MANDATO FORENSE
FORMALIDADES
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
ACUSAÇÃO
REJEIÇÃO
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
ASSISTENTE
Sumário

(da responsabilidade do relator):
I - A lei dispensa a intervenção notarial para a outorga de procuração forense, fazendo recair sobre o mandatário o dever de certificar-se da existência, por parte do ou dos mandantes, dos poderes necessários para o acto.
II - Este dever não se traduz, porém, na exigência de formalidades adicionais na procuração ou menções especiais, as quais não ficaram consignadas no Decreto-Lei 267/92 de 28 de novembro, diploma que se justifica por um propósito de simplificação de procedimentos e de reconhecimento de que o posicionamento da Administração Pública perante o cidadão que a ela se dirige tem de ser norteado pelo princípio da confiança (cfr. o respetivo preâmbulo).
III - Faltando a narração de elementos indispensáveis ao preenchimento do tipo de crime imputado, a acusação é manifestamente infundada, pelo que, de harmonia com o disposto no artigo 311º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alíneas b) e d) do CPP, se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, a acusação deve ser rejeitada.
IV - Atenta a estrutura acusatória do processo penal, não é possível reverter o processo à fase de inquérito, dirigindo à assistente um convite ao aperfeiçoamento da acusação particular, para aditar factos cuja omissão determinou a rejeição da acusação.

Texto Integral

Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
No Juízo Local Criminal de Cascais, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, foi proferida decisão rejeitando a acusação particular que a assistente ..., acompanhada pelo Ministério Público, deduziu contra o arguido AA, imputando-lhe a prática de um crime de ofensa a pessoa coletiva, previsto e punido pelos artigos 187.º, nºs 1 e 2, al. a) e 183.º, nº 1, al. a), do Código Penal.
Pode ler-se na decisão impugnada, nomeadamente, o seguinte:
«(…) Constata-se que a queixa nestes autos foi apresentada por mandatário judicial, pelo que não carecia a procuração de poderes especiais.
Tal procuração consubstancia uma mera fotocópia certificada por advogado de “como é uma reprodução fiel do respetivo original” – vide fls. 14 a 16.
Contudo, a certificação em apreço não tem qualquer menção especial - nos termos do artigo 38.º do DL n.º 76-A/2006, de 29 de março -, nomeadamente não certifica a qualidade do outorgante da procuração forense, nem tão pouco foi junta qualquer certidão de registo comercial da assistente da qual seja possível aferir tal legitimidade.
De facto, a certificação da procuração existente é uma mera certificação de fotocópia que não reconhece as assinaturas dos alegados representantes assistente ... e respetivos poderes, por confronto com a certidão comercial respetiva.
Assim, é impossível atestar se quem atribuiu poderes representativos aos mandatários vertidos na procuração forense de fls. 14 a 16 tinha os necessários poderes societários para vincular a assistente nesse sentido, pelo que a queixa apresentada não produz qualquer eficácia. - artigo 49.º, n.º 3 do CPP
Face ao exposto, importa concluir que não foi eficazmente exercido o direito de queixa por parte da assistente relativamente ao crime de crime de ofensa a pessoa coletiva pelo qual o arguido vem acusado.
Deste modo, o Ministério Público não tinha legitimidade para prosseguir criminalmente pelo crime em apreço nos autos, nem notificar a assistente nos termos do artigo 285.º do CPP, como resulta do disposto nos artigos 48.º, e 49.º, n.º 1 e 50.º do CPP.
Nestes termos, entende-se rejeitar a acusação particular deduzida contra o arguido.
Notifique».
Consta ainda do mesmo despacho o seguinte:
«Ainda que assim não se entendesse, sempre se dirá que da leitura da acusação particular resulta que a mesma não descreve qualquer facto que permita imputar que o arguido agiu com intenção de cometer tal ilícito, nomeadamente que o arguido tenha atuado com intenção de lesar a honra e consideração da assistente, pelo que ainda que todos os factos fossem dados como provados não seria possível condenar o arguido nos termos factuais descritos.
Assim, há que concluir que a acusação particular deduzida não reúne todos os referidos requisitos, exigidos pelo citado artigo 283.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, o que é manifesto.
Não cabe ao Tribunal nem ao Ministério Público indagar a verificação de tais factos e completar a acusação particular (…).
Não contendo o requerimento do assistente, os elementos exigidos para a dedução da acusação, não pode ser recebida a acusação deduzida, devendo a mesma ser rejeitada nos termos do aludido artigo 311º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alíneas b) e d) do Código de Processo Penal.
Pelo exposto, rejeito a acusação particular deduzida pelo assistente, por manifestamente infundada, na acepção do citado artigo 311º do CPP».
*
Inconformada, recorreu a assistente, formulando as seguintes conclusões:
«1. O presente recurso vem interposto do despacho proferido no dia 18 de Março de 2024, na parte em que julgou o exercício do direito de queixa ineficaz e na parte em que rejeitou a acusação particular deduzida, por alegadamente ser manifestamente infundada, determinando o arquivamento dos autos, doravante designado por “despacho recorrido”.
2. O despacho recorrido, ao aludir a uma suposta falta de certificação da qualidade do outorgante da procuração forense; ao aludir a uma suposta falta de reconhecimento das assinaturas constantes da procuração forense; e ao concluir por uma suposta ineficácia do direito de queixa por força da verificação desses factos, violou o disposto no 49.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, violou o disposto no 38.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março de 2006, violou o disposto nos artigos 171.º-A, n.ºs 1 e 3, 171.º, n.º 2 e 170.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 207/95, de 14 de Agosto, violou o disposto no artigo 43.º, alínea a), do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4.º, do Código de Processo Penal, e violou o disposto no artigo único do Decreto-Lei n.º 267/92, de 28 de Novembro, padecendo assim de erro de julgamento da matéria de direito, pois a certificação legal de fotocópias é, apenas, o ato avulso através do qual o Advogado certifica que uma fotocópia extraída fora do seu escritório, relativa a um documento não arquivado no seu escritório, está conforme o original, sendo certo que esta declaração de originalidade é a única menção que, nos termos da lei, se exige ao Advogado quando certifica uma fotocópia, e uma vez que a lei (Código de Processo Civil e Decreto-Lei n.º 267/92, de 28 de Novembro) estabelece que a procuração forense que conste de documento particular (como é o caso) não carece de reconhecimento presencial de assinaturas e não carece de termo de autenticação (não carecem de intervenção notarial).
3. Porém, caso se considere que a procuração forense que espoletou o presente processo não foi executada ou certificada em total conformidade com as disposições legais aplicáveis, o que apenas se admite como mero exercício retórico, então o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 464.º, 471.º e 268.º, do Código Civil, padecendo assim de erro de julgamento da matéria de direito, uma vez que todos os atos constantes do processo (onde se inclui o exercício do direito de queixa) foram praticados ao abrigo das regras da gestão de negócios, obrigando o Tribunal a quo, em conformidade com o exposto no artigo 268.º, n.º 1, do Código Civil, a notificar a Recorrente para ratificação do negócio celebrado em nome dela sob pena de ineficácia.
4. O despacho recorrido determinou o arquivamento dos autos, não obstante durante o inquérito ter sido recolhida prova bastante de se ter verificado crime, ter sido recolhida prova bastante de o Arguido/Recorrido ter praticado crime, não existirem factos que conduzam à inadmissibilidade legal do procedimento e terem sido obtidos indícios suficientes da verificação do crime e de quem foram os agentes, ou seja, determinou o arquivamento dos autos sem, porém, estarem verificados ou preenchidos os requisitos previstos no artigo 277.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal.
5. Uma rejeição da acusação particular manifestamente infundada, nos termos do disposto no artigo 311.º, n.º 2, e n.º 3, alíneas b) e d), não poderá, tal como determinou o despacho recorrido, ter como consequência jurídica o arquivamento dos autos, uma vez que a dita rejeição não consta entre as causas legalmente estabelecidas, taxativas (tal como constam do artigo 277.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal) e determinantes do arquivamento do inquérito.
6. Aos vícios previstos no artigo 311.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alíneas b) e d), do Código de Processo Penal e no artigo 283.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal, vale e aplica-se, nos termos do citado artigo 122.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal, o princípio do aproveitamento dos atos imperfeitos, de acordo com o qual deve ordenar-se, sempre que possível, a repetição dos atos inválidos, aproveitando-se ainda todos os atos que possam ser salvos do efeito da nulidade, razão pela qual o despacho recorrido, ao invés do arquivamento do processo, deveria ter concedido à Assistente/Recorrente a possibilidade de, no prazo de dez (10) dias, apresentar nova acusação colmatando, apenas e só, a deficiência ali apontada, isto é, narrando factos consubstanciadores do elemento subjectivo de ilícito.
7. A concessão à Assistente/Recorrente da possibilidade de, no prazo de dez (10) dias, apresentar nova acusação colmatando, apenas e só, a deficiência ali apontada, isto é, narrando factos consubstanciadores do elemento subjectivo de ilícito, não implica i) violação de caso julgado e ii) violação do princípio ne bis in idem, uma vez que, por um lado, o despacho recorrido não conheceu do mérito da causa e apenas tem força obrigatória dentro do processo (artigo 620.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), e, por outro lado, o despacho recorrido, ao rejeitar a acusação particular deduzida com fundamento em questão procedimental, não efectuou qualquer julgamento, razão pela qual a dedução de uma nova acusação não implicará a violação do princípio de que «ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime» ne bis in idem.
8. O despacho recorrido, ao determinar o arquivamento dos autos alternativamente à devolução dos mesmos ao Ministério Público para notificação da Assistente/Recorrente formular e deduzir, querendo, nova acusação, violou o disposto no artigo 277.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, violou o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal, violou o disposto no artigo 285.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, violou o disposto no artigo 122.º, n.º 2, do Código de Processo Penal e violou o disposto no artigo 122.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, padecendo, assim, de erro de julgamento da matéria de direito».
Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público concluindo nos seguintes termos:
«1. Por despacho proferido em 18/03/2024 foi determinada a ineficácia do exercício do direito de queixa por parte da sociedade recorrente, e, consequentemente, não recebida a acusação particular deduzida, por falta de legitimidade.
2. Mais decidiu o aludido despacho rejeitar a acusação particular apresentada pela recorrente, nos termos do disposto no artigo 311º, nºs 2, alínea a) e 3, alíneas b) e d), em virtude de não se encontrarem descritos factos integradores do elemento subjetivo do crime de ofensa de organismo, serviço ou pessoa coletiva.
3. A recorrente apresentou queixa crime, através do seu mandatário judicial, o qual se encontrava munido com procuração forense, emitida por documento particular, que lhe conferia os poderes necessários para o ato.
4. Aquando da elaboração de tal procuração o mandatário judicial teve a incumbência de conferir a qualidade em que o mandante outorgou a mesma, mormente que o mesmo estava munido dos poderes necessários para representar a sociedade assistente.
5. Não se exigia, pois, para o exercício do direito da queixa, fosse reconhecida a
qualidade de representante legal da sociedade mandante na procuração forense que acompanhou a mesma, bastando para o efeito a junção do respetivo documento particular.
6. A procuração forense junta com a queixa apresentada consubstancia uma cópia do original da procuração forense, a qual foi certificada por advogado, passando, consequentemente, a ter a mesma validade que aquele, não se exigindo, aquando da certificação qualquer reconhecimento com menções especiais, na medida em que o próprio original não o exigiu.
7. Pelo que, aderindo aos fundamentos apresentados pela sociedade assistente, entendemos dever ser a decisão recorrida, nesta parte, revogada e substituída por outra que determine a validade do exercício do direito de queixa por parte da mesma.
8. A acusação particular apresentada pela recorrente foi omissa na descrição do elemento volitivo do dolo relativo ao crime imputado ao arguido, pelo que, foi rejeitada.
9. Encontrando-se os autos, aquando da prolação do despacho recorrido, em fase de julgamento, não podia o juiz a quo, sob pena de violação da autonomia da intervenção do Ministério Público na fase de inquérito, ordenar a devolução dos mesmos ao Ministério Público para aperfeiçoamento.
10. Perante a estrutura acusatória do processo penal estava, igualmente, vedado ao juiz a quo recomendar, formular convites ao aperfeiçoamento ou ordenar a reformulação, retificação, complemento ou alteração da acusação particular ao assistente.
11. Pelo que decidiu bem o tribunal a quo ao rejeitar a acusação particular deduzida pela assistente quanto ao crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, em virtude de ser esta a consequência legalmente prevista para a omissão da descrição de factos consubtanciadores do elemento subjetivo do tipo, apreciada em fase de julgamento.
12. Deverá, assim, nesta parte, ser negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida».
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O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público, tendo sido emitido parecer coincidente com a posição manifestada nos fundamentos da resposta.
Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, foi apresentada resposta ao parecer.
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Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
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Cumpre decidir.
OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995).
Tendo presente as conclusões apresentadas pela recorrente, são as seguintes as questões a decidir:
- Apreciar a eficácia do exercício do direito de queixa por parte da assistente relativamente ao crime de crime de ofensa a pessoa coletiva;
- Apreciar as consequências da falta de alegação na acusação particular dos factos relativos aos elementos subjetivos do tipo de crime imputado.
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Quanto à primeira questão, resulta da documentação do processo que, em 14/04/20123, a assistente dirigiu ao Ministério Público a queixa crime constante dos autos, a qual se dá por reproduzida, subscrita pelos Srs. Drs. BB e CC, na qualidade de mandatários da assistente.
Em anexo à referida queixa encontra-se uma cópia certificada por advogado de uma “procuração forense”, que aqui se dá por reproduzida, datada de 27/09/2021, pela qual a assistente declarou conferir aos citados mandatários, advogados, «os mais amplos poderes forenses em direito permitidos (…), bem como os especiais necessários para a representar pessoalmente em audiências e quaisquer outras diligências, confessar, desistir ou transigir, receber ou pagar qualquer quantia pagável, assinar recibos, dar as respetivas quitações e, de uma forma geral, para praticar todos os atos que se mostrem necessários, próprios ou convenientes aos mencionados fins (…)».
Consta da decisão impugnada a seguinte fundamentação: «(…) Constata-se que a queixa nestes autos foi apresentada por mandatário judicial, pelo que não carecia a procuração de poderes especiais.
Tal procuração consubstancia uma mera fotocópia certificada por advogado de “como é uma reprodução fiel do respetivo original” – vide fls. 14 a 16.
Contudo, a certificação em apreço não tem qualquer menção especial - nos termos do artigo 38.º do DL n.º 76-A/2006, de 29 de março -, nomeadamente não certifica a qualidade do outorgante da procuração forense, nem tão pouco foi junta qualquer certidão de registo comercial da assistente da qual seja possível aferir tal legitimidade.
De facto, a certificação da procuração existente é uma mera certificação de fotocópia que não reconhece as assinaturas dos alegados representantes assistente ... e respetivos poderes, por confronto com a certidão comercial respetiva.
Assim, é impossível atestar se quem atribuiu poderes representativos aos mandatários vertidos na procuração forense de fls. 14 a 16 tinha os necessários poderes societários para vincular a assistente nesse sentido, pelo que a queixa apresentada não produz qualquer eficácia. - artigo 49.º, n.º 3 do CPP
Face ao exposto, importa concluir que não foi eficazmente exercido o direito de queixa por parte da assistente relativamente ao crime de crime de ofensa a pessoa coletiva pelo qual o arguido vem acusado.
Deste modo, o Ministério Público não tinha legitimidade para prosseguir criminalmente pelo crime em apreço nos autos, nem notificar a assistente nos termos do artigo 285.º do CPP, como resulta do disposto nos artigos 48.º, e 49.º, n.º 1 e 50.º do CPP.
Nestes termos, entende-se rejeitar a acusação particular deduzida contra o arguido.
Notifique».
A questão que se coloca consiste em saber se o exercício do direito de queixa por parte de uma sociedade, através de mandatário judicial, obriga à apresentação de procuração que certifique os poderes de representação dos respetivos subscritores em relação à mandante.
Com efeito, não oferece dúvidas que o crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva depende de acusação particular, o que pressupõe a prévia apresentação de queixa por parte do ofendido (arts. 187.º e 188.º do Código Penal e 50.º do CPP).
Dispõe o n.º 3 do art. 49.º do CPP que «a queixa pode ser apresentada pelo titular do direito respetivo, por mandatário judicial ou por mandatário munido de poderes especiais».
A referência à apresentação de queixa por parte de mandatário judicial, constante deste preceito legal, foi introduzida pela Lei n.º 59/98 de 25 de agosto e visou deixar claro que o mandatário judicial não necessita de poderes especiais para exercer o direito de queixa, bastando que esteja munido de uma simples procuração forense (cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque [Org], Comentário do Código de Processo Penal, Vol. I, 5.ª Ed., p. 171).
Importa, pois, verificar se a procuração, com base na qual foi exercido o direito de queixa pelos Il. Mandatários da assistente, observa os requisitos legais, nomeadamente no que se refere à verificação dos poderes de representação das pessoas que a subscreveram.
Quanto a esta matéria, o CPP é omisso.
O Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável (cfr. art. 4.º do CPP), dispõe no seu art. 43.º que o mandato judicial pode ser conferido: a) Por instrumento público ou por documento particular, nos termos do Código do Notariado e da legislação especial; b) por declaração verbal da parte no auto de qualquer diligência que se pratique no processo.
No caso em apreço, a procuração foi outorgada por documento particular, pelo que releva, enquanto legislação especial, o Decreto-Lei 267/92 de 28 de novembro, diploma que veio suprimir a necessidade de intervenção notarial nas procurações passadas a advogados para a prática de atos que envolvam o exercício do patrocínio judiciário e regular o conteúdo das mesmas procurações quando atribuam poderes especiais.
Dispõe o n.º 1 do artigo único do Decreto-Lei n.º 267/92 de 28 de novembro: «as procurações passadas a advogado para a prática de actos que envolvam o exercício do patrocínio judiciário, ainda que com poderes especiais, não carecem de intervenção notarial, devendo o mandatário certificar-se da existência, por parte do ou dos mandantes, dos necessários poderes para o acto».
Daqui resulta que a lei dispensa a intervenção notarial para a outorga de procuração forense, fazendo recair sobre o mandatário o dever de certificar-se da existência, por parte do ou dos mandantes, dos poderes necessários para o acto.
Este dever não se traduz, porém, na exigência de formalidades adicionais na procuração ou menções especiais, as quais não ficaram consignadas no Decreto-Lei 267/92 de 28 de novembro, diploma que se justifica por um propósito de simplificação de procedimentos e de reconhecimento de que o posicionamento da Administração Pública perante o cidadão que a ela se dirige tem de ser norteado pelo princípio da confiança (cfr. o respetivo preâmbulo).
Em face do exposto, importa concluir que a procuração outorgada a favor dos Il. Mandatários da assistente, com base na qual foi apresentada a queixa contra o arguido, por se tratar de procuração para a prática de atos que envolvem o exercício do patrocínio judiciário, não carecia de intervenção notarial, nem de quaisquer menções especiais, nomeadamente atestando os poderes de representação da sociedade assistente, por parte das pessoas que a outorgaram.
No que se refere à certificação da fotocópia da procuração que acompanhou a queixa apesentada pela assistente, a mesma foi elaborada por advogada, ao abrigo do disposto no artigo 38.º do DL n.º 76-A/2006, de 29 de março, cuja redação é a seguinte:
«1 - Sem prejuízo da competência atribuída a outras entidades, as câmaras de comércio e indústria, reconhecidas nos termos do Decreto-Lei n.º 244/92, de 29 de Outubro, os conservadores, os oficiais de registo, os advogados e os solicitadores podem fazer reconhecimentos simples e com menções especiais, presenciais e por semelhança, autenticar documentos particulares, certificar, ou fazer e certificar, traduções de documentos, nos termos previstos na lei notarial, bem como certificar a conformidade das fotocópias com os documentos originais e tirar fotocópias dos originais que lhes sejam presentes para certificação, nos termos do Decreto-Lei n.º 28/2000, de 13 de Março.
«2 - Os reconhecimentos, as autenticações e as certificações efectuados pelas entidades previstas nos números anteriores conferem ao documento a mesma força probatória que teria se tais actos tivessem sido realizados com intervenção notarial».
O regime legal relativo à certificação de cópias de documentos por advogado nada dispõe sobre o conteúdo do documento certificado, limitando-se a conferir a estes profissionais, entre outros, o poder de certificar a conformidade das fotocópias com os documentos originais.
Por conseguinte, nenhuma consequência se pode retirar do facto de a certificação da cópia da procuração não reconhecer as assinaturas dos representantes da assistente e respetivos poderes, por confronto com a certidão do registo comercial respetiva, pois a lei não exige tais formalidades ou menções especiais para os documentos originais, muito menos para a mera certificação de cópias.
Importa, em face do exposto, concluir pela procedência do recurso quanto a esta questão.
*
A segunda questão suscitada no recurso respeita às consequências da falta de alegação na acusação particular dos factos relativos aos elementos subjetivos do tipo de crime imputado.
Na verdade, lida a acusação particular apresentada nos autos pela assistente em 27/11/2023, que aqui se dá por reproduzida, verifica-se que a mesma é absolutamente omissa na descrição dos elementos subjetivos do tipo imputado (art.º 187.º do Código Penal).
Isto mesmo é reconhecido pela assistente, que apenas discorda da consequência extraída pelo Tribunal, no sentido de rejeitar a acusação, sustentando que a rejeição não consta entre as causas taxativamente previstas no artigo 277.º, n.ºs 1 e 2 do CPP como determinantes do arquivamento do inquérito. A assistente sustenta, assim, que deveria ser-lhe concedida a possibilidade de, no prazo de dez dias, apresentar nova acusação, narrando factos consubstanciadores do elemento subjectivo de ilícito.
Ora, como se diz na decisão impugnada, «…da leitura da acusação particular resulta que a mesma não descreve qualquer facto que permita imputar que o arguido agiu com intenção de cometer tal ilícito, nomeadamente que o arguido tenha atuado com intenção de lesar a honra e consideração da assistente, pelo que ainda que todos os factos fossem dados como provados não seria possível condenar o arguido nos termos factuais descritos.
Assim, há que concluir que a acusação particular deduzida não reúne todos os referidos requisitos, exigidos pelo citado artigo 283.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, o que é manifesto.
Não cabe ao Tribunal nem ao Ministério Público indagar a verificação de tais factos e completar a acusação particular (…).
Não contendo o requerimento do assistente, os elementos exigidos para a dedução da acusação, não pode ser recebida a acusação deduzida, devendo a mesma ser rejeitada nos termos do aludido artigo 311º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alíneas b) e d) do Código de Processo Penal».
O raciocínio constante do despacho é correto e encontra-se devidamente fundamentado na lei.
Com efeito, não está em causa uma omissão despicienda ou a verificação de uma mera irregularidade que não seja motivo de rejeição da acusação. Faltando a narração de elementos indispensáveis ao preenchimento do tipo de crime imputado, a acusação é manifestamente infundada, pelo que, de harmonia com o disposto no artigo 311º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alíneas b) e d) do CPP, deve ser rejeitada.
A este propósito, já o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ n.º 1/2015 (publicado no DR Iª Série de 27/01/2015) fixou doutrina no sentido de que a «falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal».
A consequência lógica a retirar desta doutrina é a de que a acusação particular que não contenha a descrição dos factos integrantes da totalidade dos elementos subjectivos do tipo, necessária para a verificação dos crimes imputados ao arguido, deve ser rejeitada, quando o processo tenha sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, na medida em que é manifestamente infundada por os factos nela descritos não constituírem crime e os elementos em falta que não poderem vir a ser aditados em julgamento (cfr., neste sentido, o Acórdão da Relação de Lisboa de 10/03/2022, P. 8467/19.7T9LSB.L1-9 em www.dgsi.pt).
Contrariamente ao que sustenta a assistente, a rejeição da acusação prevista no art.º 311.º do CPP não se confunde com o arquivamento do inquérito, tratando-se de fases processuais absolutamente distintas. No momento em que o processo é remetido ao Tribunal para apreciação liminar, já se encontra ultrapassada a fase do inquérito, constituindo aquele o momento de conhecimento das questões aí expressamente elencadas, que obstem à apreciação do mérito da causa.
Como se refere no Acordão da Relação de Lisboa de 02/02/2023 (P. 34/21.1PHAMD.L1-9 em www.dgsi.pt), «é jurisprudência dominante dos nossos tribunais superiores que não é possível ordenar numa diferente fase processual o regresso à fase anterior, fazendo retroceder o processo de forma a sanar eventuais invalidades dessa antecedente fase processual».
O processo penal português tem uma estrutura acusatória integrada por um princípio de investigação da verdade material. «A estrutura acusatória do processo penal implica: (a) proibição de acumulações orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também o órgão de acusação; (b) proibição de acumulação subjectiva a jusante do processo, isto é, que o órgão de acusação seja também órgão julgador; (c) proibição de acumulação orgânica na instrução e julgamento, isto é, o órgão que faz a instrução não faz a audiência de discussão e julgamento e vice-versa"» (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., pág. 206).
Tendo presente a estrutura acusatória do processo penal, e como se refere no Acórdão da Relação de Lisboa de 16/05/2024 (P. 435/22.8JELSB.L1-9 em www.dgsi.pt), «tem sido unanimemente entendido pela jurisprudência que a posição de isenção, objectividade e imparcialidade que é exigida aos Tribunais é incompatível com quaisquer poderes/deveres de formulação de recomendações ou convites para aperfeiçoamento, retificações, ou outras alterações, seja relativamente ao Ministério Público, seja em relação aos demais sujeitos processuais.
«A entender-se diferentemente, nomeadamente no sentido propugnado pelo recorrente, estar-se-ia, deveras e concomitantemente, a legitimar a ingerência judicial nas competências do Ministério Público e a fragilizar as garantias de defesa, ambas constitucionalmente garantidas».
Por conseguinte, não é possível reverter o processo à fase de inquérito, nem dirigir à assistente um convite ao aperfeiçoamento da acusação particular, para aditar factos essenciais que determinaram a rejeição da acusação.
Importa, pois, concluir pela improcedência do recurso quanto a esta questão, o que implica a manutenção da decisão recorrida.
DECISÃO
Pelo exposto, decide o Tribunal da Relação de Lisboa:
a) Julgar o recurso procedente quanto à questão da ineficácia do exercício do direito de queixa por parte da assistente;
b) Julgar em tudo o mais o recurso improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.
Sem custas.

Lisboa, 24 de setembro de 2024
Rui Poças
Manuel Advínculo Sequeira
Alda Tomé Casimiro