CONTRATO DE SEGURO
DANOS INDIRECTOS
NEXO DE ADEQUAÇÃO CAUSAL
Sumário

A cláusula inserida nas condições gerais de um contrato de seguro de responsabilidade civil extracontratual, com o teor “o presente contrato nunca garante os danos (…) indiretos de qualquer natureza, ou seja, os danos que não sejam consequência imediata e direta do ato ou omissão do segurado”, não exclui a obrigação de ressarcimento de nenhuns danos sofridos pela pessoa diretamente lesada, desde que o âmbito da proteção oferecida pela norma que proíbe o ato danoso abranja os efeitos prejudiciais em causa e se verifique o necessário nexo de adequação causal.

Texto Integral

Processo 133/24.8YRPRT – Recurso de decisão arbitral
Tribunal a quo Tribunal arbitral constituído perante o Centro de Informação, Mediação e Arbitragem de Seguros
Recorrente A... – Companhia de Seguros, S.A.
Recorridos AA e BB

Sumário:
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Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório:

Identificação das partes e indicação do objeto do litígio

AA e BB instaurou processo de reclamação perante o Centro de Informação, Mediação e Arbitragem de Seguros, contra A... – Companhia de Seguros, S.A., pedindo, no que para o presente recurso releva, a condenação da ré no pagamento aos autores de uma indemnização “não inferior a € 15.000,00”, “a título de danos morais sofridos”.
Para tanto, afirmam que a autora foi vítima de um sinistro – incêndio da sua casa de habitação –, estando a responsabilidade civil extracontratual do responsável pelo mesmo coberta por um contrato de seguro firmado com a ré. A indemnização reclamada visa ressarcir os autores “por todos os incómodos sofridos e por todos os bens de valor emocional perdidos no incêndio, impossíveis de substituição (como vestido e fato de casamento, fato batismo de seu filho, entre outros)”.

Notificada, a contraparte apresentou contestação, sustentando que o dano alegado pela autora é um dano indireto, constando das condições gerais do contrato de seguro que “O presente contrato nunca garante os danos (…) indiretos de qualquer natureza, ou seja, os danos que não sejam consequência imediata e direta do ato ou omissão do segurado”. Impugna, ainda, o valor da liquidação do referido dano.
Após realização da audiência de julgamento, o tribunal arbitral a quo julgou o pedido – aqui em reapreciação – procedente, concluindo nos seguintes termos:
“(…) [condeno] a reclamada a pagar aos reclamantes a quantia de € 15 000,00, a título de indemnização dos danos não patrimoniais, nos termos e com os efeitos previstos no artigo 26.º do Regulamento do CIMPAS”

Inconformada, a ré recorreu desta decisão, concluindo, no essencial:
1. A recorrente não se conforma com a sentença proferida apenas na parte em que foi condenada a pagar aos reclamantes a quantia de € 15.000,00 a título de danos de natureza não patrimonial.
2. Com efeito, e desde logo, entende – e sustenta primordialmente – a recorrente que tais danos se encontram contratualmente excluídos. (…)
5. A exclusão invocada pela recorrente prende-se (…) com os danos indiretos cuja exclusão se preceitua na alínea t) do n.º 1 da cláusula 6.ª, ou seja, aqueles que não sejam consequência imediata e direta dos atos (ou omissões do Segurado).
6. Ocorre que, e tal como resulta da factualidade provada, os danos de natureza não patrimonial sofridos pelos reclamantes reportam-se a período ulterior ao incêndio, mais concretamente aos 9 meses que se seguiram. (…)
13. Caso, contudo esse Colendo Tribunal assim não venha a entender – o que se não aceita nem concede, mas ora se admite, ainda que por mera hipótese de raciocínio – entende, ainda assim, a ora recorrente que não foi feita prova dos factos consubstanciadores de tais danos.
14. Na verdade, e como bem se reconhece na motivação da decisão arbitral, a sua prova assentou exclusivamente nas declarações de parte da reclamada e no depoimento testemunhal do seu filho. (…)
16. É doutrinal e jurisprudencialmente assente que as declarações de parte interessada são um mero «início de prova», só podendo vir a fundar a prova de factos que lhe sejam favoráveis se forem corroboradas e complementadas com outros elementos probatórios – o que, no caso dos autos reconhecidamente não ocorreu.
17. Por último, e sempre sem conceder, entende ainda a recorrente que o montante indemnizatório fixado, coincidente com o peticionados, se revela, no caso, desproporcional aos danos alegadamente sofridos pelos reclamantes.
18. Efetivamente, o recurso à equidade – que jamais poderá equivaler a pura arbitrariedade - não dispensa o princípio da igualdade, visando, além do mais, a uniformidade na aplicação e interpretação do Direito.
19. Assim, e se atentarmos nas indemnizações judicialmente fixadas em situações bem mais gravosas, mormente no âmbito do ressarcimento do dano biológico, ter-se-á que reconhecer que o montante ora arbitrado pecará por excesso afigurando-se-nos antes justo e adequado o valor de € 5.000,00.

Os recorridos contra-alegaram, pugnando pela manutenção de decisão do tribunal a quo recorrida.

Após os vistos legais, cumpre decidir.

II – Objeto do recurso:

A impugnação da matéria de facto assenta numa questão de direito, não obrigando à análise do concreto teor da prova produzida: a idoneidade das declarações de parte para fundarem a convicção do julgamento de um facto.
A questão de direito a apreciar respeita ao direito dos reclamados à indemnização dos danos não patrimoniais e (subsidiariamente) à excessividade do valor dessa indemnização.
Acresce a decisão sobre a responsabilidade pelas custas.

III – Fundamentação:

É a seguinte a fundamentação de facto da decisão recorrida (inserindo-se, para melhor apreensão, a identificação do tema da factualidade em causa incluída nos factos provados).

Factos provados

1. Ocorrência do sinistro

1 – Os reclamantes são proprietários do prédio urbano identificado na caderneta predial e na descrição predial juntas com a reclamação inicial;
2 – A reclamada celebrou com a empresa “B..., S.A.” um contrato de seguro na modalidade de responsabilidade civil geral titulado pela apólice n.º ... através do qual lhe transferiu a responsabilidade civil extracontratual decorrentes de sinistros, designadamente causados por incêndios;
3 – No dia 22-09-2020, ao início da tarde, pelas 14h, aproximadamente, ocorreu uma queda de uma linha elétrica de média tensão no entroncamento da Rua ... com a Rua ..., em ... – Gondomar;

2. Danos patrimoniais sofridos

4 – Este evento deflagrou um incêndio na habitação dos reclamantes que se propagou por toda a habitação destruindo-a, parcialmente, assim como ao seu recheio;
5 – A reclamada ordenou a averiguação do sinistro;
6 – A averiguação do sinistro foi realizada pela empresa “C...” através do perito CC;
7 – A reclamada assumiu a responsabilidade pelo sinistro;
8 – Em 21-01-2021 a reclamada pagou aos reclamantes as quantias de €31.019,04, para indemnização dos danos causados na habitação, e de €15.924,78, para indemnização dos danos causados no recheio da habitação:
9 – Em 22-04-2021 a reclamada pagou aos reclamantes a quantia de €7.134,38 para indemnização do Iva suportado por aqueles com a obra de reparação dos danos causados na habitação;
10 – Os reclamantes deram quitação das indemnizações recebidas através da assinatura de dois recibos;
11 – Dos recibos consta a menção seguinte:
Lisboa, 21 de Janeiro de 2021
RAMOPROCESSORECIBOSEGURADORA
RESPONSABILIDADE CIVIL......A...
SINISTROAPÓLICEDATA DO SINISTROVALOR
......2020-09-2246943,82 EUR
Não Sujeito a IRS
Com o recebimento da quantia acima, damos plena e integral quitação ao Segurador no que respeita às indemnizações por ele devidas ao abrigo da apólice em título em consequência do sinistro referenciado, subrogando-o em todos os nossos direitos contra os responsáveis pelos prejuízos indemnizados. A apólice, nos termos das suas condições, mantém-se em vigor.
Imóvel 31.019,04 euros; Recheio 15.924,78 euros
COBERTURARUBRICAVALORFACTOR
COBERTURA BASEIndemnizações Diversas46943,82 EUR
LEGALIZAÇÃO RECIBO
Lisboa, 22 de Abril de 2021
RAMOPROCESSORECIBOSEGURADORA
RESPONSABILIDADE CIVIL......A...
SINISTROAPÓLICEDATA DO SINISTROVALOR
......2020-09-227134,38 EUR
Não Sujeito a IRS
Com o recebimento da quantia acima, damos plena e integral quitação ao Segurador no que respeita às indemnizações por ele devidas ao abrigo da apólice em título em consequência do sinistro referenciado, subrogando-o em todos os nossos direitos contra os responsáveis pelos prejuízos indemnizados. A apólice, nos termos das suas condições, mantém-se em vigor.
Reembolso valor de iva referente reparação do imóvel
COBERTURARUBRICAVALORFACTOR
COBERTURA BASEIVA7134,38 EUR
LEGALIZAÇÃO RECIBO
12 – Os reclamantes assinaram, sem reservas e/ou condições, os recibos de quitação;

3. Danos não patrimoniais sofridos

13 – Desde a data do incêndio até conclusão das obras de construção civil efetuadas na habitação da requerente decorreram nove meses, durante os quais os reclamantes e o seu filho dormiram na cave da casa, em cima de paletes cobertas com cobertores, cave essa onde, e de igual forma, faziam as suas refeições;
14 – Durante nove meses os reclamantes e o filho viveram sem privacidade e em condições indignas;
15 – Esta situação causou transtornos, tristeza, depressão, raiva, infelicidade, insónias, aos reclamantes e ao seu filho;
16 – Os reclamantes e o filho não dispunham de uma habitação alternativa e não tinham rendimentos para arrendar uma habitação;
17 – O fogo destruiu bens pessoais dos reclamantes e do filho, disso sendo exemplo o fato e vestido de casamento e o fato de batismo do seu filho.

Impugnação da decisão sobre a matéria de facto

1. Âmbito da impugnação do julgamento de facto

Pretende a recorrente ver alterada a decisão respeitante à matéria de facto, no sentido de se considerar não provada a factualidade respeitante aos danos não patrimoniais sofridos pelos requerentes. Não pede, no entanto, a recorrente que a prova produzida seja reapreciada – dado que não foi gravada –, mas sim que se considerem inidóneos à demonstração da factualidade em questão os meios de prova dos quais o tribunal se socorreu na fundamentação da convicção.
A recorrente, depois de afirmar que, “como bem se reconhece na motivação da decisão arbitral”, a prova dos danos não patrimoniais “assentou exclusivamente nas declarações de parte da reclamada e no depoimento testemunhal do seu filho”, sustenta que “as declarações de parte interessada são um mero ‘início de prova’, só podendo vir a fundar a prova de factos que lhe sejam favoráveis se forem corroboradas e complementadas com outros elementos probatórios – o que, no caso dos autos reconhecidamente não ocorreu”.

O tribunal arbitral a quo motivou a sua convicção, no que respeita à decisão sobre os danos não patrimoniais sofridos, nos seguintes termos:
«(…) [Foram tidas] em conta (…) as declarações de parte prestadas pela reclamante AA, em que se limitou a confirmar o teor da reclamação inicial, o depoimento da testemunha DD, filho da reclamante, que também se limitou a confirmar o que foi dito na reclamação inicial, (…) em conjugação, ainda, com as regras da experiência e com os juízos da normalidade da vida (…). (…)
Este tribunal arbitral formou a sua convicção do modo seguinte: (…)
e) Quanto aos factos n.os 13 a 17, pelas declarações de parte prestadas pela reclamante e pelo depoimento da testemunha DD. (…)».

2. Discussão do fundamento invocado

À partida, todo o material probatório validamente adquirido pelo processo deve permitir ao juiz formar a sua convicção. Ora, não existe qualquer fundamento epistemológico para não se reconhecer nas declarações favoráveis ao depoente um meio válido de formação da convicção esclarecida e racional do julgador, isto é, uma fonte válida de convencimento racional do juiz.
É certo, no entanto, que, perante a invocação de uma realidade pretérita que desconhece, o tribunal se encontra num estado de incerteza sobre a ocorrência desta. A mera alegação do facto por um dos litigantes, impugnada pelo outro, não pode, por regra, bastar para que a situação de incerteza inicial seja vencida. Assim o obriga o dever do Estado de dispensar um tratamento isonómico aos seus cidadãos, como corolário do princípio da igualdade entre estes (art. 13.º da CRP).
Isto significa que, em casos nos quais é impossível reconhecer maior credibilidade à narrativa de um dos litigantes – relativamente à apresentada pela contraparte –, e não existindo nenhum outro meio probatório dessa realidade, o resultado da pronúncia de facto não pode ser outro que não seja o de não provado. Tais meios de prova confirmatórios, tratando-se de uma alegada realidade relativamente à qual deveriam abundar e ser inequívocos, não podem ser dispensados.
A questão que se coloca em cada caso concreto é, assim, a da suficiência das declarações favoráveis ao depoente para a formação desta convicção. As regras da experiência sugerem que a fiabilidade das declarações em benefício próprio é reduzida. Por esta razão, compreende-se que se recuse ao depoimento não confessório força para, desacompanhado de qualquer outra prova, permitir a demonstração do facto favorável ao depoente. Já integrado num acervo probatório mais vasto, poderá mesmo ser decisivo na prova desse facto, pois proporciona um material probatório necessário à prova do facto.
Em suma, duas circunstâncias são determinantes na valoração da prova por declarações de parte: a existência, ou não, de meios de prova confirmatórios, sobretudo tratando-se de uma alegada realidade relativamente à qual deveriam abundar e ser inequívocos, de acordo com as regras da experiência; a circunstância de a factualidade em causa ter ocorrido sem publicidade – por exemplo factos ocorridos na intimidade do lar, relações contratuais conhecidas apenas das partes e acidentes de viação presenciados apenas pelos intervenientes. A estas duas circunstâncias somam-se as regras da experiência, já acima referidas – por exemplo, bastam as declarações de parte da vítima de uma extensa queimadura para a prova de esta lhe causou dor.
No caso em análise, por um lado, a decisão sobre a prova dos danos não patrimoniais não assentou apenas nas declarações de parte; fundou-se, ainda, no depoimento de uma testemunha e nas regras da experiência. Ora, a apreciação da prova produzida não se reconduz a um “contar de espingardas”. Tal equivale a dizer que inexiste qualquer regra que obrigue à audição de várias testemunhas para se poder chegar a uma conclusão confirmatória da verificação do facto. Considerando a natureza dos factos em questão, arriscamos mesmo a dizer que de muito pouco serviria arrolar uma mão cheia de amigos e familiares para que se produzissem depoimentos redundantes sobre estes danos.
Por outro lado, considerando a situação degradante vivida alegada, não estamos perante factos com relevante publicidade – como a tristeza sentida no dia a dia vivido no interior da habitação. Ditam as regras da experiência, não só que os lesados se encontravam numa situação que não é propícia ao recebimento de convidados – isto é, à existência de testemunhas da infelicidade sentida quando se encontravam em casa –, mas também que tal estado de coisas é (em regra e com exceção dificilmente configurável) idóneo a provocar sentimentos e sensações que afetam negativamente quem as experimenta.
Concluímos, deste modo, pela improcedência da impugnação da decisão quanto à matéria de facto.

Análise dos factos e aplicação da lei

Cumpre apreciar as seguintes questões:
1. Exclusão da garantia de indemnização por danos indiretos
2. Liquidação do dano
3. Responsabilidade pelas custas

1. Exclusão da garantia de indemnização por danos indiretos

Sustenta a recorrente que os danos não patrimoniais sofridos são, no caso concreto, danos indiretos, e que estes danos estão excluídos da cobertura contratual por força da al. t) do n.º 3 do art. 6.º das condições gerais do contrato de seguro invocado.
É o seguinte o teor da disposição contratual invocada: “O presente contrato nunca garante os danos (…) indiretos de qualquer natureza, ou seja, os danos que não sejam consequência imediata e direta do ato ou omissão do segurado”. Estamos perante uma cláusula limitativa do âmbito da cobertura que não é abusiva, visando a seguradora controlar o aumento desmesurado do risco de sinistro – pense-se num evento traumatizante presenciado por milhares de pessoas que se consideram moralmente afetadas (lesadas). Entende a recorrente que, porque se reportam “a período ulterior ao incêndio, mais concretamente aos nove meses que se seguiram”, os danos em questão devem ser qualificados como “danos indiretos”.

Partindo da compreensão da categoria ‘dano’ como sendo a repercussão negativa do ato (ilícito, por regra) – a “consequência negativa que se faz sentir na dimensão material, espiritual ou moral que é tutelada subjetiva ou objetivamente” – cfr. Mafalda Miranda Barbosa, Lições de Responsabilidade Civil, Cascais, Principia, 2017, p. 300 –, deve reconhecer-se que o conceito de “dano indireto” não é unívoco. Tal conceito é adotado, por exemplo, quer no âmbito da discussão em torno da ressarcibilidade de danos “puramente patrimoniais” ou “puramente económicos”, quer no contexto da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais causados a uma pessoa diferente daquela que suportou física e diretamente, na sua pessoa ou nos seus bens, a ação danosa.
É hoje amplamente aceite a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais causados a uma pessoa em consequência de lesão diretamente causada a outra pessoa. Na jurisprudência surge incontornável o AUJ do STJ n.º 6/2014, de 9 de janeiro de 2014: “Os artigos 483.º, n.º 1 e 496.º, n.º 1 do Código Civil devem ser interpretados no sentido de abrangerem os danos não patrimoniais, particularmente graves, sofridos por cônjuge de vítima sobrevivente, atingida de modo particularmente grave”. Na doutrina, veja-se Rute Teixeira Pedro, «Os danos não patrimoniais (ditos) indiretos: uma reflexão ratione personae sobre a sua ressarcibilidade», in Responsabilidade Civil: Cinquenta Anos em Portugal, Quinze Anos no Brasil, 2017, Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, p. 239 e segs., e Maria Manuel Veloso, «Danos não patrimoniais», in Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, Volume III – Direito das Obrigações, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 495 e segs.. Está aqui em causa, por exemplo, não apenas o sofrimento de uma pessoa com a morte de outra, mas também o sofrimento daquela por ver uma pessoa à qual está profundamente ligada (a que sofreu a lesão corporal) sofrer intensamente em resultado do facto ilícito.
O conceito de “dano indireto” também nos remete para a problemática da ressarcibilidade de danos “puramente patrimoniais” sofridos por terceiros estranhos à relação jurídica nuclear (como nos afamados “cable cases”) – cfr. Mafalda Miranda Barbosa, Liberdade vs. Responsabilidade, Coimbra, Almedina, 2006, p. 214 e segs., e «Um caso de ressarcimento de danos puramente patrimoniais. Comentário ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de setembro de 2016 (processo n.º 1952/13.6TBPVZ.P1.S1)», RJLB, Ano 3 (2017), n.º 2, p. 453 e segs., Manuel Carneiro da Frada, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Coimbra, Almedina, 2016, p. 238 e segs., e «Danos económicos puros: ilustração de uma problemática», in Forjar o Direito, Coimbra, Almedina, 2019, p. 161 e segs., Jorge Sinde Monteiro, Responsabilidade por Conselhos, Recomendações ou Informações, Coimbra, Almedina, 1989, 187 e segs., e «Danos puramente patrimoniais: a propósito do caso ACP v. Casa da Música / Porto 2001, S.A.», RFDCP, n.º 9 (2017), Universidade Lusófona do Porto, p. 195 e segs., e Adelaide Menezes Leitão, Normas de Proteção e Danos Puramente Patrimoniais, Coimbra, Almedina, 2009, § 9 (p. 252 e segs.), e «A Responsabilidade Civil por violação de normas de protecção no âmbito do código de valores mobiliários», in Responsabilidade Civil – Cinquenta Anos em Portugal, Quinze Anos no Brasil, Vol. II, 2018, Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, p. 7 e segs..
Estas diferentes apropriações do conceito de “dano indireto” têm em comum o facto de o dano ser experimentado por quem, numa relação jurídica ressarcitória típica, seria considerado um terceiro estranho, não titular de um direito sobre o autor do facto ilícito. São, assim, casos em que o terceiro é titular de uma relação jurídica afetada pelo ato ilícito, “não na sua substância, mas na sua consistência prática” – cfr. João Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, Coimbra, Almedina, 1991, p. 596.

Pode, é certo, ser adotada uma definição de “dano indireto” que abranja outros danos sofridos pela pessoa diretamente lesada, em momentos subsequentes de um longo ou complexo processo causal. “Dano indireto” será aqui o efeito danoso mediato ou remoto do ato danoso – cfr. Antunes Varela, Das Obrigações, cit., p. 595, e Mário Almeida e Costa, Direito das Obrigações, Coimbra, Almedina, 1994, p. 501. Este tipo de danos é, neste contexto, definido pela negativa: dano indireto é aquele que não é direto, sendo que este é aquele que resulta imediatamente do ato ilícito.
Como “imediatamente” é aqui sinónimo de “diretamente”, estamos, no essencial, perante uma definição circular, sem grande préstimo. Com base nela, no limite, poder-se-ia chegar ao absurdo de se considerar direto apenas o dano real, sendo indiretos todos os demais – por exemplo, repercussão patrimonial negativa do dano biológico (corporal) não seria um dano direto, pelo que o dano não patrimonial resultante do esmagamento de uma perna seria considerado um dano direto, sendo todos os demais, incluindo o custo da cirurgia de amputação desse membro, danos (patrimoniais e não patrimoniais) indiretos. Toda a vasta categoria dos lucros cessantes seria preenchida por danos indiretos – cfr. Jorge Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, Vol. I, Coimbra, Almedina, 2020, p. 462
Esta definição mais abrangente, que se aproxima da distinção entre “dano-evento” e “dano-consequência” – estéril, para os efeitos que nos ocupam (o direito à prestação garantida por um segurador) –, nada acrescenta, no entanto, à ideia de adequação causal, prestando-se, no que excede o âmbito deste pressuposto da obrigação de indemnização (art. 563.º do Cód. Civil), a concretizações arbitrárias e a distinções injustificadas – relação entre estes pressupostos da responsabilidade civil evidenciada por Mafalda Miranda Barbosa, Responsabilidade Civil Extracontratual, Cascais, Principia, 2014, p. 10, notas de rodapé 2, 3, 4 e 5. Não causa, assim, estranheza que, a propósito da ressarcibilidade dos “danos subsequentes”, Carneiro da Frada convoque (no âmbito da responsabilidade civil contratual) o requisito dos “justos limites; por exemplo, balizada por critérios de adequação (e/ou previsibilidade) para o devedor (…)”: Manuel Carneiro da Frada, Direito Civil – Responsabilidade Civil, Coimbra, Almedina, 2006, p. 92.
Uma categorização do dano que compreenda o tipo “dano indireto”, descrevendo-o, circularmente, como o dano que não é direto, não tem aqui nenhum valor operativo (nem mesmo descritivo). Isto significa que apenas a ideia de “lesado indireto” permite dotar o conceito de “dano indireto” de utilidade e espessura dogmática. Relativamente ao “lesado direto”, todos os danos são diretos, assim se verifique a necessária relação causal adequada entre o ato danoso e o prejuízo. Ou seja, quanto a este, desde que o âmbito da proteção oferecida pela norma que proíbe o ato danoso abranja os efeitos prejudiciais em causa, e existindo a necessária relação causal, deve entender-se que estamos perante um “dano direto”.
Assim se chega a uma definição de “dano indireto” mais objetivável e operativa, consonante com a considerada no acima citado AUJ do STJ n.º 6/2014.

Importa, no entanto, sublinhar que, no caso concreto tratado neste processo, e ainda que se adotasse um conceito de “dano indireto” que permitisse classificar como tal um dano (causalmente adequado) sofrido pelo lesado direto, sempre se teria de considerar que o dano não patrimonial especialmente invocado pelos autores não pode ser qualificado como tal. Estamos, na verdade, perante um normal dano não patrimonial diretamente decorrente do facto danoso, não distinto, para estes efeitos – proximidade no processo causal –, do dano não patrimonial sofrido com uma difamação ou do dano moral (“dano-consequência”) decorrente do dano corporal (“dano-evento”).
No essencial, a recorrente entende que estamos perante um “dano indireto” porque se reporta “a período ulterior ao incêndio”, prolongando-se no tempo (por nove meses). Tivesse o sofrimento durado nove horas e, porventura, seria indemnizável; como durou nove meses, já não o é. Quanto mais tempo demorar o devedor a efetuar a prestação idónea a evitar a subsistência do dano, menos protegido fica o lesado. No limite, os danos vitalícios ou intermináveis, designadamente não patrimoniais, não estariam cobertos pelo contrato de seguro subscrito pela recorrente. Afigura-se-nos evidente que este critério temporal não pode proceder, sob pena de se reduzir o conceito de dano à ideia de “dano-evento”.
Decorre do exposto que é irrelevante interpretar a norma contratual em análise (à luz do disposto nos arts. 10.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro e 236.º do Cód. Civil), em ordem a perceber se o conceito de “dano indireto” nela empregue abrange, ou não, danos sofridos pelo lesado direto. É que, em qualquer caso, os concretos danos sofridos pelos autores, agora em discussão, devem ser considerados consequência direta do facto danoso, isto é, da destruição parcial da sua casa.

Em suma, a cláusula constante da al. t) do n.º 3 do art. 6.º das condições gerais do contrato de seguro invocado não exclui a obrigação de ressarcimento dos concretos danos não patrimoniais invocados pelos autores. Ainda que esta cláusula fosse interpretada no sentido de excluir a indemnização pelo segurador de determinados danos sofridos pelos lesados diretos, isto é, por aqueles que suportaram física e diretamente, na sua pessoa ou nos seus bens, a ação danosa, sempre seria de considerar que entre esses danos não cobertos não devem ser incluídos aqueles que aqui se discutem.

2. Liquidação do dano

Não obstante a afirmação da existência de um dano não patrimonial − como o desconforto, a falta de privacidade, a tristeza e a depressão −, de acordo com o art. 496.º, n.º 1, do Cód. Civil, só são indemnizáveis os danos não patrimoniais que, “pela sua gravidade, mereçam tutela do direito”. Ou seja, a lei tem em consideração não apenas a dignidade do direito violado, mas também o nível da agressão ou, melhor, a dimensão do dano. Resta-nos, assim, determinar se, no caso sub judice, a agressão ao direito de personalidade dos reclamados merece tutela jurídica.
Face à factualidade provada, conclui-se que os autores sofreram um dano e que este foi grave. Porém, dentro desta gravidade (intensidade), o montante da indemnização deve refletir a relativamente moderada extensão do mesmo em face da potencial dimensão que a agressão a um direito de personalidade pode atingir.
A este respeito, devemos ter em conta o critério legal prescrito para a liquidação deste dano: o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e as demais circunstâncias do caso designadamente, os motivos do agente, o comportamento do(a) lesado(a) e os restantes comportamentos do lesante. Com a utilização deste critério, pretende-se, no entanto, que a indemnização cumpra uma função compensatória e não, atenta a natureza do dano, ressarcitória em sentido próprio cfr. o Ac. do TRL de 2 de dezembro de 1993, CJ, Ano XVIII, t. V, p. 172. Por outro lado, na fixação do montante devido, dever-se-ão ter em conta os valores normalmente praticados no ressarcimento deste tipo de danos; isto é, há que ter uma perspetiva de proporcionalidade ou de justiça relativa cfr. o art. 8.º, n.º 3, do Cód. Civil, bem como o Ac. do TRL de 8 de abril de 1992, CJ, Ano XVII, t. II, p. 183.

Não se nos afigura que o montante de € 15.000,00 para indemnização dos danos não patrimoniais sofridos pelos dois autores se mostre manifestamente exagerado face à situação apurada considerando, designadamente, os valores arbitrados nas seguintes decisões jurisprudenciais:
- no Ac. do STJ de 26-11-2015, proc. 30516/11.7T2SNT.L1.S1, em que os autores sofreram incómodos decorrentes das obras de construção de um edifício junto à casa dos autores que não assumiram a gravidade dos aqui apurados (ansiedade, enervamento, angústia e depressão por verem a sua casa de habitação danificada; que se viram obrigados a suportar os ruídos e sujidade que as obras levadas a efeito pelos RR causaram, assim como a suportarem a ocupação do espaço do seu imóvel e pessoas em cima do respetivo telhado durante a execução das obras; suportaram ainda o desconforto e mal-estar causados pelo cheiro a humidade e mofo, pela apresentação estética do imóvel; suportaram também a falta de luz e arejamento naturais na cozinha, devido ao emparedamento da respetiva janela; sofreram o desgosto e a vergonha de não poderem receber familiares e amigos, em face do estado da casa) mas durante um longo período de tempo, dado que desde o início da construção do edifício até ao seu final decorreram 135 meses, foi confirmada a fixação da indemnização por danos não patrimoniais em € 40.000,00 (€ 20.000,00 para cada um dos autores);
- no Ac. do TRP de 15-12-2021, proc. 6443/07.1TBMTS.P1, foi atribuído por “dano não patrimonial consubstanciado na falta de descanso, quebras do sono, nervosismo e irritabilidade sentidos durante cerca de dois anos como consequência directa e necessária dos ruídos constantes (e diários) provocados pela circulação de ‘karts’ num kartódromo existente nas imediações da sua residência”, o montante de € 7.500,00 para cada um dos lesados, aí se referenciando que tal valor não parece distanciar-se da sensibilidade que se extrai dos padrões jurisprudenciais a atender”, indicando-se diversas decisões jurisprudenciais;
- no Ac. do TRP de 08-06-2009, proc. 2016/05.1TVPRT.P1, foi confirmada a atribuição à autora de uma indemnização de € 5.000,00 como adequada ao ressarcimento dos danos não patrimoniais consistentes nas incomodidade e constrangimentos sofridos consistentes no facto de, “a partir de Setembro de 2004, data em que o empreiteiro iniciou a eliminação das deficiências da execução dos trabalhos de reparação, o autor se ter visto confrontado com uma intermitência e irregularidade do trabalho prestado, com soluções que não resolviam o problema e ainda o agravavam, com o surgimento de novos danos e com a impossibilidade de utilizar em pleno a sua habitação (receber amigos e familiares, confeccionar alimentos na cozinha, privar em casa com os seus netos, como habitualmente fazia), o que lhe causou desgosto, perturbação e um sentimento de arrelia.”.
Do exposto se extrai ser ajustada a compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pelos autores – consistentes nos transtornos, tristeza, depressão, raiva, infelicidade, insónias por si sofridos por terem tido, juntamento com o seu filho e durante 9 meses, que dormir na cave de uma casa incendiada e até à conclusão das obras de construção civil, em cima de paletes cobertas com cobertores, sem privacidade e em condições indignas, fazendo igualmente aí as suas refeições, por não disporem de habitação alternativa nem de rendimentos para arrendar uma habitação, tendo ainda visto destruídos pelo fogo bens pessoais como os referidos no n.º 17. dos factos provados – fixado pelo tribunal arbitral recorrido.

3. Responsabilidade pelas custas

A decisão sobre custas da apelação, quando se mostrem previamente liquidadas as taxas de justiça que sejam devidas, tende a repercutir-se apenas na reclamação de custas de parte (art. 25.º do Reg. Custas Processuais).
A responsabilidade pelas custas cabe à recorrente, por ter ficado vencida (art. 527.º do Cód. Proc. Civil).

IV – Dispositivo:

Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente.
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Notifique.
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Porto, 12/9/2024
Ana Luísa Loureiro
João Venade
Isabel Silva