com o pagamento da taxa de serviço, os estafetas têm acesso a um seguro de acidentes
pessoais enquanto estiverem ligados na aplicação da ré.

B) A 1.ª instância deu como não provados os seguintes factos:
a) Os prestadores de atividade prestam atividade todos os dias da semana, distribuindo refeições de almoço e jantar;
b) A atividade dos estafetas é controlada em tempo real através do sistema de geolocalização.
c) os estafetas têm de ter a localização sempre ativa no telemóvel enquanto utilizam a aplicação Glovo, selecionado a opção “Permitir sempre a localização”;
d) a atribuição/distribuição dos pedidos ao prestador da atividade é determinada em função do critério da distância entre aquele, a loja e o consumidor, ou o tempo de preparação da encomenda pelo parceiro.
e) os estafetas são classificados na plataforma de acordo com a avaliação dos diversos clientes a quem efetuaram entregas.

IV. Fundamentação
1. Como se deixou referido supra (sob II.) a questão essencial decidenda consiste em determinar se entre a ré e a cada um dos prestadores de serviço (excetuando aqueles em relação aos quais o recorrente manifestou concordância com a decisão da 1.ª instância e, por isso, não recorreu) existe um contrato de trabalho, desde as respetivas datas indicadas.
Tal questão essencial envolve três sub-questões, a saber: se se mostra verificada a presunção previstas no artigo 12.º-A do Código do Trabalho, se tal presunção é inconstitucional e se a presunção e se se mostra ilidida.

A 1.ª instância, após fazer adequadas e suficientes considerações doutrinárias e jurisprudenciais em torno da distinção entre contrato de trabalho e contrato de prestação de serviço, considerou apenas se verificarem no caso as caraterísticas previstas no n.º 1, alínea e) do artigo 12.º-A do Código do Trabalho, e, por consequência, não existir presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital, tendo julgado improcedentes os pedidos formulados (na ação principal e nos processos apensos).
O autor/recorrente rebela-se contra tal entendimento, sustentando a verificação não só da das caraterísticas previstas na referida alínea e) do n.º 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho, como também nas alíneas a), b) e f) do n.º 1 do referido artigo e, assim, verificar-se a aludida presunção de contrato de trabalho:
(i) quanto à alínea a) por a ré fixar unilateralmente a retribuição, estabelecendo, além disso, um limite mínimo e um limite máximo para o prestador por cada serviço prestado, sendo para tal irrelevante que aquele possa recusar o serviço, assim como alterar o multiplicador, de forma a alterar o limite mínimo do valor de cada serviço;
(ii) em relação à alínea b), por a ré para além de estipular as regras para acesso/inscrição na plataforma por parte dos estafetas, também dirigir, estipular concretizar e definir a forma como toda a atividade deve ser por eles prestada;
(iii) quanto à alínea f), por o principal instrumento de trabalho ser a aplicação informática, que é propriedade da ré.

Por sua vez, a recorrida aplaude a decisão da 1.ª instância, por no seu entender não se mostrarem presentes pelos menos duas das caraterísticas laboralidade constantes das alíneas, que ainda que as mesmas se verifiquem mostra-se ilidida a presunção, e ainda que a aplicação do artigo 12.º-A do Código do Trabalho ao caso em apreço “seria ilegal”, por violação do disposto nos artigos 13.º, 18.º, n.º 2 e 3 e 61.º da Constituição da República Portuguesa.
Vejamos.

É consabido que o artigo 11.º do Código do Trabalho contém a noção de contrato de trabalho, de que se realça, como sua caraterística, a subordinação jurídica, traduzida na dependência necessária do trabalhador na execução do contrato face às ordens, regras e orientações do empregador.
Mas, como adverte Monteiro Fernandes (Direito do Trabalho, 22.ª Edição, 2023, Almedina, pág. 140), «[h]á (…) uma progressiva desvalorização dos comportamentos directivos na caracterização do trabalho subordinado. Se se adoptar como critério identificativo a ocorrência de ordens e instruções pelas quais o trabalhador, em regime de obediência, paute o seu comportamento na execução do contrato, deixar-se-à à margem da regulamentação laboral um número crescente de situações de verdadeiro “emprego”, em tudo merecedoras do mesmo tratamento. Na verdade, a subordinação consiste, essencialmente, no facto de uma pessoa exercer a sua actividade em proveito de outra, no quadro de uma organização do trabalho (seja qual for a sua dimensão) concebida, ordenada e gerida por essa outra pessoa. O elemento organizatório implica que o prestador do trabalho está adstrito a observar os parâmetros de organização e funcionamento definidos pelo beneficiário, submetendo-se, nesse sentido, à autoridade que ele exerce no âmbito da organização do trabalho, ainda que execute a sua actividade, sem, de facto, receber qualquer indicação conformativa que possa corresponder à ideia de “ordens e instruções” – nem, porventura, o beneficiário estar em condições (técnicas ou práticas) de a formular».
Perante as dificuldade que, em termos práticos, se colocam na qualificação de trabalho, a lei (artigo 12.º-A do Contrato de Trabalho) estabelece presunção, ilidível (artigo 350.º do Código Civil), da existência de um contrato de trabalho: assim, presume-se a existência de contrato de trabalho desde que se verifiquem, pelos menos, duas características elencadas nas alíneas.
No caso, como se deixou referido, o tribunal a quo considerou verificada apenas a característica da alínea e) do referido artigo 12.º-A («A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador da atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através desativação da conta»).
Já quanto às características previstas nas alíneas a), b) e f) – as questionadas pelo recorrente – concluiu não se verificarem.
Quanto à alínea a) («[a] plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela»), uma vez que, apesar do preço base ser apresentado aos estafetas – através de cálculo pela plataforma em função de um valor base, compensação pela distância e compensação pelo tempo de espera na realização do serviço – os estafetas podem selecionar e alterar um “multiplicar”, uma vez por dia para valores iguais ou superiores a 1.0, o que permite aumentar o valor total recebido por cada serviço; além disso, os estafetas podem rejeitar o serviço após lhes ser apresentado o “preço”.
Já quanto à alínea b) do mesmo número e artigo («[a] plataforma digital exerce o poder de direção e determina as regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade«), concluiu não se verificar qualquer controlo por parte da ré na forma como os estafetas se apresentam ou como prestam a sua atividade, sendo para tal insuficiente a existência de uma aplicação para acesso à plataforma que, contudo, pode ser desligada.
Finalmente, em relação à alínea f) («[o]s equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação») a decisão recorrida concluiu também não se mostrar verificada a presunção, uma vez que dos factos provados não resulta que que algum equipamento ou instrumento de trabalho utilizados pelos estafetas pertença à ré, acrescentado não poder ser considerado como tal o programa informático desenvolvido pela ré.
Será assim?
Importa atender à especificidade do caso, tendo em conta as mudanças que se têm verificado nos últimos anos na forma de organização do trabalho, designadamente o trabalho prestado com recurso a plataformas digitais, que criaram enormes dificuldades na qualificação da relação que se estabelece entre a plataforma digital e o prestador de serviço.
Por isso, como se assinalou no «Livro Verde Sobre o Futuro do Trabalho», 2021, a propósito do trabalho em plataformas digitais (pág. 172), tornou-se necessário «[c]riar uma presunção de laboralidade adaptada ao trabalho nas plataformas digitais, para tornar mais clara e efetiva a distinção entre o trabalhador por conta de outrem e o trabalhador por conta própria, sublinhando que a circunstância de o prestador de serviço utilizar instrumentos de trabalho próprios, bem como o facto de estar dispensado de cumprir deveres de assiduidade, pontualidade e não concorrência, não é incompatível com a existência de uma relação de trabalho dependente entre o prestador e a plataforma digital».
Neste contexto, a Lei n.º 13/2023, de 03-04, aditou ao Código do Trabalho o artigo 12.º-A, que entrou em vigor no primeiro dia do mês seguinte ao da sua publicação – artigo 37.º, n.º 1– ou seja, 1 de maio seguinte, e que estabeleceu presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital.
De acordo com o seu n.º 1, presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre o prestador da atividade e a plataforma digital se verifiquem algumas (portanto, pelo menos duas) das caraterísticas indicadas nas suas diversas alíneas.
Passando à concreta análise dessas alíneas, tendo em conta a matéria fáctica assente, verifica-se que na alínea a) se prevê a situação da plataforma digital fixar a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelecer limites máximos e mínimos para essa retribuição.
Ora, como de resulta da matéria de facto (maxime n.ºs 26, 35, 36 e 37), a aplicação apresenta aos estafetas o preço do serviço quando lhes é oferecido, calculado de acordo com um valor base, compensação pela distância e pelo tempo de espera consumido na realização desse serviço, podendo sobre o preço base incidir promoções da aplicação; os estafetas podem selecionar e alterar um “multiplicador”, uma vez por dia, para valores iguais ou superiores a 1.0, o que permite aumentar o valor total recebido por cada serviço, podendo ainda, adicionalmente, receber gratificações dos clientes.
E os estafetas são remunerados por cada serviço e depois de o terem realizado.
Isto significa que é a ré que fixa a remuneração devida ao estafeta pelo serviço por ele prestado, sendo que a circunstância do estafeta poder alterar/aumentar, através do “multiplicador”, o valor mínimo do serviço não parece alterar a referida conclusão.
Atente-se que se verifica a característica prevista na referida alínea a) se «[a] plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela».
Ou seja, considera-se verificada a característica (i) se a plataforma fixa a retribuição para o trabalho/serviço efetuado, (ii) ou se a mesma estabelece os limites mínimos e máximos da retribuição.
Pois bem: no caso, como regra geral/padrão a plataforma estabeleceu esse preço; não é pela circunstância de, excecionalmente, “uma vez por dia”, o estafeta poder alterar o multiplicador, de forma aumentar o valor mínimo recebido nesse dia por cada serviço, que é afastada a regra, que vigora, de ser a plataforma a fixar a retribuição do trabalho e, assim, se mostrar verificada a característica em causa.
Haverá que distinguir claramente entre a verificação das características que determinam a existência de presunção de contrato de trabalho e esta se ter ou não por ilidida: como se disse, e reafirma, face à fixação do preço do serviço pela ré mostra-se verificada a característica constante da alínea a); o facto do estafeta poder aumentar o preço mínimo do serviço, recusar o mesmo, inclusive após o ter aceite inicialmente, é matéria que se insere já no âmbito da presunção se ter ou não por ilidida, o que será analisado infra.
Conclui-se, pois, pela verificação da característica estabelecida na alínea a) do n.º 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho.

Na alínea b) prevê-se que a plataforma exerça o poder de direção e determine regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador da atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade.
No que respeita ao exercício ou não do poder de direção por parte da plataforma – à semelhança, de resto, do poder disciplinar previsto na alínea e) –, diremos que tal se afigura ser mais uma conclusão jurídica a extrair dos factos do que uma característica para a existência de presunção: com efeito, como de modo assertivo escreveu João Leal Amado (Colóquios do Supremo Tribunal de Justiça, XII Colóquio de Direito do Trabalho, Novembro de 2022, As Plataformas Digitais e o Novo Art. 12.º-A do Código do Trabalho: Empreendendo ou Trabalhando?, pág. 124), «(…) se o prestador da atividade provar que a plataforma digital exerce sobre ele tanto o poder de direção como o poder disciplinar não parece que tenha mais nada a provar para que o tribunal conclua, diretamente e sem dar um salto no desconhecido, que está perante um contrato de trabalho».

Já quanto às regras específicas de prestação da atividade, resulta da matéria de facto todo um procedimento padrão a ser observado.
Assim:
- a ré gere a aplicação informática/plataforma digital “Glovoapp”, através da qual certos estabelecimentos comerciais oferecem e, a solicitação dos utilizadores cliente, através de uma aplicação móvel ou através da internet, é proposta a entrega de produtos encomendados, por estafetas que se encontram registados na plataforma (n.ºs 2, 3 e 4);
- essa inscrição foi previamente efetuada, com informação de dados pessoais em formulário elaborado pela ré, início de atividade nas finanças, área geográfica onde cada um pretende fazer as entregas, etc., devendo também, cada um deles, para que lhes possa ser distribuídas tarefas/pedidos na plataforma aceder ao seu “perfil da conta” na aplicação “Glovo Couriers” que instalaram no seu telemóvel, sendo que só quando efetuam o “login” na aplicação é que lhes podem ser apresentados pedidos de recolha e entrega de refeições e outros bens (n.ºs 14 a 18);
- nessa inscrição prévia encontra-se também, caso o interessado pretenda vir a usar veículo(s)s a motor na recolha e entrega dos produtos, a necessidade de declarar dispor de carta de condução e seguro de responsabilidade civil referente ao(s) mesmo(s) (n.º 47).
Ou seja, existe todo um procedimento prévio, um modus operandi pré-definido que os interessados em exercer a atividade indicada têm que observar.
E após esse procedimento:
- tendo um utilizador/cliente efetuado um pedido na plataforma, aceite a mesma pelo parceiro/estabelecimento, através da referida aplicação é oferecido a um estafeta o serviço de entrega referente ao pedido (n.ºs 19 a 21);
- caso o estafeta aceite o serviço, dirige-se para a morada do parceiro/estabelecimento, onde recolhe o produto, após o que se dirige à morada do utilizador cliente, onde efetua a entrega (n.ºs 23 a 25);
- ao estafeta são fornecidos os dados relevantes para fazer a recolha e entrega do produto, como nome e morada do parceiro/estabelecimento, do utilizador/cliente, distância estimada, detalhes do pagamento, lista de artigos do pedido e valor do mesmo, sendo o itinerário e o meio de transporte escolhido pelos estafetas (n.ºs 27 a 29);
- para além disso, encontram-se pré-definidos outros procedimentos referentes ao serviço, como, por exemplo, situações em que ele é recusado (n.º 34), a entrega do produto/encomenda aos clientes, regras a observar quando estes procedem ao pagamento do preço por determinada forma (n.º 32) preço do serviço (n.ºs 35 e 36), a forma e prazo de pagamento ao estafeta (n.º 39).
Verifica-se, pois, que quer com vista ao início da atividade, quer no exercício da mesma, a ré pré-definiu e regulou, no essencial e através de procedimentos padronizados, a conduta a observar por qualquer prestador da atividade/estafeta perante o utilizador/cliente, bem como a própria prestação da atividade em si.
Neste enquadramento, e especificamente apenas quanto à determinação pela ré da conduta do prestador da atividade/estafeta perante o utilizador do serviço/cliente e prestação de atividade em si, inscrevem-se no disposto na referida alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho, rectius, nas características aí previstas.

Já quanto à característica prevista na alínea f) do normativo legal em referência (os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencerem à plataforma digital ou serem por esta explorados através de contrato de locação), é certo que no exercício da sua atividade profissional a ré gere a aplicação informática/plataforma digital “Glovoapp”, através da qual certos estabelecimentos comerciais oferecem os seus produtos e, quando solicitados pelos utilizadores/clientes, através de uma aplicação móvel ou através da internet, propõe a entrega dos produtos encomendados, serviço a efetuar pelos estafetas que, para esse efeito, se encontram registados na plataforma (factos n.ºs 2 a 4).
A aplicação informática/plataforma digital gerida pela ré apresenta-se, pois, indispensável, conditio sine qua non, para o exercício da atividade profissional em causa.
Mas será tal suficiente para se considerar verificada a característica em causa?
Assim não entendemos.
Desde logo, como resulta do n.º 50 da matéria de facto, são os estafetas que suportam os custos de aquisição, manutenção e reparação dos veículos, mochilas, luvas capacetes e telemóveis que usam para procederem às entregas e para se ligarem à aplicação da ré.
Particularmente relevante apresenta-se o telemóvel: a aplicação informática tem, necessariamente, que nele ser instalada, pois só assim se podem ligar à aplicação da ré e, enfim, desencadear todo o procedimento tendo em vista a entrega dos produtos.
É certo que a presunção de laboralidade do artigo 12.º-A se encontra adaptada e visa precisamente situações de trabalho nas plataformas digitais, pelo que em tais situações terá que existir, necessariamente, uma aplicação informática/plataforma digital para o exercício da atividade.
Porém, afigura-se que para que se verifique a característica em análise exige-se mais, exige-se que alguns equipamentos/instrumentos de trabalho pertençam à ré, pois de outro modo, ou seja, se fosse suficiente para a verificação da característica que a ré gerisse uma aplicação informática, então seria redundante a existência desta característica, pois a própria atividade em causa, trabalho em plataforma digital, já conteria o requisito/caraterística da alínea f).
Por consequência, entende-se não se verificar a característica prevista na alínea f).

Em síntese, entende-se verificarem-se as características previstas nas alíneas a), b) e e) (esta identificada na decisão recorrida, maxime tendo em conta os factos provados sob os n.ºs 41 e 42) do n.º 1, do artigo 12.º-A, do Código do Trabalho) e, por consequência, estar preenchida a presunção de existência dos contratos de trabalho em causa.

2. Perante a verificação da presunção de laboralidade, a questão que ora se coloca consiste em saber se, como sustenta a recorrida nas contra-alegações, a referida presunção é inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 13.º, 18.º n.º 2 e 3 e 61.º da Constituição da República Portuguesa.
Para tanto, a recorrida ancorou-se, no essencial, na seguinte argumentação:
«O artigo 12.º-A do Código do Trabalho, aditado pela Lei n.º 13/2023, ao fazer recair sobre determinados sujeitos pelo simples facto de serem qualificados como “plataforma digital” uma presunção de existência de contrato de trabalho através de um leque mais alargado de características, para além das já previstas no artigo 12.º do Código do Trabalho, encerra em si mesmo uma grosseira violação ao princípio da igualdade (artigo 13.º).
Por outro lado, ao estabelecer uma presunção mais alargada de existência de contrato de trabalho, restringe, de forma indireta, o exercício da liberdade de iniciativa económica privada enquanto liberdade de gerir a empresa sem interferências externas (art.º 61.º) das plataformas digitais.
(…)
[N]ão é proporcional nem razoável que se exija às plataformas digitais, pelo simples facto de assim serem qualificadas, um ónus excessivo de ilisão de presunção de existência de contrato de trabalho pelo facto de se verificarem determinadas características, quando, por seu turno, em situação semelhante essas características não sirvam para presumir a existência de contrato de trabalho pelo facto de o credor da atividade não ser qualificado como plataforma digital».
Não se anui a tal entendimento.
O princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa assume duas dimensões: (i) a proibição do arbítrio, sendo inadmissíveis diferenças de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valores objetivos e constitucionalmente relevantes, e (ii) a proibição de discriminação, sem fundamento material bastante.
Como acentuam Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª Edição, Coimbra Editora, pág. 340), a proibição de discriminação não significa uma igualdade absoluta em todas as situações, nem proíbe diferenciação de tratamento: «[o] que se exige é que as medidas de diferenciação sejam materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da proporcionalidade, da justiça e da solidariedade e não se baseiem em qualquer motivo constitucionalmente impróprio. As diferenciações de tratamento podem ser legítimas quando: (a) se baseiam numa distinção objectiva de situações; (b) não se fundamentem em qualquer dos motivos indicados no º 2; (c) tenham um fim legítimo segundo o ordenamento constitucional positivo; (d) se revelem necessárias, adequadas e proporcionadas à satisfação do seu objectivo.
Ora, perante as novas formas de prestação do trabalho, em plataformas digitais, com especificidades/caraterísticas muito próprias, tornava-se necessário adaptar as regras do direito do trabalho para abarcar tais situações, designadamente quanto à presunção.
Por isso se justifica a existência de um regime próprio em matéria de presunção de laboralidade, sem que tal configure qualquer discriminação em relação às plataformas digitais.
Também não se lobriga que o estabelecimento da presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital possa constituir qualquer limitação inadmissível à liberdade de iniciativa económica privada: o que poderá estar em causa é uma restrição da liberdade económica, em função de outros direitos consagrados na lei fundamental, designadamente dos direitos dos trabalhadores (artigo 53.º e segts.) e do próprio direito, e dever (!), do Estado de intervir na organização e desenvolvimento económico e social (artigo 80.º e segts.).
Como de modo assertivo escreve Teresa Coelho Moreira (Direito do Trabalho na Era Digital, 2.ª Edição, Almedina, pág. 127) «[s]e estas novas formas de prestar trabalho, criadas pela fantástica evolução da tecnologia, podem constituir, como por vezes se diz, uma terra de grandes oportunidades, não cremos que tal terra deva ser uma terra sem lei, máxime sem lei laboral.
(…)
A não adoção de uma presunção legal de laboralidade significaria dizer às pessoas que consideram que são verdadeiros trabalhadores que teriam que recorrer aos tribunais e provar todos os factos quando estamos perante uma relação de desequilíbrio de poder e com total opacidade face à forma como trabalham, como funciona o algoritmo, sem cumprimento dos deveres de informação. Iniciar um processo judicial já é, por si só, bastante difícil. Demonstrar que se é trabalhador, sem ter acesso ao algoritmo ou aos documentos oficiais sobre o funcionamento da plataforma, é quase impossível».
Nesta conformidade, concluiu-se que não viola os preceitos constitucionais indicados a presunção de contrato no âmbito da plataforma digital prevista no artigo 12.º-A do Código do Trabalho.

3. A questão que ora se coloca consiste em saber se a presunção de contrato de trabalho se mostra ilidida.
A nossa resposta, adiante-se já, é afirmativa.
Expliquemos porquê.

De acordo com a factualidade que assente ficou:
- o estafeta pode aceitar, não responder, ou rejeitar o serviço proposto (n.º 22);
- essa rejeição pode verificar-se mesmo após o estafeta já ter aceitado o serviço proposto, sem que tal afete o estatuto da sua conta na aplicação, a apresentação de futuros serviços e o preço de tais futuros serviços (n.ºs 24, 33 e 34);
- após a aceitação do serviço, os estafetas podem permitir ou não que a plataforma tenha acesso à sua localização, sem que isso tenha impacto na realização do serviço ou leve a alguma penalização (n.º 30);
- são eles que, após a aceitação do serviço, escolhem o meio de transporte utlizado, definem o percurso a seguir, podendo desligar a geolocalização do telemóvel (n.º 31);
- os estafetas, uma vez por dia, podem alterar um multiplicar que permite aumentar o valor total recebido por cada serviço (n.º 36);
- os estafetas escolhem os dias e horas que pretendem ligar-se à aplicação da ré (n.º 45);
- e podem subcontratar outro prestador de serviços de entrega (n.º 46).
Segundo se entende, esta factualidade é impressiva para afastar a existência de qualquer subordinação jurídica do estafeta em relação ré.
Com efeito, não obstante a ré, através da plataforma digital, organizar e coordenar a prestação da atividade, não só no que se refere à específica recolha e entrega dos produtos, mas também à observância pelos estafetas de procedimentos que foram por ela (ré) pré-definidos, são os estafetas que escolhem os dias e horas que pretendem ligar-se à aplicação da ré (ou seja, as horas em que pretendem prestar a atividade), assim como podem recusar o serviço, sem que tal implique qualquer penalização.
Além disso, após aceitarem o serviço, são eles que escolhem o meio de transporte a utilizar, o percurso a seguir, podendo até desligar a geolocalização do telemóvel.
Tal significa, em retas contas, por um lado, que os estafetas gozam de uma ampla autonomia na prestação da atividade e, por outro, que a ré não determina nem controla aspetos significativos da prestação da atividade.
Particularmente decisivo apresenta-se o facto do estafeta poder subcontratar outro prestador de serviço para realizar a entrega: sendo o contrato de trabalho um contrato intuitu personae, em que as qualidades pessoais do trabalhador são elementos essenciais para a conformação da relação de trabalho, a possibilidade de subcontratação de outro prestador da atividade não se harmoniza com tal caraterística.
Como bem assinala o tribunal a quo, através da possibilidade de os estafetas se fazerem substituir por outras pessoas o que demonstra é que à ré não interessa a atividade em si daquele concreto estafeta, mas sim o resultado da mesma (entrega dos produtos), caraterística do contrato de prestação de serviço.
Aliás, no sentido desta última caraterização apresenta-se também o facto dos estafetas serem pagos em função de cada serviço prestado e depois de o terem realizado, independentemente do tempo que tenham estado previamente online na aplicação, ou entre a conclusão de uma entrega e a aceitação de um novo pedido, assim como serem responsáveis pela perda ou danificação dos produtos que transportam (factos n.º 38 e 51).
Outros factos ainda, embora de menor relevância, apontam para a existência de prestação de serviço, como sejam o regime fiscal (através da emissão de recibos – facto 40) e a possibilidade dos estafetas prestarem outras atividades ou, inclusive, a mesma atividade para empresas concorrentes (n.º 53).
Nesta sequência, ilidida que que se mostra a presunção de laboralidade, e sopesando toda a factualidade que assente ficou, impõe-se concluir que não se demonstra a existência de um contrato de trabalho entre a ré e cada um dos estafetas mencionados no recurso.
Assim, sem desdouro pela argumentação do recorrente, o recurso não pode proceder.

4. Não são devidas custas, face à isenção de que goza o Ministério Público/recorrente (artigo 4.º, n.º 1, alínea a) do Regulamento de Custas Processuais, artigo 9.º do Estatuto do Ministério Público e artigo 186.º-K do Código de Processo do Trabalho).

V. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em:
1. não admitir os documentos apresentados com as contra-alegações, pelo que se ordena o seu desentranhamento e devolução à apresentante/recorrida, condenando-se a mesma em 1 (uma) UC pelo incidente processual;
2. negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Sem custas.

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Évora, 12 de setembro de 2024
João Luís Nunes (relator)
Emília Ramos Costa
Paula do Paço
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[1] Relator: João Nunes; Adjuntas: (1) Emília Ramos Costa, (2) Paula do Paço.