EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO CEDIDO AO FIDUCIÁRIO
RENDIMENTO ESTRITAMENTE NECESSÁRIO PARA O SUSTENTO DO DEVEDOR
SUBSÍDIO DE FÉRIAS
SUBSÍDIO DE NATAL
Sumário

I - Os subsídios de férias e de natal não estão excluídos da cessão ao fiduciário na medida em que ultrapassem o montante retributivo mensal considerado minimamente digno para a subsistência do devedor.
II - Face ao disposto no artigo 239º, n.º 3 CIRE faz englobar, no rendimento disponível para os credores, todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, para lá de 1 salário mínimo nacional, os subsídios de férias e de Natal, não exceptuados na fixação do rendimento, são rendimentos disponíveis do devedor.

Texto Integral

PROC. N.º[1] 1066/24.3T8STS.P1


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Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Juízo de Comércio de Santo Tirso - Juiz 3

RELAÇÃO N.º 169

Relator: Alberto Taveira

Adjuntos: Alexandra Pelayo

Anabela Andrade Miranda


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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

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I - RELATÓRIO.

AS PARTES

Insolvente: AA


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A)

AA apresentou-se à insolvência por requerimento de 02.04.2024, tendo o mesmo sido declarado insolvente por sentença de 05.04.2024.

O requerente deduziu pedido de exoneração do passivo restante, pedindo a fixação do rendimento disponível no valor de 956,67 €.

B)

A Administrador de Insolvência não se opôs ao pedido de exoneração do passivo restante.


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DA DECISÃO RECORRIDA

A 02.05.2024 é proferida a seguinte decisão:

II - Da exoneração do passivo restante:


(…)

Quanto ao valor a fixar:

(…)

Assim, face à composição do agregado e às condições de vida resultantes do processo e consideradas provadas, fixa-se ao insolvente como rendimento disponível, todo aquele que exceder o valor de um salário mínimo nacional.

Tal valor será multiplicado por doze meses, a iniciar-se com o trânsito deste despacho uma vez que já foi proferido despacho de encerramento do processo.


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DAS ALEGAÇÕES

O insolvente, vem desta decisão interpor RECURSO, acabando por pedir o seguinte:

Deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se o despacho proferido pelo Tribunal a quo, no que toca à fixação do valor assegurado ao sustento minimamente digno do insolvente, ou seja, 1 SMNx12M.

Consequentemente, deve exclui-se da cessão ao fiduciário o montante correspondente ao valor da remuneração mínima mensal garantida, multiplicada por 14 meses num ano, resultante da aplicação da fórmula RMMGx14:12M (montante esse que, no caso, se fixa € 956,67), por se considerar ser esse o valor justo e consentâneo com o espírito da lei.

Assim decidindo, farão V. Exas., como sempre, inteira e sã justiça. “.


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O recorrente apresenta as seguintes CONCLUSÕES:

1. O despacho recorrido não merece qualquer reparo no que toca à fixação de 1 SMN como o valor assegurado ao insolvente para o seu sustento minimamente digno.

2. A questão a dirimir centra-se na falta de integração dos dois meses de subsídios (férias e Natal) na declarada indisponibilidade.

3. O insolvente discorda frontalmente dos argumentos aduzidos pelo Tribunal a quo na sua decisão, relativamente a esta matéria.

4. O insolvente considera que o montante mensal indisponível e, portanto, necessário ao seu sustento minimamente digno, deve ser o resultante da fórmula RMMGx14:12M (in casu, 820x14:12= € 956,67).

5. Consequentemente, em resultado da aplicação desta fórmula, far-se-á a contabilização do valor excedente a entregar ao fiduciário.

6. A título meramente exemplificativo, seguem este entendimento os seguintes acórdãos: Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 05.03.2024 – Processo n.º 386/23.9T8VPV-C.L1-1; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24.05.2023 – Processo n.º 19030/22.5T8SNT-B.L1-1; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 02.05.2023 – Processo n.º 2525/21.5T8BRR.L1-1; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15.06.2020 – Processo n.º 1719/19.8T8AMT.P1; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 22.05.2019 – Processo nº 1756/16.4T8STS-D.P1; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 13.03.2018 – Processo n.º 92/17.3T8LSB-B.L1; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27.02.2018 –Processo nº 1809/17.1T8BRR.L1-7.

7. O insolvente alicerça a sua opinião nos argumentos invocados pelos arestos supra elencados, como:

a) O facto de se considerar como retribuição a prestação a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito como contrapartida do seu trabalho – art. 258.º do Código do Trabalho;

b) A circunstância de o trabalhador ter direito a tal contrapartida mensal 14 vezes no ano (incluindo os subsídios de férias e Natal – arts. 263.º, 264.º e 273.º do Código do Trabalho);

c) O entendimento de que o legislador, ao fixar o valor da remuneração mínima mensal garantida ao trabalhador, levou em consideração o valor anual que o mesmo tem direito a auferir, ou seja, 14 retribuições anuais ao longo do ano civil;

d) Serem essas 14 retribuições anuais, no valor correspondente à RMMG, que garantem o almejado mínimo indispensável ao sustento do trabalhador – devedor a que alude o artigo 239.º n.º 3, al. b), i);

e) O facto de o legislador, já noutras dimensões, ter considerado as 14 retribuições anuais como forma de cálculo para atribuição de outros direitos, nomeadamente subsídios de renda, como demonstra o DL n.º 158/2006, que aprovou os regimes de determinação do rendimento anual bruto corrigido e a atribuição do subsídio de renda, designadamente no seu art. 3.º.

8. O montante mensal indisponível deve, então, fixar-se em € 956,67, em resultado da aplicação da fórmula RMMGx14:12M, por se considerar ser esse o valor indispensável ao sustento minimamente digno do insolvente, sem que haja violação do princípio da essencial dignidadeda pessoa humana, constitucionalmente consagrado. “.


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Não foram apresentadas contra-alegações.

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II-FUNDAMENTAÇÃO.

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil

Como se constata do supra exposto, a questão a decidir, é a seguinte:

A) Cálculo do rendimento disponível.


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OS FACTOS

Os factos com interesse para a decisão da causa e a ter em consideração são os constantes no relatório e da decisão em crise (supra transcrita).


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DE DIREITO.

A)

Fixação do rendimento disponível.

É entendimento quase unânime nesta Relação de que o rendimento disponível deve ser entregue mensalmente. Citam-se as seguintes decisões deste Tribunal da Relação do Porto, 2410/16.2T8STS.P1, de 26.01.2021, relatado pelo Des VIEIRA E CUNHA, 8215/13.5TBVNG-F.P1, de 26.10.2020, relatado pelo Des JORGE SEABRA, 557/21.2T8OAZ.P1, de 20.09.2021, relatado pelo Des JORGE SEABRA, 8/22.5T8STS-B.P1, de 12.09.2022, relatado pela Des ANA PAULA AMORIM, 1544/18.3T8STS.P1, de 29.04.2021, relatado pela Des DEOLINDA VARÃO, 2718/18.2T8OAZ.P2, de 08.11.2021, relatado pelo Des MENDES COELHO, entre outros.

Na ausência de um critério matemático o legislador encarregou o julgador de caso a caso aferir de um montante que seja necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado.

Deste modo, na fixação do rendimento disponível deve o Tribunal proceder à análise das despesas imprescindíveis para o sustento digno do devedor e seu agregado. E aqui têm especial relevo aquelas despesas comuns do quotidiano e que a normalidade do “português” tem, ou é suposto ter, para ter um mínimo de dignidade.

O critério último deve estar alicerçado na dignidade humana em cada caso concreto.

Deve assim ser ponderado, em primeiro lugar, que se está perante uma situação transitória, durante a qual o insolvente deverá fazer um particular esforço de contenção de despesas de maneira a atenuar ao máximo as perdas que advirão aos credores da exoneração do passivo restante e, em segundo lugar, atender ao que é indispensável para, em consonância com a consagração constitucional do respeito pela dignidade humana, assegurar as necessidades básicas do insolvente e do seu agregado familiar, neste sentido, Ac Tribunal da Relação de Lisboa 27138/11.6T2SNT-C.L1-2, relatado pela Des VAZ GOMES, in dsgi.pt. Na realidade, por decorrência da declaração de insolvência, quem fica adstrito a certos deveres e contingências é o devedor, insolvente, e não os credores.

No caso em apreço, o apelante dissente da decisão proferida, por entender que a remuneração mínima mensal garantida ao trabalhador tem em consideração o valor anual que aufere, ie, 14 salários, pelo que haverá que calcular do seguinte modo: 1 SMN X 14 / 12, o que dá o valor, actual, de 956,67 €, ie, todo o valor que mensalmente exceder tal montante.

Por sua vez, a sentença em crise decidiu que o insolvente deverá entregar mensalmente, durante os doze meses (12) do ano, o valor que exceder o valor de 1 SMN.

Afirmamos, desde já, que os subsídios de férias e de Natal, sendo um complemento da retribuição com a finalidade de ajudar ao gozo de férias e auxiliar nas despesas, normalmente acrescidas na quadra natalícia, nem por isso devem ser considerados imprescindíveis à satisfação das necessidades básicas da insolvente e, nesse sentido, devem ser adstritos ao pagamento dos credores, através da sua entrega ao Fiduciário.

Nada na Lei ordinária e nem na Lei constitucional impõe que tais rendimentos estejam excluídos da cessão.

Nos termos do artigo 239.º, n.º 2, “O despacho inicial determina que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado por período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade (…)“.

Segundo a alínea b) do n.º 3 “Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão: (…)

b) Do que seja razoavelmente necessário para:

i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;

ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;

iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.

É entendimento quase unânime nesta Relação de que o rendimento indisponível deve ser entregue mensalmente. Citam-se as seguintes decisões deste Tribunal da Relação do Porto, 2410/16.2T8STS.P1, de 26.01.2021, relatado pelo Des VIEIRA E CUNHA, 8215/13.5TBVNG-F.P1, de 26.10.2020, relatado pelo Des JORGE SEABRA, 557/21.2T8OAZ.P1, de 20.09.2021, relatado pelo Des JORGE SEABRA, 8/22.5T8STS-B.P1, de 12.09.2022, relatado pela Des ANA PAULA AMORIM, 1544/18.3T8STS.P1, de 29.04.2021, relatado pela Des DEOLINDA VARÃO, 2718/18.2T8OAZ.P2, de 08.11.2021, relatado pelo Des MENDES COELHO, entre outros.

Está assim afastada a possibilidade do achamento do rendimento indisponível ser determinado, quer seja por referência a um cálculo anual, quer o afastamento dos subsídios de férias e de Natal.

Aqui acompanhamos o decido por este Tribunal da Relação do Porto 2370/22.0T8VNG.P1, de 08.11.2022, relatado pela Des ANABELA MIRANDA, in dgsi.pt. “E, segundo o n.º 3, al. b) i) deste preceito legal, integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor com exclusão, além do mais, do sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional.

Esta exclusão, segundo Luís Carvalho Fernandes e João Labareda,[3] refere-se ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar e radica na protecção constitucional da dignidade humana.

A omissão do legislador no que respeita ao limite mínimo deste conceito amplo, permite que seja avaliado e ponderado, em cada caso em concreto, as reais necessidades do insolvente e do respectivo agregado familiar.

A jurisprudência maioritária tem optado por atender, nesta matéria, a critérios objectivos adjuvantes do juízo a formular: salário mínimo nacional ou rendimento social de inserção.[4]

A referência do salário mínimo nacional fundamenta-se no entendimento que o Tribunal Constitucional tem explanado no sentido de que constitui uma remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades decorrentes da sobrevivência digna do trabalhador.

No entanto, a jurisprudência alerta para que, na decisão a proferir, impere o equilíbrio entre o interesse do credor à prestação e o interesse do devedor consistente no direito à manutenção de um nível de subsistência digno.[5] (…)

A segunda questão, discutida de forma divergente na jurisprudência, consiste em saber se devem ser excluídos da cessão os subsídios de férias e de natal.

Os subsídios de férias e de natal são considerados prestações complementares destinadas a retribuir o trabalhador, em alturas do ano em que os gastos são mais elevados, com um acréscimo monetário destinado justamente a permitir a satisfação dessas necessidades.

Nesta linha de raciocínio podemos concluir, acompanhando o Acórdão desta Relação de 09/12/2022[8] e em conformidade com a maioria da jurisprudência[9], que se trata de prestações que acrescem à retribuição mensal e que, por isso, não são imprescindíveis para o sustento minimamente condigno do devedor/insolvente, pelo que os mesmos têm de ser, na medida em que ultrapassam o valor do salário fixado a título de rendimento disponível incluídos no rendimento a disponibilizar ao fiduciário para os fins da insolvência.

Não está em causa, como se explicou no Acórdão desta Relação, de 28/10/2021,[10] o direito do trabalhador ao gozo de férias e de festejar o natal mas sim a imposição de adequação e controle de gastos nas épocas festivas em função dos seus recursos económicos sem colocarem em risco o mínimo indispensável a uma vivência condigna.”.

No mesmo sentido, entre muitos outros, Ac Tribunal da Relação do Porto 2410/16.2T8STS.P1, de 26.01.2021, relatado pelo Des VIEIRA E CUNHA, (Assim, desde que não exceptuados na fixação desse rendimento, os subsídios de férias e de Natal são rendimentos disponíveis do devedor e deverão, por inerência, ser cedidos ao fiduciário nos meses em que são processados e na medida em que ultrapassam o montante mensal fixado para o sustento minimamente digno do Insolvente e do seu agregado familiar.

Este tem sido o entendimento da jurisprudência desta secção – em recursos nos quais o ora relator foi adjunto (citamo-la, desde logo e acima do mais, por razões de justiça distributiva) – Ac.R.P. 24/3/2020, pº nº 971/17.8T8STS.P1, Ac.R.P. 16/6/2020, pº 3294/19.4T8OAZ.P1, ambos publicados e relatados pela Desª Lina Castro Baptista (também subscritos pelo ora relator), e Ac.R.P. 16/6/2020, pº 2039/14.0T8VNG.P1, relatado pela Desª Alexandra Pelayo, inédito, igualmente subscrito pelo ora relator.

No mesmo sentido, vão os Ac.R.C. 11/02/14 e 13/5/2014, respectivamente nos pºs 467/11.1TBVND-C.C1, relator: Des. Carlos Moreira, e pº 1734/10.7TBFIG-G.C1, relator: Des. Luís Cravo.

Portanto, a decisão proferida também não poderia deixar de ser interpretada como aludindo ao “rendimento do devedor que ultrapasse o equivalente a 1 salário mínimo nacional”, não englobando na excepção quaisquer montantes fruídos a título de subsídios que excedessem esse referido salário mínimo.), Ac Tribunal da Relação do Porto 8215/13.5TBVNG-F.P1, de 26.10.2020, relatado pelo Des JORGE SEABRA, Ac Tribunal da Relação do Porto 557/21.2T8OAZ.P1, de 20.09.2021, relatado pelo Des JORGE SEABRA– atrás citados –, Ac Tribunal da Relação do Porto 324/19.3T8AMT.P1, de 23.09.2019, relatado pelo Des JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA, Ac Tribunal da Relação de Guimarães 1167/20.7T8VNF-C.G1, de 17.09.2020, relatado pelo Des PAULO REIS.

Tendo presente estes ensinamentos jurisprudênciais, tendo presente a efectiva situação da insolvente e descrita supra terá que improceder a pretensão do insolvente.


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III DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo apelante (confrontar artigo 527.º do Código de Processo Civil).


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Sumário nos termos do artigo 663.º, n.º 7 do Código de Processo Civil.

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Porto, 24 de Setembro de 2024
Alberto Taveira
Alexandra Pelayo
Anabela Miranda
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[1] O relator escreve de acordo com a “antiga ortografia”, sendo que as partes em itálico são transcrições cuja opção pela “antiga ortografia” ou pelo “Acordo Ortográfico” depende da respectiva autoria.