RECUSA
DEPOIMENTO
Sumário

(da responsabilidade do relator):

I - A recusa de depoimento é um regime de excepção. Não é, por isso, susceptível de aplicação analógica ou interpretação extensiva. Nomeadamente, quando o preceito se auto limita.
Aquilo que a lei protege é um vínculo existente à data dos factos, não anterior, não posterior. Por isso, a testemunha não poderia recusar-se a depor, nessa qualidade e sujeita ao dever de verdade, no que toca aos factos ocorridos posteriormente à situação de facto de coabitação.
II - O Recorrente não expôs as partes da prova que determinariam uma diferente decisão de facto. Não expôs erros ou contradições do Tribunal recorrido. Não enunciou nada para além de terem sido apresentadas versões diferentes e contraditórias por si e pela vítima. Aquilo que o Recorrente queria era substituir a convicção do Tribunal pela sua. Porém, não evidenciou fundamento para tanto.

Texto Integral

Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
No Juízo Local Criminal de Mafra do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
«Nestes termos, julga-se a Acusação Pública procedente, por provada e, em consequência, decide:
a) Absolver o arguido AA da prática de um crime de violência doméstica, p.p. pelo art.º 152.º, n.º 2, alínea a) do Código Penal, mas condená-lo pela prática como autor material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, al. b) do C.P., na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão;
b) Suspender a execução da pena de prisão por igual período ao da condenação;
c) Determinar que a suspensão seja sujeita a regime de prova por plano a delinear pela D.G.R.S.P. e a homologar pelo Tribunal, no qual se deve incluir a obrigação de frequência de programas específicos de prevenção de violência doméstica;
d) Condenar ainda o arguido na pena acessória de proibição de contactos com BB, por qualquer meio, pelo período de 1 (um) ano, a contar do trânsito em julgado da decisão;
e) Arbitrar, nos termos do art.º 82.º- A do Código de Processo Penal, o pagamento de uma indemnização à ofendida BB, no valor de €300,00
(trezentos euros), condenando o arguido a pagar à mesma tal montante;
f) Condenar o arguido nas custas criminais, (…)»
- do recurso -
Inconformado, recorreu o Arguido formulando as seguintes conclusões:
«a) O Arguido Requer a que seja proferida decisão sobre o Recurso interlocutório.
b) Salvo o devido respeito, o arguido discorda da decisão proferida, visto que considera que não foi produzida prova suficiente para a sua condenação.
c) Até porque não poderia existir, visto que o arguido não praticou os crimes pelos quais foi condenado, senão vejamos:
d) No cumprimento da alínea a) do nº 3 do artigo 412º do CPP o arguido não pode concordar com os pontos da matéria de facto, que se indicam:
e) Pontos – 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30
f) Efectivamente a leitura de pequenos excertos pode levar a uma errada precepção da realidade, porquanto entende o arguido que o Tribunal de Recurso deveria ouvir a totalidade da prova para poder sindicar a respectiva decisão.
g) A tarefa da defesa é muito complexa, visto que consiste em demonstrar o que não existiu (facto negativo), ou seja, demonstrar que não foi feita prova.
h) Resulta impossível transcrever aquilo que não foi referido pelas testemunhas.
i) Assim, optámos por transcrever um excerto das declarações do Arguido:
j) O Arguido foi inquirido no dia 03.06.2024
“(...) Patrono do Arguido: O Senhor acha que cometeu algum crime ou não
Arguido: não (in depoimento prestado pelo Arguido no dia 03.06.2024 aos 6:25 a 6:29)
k) O Arguido negou a prática dos factos que consubstanciam crime.
l) A única testemunha que descreveu os factos foi a alegada vítima.
m) Pelo que se entende que tal depoimento deveria ser apoiado em outros depoimentos directos, o que não ocorreu.
n) Assim sendo, deverá o arguido ser totalmente absolvido por falta de prova, porquanto a decisão recorrida viola o artigo 127º do CPP.
Nestes termos, requer-se o provimento do presente recurso, com a consequente revogação da decisão recorrida e substituição por outra que absolva o arguido.»
- da resposta -
Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público concluindo nos seguintes termos:
«1. De uma leitura atenta da decisão recorrida, resulta que a Mma. Juiz a quo, cumpriu a exigência legal de fundamentação da matéria de facto, descrevendo os factos que considerou provados e, seguidamente, descrevendo o raciocínio que a levou a considerar tais factos provados.
2. Nos termos do artigo 127.º, do Código de Processo Penal, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
3. Desta forma, a livre apreciação da prova não é livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, mas apreciação que, é feita de acordo com critérios lógicos e objectivos, assentes na percepção que cada meio de prova originou no julgador. Assim, chega-se a uma convicção racional, objectivável e motivável.
4. Ao valorar toda a prova produzida em audiência de julgamento, o Tribunal a quo reputou credível o depoimento da ofendida e descreveu pormenorizadamente qual o raciocínio que o levou a essa conclusão.
5. Afigura-se-nos que a decisão encontra-se devidamente fundamentada, sendo inatacável o processo lógico formado pelo Tribunal a quo para chegar à decisão. Assentando a convicção do julgador em meios de prova permitidos pela lei, o uso que o tribunal faz do princípio da livre apreciação da prova é insindicável;
6. In casu, não existem dúvidas que o arguido praticou o crime de que estava acusado, tal resulta inequivocamente da prova produzida, tendo o Tribunal efectuado uma correcta subsunção dos factos ao direito aplicável.
Por todo o exposto, entendemos dever ser negado provimento ao recurso e, consequentemente, manter-se a decisão recorrida»
Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, nos autos, e com efeito suspensivo.
- do recurso interlocutório –
Na audiência de julgamento, ocorrida em 03.06.2024, foi proferido o seguinte despacho: « O artigo 134.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal é perfeitamente claro ao determinar que a recusa a depor, aplicável a quem tiver sido cônjuge do arguido ou quem com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, respeitar apenas a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação, ou seja, esta recusa apenas se reporta aos factos ocorridos ao tempo de vivência conjugal ou em comum com o arguido, deixando o direito ao silêncio de ser protegido pela referida norma quanto a factos ocorridos fora do casamento ou da coabitação, caso em que, quanto a estes, passa a valer a regra geral da obrigação de prestar depoimento.
A interpretação sistemática ora pretendida entre o Direito adjetivo e substantivo não tem qualquer acolhimento legal, secundando-se aqui, porque com tal inteiramente se concorda, e por razões de economia processual, com o invocado pela Digna Procuradora do Ministério Público, pelo que, por falta de acolhimento legal, indefere-se o requerido, determinando-se a prestação de depoimento por parte da ofendida quanto aos factos constantes da acusação, à exceção do ponto 4 da acusação, por corresponder a facto ocorrido durante o período de coabitação. »
- motivações
Inconformado, recorreu o Arguido, concluindo assim:
«a) O Arguido não se conformando com o douto despacho proferido em sede de audiência de discussão e julgamento no dia 03.06.2024, vem apresentar o presente recurso, nos termos e com os seguintes fundamentos.
b) Nos termos da douta decisão, é invocado que “O artigo 134.º, n.º 1,alínea b) do Código de Processo Penal é perfeitamente claro ao determinar que a recusa a depor, aplicável a quem tiver sido cônjuge do arguido ou quem com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, respeitar apenas a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação, ou seja, esta recusa apenas se reporta aos factos ocorridos ao tempo de vivência conjugal ou em comum com o arguido, deixando o direito ao silêncio de ser protegido pela referida norma quanto a factos ocorridos fora do casamento ou da coabitação, caso em que, quanto a estes, passa a valer a regra geral da obrigação de prestar depoimento.
A interpretação sistemática ora pretendida entre o Direito adjetivo e substantivo não tem qualquer acolhimento legal, secundando-se aqui, porque com tal inteiramente se concorda, e por razões de economia processual, com o invocado pela Digna Procuradora do Ministério Público, pelo que, por falta de acolhimento legal, indefere-se o requerido, determinando-se a prestação de depoimento por parte da ofendida quanto aos factos constantes da acusação, à exceção do ponto 4 da acusação, por corresponder a facto ocorrido durante o período de coabitação ”
c) Ora, entende o arguido que, nos termos requeridos, cumpre efectuar uma interpretação sistemática dos artigos 152º do Código Penal com o nº 1 do artigo 134º do Código do Processo Civil.
d) Entende o Arguido que o âmbito de aplicação de ambos os artigos tem que ser compatibilizada, ou seja, entende que quem tiver convivido com os arguidos deverá ter o direito de se recusar a depor sem a limitação da parte final da alínea b) do nº 1 do artigo 134º do CPP.
e) Isto porque o legislador pretendeu que os cônjuges ou unidos de factos possam recursar-se a depor, esta é a regra consagrada no artigo 134º do CPP.
f) No entanto, vem o artigo 152º do Código Penal alargar o âmbito da violência doméstica a factos posteriores ao terminus da relação, visto que abrange os ex-conjuges e os ex-unidos de facto.
g) Será que faz sentido considerar que o ex-unido de facto se possa recusar a depor sobre factos que ocorreram durante a união de facto e não pode recursar-se a depor sobre os factos posteriores ao terminus
dessa união?
h) Com o devido respeito não consideramos que exista qualquer fundamento para tal tratamento diferenciado.
i) Sendo relevante que a opção do artigo 134º do CPP é uma norma geral para todos os crimes.
j) No entanto, perante o crime de violência doméstica que criminaliza factos posteriores à coabitação, sempre cumpre interpretar as normas conjugadas.
k) Assim sendo, entende-se que os ex-unidos de facto têm o direito a recusar-se a depor sobre todos os factos relativos ao crime de violência doméstica.
l) Acresce que se vislumbra ainda que se verifica uma violação do princípio da igualdade entre os casados e os unidos de facto.
m) Os unidos de facto podem recursar-se a depor por factos ocorridos durante a coabitação e os casados por factos ocorridos durante o casamento, mesmo que não coabitem.
n) Ou seja, uma pessoa que permaneça casada após o fim da coabitação pode recusar-se a depor e o unido de facto já não se pode recursar a depor.
o) Ou seja, estamos a tratar de forma diferente o que é igual.
p) Ou seja, entendemos que a parte final da alínea b) do nº 1 do artigo 134º do CPP ((...) relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação (...)) viola o artigo 13º da Constituição.
q) Violando, a parte final da alínea b) do nº 1 do artigo 134º do CPP, o artigo 13º da CRP, cumpre recusar a sua aplicação.
r) Porquanto, desde já se requer a revogação do douto despacho e a substituição do mesmo por um despacho que permita à depoente recursar-se a depor sobre toda a matéria da acusação.
Termos em que, o presente recurso não poderá deixar de ser julgado procedente, devendo o douto despacho ser substítuido por um despacho que permita à depoente recursar-se a depor sobre toda a matéria visto que viveu em união de facto com o arguido.»
- resposta
Respondeu o Ministério Público a este recurso interlocutório, concluindo: «Afigura-se-nos que o Tribunal a quo ponderou correctamente a legislação aplicável e os factos em causa nos autos, não merecendo a decisão qualquer reparo.»
Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público tendo sido emitido parecer no sentido do acompanhamento da resposta.
Cumprido o disposto no art.º 417.º/2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao parecer.
Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
Cumpre decidir.
OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995]
Desta forma, tendo presentes tais conclusões, são as seguintes as questões a decidir:
a) do recurso interlocutório:
- A recusa de depoimento prevista no art.º 134.º do Código de Processo Penal aplica-se aos unidos de facto relativamente a factos ocorridos fora do período de coabitação e relacionamento análogo ao dos cônjuges?
b) do recurso final:
- incorreu o Tribunal de julgamento em erro na apreciação da prova, inexistindo prova que permita dar os factos como provados?
DA SENTENÇA RECORRIDA
Da sentença recorrida consta a seguinte matéria de facto provada:
«1. O arguido e BB (doravante designada por BB) iniciaram uma relação de namoro no mês de ... e passaram a viver comunhão de leito, mesa e habitação, como se de marido e mulher se tratassem, cerca de dois meses depois.
2. A relação entre o casal terminou no mês de Abril de 2022., por vontade do arguido.
3. No início da relação o casal fixou residência numa habitação sita na ..., e cerca de dois anos depois passou a residir na habitação sita na ....
4. No dia 05-09-2022, após o final da relação, entre as 23h00m e as 23h30m, o arguido deslocouse ao estabelecimento comercial denominado “...”, onde sabia que BB se encontrava.
5. Ali chegado, o arguido dirigiu-se a BB, que se encontrava na esplanada daquele estabelecimento comercial, e, em tom de voz sério e grave, e junto da cara daquela, disse-lhe:
“Eu faço-te a folha! Tu és uma cabra! És uma puta! És uma vaca! Filha da puta!”.
6. Entretanto, ao se perceber do barulho e das movimentações que se faziam sentir no exterior do seu estabelecimento comercial, CC deslocou-se ao pátio do mesmo e pediu ao arguido que abandonasse o local.
7. Em data não concretamente apurada, mas situada entre o dia 07-09-2022 e o dia 10-09-2022, BB deslocava-se apeada para o seu local de trabalho, sito em ….
8. Nessa ocasião, o arguido, que conduzia o seu carro, e a viu a caminhar junto da Igreja, sita no ..., em ... deu a volta à ..., e acelerou a marcha do veículo que conduzia na direcção de BB.
9. O arguido só não atropelou BB porque esta se desviou para o meio de veículos automóveis que se encontravam parqueados no local.
10. No dia 10-09-2022, às 21h14m, o arguido remeteu uma mensagem escrita para o telemóvel de DD, filha de BB, dizendo que ia bloquear os contactos daquela e de BB, e acusou-as de lhe terem riscado o carro dele.
11. Ainda na mesma mensagem, o arguido, referindo-se a BB, escreveu que ela era uma puta e mentirosa e que numa ocasião quando chegou a casa vinda do estabelecimento comercial “...”, que cheirava a homem, e que era uma puta de merda e que só não a atropelou porque tinha o gato e não o queria deixar sozinho.
12. No dia seguinte, 11-09-2022, da parte da tarde, DD deslocou-se à residência do arguido para ir buscar uma carta dirigida ao seu irmão que tinha sido remetida para casa do arguido.
13. Preocupada com palavras proferidas pelo arguido de conteúdo não exactamente determinado, DD contou a BB o que aquele lhe tinha dito e pediu-lhe para ter cuidado quando andasse na rua.
14. No dia 12-09-2022, cerca da 01h20m, por saber que BB era frequentadora daquele estabelecimento comercial, o arguido deslocou-se ao snack bar denominado “...” e ateou fogo ao mesmo, factos esses que deram origem ao Processo crime n.º 446/22.3GCMFR.
15. E, no âmbito desse Processo, que corre termos no Tribunal de Sintra – JC Criminal, Juiz 5, foi ao arguido, no dia 15-09-2022, aplicada a medida de coacção de prisão preventiva e, posteriormente, sujeito a julgamento foi o mesmo condenado, por sentença datada de 05-06-2023, transitada em julgado no dia 05-07-2023, na pena de quatro anos prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova.
16. No dia 01-09-2023, às 17h15m, o arguido mandou a seguinte mensagem escrita para DD:
- “Olá tudo bem contigo e com a família, só para informar-te que as comemorações do mês de Setembro já começaram. Começou por um comentário irónico no facebook de BB “A vedeta". Mais eventos serás informada. E sei que lá estarás no dia 12 de Setembro à 01h30m da manhã”.
17. Ainda no mesmo dia, o arguido remeteu uma mensagem para o facebook de BB e fez o seguinte comentário escrito no perfil dela que tinha uma imagem do mar:
- “A fotografia tinha muita água assim como a tua vida. Devias estar muito feliz no dia 27-092022 porque ele tinha sido preso poucos dias antes”.
18. No dia 03-09-2023, às 11h57m, o arguido remeteu uma mensagem escrita para DD, em que se referia ao facto de a ter visto, através de uma transmissão emitida pelo facebook por parte do respectivo dono, a trabalhar no dia anterior no snack bar “...”, com o seguinte teor:
- “Boa folga, ontem no facebook vi a transmissão e tu fartaste-te de aparecer na câmara a trabalhar”.
19. No dia 10-09-2023, cerca das 21h00m, quando conduzia o seu carro na ..., sentido ..., o arguido viu BB a caminhar a pé, na zona pedonal delimitada por pinos, e a atravessar o cruzamento para a ..., em ..., perpendicular à ..., no sentido ....
20. Então, o arguido fez inversão de marcha, e de seguida acelerou o veículo automóvel que conduzia na direcção de BB.
21. O arguido não atropelou BB uma vez que ela se conseguiu desviar do veículo automóvel que ele conduzia.
22. Nessa altura, o arguido abriu o vidro da porta do veículo que conduzia e dirigiu-se a BB e disse-lhe: “Brevemente estaremos todos juntos!”, atemorizando-a.
23. Com medo dos comportamentos que o arguido tem vindo a perpetrar contra ela, BB deixou de fazer caminhadas regulares na via pública e deixou de se deslocar para o seu local de trabalho apeada, solicitando sempre a terceiros que a conduzam de carro.
24. BB vive diariamente com receio que o arguido atente contra a sua integridade física e contra a sua vida.
25. Com as condutas acima descritas o arguido quis e conseguiu ofender BB na sua honra e dignidade, na sua integridade física, e na sua liberdade pessoal, para que esta se sentisse lesada na sua dignidade, bem sabendo que praticando parte desses actos no interior da residência comum do casal, estava a privá-la de qualquer possibilidade de reacção, causando-lhe um profundo sentimento de insegurança.
26. O arguido actuou com o propósito de atingir e lesar o corpo e saúde de BB, apenas não o tendo logrado por motivos alheios à sua vontade.
27. Sabia o arguido que as expressões dirigidas a BB eram insultuosas e que a ofendiam na sua honra e consideração, o que logrou conseguir.
28. As expressões ameaçadoras que o arguido dirigiu a BB, considerando todas as circunstâncias que as rodearam, nomeadamente o facto de o arguido se encontrar num estado de extrema exaltação quando as anunciava e de já ter anteriormente ateado fogo a estabelecimento comercial frequentado por aquela, foram proferidas de forma a provocar-lhe receio e inquietação, o que logrou conseguir.
29. O arguido actuou sempre com intenção de maltratar física e psiquicamente BB, o que de facto veio a conseguir.
30. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.
Dos antecedentes criminais do arguido:
31. O arguido tem averbado no seu certificado de registo criminal uma condenação pela prática, em 12.09.2022, de um crime de incêndio/fogo posto em edifício, construção ou meio de transporte, tendo sido condenado por sentença transitada em julgado em 05.07.2023, no âmbito do Proc. n.º 446/22.3GCMFR, que correu termos no Juízo Central Criminal de Sintra, Juiz 5, na pena de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução, por igual período.
Das condições pessoais e socioecónomicas do arguido:
32. O arguido está a frequentar um curso do IEFP de longa duração, de Técnico de ..., auferindo uma bolsa de €300,00 mensais;
33. Paga €123,00 de indemnização de custos penais no Proc. 446/22.3GCMFR, assim como €50,00 à seguradora ..., pelos prejuízos causados pelo incêndio;
34. Vive com a mãe, que é reformada, auferindo uma pensão mensal de €1.000,00;
35. Não tem filhos.
36. Vivem em casa arrendada, pela qual pagam €222,00 mensais, a que acrescem cerca de
€150,00 pelas despesas de fornecimento de água, luz e gás;
37. É licenciado em ….
Das condições pessoais e socioecónomicas da ofendida:
38. A ofendida trabalha num lar de idosos, auferindo um rendimento de €900,00 mensais;
39. Vive em casa arrendada, com 2 filhos estudantes, pagando uma renda de €550,00 mensais.»
FUNDAMENTAÇÃO
- do recurso interlocutório –
Tendo o Tribunal decidido que a recusa de depoimento prevista no art.º 134.º do Código de Processo Penal não se aplica aos unidos de facto relativamente a factos ocorridos fora do período de coabitação e relacionamento análogo ao dos cônjuges, entende o Recorrente que tal interpretação não é correcta e importou uma decisão ilegal.
A questão que cumpre responder é se o regime definido pelo art.º 134.º do Código de Processo Penal deverá ser aplicado caso os factos aos quais respeita o depoimento tenham ocorrido fora da situação de factos correspondente ao relacionamento análogo ao dos cônjuges.
Reza tal preceito que:
«Artigo 134.º
Recusa de depoimento
1 - Podem recusar-se a depor como testemunhas:
a) Os descendentes, os ascendentes, os irmãos, os afins até ao 2.º grau, os adoptantes, os adoptados e o cônjuge do arguido;
b) Quem tiver sido cônjuge do arguido ou quem, sendo de outro ou do mesmo sexo, com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação.
c) O membro do órgão da pessoa coletiva ou da entidade equiparada que não é representante da mesma no processo em que ela seja arguida.
2 - A entidade competente para receber o depoimento adverte, sob pena de nulidade, as pessoas referidas no número anterior da faculdade que lhes assiste de recusarem o depoimento.».
A alínea b) do número 1 é aquela que agora importa ter presente.
O regime criado por este artigo visa, por um lado, a protecção da testemunha, desobrigando-a do dever de depor, seja para sua protecção, seja para defesa daquele que lhe é próximo. Desta forma, não só o regime aqui estabelecido se destina à testemunha que é vítima, como à testemunha que, pela sua proximidade, tem conhecimento de factos incriminatórios mas que, pela sua relação com o Arguido, não quererá prejudicá-lo.
O regime fixado na lei também se destina, assim, à salvaguarda do Arguido pois é ele um dos beneficiários desta prerrogativa consagrada na lei e que é, manifestamente, uma excepção ao regime geral de depoimento de testemunhas, assistentes e partes civis, todos eles obrigados aos deveres colaboração com a Justiça e de verdade quando ouvidos em juízo. Tanto assim é que, não obstante outras relações da testemunha com os demais sujeitos processuais não concede a lei idêntica faculdade de recusa de depor.
Aqui chegados, importa reter que a recusa de depoimento é um regime de excepção. Não é, por isso, susceptível de aplicação analógica ou interpretação extensiva. Nomeadamente, quando o preceito se auto limita.
Cuidando na leitura da citada al. b), constata-se que o legislador estabeleceu este direito de recusa de depoimento, mas limitou, desde logo, o seu âmbito. E, no caso das pessoas que mantêm ou mantiveram com o Arguido uma relação análoga à dos cônjuges, tal limitação respeita ao âmbito temporal dos factos sobre os quais é legítima a recusa: têm que coincidir com a coabitação.
Assim como no que respeita ao casamento, situação na qual o âmbito temporal é restrito ao período no qual existe tal vínculo legal.
Uma palavra para a alegada violação do princípio da igualdade invocada pelo Recorrente. Claramente, é desprovida de fundamento, posto que a previsão do casamento e da união de facto reporta-se a dois vínculos de natureza muito diferente (um vínculo legal, contratual, e outro de facto), pelo que não viola o princípio da igualdade serem merecedores de tratamento diferente no que respeita aos seus efeitos.
Voltando à limitação temporal, o exemplo claro da justificação para a mesma prende-se com o exemplo clássico do agente que, praticando um crime, a seguir poderia casar com a única testemunha permitindo assim que, pela recusa desta em depor, beneficiar de impunidade através de um artifício. Aquilo que a lei protege é um vínculo existente à data dos factos, não anterior, não posterior (neste sentido, vd. Acs. Tribunal da Relação de Coimbra de 08.02.2017, Desembargador Vasques Osório [ECLI:PT:TRC:2017:71.16.8GBLMG.C1.D9]; Tribunal da Relação do Porto de 06.04.2022, Desembargador Pedro Lucas [ECLI:PT:TRP:2022:2218.20.0T9VFR.P1.28]; Tribunal da Relação de Évora de 13.07.2017, Desembargadora Maria Filomena Soares [ECLI:PT:TRE:2017:415.15.0.PBEVR.E1.1D].
Por isso, bem andou o Tribunal ao estabelecer a diferença e a entender que a testemunha não poderia recusar-se a depor, nessa qualidade e sujeita ao dever de verdade, no que toca aos factos ocorridos posteriormente à situação de facto de coabitação.
- do recurso final -
- da falta de prova -
Segundo o entendimento do Recorrente, incorreu o Tribunal de julgamento em erro na apreciação da prova, inexistindo prova que permita dar os factos como provados. Desde já, ultrapassada a questão colocada com o recurso interlocutório, não existem reservas quanto à utilização do depoimento da testemunha BB. Assim, atente-se aos termos da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto. Assim escreve o Tribunal a quo na sua sentença: «No caso dos autos, em termos documentais (mais concretamente para prova dos factos 14 e 15), atentou-se na cópia de acórdão proferido no processo n.º 446/22.3GCMFR de fls. 51 a 71.
Para prova dos restantes factos (1 a 13 e 16 a 22), o Tribunal atentou-se na prova produzida em audiência de julgamento.
O arguido, em audiência de julgamento, limitou-se a dizer que as mensagens se encontram descontextualizadas, exercendo de imediato o seu direito ao silêncio. Reproduzindo as declarações prestadas em primeiro interrogatório judicial, reconheceu o início e termo da relação com a ofendida, o que sucedeu devido à vida leviana que a mesma levava, assim como o envio das SMS, quer à mesma, quer a sua filha DD. Negou ter alguma vez tentado atropelar a ofendida ou agredido a mesma, tendo apenas de ambas as vezes descritas na acusação passado junto da mesma no seu veículo automóvel. Da primeira vez a ofendida assustou-se, sem razão para tal; da segunda dirigiu-se-lhe dizendo que tinham de falar, mas a mesma estava ao telefone, não percebendo o que disse. Reconheceu tê-las acusado de vandalizar o seu carro, o que fez por não ter quaisquer outros inimigos, só podendo ser a ofendida quem o fez.
A ofendida BB prestou declarações, as quais se revelaram credíveis, coerentes e verosímeis. A mesma, exercendo o seu direito de não prestar declarações quanto aos factos ocorridos durante o período de coabitação, narrou cada um dos factos que se deram como provados, como os factos ocorridos no ... no dia ... de ... de 2022, que levaram à intervenção de CC, proprietária do mesmo, assim como das duas tentativas de atropelamento perpetradas pelo arguido. O seu depoimento revelou-se muito sincero, não denotando qualquer pretensão em prejudicar o arguido ou exagerar os factos. Se assim fosse, a mesma nem se teria recusado a depor sobre os factos ocorridos durante o período de coabitação. Ao invés do invocado em sede de alegações orais, não existiu nenhuma contradição no seu depoimento relativamente aos dois episódios da tentativa de atropelamento, sendo a sua referência, quando instada pelo I. Defensor, a apenas uma tentativa de atropelamento, a uma clara má interpretação ou mal entendimento quanto ao que lhe estava a ser questionado, pois a espontaneidade e clareza do seu prévio depoimento não deu azo a qualquer dúvida quanto à existência de duas situações distintas, em dias e lugares diversos. Dão-se aqui por reproduzidas as suas declarações, não se exigindo relatar cada uma das situações descritas pela ofendida, apenas importando dizer que a mesma respondeu às questões que lhe eram feitas, não procurando dizer nada mais do que lhe era pedido, merecendo todo o crédito. Concluiu referindo que o comportamento do arguido a fez alterar a sua rotina, pois reduziu as caminhadas e mudou de horários, o que fez por razões de segurança e medo. Também asseverou que não sai tanto como saía, tendo mais cuidado e quando sai à 00:00 não vem a pé, pedindo às colegas que a levem a casa.
A testemunha CC confirmou os factos ocorridos no dia ... de ... de 2022 (4 a 6), esclarecendo que estava a trabalhar no estabelecimento comercial de que é proprietária – o «...» - o qual tem câmaras de vigilância dirigidas para o exterior. Foi alertada pelo seu marido para ir lá fora porque havia movimentos estranhos e quando lá se dirigiu viu o arguido e a BB, estando aquele muito alterado e inclinado para esta, proferindo expressões como «Tu não vales nada, gostas desta vida, és uma cabra, eu faço-te a folha, queres é andar nos cafés.» Por conseguinte, mandou-o embora chamou a ofendida para o interior do estabelecimento. Não estando bem recordada da data dos factos, consultou o seu telemóvel, pois atestou que nesse dia à noite recebeu uma mensagem da ofendida a agradecer a sua intervenção, confirmando assim que os factos ocorreram no dia ......2022 (sendo a mesma enviada às 23:39h). O seu depoimento foi perfeitamente consentâneo com os factos que haviam sido narrados pela ofendida, pelo que não sobejaram quaisquer dúvidas ao tribunal quanto à sua ocorrência.
A testemunha DD, filha da ofendida, mostrou-se um pouco renitente nas suas declarações, denotando ver no arguido uma figura parental e, por isso, ter alguma relutância em prestar depoimento, procurando desvalorizar os factos. Não obstante, confirmou que a sua mãe, após o término do relacionamento, por duas ou três vezes, chegou a casa triste, invocando que se havia encontrado com o arguido e que «ele lhe tinha chamado nomes» (também narrado pela ofendida nas suas declarações, que referiu ter sido apelidada pelo arguido de «puta, vaca, filha da puta»), razão pela qual uma vez foi a sua casa dele e lhe disse que se tivesse algum problema para falar com ela. Também referiu ter conhecimento das SMS (as quais, de resto, foram confessadamente enviadas pelo arguido) e de uma vez ter ido a casa do arguido buscar correspondência dirigida ao seu irmão. Não adiantando concretamente o teor da conversa que tiveram, reconheceu ter avisado a mãe para ter cuidado quando andasse sozinha na rua sozinha. No dia em que foi a casa dele arguido disse que já tinha estado na mesma estrada que ela e que ela nem reparou. Ou seja, pese embora procurando não dar a devida importância aos factos e invocando que a mãe não alterou a sua rotina, acabou por dizer que, após conversa com o arguido, ter alertado a sua mãe para ter cuidado quando andasse sozinha na rua, o que fez por ter ficado preocupada com a mesma. Também referiu que por vezes a leva ao trabalho e por vezes as colegas a trazem.
Os factos 25 a 30 (elemento subjectivo) resultaram do cotejo da matéria objectiva dada por provada com as regras da experiência comum.
Como refere Cavaleiro de Ferreira (Curso de Processo Penal II, Lisboa, ..., pág. 292), existem elementos do crime (factos) que, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta, como são todos os elementos de estrutura psicológica.
Com efeito, o comum dos cidadãos, medianamente inteligente e sagaz, como se presume ser o caso do arguido, não podia deixar de conhecer o desvalor da sua conduta, de saber que o seu comportamento constituía um crime e, bem ainda, que iria causar danos na ofendida.
De facto, o arguido não podia deixar de saber que, ao dirigir-se à ofendida, insultando-a, ameaçando-a, perseguindo-a e procurando atropelá-la, estava a molestá-la na sua saúde psíquica e física (na forma tentada), a afectar a sua liberdade de decisão, a humilhar e desconsiderar, com desprezo pela sua dignidade pessoal, o que conseguiu.
Os antecedentes criminais do arguido – facto 31 - resultou provada através do C.R.C. junto aos autos a fls. 261.
Os factos 32 a 37 (condições pessoais e sócioeconómicas) resultaram provados através das declarações do arguido, que mereceram credibilidade.
Os factos 38 e 39 resultaram provados através das declarações da ofendida.
No que diz respeito aos factos julgados como não provados, tal decisão deveu-se à ausência de produção de prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento que determinasse uma decisão diversa.
De facto, nos termos do art.º 355.º, n.º 1 do C.P.P., não valem em julgamento, nomeadamente para efeito da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência.
O facto a. não resultou provado porque a ofendida se recusou a depor sobre os mesmos, sendo que a testemunha DD apenas fez referência a discussões «normais» de convivência doméstica.
Os factos b. a e. não resultaram provados porque a ofendida não fez referência aos mesmos.
O facto e. não resultado provado porque alegadamente proferido perante a testemunha DD, sendo que a mesma no seu depoimento não confirmou tal relato.
Assim, e à míngua de outra prova, têm tais factos de se dar como não provados.».
Diferente leitura da prova teve o Recorrente, assentando tal convicção na circunstância de o próprio ter negado a prática dos factos e a única testemunha que descreveu os factos foi a vítima. Assim, e porque tal depoimento deveria ser apoiado em outros, o que não aconteceu, conclui que deveriam os factos ser dados por não provados.
Vejamos, então.
Em sede de recurso, pode o Tribunal da Relação de Lisboa reapreciar a matéria de facto por uma de duas vias.
Por um lado, como consequência da apreciação dos vícios previstos no art.º 410.º/2 do Código de Processo Penal, ou seja, com um âmbito mais restrito. Neste domínio, o Tribunal deverá verificar a ocorrência de tais vícios a partir do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Constatada a ocorrência de um dos apontados vícios, cumpre ao Tribunal de recurso corrigir a decisão de facto em conformidade, ou remeter o processo à primeira instância para proceder a tal reparação caso não esteja ao seu alcance, desta forma alcançando o fim do recurso.
Por outro lado, poderá o Tribunal da Relação de Lisboa ser chamado a pronunciar-se no âmbito de uma impugnação ampla da matéria de facto, feita nos termos do art.º 412.º/3, 4 e 6 do Código de Processo Penal, caso em que a apreciação versará a prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente.
Neste caso, o recurso não corresponde a um segundo julgamento para produzir uma nova resposta sobre a matéria de facto, com audição das gravações do julgamento da primeira instância e reavaliação da prova pré-constituída, mas sim um mero remédio correctivo para ultrapassar eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida. Tais erros emergirão como resultado de uma deficiente apreciação da prova e terão sempre de corresponder aos concretos pontos de facto identificados no recurso.
Tanto assim é que são reconhecidas limitações ao “segundo” julgamento que ao Tribunal de recurso assiste, com base na prova documentada [vd. Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 26.10.2021, Desembargador Manuel Advínculo Sequeira, ECLI:PT:TRL:2021:510.19.6S5LSB.L1.5.DD «Como é sabido, o recurso sobre a matéria de facto não equivale a um segundo julgamento, pois é apenas uma possibilidade de remédio para apreciação em que claramente se haja errado.
- As declarações são ainda indissociáveis da atitude e postura de quem as presta, olhares, trejeitos, hesitações, pausas e demais reacções comportamentais às diversas perguntas e questões abordadas, isoladas ou entre si combinadas, bem como a regras de experiência e senso comuns à luz da normalidade dos comportamentos humanas e nunca se poderá ainda perder de vista a circunstância de, por princípio, ter aquela observação levado em devida conta a apreciação comunitária e o exame individual de todos os intervenientes no caso, perante o tribunal e durante a audiência, com todas as vantagens atinentes e intrínsecas à imediação, desta resultando, sem qualquer tipo de reserva, factores impossíveis de controlar após o respectivo encerramento.
- Toda a sensibilidade que ali desfila, individual, mas também geral, tem enorme importância no sentenciamento justo e é impossível apartá-lo da resposta que o tribunal irá dar ao caso concreto, em nome da comunidade pelo que só a imediação, a par da oralidade, garante o processo e decisão justos, princípios adquiridos com segurança, vai para mais de um século.
- Tudo para concluir ser de primordial importância saber-se que na concreta fixação da verdade do caso influem elementos determinantes que escapam por natureza a apreciação posterior.»]
Por tudo isto, perante esta forma de impugnação, cumpre ao Tribunal da Relação de Lisboa analisar os factos questionados, verificar se têm suporte na fundamentação da decisão recorrida e avaliar e comparar a prova indicada na dita fundamentação, testando a sua consistência e coerência. Apenas no caso de tal sustentação soçobrar perante este exame deverá o Tribunal considerar que outra decisão deveria ter sido tomada pelo Tribunal recorrido e, consequentemente, intervir na respectiva correcção [cfr. Acs. STJ de 14.03.2007, Conselheiro Santos Cabral - ECLI:PT:STJ:2007:07P21.5C; de 23.05.2007, Conselheiro Henriques Gaspar - ECLI:PT:STJ:2007:07P1498.95; de 29.10.2008, Conselheiro Souto de Moura - ECLI:PT:STJ:2008:07P1016.19; e de 20.11.2008, Conselheiro Santos Carvalho - ECLI:PT:STJ:2008:08P3269.6B].
Consequentemente, o recurso de impugnação ampla merece especiais imposições fixadas na lei, a saber, no art.º 412.º/3 do Código de Processo Penal: «a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas.»
Impõe-se, então, ao Recorrente que indique os factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados bem como os meios de prova e respectiva interpretação, avaliação, que imponham decisão diversa daquela produzida em primeira instância.
Caso o Recorrente entenda existirem provas que devam ser renovadas terá que os indicar especificadamente e expor as razões que justifiquem que a dita renovação evitará o reenvio do processo tal como resulta do art.º 430.º do Código de Processo Penal.
Neste domínio da indicação da prova produzida, caso tenha sido sujeita a gravação, exige-se ao Recorrente a referência ao que tiver sido consignado na acta, devendo o recorrente apontar as passagens das gravações em que fundamenta a sua pretensão recursiva. Não lhe bastará remeter para a totalidade de um ou de vários depoimentos, mas sim indicar as concretas passagens que devem ser ouvidas ou visualizadas no Tribunal da Relação de Lisboa (art.º 412.º/4 e 6 do Código de Processo Penal) – cfr. Acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça 3/2012, in DR, 1.ª de 18.04 2012 «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».
Ora, o Recorrente não fez tal trabalho no seu recurso. Não expôs as partes da prova que determinariam uma diferente decisão de facto. Não expôs erros ou contradições do Tribunal recorrido. Não enunciou nada para além de terem sido apresentadas versões diferentes e contraditórias por si e pela vítima.
Aqui chegados, cumpre expressar a conclusão que se impõe no que toca à impugnação ampla e sua apreciação. O Tribunal de recurso só poderá alterar a decisão se as provas indicadas obrigarem a uma decisão diversa da proferida. Caso tais provas não imponham essa decisão diversa, mas apenas a permitam, paralelamente àquela que foi a decisão da primeira instância, deverá ser esta última a prevalecer, não havendo lugar a qualquer correcção da decisão recorrida, desde que se mostre devidamente fundamentada e, face às regras da experiência comum, couber dentro de uma das possíveis soluções (vd., Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 02.11.2021, Desembargador Jorge Gonçalves - ECLI:PT:TRL:2021:477.20.8PDAMD.L1.5.A4).
Perante o princípio da livre apreciação da prova tal como consagrado no art.º 127.º do Código de Processo Penal, permite ao julgador recorrer às regras da experiência e sua convicção do julgador, desde que logre justifica-la permitindo a respectiva compreensão e sindicância, não será a convicção pessoal de cada um dos intervenientes processuais, que irá sobrepor-se à convicção do Tribunal. Caso contrário, nunca seria possível alcançar uma decisão final. Alcançamos, então, a evidente conclusão de que o Tribunal de recurso apenas poderá intervir de forma correctiva perante a invocação fundamentada de um erro de apreciação da prova, que venha a concluir ter existido.
Lida a fundamentação da sentença e ponderada a argumentação do recurso, temos que concluir que inexiste fundamento para a procedência do recurso. Aquilo que o Recorrente queria era substituir a convicção do Tribunal pela sua. Porém, como vimos, sem qualquer fundamento para tanto. O olhar imparcial, equidistante e zeloso do Tribunal produziu a decisão que decidimos manter inalterada.
DECISÃO
Nestes termos, e face ao exposto, decide o Tribunal da Relação de Lisboa julgar improcedentes os recursos do Arguido, mantendo inalteradas as decisões recorridas.
Custas pelo Recorrente, fixando-se em 2 UC a taxa de justiça pelo recurso interlocutório e em 3 UC a taxa de justiça pelo recurso final.

Lisboa, 24.09.2024
Rui Coelho
Alda Tomé Casimiro
Ana Cristina Cardoso