PROCESSO DE INVENTÁRIO
RECLAMAÇÃO CONTRA A RELAÇÃO DE BENS
PARTILHA DA HERANÇA
PASSIVO
Sumário

I - O tribunal pode abster-se de proceder à verificação do passivo da herança e relegar os interessados para os meios comuns, se os documentos apresentados forem insuficientes para a questão poder ser resolvida com segurança, por não revestirem os requisitos de força probatória plena exigidos pelo art.º 376.º do CCivil.
II - Em caso de reclamação contra a relação de bens, o reclamante não pode apresentar um novo articulado de resposta à resposta do cabeça de casal, excepto quando este invoque um facto novo no articulado de resposta, que possa consubstanciar matéria de excepção, nos termos do art.º 570.º, n.º 3, do CPC. Não assim quando se limite a impugnar por negação motivada, não invocando factos novos que possam impedir, modificar ou extinguir o efeito jurídico dos factos articulados pela reclamante.
III - A utilização de um imóvel da herança pelo cabeça de casal para sua habitação pode basear a reclamação, por omissão no activo, de um crédito sujeito ao regime do artigo 1406.º do Código Civil.
IV - Nesta hipótese, por não se tratar de pretensão inviável, não pode o tribunal, sem mais, excluir esse incidente do objecto do litígio, não podendo os autos prosseguir sem que se decida do mérito da reclamação ou, justificadamente, se remeta os interessados para os meios comuns, nos termos do art.º 1093.º do CPC.

Texto Integral

Processo n. 6716/22.3T8VNG-A.P1 – Apelação

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

Sumário:
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Em inventário a que se procede por óbito de AA e BB, tendo sido junta relação de bens pela cabeça de casal CC, veio a interessada DD, todas com os sinais dos autos, reclamar da relação de bens e impugnar as dívidas relacionadas.
Ouvida a cabeça de casal, e apresentado um articulado de resposta por parte da reclamante, o Mmo. Juiz proferiu o despacho que se transcreve:
INCIDENTE DE RECLAMAÇÃO À RELAÇÃO DE BENS
SANEAMENTO
De acordo com o disposto nos artigos 1105.º, 1091.º e 292.º a 295.º do C.P.C., os incidentes no âmbito do processo especial de inventário seguem a tramitação dos incidentes da instância.
Posto isto, no âmbito dos presentes autos de inventário para partilha de bens por óbito de AA e BB, a cabeça-de-casal juntou relação de bens no dia 02/03/2023 - referência 34917769 -, tendo a interessada DD deduzido o incidente de reclamação à relação de bens - referência 35068969 de 15/03/2023.
Na reclamação, a reclamante aceita as verbas 1 a 4 do activo.
Contudo, reclama a omissão, no activo, do valor de 46.200,00€ referente ao valor que qualifica de simbólico (350,00€) pelo facto de a cabeça-de-casal usar a verba 4 sem pagar qualquer renda.
Não aceita o passivo da herança relacionado, conforme alegado no ponto II da reclamação.
Requereu depoimento e declarações de parte, arrolando igualmente testemunhas.
A cabeça-de-casal respondeu - referência 35140711 de 02/03/2023.
Começa por referir que a ocupação do imóvel (verba 4) era do conhecimento de todos os herdeiros e nunca ninguém manifestou oposição, sendo que foi a própria quem acompanhou os inventariados na velhice e doença. Mais alega que deixou de trabalhar para cuidar dos pais e que deixou de auferir rendimento mensal, tornando-se, se for o caso, credora da herança. A cabeça-de-casal nunca privou nenhum outro herdeiro de utilizar o imóvel em causa
Mais refere que os créditos reclamados estão devidamente documentados
Arrola testemunhas e junta documentos.
Notificada a resposta, a interessada/reclamante DD, junta em 10/04/2023 o requerimento com a referência 35316467, em resposta, segundo, cremos à resposta da cabeça-de-casal.
No essencial alega que ajudava a cabeça-de-casal com entregas em numerário e de bens alimentares; que é falso que os restantes herdeiros nunca prestaram assistência aos inventariados; a cabeça-de-casal não tem qualquer crédito sobre a herança, nem direito a qualquer compensação; que priva os herdeiros de fruírem o imóvel.
Junta prova documental e requer a notificação de diversas entidades para obtenção de prova documental.
A cabeça-de-casal opõe-se ao requerimento mencionado por extemporâneo - referência 35351955 de 13/04/2023.
Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 1105.º do C.P.C. quanto aos restantes interessados.
Teve lugar audiência prévia, sem que tenha, todavia, sido alcançado um acordo entre as partes.
Posto isto, importa, antes do mais, balizar o âmbito do presente incidente.
Como é consabido e já o mencionámos, o incidente de reclamação à relação de bens segue o disposto nos artigos 1105.º, 1091.º e 292.º a 295.º do C.P.C., motivo pelo qual a lei prevê apenas dois articulados e impõe a indicação de prova no respectivo articulado.
Como é evidente, a nenhum dos interessados é coactado o direito ao contraditório previsto no artigo 3.º do C.P.C. Ainda assim, o exercício desse direito terá lugar de acordo com as regras processuais e não espontaneamente sob pena de sucessiva repetição de respostas, por exemplo.
Isto para concluir que a reclamante não estava legitimada a apresentar o requerimento com a referência 35316467 de 10/04/2023, nem a requerer meios de prova que já podia e devida ter requerido com o requerimento inicial da reclamação.
Acresce que não foi alegada matéria de excepção que justifique tal intervenção. Pelo exposto, por inexistir fundamento legal, não se admite o requerimento (resposta) com a referência 35316467 de 10/04/2023, determinando-se o seu desentranhamento.
Consequentemente e por não interessar, o desentranhamento do requerimento com a referência35351955.
Notifique.
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Aqui chegados, parece-nos pertinente, recuperando conceitos da anterior redacção do C.P.C., elencar aquilo se mostra assente e controvertido neste momento, bem como excluir o que não faz parte do objecto do litígio do incidente.
Ora, antes do mais, dir-se-á apenas a eventual discussão/avaliação sobre o valor dos bens (valor comercial/venal/patrimonial) está subtraída ao objecto do incidente de reclamação à relação de bens, já que a avaliação de cada bem relacionado pode ter lugar a pedido qualquer um dos interessados até à abertura das licitações - artigo 1114.º do C.P.C.
Trata-se, logo, de um mecanismo processual próprio e independente deste incidente.
Exclui-se, portanto, do âmbito do objecto do litígio do incidente a avaliação dos bens.
A reclamante requer que se adite à relação de bens, como crédito da herança, o valor de 46.200,00€, sendo devedora a cabeça-de-casal.
Fundamenta a alegação e o pedido no facto de supostamente a cabeça-de-casal estar habitar desde sempre na imóvel da Verba 4 sem para tal pagar qualquer quantia.
Não lhe assiste razão.
Pese embora exista o direito de exigir o pagamento pelo uso exclusivo de um bem da herança e, por isso, a obrigação de pagar determinada quantia, a verdade é que tal por si só não configura sem mais um crédito da herança.
De facto, de momento, não pode falar-se na existência desse crédito sequer, pois que não existe qualquer manifestação do direito correspondente. Os interessados têm ao dispor os meios processuais comuns para esse efeito.
Dessa feita, está excluído do objecto do litígio deste incidente a alegação de um crédito que não existe.
Pelo exposto, exclui-se do âmbito do objecto do litígio do incidente:
- A avaliação dos bens;
- A alegação de um crédito que não existe.
Assim, temos como assente entre os interessados o activo da herança: Verbas 1 a 4.
É matéria controvertida todo o passivo da herança (verbas 1 a 3).
Sendo esta a matéria controvertida - passivo -, dispõe o artigo 1106.º, n.º 3 do C.P.C. que, não sendo o passivo reconhecido por todos os interessados e se todos os interessados se opuserem ao reconhecimento da dívida, o Tribunal aprecia a sua existência e montante, quando a questão puder ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados.
Recuperando que se excluiu do objecto deste incidente o passivo e considerando o agora exposto, conclui-se que o incidente de reclamação à relação de bens está esvaziado de conteúdo, não havendo decisão de mérito a proferir.
Como assim, prosseguindo com os autos, devem as partes serem notificadas para proporem forma à partilha - artigo 1110.º, n.º 1 do C.P.C. (fim de transcrição)
***
Deste despacho interpôs recurso de apelação a cabeça de casal CC, concluindo nos seguintes termos;
1o - Vem o presente recurso do douto despacho proferido que julgou esvaziado o incidente de Reclamação à Relação de Bens deduzido pela recorrida DD e declarou controvertida a matéria do passivo relacionado
2o - Julgado esvaziado tal incidente de reclamação deduzido pela recorrida DD, deve ser mantida na integra a Relação de Bens apresentada pela recorrente, incluindo as verbas 1 a 3 do passivo.
3o - Por outro lado, ao declarar que é matéria controvertida todo o passivo da herança (verbas 1 a 3) tal afirmação colide frontalmente com o referido em 1.
4o - Por outro lado, a aplicação do disposto n° 3, do art° 1106° do CPC apenas é aplicável "quando todos os interessados se opuseram ao reconhecimento da divida;
5o - Apenas a reclamante e recorrida DD se opôs à relacionação do passivo das verbas 1 a 3 da Relação de Bens:
6o - Os documentos apresentados pela recorrente fazem prova plena das declarações nele contidas e, conjugados ou não com a prova testemunhal deduzida pela recorrente, atestam que esta é credora da herança pelos valores por ela despendidos no pagamento de dívidas que respeitavam ao inventariado;
7o - O douto despacho proferido é obscuro e contraditório na sua fundamentação e, como tal, susceptível de interpretações diversas e contraditórias já que a decisão proferida remete-nos para uma questão de ininteligibilidade do discurso decisório, concretamente, quando na decisão, em qualquer dos respectivos segmentos, permite duas ou mais interpretações (ambiguidade), ou quando não é possível saber com certeza, qual o pensamento exposto na sentença (obscuridade);
8o - É "obscuro" o que não é claro, aquilo que não se entende; e é "ambíguo" o que se preste a interpretações diferentes. Em qualquer caso, fica o destinatário do douto despacho sem saber ao certo o que efectivamente se decidiu, ou quis decidir.
9o - O Mmº juiz "a quo" não poderia excluir da relação de bens o passivo relacionado sem que, pelo menos, tivesse procedido à inquirição das testemunhas arroladas em sede de resposta à reclamação deduzida pela recorrida;
10° - A decisão a proferir em sede de reclamação à relação de bens apenas poderá ser decidida depois de efectuadas as diligências probatórias requeridas pelos interessados;
11° - Apenas quando todos os interessados se oponham ao reconhecimento da divida poderá p Mmº juiz apreciar a sua existência e montante quando a questão puder ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos, o que manifestamente não ocorreu;
12° - A recorrida e os restantes herdeiros foram demandados no processo executivo instaurado contra o inventariado para, no lugar deste, prosseguirem os ulteriores termos da execução e não deduziram qualquer oposição, assumindo a posição de executados
13° - O douto despacho recorrido não se pronunciou de forma clara e inequívoca sobre a existência do passivo relacionado pela recorrente violando ou, pelo menos fez incorrecta aplicação e interpretação do disposto nos art°s 608, 2, 615, alíneas c) e d) ex vi do disposto n° art° 613°, 3, do CPC, art° 1105°,3, 1.106° 1, 3,do CPC.
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Apelou igualmente a interessada DD, formulando as seguintes conclusões:
1 - Por despacho judicial, de 20.01.2024, o tribunal a quo decidiu:
- não admitir o requerimento da aqui recorrente, de 10.04.2023, com a Refª 35316467, nem os meios de prova nele requeridos, em resposta ao requerimento da recorrida cabeça de casal, de 02.03.2023, com a Refª 35140711, por alegada inexistência de fundamento legal;
- estar assente entre os interessados o activo da herança (Verbas 1 a 4);
- ser matéria controvertida todo o passivo da herança (Verbas 1 a 3).
- sendo esta matéria controvertida - passivo - o tribunal aprecia a sua existência e montante, quando a questão puder ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados, conforme dispõe o artigo 1106°, nQ 3 do CPC;
- excluir do objecto do incidente de reclamação da relação de bens o passivo, e concluir que tal incidente está esvaziado de conteúdo, não havendo decisão de mérito a proferir;
- ordenar o prosseguimento dos autos, com a notificação das partes para proporem forma à partilha - cfr. artigo 1110°, n° 1 do CPC.
2 - Ora, tal despacho padece de erro de julgamento, quer quanto à matéria de facto, quer quanto à aplicação do direito, e portanto, não pode a recorrente conformar-se com o mesmo.
3 - Assim, vê-se a recorrente forçada a interpor o presente recurso do sobredito despacho judicial de 20.01.2024.
E isto porque,
4 - Por requerimento, de 02.03.2023, a recorrida cabeça de casal apresentou a relação de bens, com a Refª 34917769, identificando verbas do activo e do passivo da herança, conforme naquele melhor consta, e que aqui se deixa por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
5 - Por sua vez, a recorrente apresentou reclamação à relação de bens, em 15.03.2023, por requerimento com a Refª 35068969, reclamando a omissão, no activo, do valor de 46.200,00 €, referente ao valor simbólico de 350,00 € mensais, pela utilização da verba 4 do activo pela cabeça de casal, sem pagar qualquer renda à herança, desde a morte dos inventariados, não aceitando o passivo da herança relacionado, conforme ponto II da dita reclamação, e requereu depoimento e declarações de parte, arrolando igualmente testemunhas.
6 - A recorrida cabeça de casal apresentou resposta a tal reclamação, por requerimento de 22.03.2023 (existe um lapso ortográfico no despacho recorrido que refere 02.03.2023), com a Refª 35140711, referindo que a ocupação e utilização do imóvel da verba 4 do activo era do conhecimento de todos os herdeiros e nunca ninguém manifestou oposição, e que nunca impediu nenhum outro herdeiro de utilizar o imóvel em questão.
7 - Alegou ainda que foi ela própria quem acompanhou os pais inventariados na velhice e na doença, tendo deixado de trabalhar para cuidar deles, e por tal motivo deixou de auferir rendimento mensal, tornando-se credora da herança, no montante de 72.000,00 €, o qual deveria ser compensado no alegado crédito da herança sobre si.
8 - E mais alegou que o passivo (créditos reclamados) está devidamente documentado, e arrolou testemunhas e juntou mais documentos para prova do passivo.
9 - Ora, como é evidente, na referida resposta de 22.03.2023, a recorrida cabeça de casal invocou novos factos e matéria de exceção, que podiam obstar à apreciação da reclamação da relação de bens apresentada pela recorrente, ou que, servindo de causa impeditiva, modificativa ou extintiva do direito invocado pela recorrente, podiam determinar a improcedência total ou parcial do pedido da recorrente.
10 - Ademais, a recorrida cabeça de casal juntou novos documentos.
11 - Portanto, de acordo com o princípio do contraditório e artigo 3º do CPC, a aqui recorrente tinha o direito e a legitimidade em pronunciar-se quanto ao teor do dito requerimento da recorrida cabeça de casal, de 22.03.2023, e aos documentos juntos.
12 - O que a recorrente efetuou, por requerimento de 10.04.2023, com a Refa 35316467, alegando que a cabeça de casal recorrida nunca prestou sozinha assistência aos pais inventariados, mas sim com auxílio dos outros herdeiros, que a ajudaram, e nomeadamente pela recorrente, com entregas em numerário e bens alimentares, e em consequência a cabeça de casal não tem qualquer crédito sobre a herança, e, consequentemente, não tem direito a qualquer compensação.
13 - Alegou também que a cabeça de casal impediu e privou os outros herdeiros de fruírem o imóvel da verba 4 do activo, e que a ocupação e utilização deste pela cabeça de casal, sem pagar qualquer renda à herança, e com oposição dos herdeiros, há mais de 11 anos, não é legítima, e por conseguinte, existe um crédito da herança sobre a cabeça de casal, reiterando o já alegado em sede de reclamação da relação de bens.
14 - E, por fim, a recorrente reiterou que não aceita e não reconhece como dívidas da herança, as verbas 1, 2 e 3 do passivo da relação de bens, apresentada pela cabeça de casal.
15 - E juntou ainda prova documental e requereu a notificação de diversas entidades para obtenção de prova documental, nomeadamente para contraprova dos documentos juntos pela cabeça de casal recorrida, quanto ao passivo.
16 - Acresce que, por despacho judicial de 14.06.2023, já transitado em julgado, foi decidido que todos os requerimentos supra identificados, quer da aqui recorrente, quer da recorrida cabeça de casal, ficassem nos autos, para exercício do contraditório, nomeadamente dos restantes herdeiros, ordenando a notificação destes para o efeito.
17 - Sucede que, contraditória e erroneamente, o tribunal recorrido, agora no despacho judicial de 20.01.2024, considerou que a cabeça de casal, no seu requerimento de 22.03.2023 não alegou matéria de excepção, e que, portanto, a recorrente não tinha fundamento legal para apresentar o seu requerimento de 10.04.2023, e não o admitindo, ordenou o seu desentranhamento.
18 - Porém, o tribunal a quo errou na apreciação da matéria invocada pela cabeça de casal recorrida, em 22.03.2023, considerando-a como não sendo de excepção, pelos motivos supra expostos, e de acordo com o teor de tal requerimento.
19 - Por outro lado, a junção de documentos é admissível nos prazos previstos no artigo 423° do CPC, que permite a junção em três momentos distintos: a) com o articulado respectivo, sem cominação de qualquer sanção; b) até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas com cominação de multa, excepto se a parte alegar e provar que os não pode oferecer antes; c) até ao encerramento da discussão em 1ª instância, mas apenas daqueles documentos cuja apresentação não tenha sido possível até aquele momento ou se tornem necessários por virtude de ocorrência posterior.
20 - Ou seja, quando a parte não apresenta o documento com o respectivo articulado, se a apresentação for feita dentro do limite temporal traçado no artigo 423a, n.° 2, primeira parte do CPC, os documentos são admitidos, ainda que com cominação de multa.
21 - Assim sendo, o referido requerimento de 10.04.2023, em que a aqui recorrente pretende a junção de mais documentos, e pede a notificação de entidades para junção de documentos - prova documental em poder de terceiros - encontra fundamento, quer substantivo, quer processual.
22 - Ademais, não é, manifestamente impertinente, nem dilatória, a diligência em causa (prova documental em poder de terceiros), já que se encontra fundamentada na reclamação da relação de bens e no dito requerimento da recorrente de 10.04.2023, e que serve de base principal e fundamental àquela reclamação.
23 - Dir-se-á ainda que, a referida prova documental constitui um passo importante na obtenção e descoberta da verdade material, para decisão da reclamação da relação de bens.
24 - Sendo certo que, a sua produção contribui para uma decisão muito mais sólida nos seus fundamentos, quanto à relação de bens da herança.
25 - Aliás, a prova documental requerida afigura-se não meramente útil, mas essencial para a justa composição do litígio.
26 - Atento o exposto, o referido requerimento da recorrente, de 10.04.2023, é legalmente admissível, bem como a junção dos documentos com aquele, e ainda a prova documental em poder de terceiros requerida.
27 - Ao não ter sido assim decidido, o tribunal a quo violou o princípio do contraditório e o artigo 3º do CPC, e não aplicou o disposto no artigo 423º do Código de Processo Civil, como se impõe, e demais dispositivos e princípios legais aplicáveis.
28 - Sem prescindir, o despacho judicial ora em crise que considerou que o passivo da herança é matéria controvertida, mas excluiu-o do objeto do incidente de reclamação da relação de bens, e concluiu que tal incidente está esvaziado de conteúdo, não havendo decisão de mérito a proferir e ordenou o prosseguimento dos autos, com a notificação das partes para proporem forma à partilha - cfr. artigo 1110°, n° 1 do CPC, padece de erro de julgamento.
29 - E isto porque, aos presentes autos de inventário é aplicável o regime legal previsto nos artigos 1082ª a 1135ª do CPC, na redacção da sobredita Lei na 117/2019 de 13/09.
30 - Este diploma veio introduzir um novo modelo no processo de inventário que é um processo especial de jurisdição contenciosa, e que lhe é aplicável subsidiariamente o regime do processo comum (artigo 549º).
31 - E este novo modelo processual assenta em fases processuais relativamente estanques, designadamente:
a. A fase dos articulados (subfase inicial: artigos 1097° a 1102° do CPC e subfase da oposição artigos 1104° a 1107° do CPC), na qual (i) é requerida a instauração do processo (ii) e suscitam-se e discutem-se as questões que influenciam a partilha;
b. A fase do saneamento na qual o juiz decide todas as questões ou matéria litigiosas que condicionam a partilha e define o património a partilhar, elaborando o despacho sobre a partilha e definindo as quotas ideais dos vários interessados (artigos 1109º e 1110º);
c. A fase da partilha, consubstanciada na conferência de interessados, destinada às diligências que culminam na partilha (artigos 1111°, 1114º, 1116° e 1117° a 1119° do CPC) e subsequente elaboração de mapa de partilha e sentença homologatória (artigo 1120º a 1122º do CPC) e posteriores incidentes (artigo 1126º do CPC).
32 - Ora, é na subfase da oposição (reclamação da relação de bens) que se procede à delimitação do património hereditário (ativo e passivo), antecipando-se para este momento processual a verificação do passivo que antes ocorria na conferência de interessados - cfr. artigos 1104° a 1106º do CPC.
33 - Assim, as dívidas da herança devem ser relacionadas pelo cabeça de casal, e existe até um ónus de impugnação quanto às mesmas, previsto no artigo 1104º alínea e) do CPC, devendo o juiz pronunciar-se sobre esse passivo ainda antes do saneamento, conforme o artigo 1106º e atento o disposto no artigo 1110º nº 1 alínea a) do CPC;
34 - Portanto, relativamente à verificação do passivo, a regulação contida na lei nova é profundamente inovadora, pois que, no regime processual anterior, os actos relativos à verificação e aprovação do passivo tinham lugar na conferência de interessados, o que originava, muitas vezes, prolongadas discussões entre os conferentes e exigia uma deliberação dos interessados, desde logo sobre a aprovação do passivo.
35 - E para obviar a estes inconvenientes e assegurar uma maior eficiência e economia de meios e a recondução da conferência de interessados à sua verdadeira finalidade - a realização e concretização da partilha - a nova lei antecipou, em regra, o momento da discussão sobre a verificação do passivo, deslocando a controvérsia para a fase dos articulados - artigos 1104.°, n. ° 1, e), e 1097., n.° 3, do CPC.
36 - Acresce ainda que, não se pode propor forma à partilha, sem que o património hereditário (activo e passivo) esteja determinado.
37 - No sentido supra exposto Professor Miguel Teixeira de Sousa, in O Novo regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, pp 8, Almedina 2020, e a mais recente jurisprudência - Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 09.02.2023 e 09.11.2023, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 31.03.2022, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25.10.2022, todos in dgsi.
38 - Atento todo o exposto, deveria o tribunal recorrido ter ordenado a realização de todas as diligências probatórias requeridas pela interessada DD, no requerimento de 15.03.2023, e no requerimento de 10.04.2023, e só depois emitir pronúncia sobre a existência, ou não, de dívidas da herança (passivo) - cfr. artigo 1105°, n° 1, n° 2 e n° 3 do CPC.
39 - Não o tendo feito, o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 1104° a 1107a, e 1110°, n° 1, alínea a), todos do CPC, e demais dispositivos legais e princípios aplicáveis.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
As questões suscitadas são as de:
- saber se o despacho recorrido enferma de nulidade por ambiguidade ou obscuridade, e aferir do acerto da exclusão das verbas do passivo do objecto do inventário, e a sua relegação para os meios comuns;
- se deveria ter sido admitida a junção do terceiro articulado, de resposta à resposta da cabeça de casal, e dos documentos com o mesmo junto e aferir do acerto da decisão que excluiu do objecto do litígio a reclamação da recorrente contra a relação de bens.
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Os factos - e o teor do despacho judicial recorrido - a considerar são os aludidos no relatório supra, já constates desse despacho, que aqui se considera reproduzido, consignando-se ainda que é o seguinte o passivo relacionado na relação de bens:
Verba 1 Deve a herança à cabeça de casal a quantia de dez mil euros, referente ao pagamento por esta efectuado no âmbito de processo n° 965/02, do 3o Juízo Cível de Vila Nova de Gaia, em 20/06/2014, em que fora exequente A..., Lda e executado o autor da herança, montante esse que devidamente actualizado ao presente momento perfaz o valor de 11.339,73€ por aplicação do factor de actualização, 13397347023218 11.339,73€
Verba 2 Deve a herança à aqui cabeça de casal a quantia de 1.976,146 referente a despesas do funeral da inventariada cujo custo importou na quantia de 2.534€ a que será deduzido o valor de 344€ referente a comparticipação da Associação ... e 213,86€ da Segurança Social……………………..1.976,14€
Verba 3 Deve a herança à cabeça de casal a quantia de 735,26€ referente dividas pagas por esta à AT e relacionadas com execuções fiscais instauradas à herança e devidas pelo dissolvido casal……………………735,26€"
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1. Recurso interposto pela cabeça de casal.
Começando pela sua apreciação, afigura-se não caber dúvida razoável quanto ao sentido da expressão julgar “esvaziado o incidente de reclamação à relação de bens". Com essa fórmula quis o Mmo. Juiz considerar vazio de objecto, inútil, e como tal prejudicado quanto à decisão a proferir sobre existência e montante do passivo, em razão da impossibilidade de ser já resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados. A consequência dessa pronúncia não é a manutenção na íntegra a relação de bens apresentada pela recorrente, incluindo as verbas 1 a 3 do passivo, mas antes a exclusão dessas verbas do passivo do objecto do inventário, e a sua relegação para os meios comuns.
Ora, a decisão não é inteiramente explícita nesse sentido, mas se se determinou que prosseguindo com os autos, devem as partes serem notificadas para proporem forma à partilha, então tal pressupõe que o tribunal decidiu abster-se de proceder à verificação do passivo, apreciando a existência e montante das verbas 1 a 3 do passivo, nos termos do art.º 1106.º, n.º 3, do CPC. O que será consequência da insuficiência dos documentos apresentados para a questão poder ser resolvida com segurança.
Assiste, assim, alguma razão à recorrente quanto a uma certa falta de clareza do despacho recorrido, que todavia não é inultrapassável ao ponto de o haver por ininteligível, e como tal inquinado pela nulidade cominada pelo art.º 615.º, n.º 1, al. c) do CPC.
A segunda ordem de fundamentos do recurso consiste em erro na valoração da prova documental: na sua tese, os documentos apresentados pela recorrente fazem prova plena das declarações nele contidas e, conjugados ou não com a prova testemunhal deduzida pela recorrente, atestam que esta é credora da herança pelos valores por ela despendidos no pagamento de dívidas que respeitavam ao inventariado. Semelhante argumentação envolve já uma contradição nos termos – se os documentos em causa carecem de ser complementados com prova testemunhal, então não se tratará de documentos com força probatória plena relativamente à factualidade que integra as verbas do passivo. Acrescendo que, tal como o recurso se encontra, nessa parte, estruturado, ele não é apto a invalidar o juízo negativo emitido pela 1.ª instância. Dispõe, para tal, o art.º 640.º do CPC:
“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Ora, a recorrente não cumpriu os pressupostos de ordem formal exigidos pela transcrita al. b), do n.º 1 do art. 640º CPC, não tendo concretizado quais os documentos a que associa a eficácia probatória pretendida. De resto, refira-se que num simples exame superficial do conjunto de documentos que constam da certidão que instrui o recurso, deles não é possível retirar a demonstração de que as dívidas a que se reportam as verbas 1 a 3 do passivo relacionado hajam sido pagas com fundos pertencentes à recorrente, com os requisitos de força probatória exigidos pelo art.º 376 do CCivil.
A decisão de relegar os interessados para os meios comuns não ofende, in casu, o disposto n° 3, do art° 1106° do CPC. Exigir-se que todos os interessados se oponham ao reconhecimento da divida para habilitar o juiz tomar tal decisão não tem qualquer fundamento sério, se o exame dos elementos de prova documental de que dispõe não permite que a questão possa ser resolvida com segurança. É à luz deste critério – o da suficiência dos elementos disponíveis- que deve ser interpretado o normativo em apreço, como parece ter já sido interpretado pelo Ac. desta Relação do Porto de 09- 11-2023 (Proc.º 252/21.2T8VLC.P1, in dgsi.pt).
Improcede, pelo exposto, o recurso.
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2. Recurso interposto pela interessada DD.
Esta recorrente reage, no essencial, contra:
- a decisão que ordenou o desentranhamento do seu requerimento de 10.04.2023, com fundamento em inadmissibilidade, por não consubstanciar matéria de excepção;
- a decisão que excluiu do objecto do litígio a reclamação da recorrente contra a relação de bens, por omissão de um crédito. Vejamos.
A recorrente reclamou, por omissão no activo da relação de bens, de um crédito da herança, do valor de €46.200,00, emergente da utilização de um imóvel da herança pelo cabeça de casal para sua habitação. E fundamenta, de direito, a reclamação no disposto no art.º Artigo 1406.º do CCivil, que dispõe:
1. Na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contanto que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito.
2. O uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão do título.
São factos constitutivos do direito a uma compensação, devida aos restantes comproprietários que deixaram de servir-se da coisa comum 1) o uso da coisa pelo comproprietário que a fruiu; 2) a privação, por parte daquele. do uso da mesma pelos restantes consortes. Devendo, consequentemente, constar da petição inicial, nos termos do art.º 552.º, n.º 1, al. d), ou requerimento que dê início ao incidente.
Sobre a possibilidade de oferecimento de um terceiro articulado em sede de reclamação contra a relação de bens, considerou-se no Ac. da Relação de Guimarães de 21-03-2024 (Proc.º 274/23.9T8EPS-A.G1, in dgsi.pt), que aqui se acolhe:
2. Em caso de reclamação contra a relação de bens, pode o cabeça de casal responder em, em 30 dias, não havendo em princípio mais articulados. O legislador teve o claro objectivo de concentração da suscitação de todos os meios de defesa.
3. Em certas situações, em que o cabeça de casal invoque um facto novo no articulado de resposta, e esteja de boa-fé, há que garantir o contraditório dos demais interessados, cabendo ao Juiz, através dos poderes de gestão processual e de adequação formal, admitir um articulado de resposta, ou, por analogia com o disposto no art. 3º, nº 4, deferir esse contraditório para a audiência prévia ou para a conferência de interessados.
Ora, a recorrente alegou na sua reclamação, quer o uso do imóvel pela cabeça de casal, quer a mesma ter impedido os outros herdeiros de o fazer. Ao que a cabeça de casal respondeu, impugnando por negação motivada:
- sempre viveu na companhia dos inventariados e foi a requerente cabeça de casal, e nunca os restantes herdeiros, quem prestou aos inventariados todo o apoio na sua velhice e doença, detalhando os cuidados prestados;
- a ocupação do imóvel em causa sempre foi do conhecimento de todos os herdeiros que nunca manifestaram qualquer oposição ao facto.
- foi a requerente cabeça de casal quem sempre tratou da guarda e conservação do imóvel que, se não fora ela, já teria ruído, e nunca, absolutamente nunca privou qualquer dos herdeiros de poder fruir e utilizar a casa, em que habitaram a herdeira EE e o herdeiro FF.
O articulado de resposta da cabeça de casal é de mera impugnação por negação motivada, não se invocando aí factos novos que possam impedir, modificar ou extinguir o efeito jurídico dos factos articulados pela reclamante (cfr. 570.º, n.º 3, do CPC); ou seja, não consubstanciando matéria de excepção. Como tal, o terceiro articulado do incidente é efectivamente indevido. Não obstante, constata-se que o mesmo incorpora ainda um requerimento de junção de documentos que o acompanham, que não foram julgados impertinentes ou desnecessários, e poderão, em abstracto, servir de contraprova dos factos instrumentais aduzidos na resposta ao incidente. Tal junção é, em qualquer caso, tempestiva, pelo menos ao abrigo da al. b) do artigo 423° do CPC. Assim, não poderia ter-se ordenado o respectivo desentranhamento.
A propósito da possibilidade de alegação do crédito correspondente, pronunciou-se já o STJ afirmativamente em Ac. de 21-04-2022 (Proc.º 2691/16.1T8CSC.L1.S1, in dgsi.pt, tirado, de resto, numa hipótese idêntica à dos presentes autos) onde, por maioria, se julgou:
I. A utilização de um imóvel da herança pelo cabeça de casal para sua habitação não integra um acto de administração da herança.
II. A utilização por qualquer herdeiro dos bens da herança em proveito próprio, nas situações em que o cabeça de casal não exerça os seus poderes de administração sobre os bens da herança, deve considerar-se sujeita ao regime do artigo 1406.º do Código Civil, face à ausência de uma previsão específica no direito sucessório deste tipo de situações.
Não se ignorando o voto de vencido no aresto em referência da Ex.ma Conselheira Catarina Serra (que entendeu que o uso do prédio pelo réu pode e deve ser considerado para o efeito do apuramento das contas da administração da herança pelo cabeça-de-casal, em sede de acção de prestação de contas, nos termos artigo 2093.º do CC), não se trata, assim, de pretensão inviável, não podendo sem mais afirmar-se que está excluído do objecto do litígio deste incidente a alegação de um crédito que não existe.
Não pode, pelo exposto, o despacho recorrido nesta parte manter-se, declarando o incidente excluído do objecto do litígio.
Assim, não poderão os autos prosseguir sem que o Mmo. Juiz decida do mérito da reclamação ou, justificadamente, remeta os interessados para os meios comuns, nos termos do art.º 1093.º do CPC.

Decisão.
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação interposta pela cabeça de casal, e procedente a apelação interposta pela interessada DD, em função do que revogam o douto despacho recorrido, admitindo agora a junção dos documentos apresentados com o requerimento de 10/04/2023, e revogam a decisão aí proferida na parte em que excluiu do objecto do litígio a alegação do crédito objecto da reclamação contra a relação de bens, devendo proceder-se nos termos sobreditos.
Custas pela recorrida cabeça de casal.

Porto, 23/9/2024
João Proença
João Diogo Rodrigues
Maria Eiró