INDEMNIZAÇÃO
FALTA DE PAGAMENTO
REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Sumário

(da responsabilidade do relator):
I – O condenado sabia perfeitamente que o cumprimento da pena de prisão dependia do pagamento de uma indemnização de 20.000€. Mas nunca manifestou interesse em pagar. E teve rendimentos suficientes para, pelo menos, pagar parcialmente a indemnização.
II - O recorrente foi condenado pela prática de um crime muito grave, mas o Tribunal confiou na sua ressocialização, apesar de a comunidade ter a expectativa que não sejam utilizadas armas de fogo para tirar a vida de outrem. Só que a suspensão da execução da pena ficou condicionada ao dever de algum modo reparar/compensar o mal feito. Ora, passados todos estes anos, o que se verifica é que o recorrente não teve a mínima preocupação em cumprir tal dever ou pelo menos demonstrar vontade em fazê-lo.
III - O recorrente infringiu grosseiramente, culposamente (com grau qualificado) a condição da suspensão da execução da pena. Da conduta demonstrada resulta que agiu de modo reprovável, com uma imprevidência particularmente elevada. Não pagou qualquer cêntimo da indemnização porque manifestamente não quis, revelando indiferença e distanciamento perante o seu dever. E, assim, inutilizou o capital de confiança na reinserção em liberdade que a aplicação da pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão significou.

Texto Integral

Acordam na Secção Criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - Relatório
No Juiz 5 do Juízo Central Criminal de Almada, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, foi proferido o seguinte despacho:
“ Por acórdão transitado em julgado em 15 de março de 2017, AA foi condenado, pela prática de um crime de homicídio na forma tentada e dois crimes de detenção de arma proibida, na pena unitária de 4 anos e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, subordinada à condição de pagamento, no período da suspensão, ao assistente, da indeminização em que foi condenado, no montante de 20.000,00€, acrescida de juros de mora, à taxa legal.
O período de suspensão da execução da pena terminou em 15 de dezembro de 2021.
O relatório final elaborado pelos serviços competentes da DGRSP, de 19 de agosto de 2022 conclui que o arguido condenado “colaborou na execução da suspensão da pena com regime de prova. assinalando-se, contudo, que não pagou a indemnização fixada pelo Tribunal, alegando incapacidade económica”.
Quanto à situação laboral e financeira do condenado, consta do mesmo relatório que: “o arguido, alegadamente ... de profissão, continuava desempregado, assinalando que exercia a sua profissão de forma acentuadamente irregular, normalmente quando era solicitado para o efeito, e que para garantir a sua subsistência mantinha atividade laboral pontual em áreas diferenciadas de atividade.
Face ao quadro de instabilidade/precariedade laboral do arguido, que não excluía a hipótese de tentar a melhoria da sua condição de vida no estrangeiro, este foi encaminhado para o ... para eventual colocação laboral.
Cumpriu esta ação em ... de ... de 2018, conforme a declaração de inscrição que apresentou em sede da execução da suspensão da pena com regime de prova, e nesse contexto foi posteriormente convocado pela instituição para sessões de esclarecimento sobre cursos de formação/qualificação profissional.
Terá comparecido a todos as sessões para as quais foi convocado, verbalizando que, posteriormente, não foi contactado pela instituição para qualquer oferta de trabalho.
Entretanto, por iniciativa própria, finalizou um curso de manobrador de máquinas industriais, contexto em que trabalhou como tratorista, desenvolveu trabalho sazonal na apanha de fruta, nomeadamente no ..., como ... em ..., no âmbito da concentração de Motard´s, e numa empresa de ....
Entretanto, o arguido deixou de manifestar interesse em trabalhar a tempo inteiro dado que se encontrava a cuidar da mãe, idosa de 88 anos de idade, tendo inclusivamente alterado a residência para a... em ….
Após o falecimento da progenitora, em finais de maio de 2021, AA regressou à morada habitual, na morada indicada onde permanecia à data da última entrevista de acompanhamento, realizada em ... de ... de 2021.
O arguido continuava desempregado e apresentava uma condição económica alegadamente marcada pela precariedade, condição que sempre alegou para justificar o incumprimento no que se refere ao pagamento da indemnização, alegando também a existência de dívidas significativas à Segurança Social (8.600€) e às Finanças (27.000€) para descrever a sua condição económica”.
O assistente informou ou autos, em 13 de janeiro de 2023, que não recebeu qualquer quantia.
Em 15 de março de 2023, a DGRSP juntou informação complementar relativamente à situação económico-financeira do arguido/condenado, consignando: “O arguido sempre alegou que subsistia através de biscates e de atividades sazonais, tendo sinalizado, por outro lado, a existência de dívidas às Finanças e à Segurança Social. Contudo, nunca apresentou qualquer documento comprovativo que sustentasse a informação prestada em termos financeiros, nomeadamente da existência das alegadas dívidas, apesar de várias vezes instado nesse sentido. De referir que sempre verbalizou a inexistência de contratos de trabalho, de recibos de vencimento, ou de qualquer outro meio de prova, nomeadamente declarações de IRS, situação que inviabilizou/inviabiliza qualquer avaliação cuidada relativamente à sua condição económica”.
Realizou-se a audição de condenado a que alude o artigo 495.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, tendo sido aquele confrontado com o circunstancialismo exposto, tendo esclarecido, em súmula:
Que nunca dispôs de capacidade financeira que lhe permitisse pagar, no todo ou em parte, o quantum indemnizatório;
Que realiza atualmente tem trabalhos esporádicos, numa discoteca, ao fim-de-semana, durante 2 horas, recebendo 150,00€ por mês, e num bar de praia gerido por um amigo, durante a semana, sendo cinco horas por dia, não recendo qualquer remuneração, mas apenas refeições gratuitas;
Que recebe gorjetas, no valor de 20,00€ a 40,00€ por mês;
Que não suporta encargos com a habitação, apenas as despesas habituais no valor de cerca de 70,00€ mensais;
Confrontado com o facto de auferir, à data da prolação do acórdão, rendimento mensal no valor de 600,00€, esclareceu que tal quantia não era suficiente para assegurar o pagamento de todas as despesas;
Que nada remeteu ao processo durante todo o período da suspensão porque estava a ser acompanhado pelo técnico da DGRSP, a quem relatava a situação;
Que nunca contactou o assistente e que nem sequer o conhece;
Cumpre agora tomar posição quanto ao incumprimento pelo condenado das condições da suspensão, nos termos dos artigos 55.º a 57.º do Código Penal.
Dispõe o artigo 55º do Código Penal que “Se, durante o período da suspensão, o condenado, culposamente, deixar de cumprir qualquer dos deveres ou regras de conduta impostos, ou não corresponder ao plano de reinserção, pode o tribunal: a) Fazer uma solene advertência; b) Exigir garantias de cumprimento das obrigações que condicionam a suspensão; c) Impor novos deveres ou regras de conduta, ou introduzir exigências acrescidas no plano de reinserção; d) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas não por menos de um ano nem por forma a exceder o prazo máximo de suspensão previsto no n.º 5 do artigo 50.º.”
E dispõe o artigo 56.º, nº 1, do Código Penal: “A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado: a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social; ou
b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas”.
A revogação não opera ope legis, impondo-se decidir no caso concreto se as finalidades preventivas que sustentaram a decisão de suspensão ainda podem ser alcançadas com a manutenção da mesma ou, se pelo contrário, estão irremediavelmente prejudicadas em virtude da conduta posterior do condenado (neste sentido, o Acórdão da Relação de Lisboa, de 24/06/2009, proc. nº 1000/01.9PTLSB.L1 3ª Secção, Relator: Rui Gonçalves: “tal revogação só se justifica em última ratio, carecendo de um juízo fundado do julgador no sentido de estarem malogradas as finalidades subjacentes à suspensão da a execução da pena de prisão, por se mostrar definitivamente infirmado o juízo de prognose favorável que a determinou.”).
Detemo-nos, no caso dos autos, na previsão da al. a) do n.º 1 do artigo 56º citado, concretamente, a infração grosseira ou repetida dos deveres ou regras de conduta impostos.
De acordo com a doutrina e a jurisprudência maioritária, a infração grosseira ou repetida dos deveres ou regras de conduta que justifique a revogação terá, antes de mais, de consistir num comportamento voluntário e culposo.
Neste sentido, o Ac. TRC de 17/10/2012 (Correia Pinto)1: “A violação grosseira dos deveres ou regras de conduta impostos, de que se fala na alínea a), do n.º 1, do artigo 56º, do Código Penal, há-de constituir uma indesculpável actuação, em que o comum dos cidadãos não incorra e que não mereça ser tolerada nem desculpada; só a inconciliabilidade do incumprimento com a teleologia da suspensão da pena é que deve conduzir à respectiva revogação. Importa, no entanto, salientar que a infracção grosseira dos deveres que são impostos ao arguido não exige nem pressupõe necessariamente um comportamento doloso, bastando a infracção que seja o resultado de um comportamento censurável de descuido ou leviandade”.
E o Ac. TRP de 05/05/2010 (Élia São Pedro), tal infração grosseira ou repetida terá de corresponder à culpa temerária, ao esquecimento dos deveres gerais de observância, à demissão pelo agente dos mais elementares deveres que não escapam ao comum dos cidadãos e a uma inobservância absolutamente incomum.
E impõe-se que a infração grosseira ou repetida permita concluir que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio delas, ser alcançadas.
E escreve Paulo Pinto de Albuquerque: “O critério material para decidir sobre a revogação da suspensão é exclusivamente preventivo, isto é, o tribunal deve ponderar se as finalidades preventivas que sustentaram a decisão de suspensão ainda podem ser alcançadas com a manutenção da mesma ou estão irremediavelmente prejudicadas em virtude da conduta posterior do condenado”
No mesmo sentido, o Ac. TRC de 06/02/2019 (Helena Bolieiro): a revogação da suspensão “(…) depende da constatação de que as finalidades punitivas que estiveram na base da aplicação da suspensão já não podem ser alcançadas através dela, infirmando-se definitivamente o juízo de prognose sobre o seu comportamento futuro”.
Reportando-se especificamente a situação de incumprimento da obrigação de pagamento de quantia monetária como condição da suspensão da execução da pena de prisão, sumariou-se no Ac. TRG (Teresa Coimbra) que: “Se, findo o prazo concedido para o efeito e sucessivamente prorrogado por força de justificações apresentadas, se constata que a quantia não foi devolvida e que as justificações carecem de seriedade, deve a suspensão ser revogada. Na avaliação das razões do comportamento do condenado deve ser apreciado pelo olhar de um cidadão bem formado, ou pelo menos, medianamente diligente e cumpridor”.
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No caso dos autos, ocorreu, inequivocamente incumprimento da condição a que ficou subordinada a suspensão da execução da pena de prisão, concretamente, o pagamento da indemnização.
Cumpre, então, apreciar e decidir se este incumprimento consubstancia uma infração grosseira ou repetida dos deveres ou regras de conduta impostos, suscetível de determinar a revogação da suspensão da execução da pena de prisão.
Concretamente, importa determinar se a omissão do aludido pagamento é voluntária e culposa e não resulta de insuficiência económica que não seja imputável ao arguido/condenado.
No decurso do período da suspensão (4 anos e 9 meses) e até à presente data, decorridos que são mais de 6 anos, o arguido/condenado nunca efetuou qualquer pagamento, ainda que diminuto e parcial nem sugeriu/requereu o fracionamento desse pagamento em prestações, o que revela escassa vontade e pouco empenho no cumprimento das obrigações impostas.
Da avaliação da situação económica do arguido/condenado, resulta que a mesma permitiria o pagamento, ainda que parcial, de prestações de baixo valor, uma vez que, durante estes anos exerceu funções de ..., auferindo 600,00€ mensais; atividade laboral esporádica em áreas diferenciadas; funções de ..., trabalho sazonal na ...; como ... no ... durante uma concentração de Motard´s, e numa empresa de ...; numa ... ao fim-de-semana durante 2 horas, recebendo 150,00€ por mês; e num ..., durante a semana, 5 horas por dia, não lhe sendo paga qualquer quantia, sendo a contrapartida tão-só o almoço e jantar gratuitos, recebendo gorjetas no valor de 20,00€ a 40,00€ diários, o que pode perfazer 400,00€ a 800,00€ mensais.
Acresce que não suporta encargos com a habitação, o que constitui uma inegável vantagem financeira, não lhe sendo conhecidas outras despesas além das relacionadas com a gestão correste, no valor médio de 70,00€ por mês, a que acrescerá a alimentação, sempre sem perder de vista que o almoço e jantar lhe são oferecidos no local de trabalho.
Assim, o arguido/condenado, quer na época em que auferia 600,00€ mensais, quer atualmente, auferindo entre 550,00€ a 950,00€ mensais, poderia, ao contrário do que alega, ter realizado o pagamento, ainda que parcial, da indemnização devida, não tendo invocado razões atendíveis justificativas de tal omissão, suscetíveis de afastar a sua culpa.
Ponderando os critérios da jurisprudência dominante, não é possível concluir que a ação do arguido/condenado corresponda minimamente ao de um cidadão comum e medianamente responsável, diligente e cumpridor.
Pelo contrário, impõe-se concluir que o condenado não interiorizou a obrigação imposta, condicional da suspensão da execução da pena e, não obstante as advertências feitas, não determinou, de forma censurável, o seu comportamento em conformidade.
Pelo exposto, concluo que as finalidades subjacentes à suspensão da execução da pena não puderam afinal ser alcançadas, pelo que estão preenchidos os pressupostos de revogação da medida de suspensão da execução, previstos na alínea a), do n.º 1, do artigo 56.º do Código Penal.
Assim, revogo a suspensão da execução da pena e determino o cumprimento efetivo da mesma pelo arguido/condenado AA (artigo 56.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, do Código Penal).
Remeta boletim para registo criminal.
Notifique.
DN.”
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Inconformado, o arguido/condenado AA interpôs recurso, concluindo do seguinte modo:
“ A) Como questão prévia, importa sinalizar que, após a prolação da decisão ora posta em crise, e antes da entrada do presente recurso, o mandatário do recorrente – Dr. BB – Insigne Advogado, faleceu, após período de doença debilitante, sendo que era o mesmo que acompanhou o processo durante 15 anos e tinha reunida toda a documentação do recorrente, desconhecendo o recorrente que atos concretos foram praticados pelo Ilustre mandatário durante a suspensão, nomeadamente que elementos carreou de prova, sendo que, atenta a premência do prazo de recurso, não é possível averiguar em processo tão longo, toda a extensão da prova apresentada, fazendo-se desde já essa ressalva à cautela de patrocínio, sendo que, porque é impossível, perante o óbito do mandatário, averiguar se o mesmo juntou os documentos que o recorrente lhe havia fornecido, ir-se-á, excecionalmente, juntar um documento.
B) A decisão ora posta em crise reporta-se a factos de 2009, ou seja, há década e meia, tendo sido o Acórdão condenatório proferida em 2016, há, portanto, 8 anos.
C) Para o que interessa e – embora o condenado não se conforme com o teor do Acórdão, tendo o mesmo transitado, respeita-o integral e profundamente - na sequência de vários assaltos na zona da sua residência, uma vez assaltada a sua e o mesmo tendo detetado o ladrão em fuga, o mesmo disparou em direção ao mesmo, provocando-o ferimentos não letais.
D) O referido ladrão ainda hoje se encontra preso no Estabelecimento Prisional ..., local para onde a decisão ora posta em crise, remeteria igualmente o recorrente.
E) O ora Recorrente foi condenado a 4 anos e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período com regime de prova e subordinada ao pagamento, em igual período, numa indemnização de €20.000,00 (Vinte Mil Euros) a que igualmente fora condenado.
F) O período de suspensão terminou a 15 de Dezembro de 2021.
G) A própria decisão ora posta em crise, revela um relatório altamente favorável da DGRSP, com cumprimento exemplar por parte do condenado.
H) Com postura colaborante e proativa, manifestando sempre muitas dificuldades financeiras.
I) Que de alguma forma o Tribunal a quo confirma, apenas entendendo que o condenado poderia ter ido mais além, mesmo quando há elementos no processo em que aceitou trabalhos só pela refeição.
J) E que o condenado não só foi aderindo às propostas e formações da DGRSP, como foi proativo na procura de formação e trabalhos forma da zona de conforto para poder sobreviver.
K) Um arguido que, viveu parte do período de suspensão num quadro de Pandemia e que viveu parte do período de suspensão condicionado ao cuidado da sua mãe octogenária.
L) Um arguido que, na impossibilidade de encontrar emprego estável, foi encaminhado para o ... para eventual colocação laboral.
M) Que cumpriu ações de formação.
N) Que compareceu, sempre segundo a DGRSP, a TODAS as ações e sessões para que foi convocado.
O) Que, por iniciativa própria, finalizou um curso de manobrador de máquinas industriais, contexto e que trabalhou como tratorista, desenvolveu trabalho sazonal na apanha da fruta, nomeadamente no ..., como empregado de bar em ... no âmbito da concentração motard e numa empresa de ....
P) Trabalhos que teve que deixar de executar para cuidar da mãe, tendo-se inclusivamente mudado para sua casa – sempre de acordo com o relatório da DGRSP.
Q) Que após a morte da mãe, em 2021, continuava desempregado e apresentava condição económica marcada pela precariedade, com dívidas significativas às finanças e SS, como aqui comprovou e já o fizera perante a DGRSP.
R) Ouvido, nos termos e para os efeitos do n.º 2 do artigo 494.º reiterou tudo o que a DGRSP já plasmara.
S) O cenário fático traçado pelo Tribunal a quo, corresponde à realidade da vida do condenado, em que o condenado sempre procurou trabalhar, sempre procurou sustentar-se, mas a verdade é que o que o separa de um sem abrigo, é o facto de ter uma casa para viver.
T) Ao longo dos anos várias circunstâncias o carregaram de dívidas, negócios mal sucedidos, sócios que afinal não eram, facto é que, a caminho dos sessenta anos, consegue sobreviver, não mais do que isso.
U) As circunstâncias de vida do condenado traçadas na decisão, correspondem à realidade, por várias circunstâncias da sua vida, deixou de trabalhar na área que tivera formação, vivendo de pequenos biscates, alguns apenas pagos com as refeições.
V) Sempre foi o único suporte da mãe idosa, tendo muito da sua vida sido condicionado por tal factor.
W) Viu várias vezes a eletricidade a ser cortada e, tantas vezes, a alimentar-se da caridade alheia.
X) E se há coisa que o relatório da DGRSP revela com precisão, é que o condenado não é um preguiçoso, alguém que não quer trabalhar, pois frequentou todas as formações que lhe foram facultadas, autonomamente e, mostrou iniciativa na busca de trabalho.
Y) Ao contrário do que faz a decisão posta em crise, faz transparecer ou permite depreender – é que o condenado sempre forneceu todas as informações e documentos que lhe foram solicitados.
Z) Quando é invocado que alegou múltiplas dívidas às finanças e Segurança Social, mas nunca apresentou comprovativos, sempre lhe foi dito que tais dados podiam ser consultados no sistema daí que não fosse necessário e, por isso, como em introito mencionou, se vê forçado, excepcionalmente – e porque o falecimento do seu advogado lhe limitou muito a informação – a juntar nesta sede prova da veracidade do que alega e que, aliás, o próprio Tribunal a quo, antes de se lançar em soluções draconianas, poderia ele próprio ter confirmado tal veracidade.
AA) O Tribunal a quo, para além de fazer uma adequada leitura factual da vida financeira do condenado parece até, pelo menos a determinado ponto da decisão, saber que o artigo 56.º do CP, apenas permite uma revogação da suspensão da pena, quando o condenado a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres de conduta impostos ou o plano de reinserção social.
BB) Se há coisa que ficou clara, é que a DGRSP não aponta qualquer falha comportamental ou de falta de empenho do condenado, enaltecendo mesmo os seus esforços autónomos em obter formação e procurar sustento.
CC) A única questão que se levanta, é saber se o não pagamento da quantia indemnizatória ao lesado, revela um incumprimento de tal forma grosseiro, que permita a decisão drástica que, neste quadro o Tribunal tomou.
DD) É também estranho na decisão tomada, que o Tribunal, com a invocação de diversa Jurisprudência sobre o tema, revela estar perfeitamente consciente que esta última e draconiana decisão, só pode ser tomada se for indubitável que há não só um incumprimento culposo, mas de se tratar de uma indesculpável atuação, lendo-se aqui indesculpável de forma literal, ou seja, que não haja nenhuma justificação para que, no caso, a indemnização não tenha sido paga.
EE) Lembrando a própria decisão as particulares exigências para que possa ser acionado o artigo 56.º do CP.
FF) Jurisprudência essa a que juntámos muita outra, toda no mesmo sentido e que passa sempre por uma ideia só se justifica em última ratio, carecendo de um juízo fundado do julgador no sentido de estarem malogradas as finalidades subjacentes à suspensão da a execução da pena de prisão, por se mostrar definitivamente infirmado o juízo de prognose favorável que a determinou e que o incumprimento seja culposo e indesculpável, sendo este o sentido praticamente unânime da jurisprudência e doutrina.
GG) Subscrevemos tudo, principalmente “há-de constituir uma indesculpável actuação, em que o comum dos cidadãos não incorra e que não mereça ser tolerada nem desculpada”, mas esse não é manifestamente o caso dos autos.
HH) O tal cidadão bem formado mencionado em alguma jurisprudência, veria que este é um homem carregado de dívidas, que sobreviveu à COVID sem rendimento ou subsídios, que cuidou da mãe idosa até falecer e que luta pela sua sobrevivência e que foi isso que o impediu de cumprir uma sanção financeira, para a qual não tem qualquer hipótese de dispor de dinheiro.
II) Relembrando, mesmo nas conclusões os importantes ensinamentos de Paulo Pinto de Albuquerque em que “O critério material para decidir sobre a revogação da suspensão é exclusivamente preventivo, isto é, o tribunal deve ponderar se as finalidades preventivas que sustentaram a decisão de suspensão ainda podem ser alcançadas com a manutenção da mesma ou estão irremediavelmente prejudicadas em virtude da conduta posterior do condenado”, seguramente sustentam a tese do aqui recorrente.
JJ) Este condenado não se alheou da decisão, nem é alguém sem reabilitação possível em que as finalidades preventivas se mostram irremediavelmente prejudicadas.
KK) E, no raciocínio inverso, que finalidades seriam alcançadas com o encarceramento deste homem, aí sim, sem qualquer hipótese de trabalhar ou contribuir para a sociedade, como a DGRSP demonstra que tem feito?
LL) Andou mal, muito mal, o Tribunal a quo, nesta decisão draconiana de ordenar a prisão efetiva deste cidadão, indo não só contra a Jurisprudência e Doutrina que a própria decisão invoca, como contra muita outra, quase unânime.
MM) “O arguido não deve ser prejudicado em função de uma situação de insuficiência económica, pelo que só a violação culposa e grosseira dos deveres impostos ao condenado, na condição da suspensão da execução da pena, determina a sua revogação.” sustenta um dos arestos invocados, mas a verdade é que o que a CRP, no seu artigo 113.º diz é mais do que isso, é que o individuo não pode ser prejudicado por via da sua situação económica ou condição social.
NN) O caso em apreço poderia e deveria ter sido concluído como a Relação de Coimbra, em Acórdão já identificado concluiu, ipsis verbis :Não se descortina um incumprimento doloso, antes uma objectiva impossibilidade de facto nos casos em que a capacidade económica do arguido tem sido insuficiente para satisfazer o pagamento do montante arbitrado, incumprimento todavia não adveniente de um comportamento relapso e desrespeitador da condenação, mas antes de uma situação económica que não foi querida nem sustentada pelo arguido e que ele, por razões conjunturais e alheias à sua vontade, não tem podido/conseguido ultrapassar, pelo que atento o disposto no artigo 57.º, n.º 1, do CP, impõe-se a extinção da pena que não a revogação da suspensão.”
OO) E se efetivamente o Tribunal a quo, violou o artigo 57.º do CP, ao revogar a suspensão em condições que não o poderia fazer, há ainda que apreciar como uma decisão desta natureza, pode violar princípios constitucionais elementares, que impedem a discriminação de cidadãos em função das suas capacidades económicas, concretamente os artigos 1.º, 13.º, 18.º, n.º 2 e 27.º, n.º 1 e 2 da Constituição da República.
PP) O Tribunal a quo, após fazer o relato histórico do processo, de transcrever o teor dos relatórios da DGRSP, veio discorrer, sobre os pressupostos da aplicação do artigo 56.º do CP (enquadrando com a Jurisprudência e Doutrina que entendeu relevante) debruçar-se sobre o caso concreto colocando o cerne da questão onde efetivamente ele deve estar: “Importa determinar se a omissão do aludido pagamento é voluntária e culposa e não resulta da insuficiência económica que não seja imputável ao condenado.”
QQ) E é aí, à luz de toda a vasta Jurisprudência e doutrina transcritas na decisão e por nós adicionalmente invocadas, que se torna absolutamente incompreensível a decisão final.
RR) A decisão parece defender que caso o condenado tivesse como que fingido o cumprimento – eventualmente pagando 20€ por ano ou algo semelhante – demonstraria uma vontade, ao invés de ver a irrefutável verdade que é o condenado é praticamente indigente, vivendo para se sustentar, fazendo-o com dificuldade e simular um pagamento irrisório talvez satisfizesse o Tribunal, mas não seria mais do que desonestidade intelectual, contrária ao que tem sido toda a postura do mesmo durante o período de suspensão (DGRSP dixit).
SS) É facto que o condenado não cumpriu a condição de pagar a indemnização ao arguido (que, recorde-se, é o homem que lhe havia assaltado a casa e ainda cumpre pena por diversos outros crimes, o que, queiramos ou não, é diferente de ser um idoso burlado ou qualquer outra vítima frágil). E é de iure que a revogação não opera ope legis, sendo condicionada a uma análise criteriosa centrada, por um lado, sobre a voluntariedade culposa ou a impossibilidade objetiva e, por outro, sobre se há um prejuízo irremediável para as finalidades preventivas da pena aplicada (como lembra Paulo Pinto de Albuquerque).
TT) No caso em concreto, o condenado cumpriu tudo o que lhe foi pedido no plano de reinserção junto da DGRSP e é a própria DGRSP que, não só aponta um cumprimento exemplar, como uma procura proativa de trabalho.
UU) É que um homem com mais de 50 anos, sem grandes estudos, não tem grandes possibilidades de trabalho, nem pode almejar a muito mais que não seja conseguir sustentar-se, cuja suspensão foi atravessada pela Pandemia de COVID 19. Que até à morte da mãe de 88 anos, foi o seu cuidador.
VV) Que, por iniciativa própria, este homem procurou formação e foi para a apanha da fruta no ..., saindo da sua área de conforto.
WW) Dificilmente há algum dado que indique que estamos perante alguém que e conformou com a pobreza ou desrespeitou a Justiça, mas alguém que sempre procurou trabalhar, ainda que biscatando, e com as condições que a vida lhe oferecia.
XX) Não esquecendo que é efetivamente um homem condenado pela prática de um crime ainda que no quadro que foi – este condenado não é um pária da sociedade como outros, nunca cometera um crime na vida e não voltou a cometer.
YY) Não tem nada em seu desfavor no relatório da DGRSP, sendo, na verdade, um relatório elogioso, não revela uma via ociosa ou perturbante da sociedade, sendo que o não pagamento da indemnização é algo que lhe tem sido verdadeiramente impossível de cumprir [Ac. TRL 1000/01.9PTLSB.L1].
ZZ) Em momento algum, o Tribunal a quo poderia concluir que se encontra definitivamente infirmado o juízo prognose favorável que presidiu à decisão de suspender a pena ou que a violação é grosseira, constitui uma indesculpável actuação que não merece tolerância ou desculpa [Ac. TRC de 17/10/2012];
AAA) Ou que tal infração grosseira ou repetida corresponde à culpa temerária ao esquecimento dos deveres gerais de observância, à demissão pelo agente dos mais elementares deveres (...) [Ac. TRP de 05/05/2010].
BBB) Nunca poderia o Tribunal a quo, olhando para o caso em concreto e para o condenado que tem à sua frente, concluir que as finalidades punitivas que estiveram na base de aplicação da suspensão já não podem ser alcançadas através dela, infirmando-se definitivamente o juízo de prognose sobre o seu comportamento futuro. [Ac. TRC de 06/02/2019.
CCC) Todos estes acórdãos foram utilizados pela meritíssima juíza de Direito que proferiu a decisão sob crise e todos eles, conjugados com a situação de facto, teriam que levar a concluir pela decisão contrária e, consequentemente, pela extinção da pena suspensa.
DDD) Temos um cidadão que praticou um crime reativo há década e meia, nunca praticara qualquer crime, de qualquer tipo de natureza, nem voltou a praticar, sendo que desde que foi condenado, seguiu sempre o plano de reinserção, foi cumpridor e até proativo, no dizer da própria DGRSP.
EEE) Entre muitos outros preceitos aplicáveis, lembra-nos a Lei fundamental, a tal que foi produto do agora tão celebrado Abril, no seu artigo 13.º que Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei, mais mais importante,
FFF) Que ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social.
GGG) A decisão do Tribunal a quo, só não estaria em flagrante violação do artigo 13.º da Lei Fundamental, se tivesse sido demonstrado, sem margem para dúvidas que o não cumprimento era não só voluntário, como violação culposa e grosseira e no caso em apreço, o que ficou demonstrado foi precisamente o contrário, o Tribunal tinha todos os elementos para poder concluir nesse sentido, até parece ter conhecimento claro do elevado grau de exigência para que seja revogada a suspensão – atendendo à Jurisprudência e Doutrina que a própria decisão, mas optou por uma decisão contraditória com o que a DGRSP relata e, fundamentalmente, com as exigências da Lei.
HHH) Em suma, andou mal, particularmente mal, o Tribunal a quo, devendo ser a decisão revogada pelo Tribunal ad quem
III) O presente recurso é interposto tendo por base as al a), b) e c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, na medida em que com os elementos de prova nos autos, há uma clara insuficiência de elementos que permitam concluir como como foi concluído, mas há também uma contradição insanável entre os elementos de facto e mesmo jurídicos apresentados na decisão, com a conclusão final, sendo que o tribunal errou notoriamente na apreciação da prova nomeadamente no que tange à prova quanto à postura e condições económicas e sociais do condenado.
JJJ) Das normas jurídicas violadas (art.º 412.º, n.º 2, al. a)) Com a sua decisão violou o Tribunal o artigo 127.º do CPP, na medida em que formou a sua convicção com liberdade excessiva ao decidir contra as provas apresentadas, sendo alguns pontos de forma flagrante, mas essencialmente indo muito para além do que a prova permitia, extrapolando de forma – com o devido respeito – grosseira com presunções sucessivas sempre contra o arguido;
KKK) Violou o Princípio in dubio pro reo, plasmado no n.º 2, do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, ou seja, trata-se de um princípio geral do direito processual penal, sendo a expressão, em matéria de prova, do princípio constitucional de na dúvida quanto às razões do incumprimento, decidir contra o condenado.8.
LLL) Violou o Tribunal a quo o Princípio da Legalidade, plasmado nos artigos 29.º, n.º 1 da CRP e 191.º da CRP, na medida em que não assentou a sua decisão em critérios de exclusiva legalidade no que concerne à apreciação da prova, sendo que a torrente probatória levava a decisão para fim diverso, não sendo suficiente a livre apreciação da prova para contornar este princípio constitucional.
MMM) Violou o artigo 56.º do CP, ao revogar a suspensão da pena de prisão, sem se verificarem os pressupostos ali insertos.
NNN) Violou o artigo 13.º da CRP, ao prejudicar o condenado, em virtude da sua situação económico financeira.
O Ministério Público veio responder, sob as seguintes conclusões:
“A) No caso dos autos, uma das obrigações principais a que o arguido estava sujeito era a de proceder ao pagamento ao assistente, durante o período da suspensão – ou seja, desde 15/03/2017 até 15/12/2021, da indemnização em que foi condenado, no montante de 20.000,00€, acrescida de juros de mora, à taxa legal.
B) E dúvidas não há de que o arguido não efectuou o pagamento, nem total nem parcial, não só durante o período da suspensão mas mesmo até à presente data, verificando-se por conseguinte um incumprimento da condição de que dependia a suspensão da execução da pena de prisão.
C) A questão que se coloca é a de saber se este incumprimento concreto deve ou não ser considerado uma infracção grosseira ou repetida dos deveres ou regras de conduta impostos, de tal forma que se imponha a revogação da suspensão da execução da pena de prisão e, em consequência, o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença (cf. n.º 2 do artigo 56.º do Código Penal) – no caso vertente, 4 anos e 9 meses de prisão.
D) No entender do Ministério Público, o arguido só não efectuou o pagamento por vontade própria e por culpa sua, e não por impossibilidade financeira.
E) Apesar das diversas alegações nesse sentido no recurso interposto, nem o Ministério Público no seu parecer de 20/11/2023, nem o Mm.º Tribunal a quo no despacho judicial sub judice, invocam como fundamento da revogação que o arguido tenha deixado de comparecer à DGRSP e colaborar durante as entrevistas, nem uma suposta “preguiça” ou inacção do arguido na procura activa de trabalho.
F) Pelo contrário – como aliás o recorrente confirma e não contesta, e de resto resulta quer das suas declarações em sede de audição, quer do relatório final da DGRSP junto a 19/08/2022 – ficou demonstrado que, durante estes mais de seis anos decorridos desde o início do período da suspensão, o arguido exerceu diversas funções remuneradas, que não se mostraram incompatíveis com o consabidamente difícil período de pandemia a partir de Março de 2020, nem com o muito nobre auxílio à sua mãe octogenária até Maio de 2021.
G) É certo que, apesar da manifesta falta de cooperação com a DGRSP e com o Tribunal quanto à compreensão cabal da sua situação financeira (escusando-se a esclarecer todas as retribuições e períodos laborais, e a entregar a documentação associada), apenas se poderá relevar os rendimentos e despesas comprovados nos autos.
H) Ainda assim, cingindo-nos apenas aos valores comprovados, verifica-se que ficou demonstrado que o arguido auferiu rendimentos mensais variáveis (ora de 600,00€, ora de 150,00€, ora de 550,00€ a 950,00€) e que as suas despesas mensais eram na ordem dos 220,00€.
I) Aqui chegados, se é certo que tal situação financeira não lhe permitiria pagar a totalidade da indemnização em causa, também não é menos certo que podia perfeitamente ter procedido ao pagamento parcial (ao contrário do que alega).
J) Ora, durante todo o período da suspensão (4 anos e 9 meses) e até à presente data (decorridos 6 anos e meio), o condenado nunca efectuou qualquer pagamento parcial, não tendo pago um único cêntimo da quantia em causa, nem tendo requerido qualquer pagamento em prestações.
K) Ou seja, o condenado nunca mostrou qualquer empenho ou vontade em efectuar o pagamento, pelo menos em parte, da quantia. E não tendo invocado razões suficientes para não ter empregado quaisquer esforços nesse sentido, e desconhecendo-se quaisquer outros motivos, não resta senão concluir que a falta de pagamento se deveu à sua livre e espontânea (ausência de) vontade.
L) Assim, como é bom de ver, o decidido pelo Mm.º Tribunal a quo não se fundou em qualquer discriminação em função da insuficiência económica, devendo pois julgar-se inverificada a alegação violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.
M) Indício da referida (falta de) intenção é também o argumento avançado pelo recorrente de que “o condenado não cumpriu a condição de pagar a indemnização ao arguido (que, recorde-se, é o homem que lhe havia assaltado a casa e ainda cumpre pena por diversos outros crimes, o que, queiramos ou não, é diferente de ser um idoso burlado ou qualquer outra vítima frágil)”
(sublinhado nosso), evidenciando uma real falta de motivação para o cumprimento do determinado.
N) Na esteira da jurisprudência acima citada, não se vislumbra que o comportamento acima descrito do arguido corresponda minimamente ao de um cidadão comum e medianamente responsável, diligente e cumpridor; pelo contrário, demonstra indiferença e desprezo para com a condição imposta pelo tribunal, recusando-se a entregar sequer parte da quantia em causa, afigurando-se manifesto que o objectivo do tribunal, de que o mesmo interiorizasse os valores que norteiam a vivência social e se reintegrasse no seio da comunidade, fracassou.
O) De resto, atente-se à sensação de impunidade que se faria sentir na comunidade se, da postura acima descrita do arguido durante o período de suspensão, resultasse uma mera extinção da pena.
P) Acresce que a prorrogação do prazo de suspensão se mostra inviável, porquanto excederia o prazo máximo da suspensão previsto no artigo 55.º, al. d), in fine, do Código Penal. De resto e ainda que assim não fosse, a manifesta ausência de credibilidade das declarações do arguido permitem s.m.o. atestar que se manteria a intenção de não cumprir as condições da suspensão, mesmo em caso de prorrogação.
Q) Nestes termos e por tudo o acima exposto, não deve ser dado provimento ao recurso, devendo pois ser mantida, na íntegra, a decisão sub judice, com a consequente revogação da suspensão da execução da pena de prisão de 4 anos e 9 meses em que o arguido foi condenado, e o seu cumprimento efectivo, ao abrigo do disposto no artigo 56.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, do Código Penal.”
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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
Uma vez remetido a este Tribunal, o Exmº Senhor Procurador-Geral Adjunto deu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do CPP.
Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
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II – Objecto do recurso
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal.
O único fundamento do recurso é o seguinte: Deve a decisão proferida pelo Tribunal a quo, ser revogada e, em consequência, nos termos do disposto no artigo 57.º do CP, ser considerada extinta a pena a que o arguido foi condenado, por impossibilidade objectiva de cumprimento da condição imposta.
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III – Fundamentação
O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição – artigo 50º, nº 1, do Código Penal.
A suspensão da execução da pena pode ficar sujeita ao cumprimento de deveres e regras de conduta pelo arguido, aqueles destinados a reparar o mal do crime e estas para promover a sua reintegração na sociedade (cfr. artigos 51º, nº 1 e 52º, nº 1, ambos do Código Penal).
A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado: a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social; ou b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas – artigo 56.º, n.º 1, do Código Penal.
Como refere o Prof. Figueiredo Dias (Direito Penal Português, p. 331), sendo a suspensão da execução da pena “a mais importante das penas de substituição” – não apenas pela frequência com que é aplicada, mas também pelo âmbito lato de aplicação que comporta – a lei, nos termos do art.º 50º do Cód. Penal, exige não só a verificação de um requisito objectivo (condenação em pena de prisão não superior a 5 anos) como também requisitos subjectivos, determinados por finalidades de política criminal, que permitam concluir pelo afastamento futuro do delinquente da prática de novos crimes, através da sua capacidade de se reintegrar socialmente.
“O condenado infringe grosseiramente os deveres ou as regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social quando, culposamente, os não observa. Mas a culpa aqui requerida –contrariamente à pressuposta no art.º 55º do C. Penal – exige um grau qualificado. Não é requerido, no entanto, um incumprimento doloso, bastando para a revogação que da conduta provada resulte um modo de agir do condenado especialmente reprovável e portanto, uma conduta onde a falta de cuidado, a imprevidência assume uma intensidade particularmente elevada. Trata-se, no fundo, de um conceito próximo da culpa grave, portanto, aquela que só é susceptível de ser actuada por uma pessoa particularmente descuidada ou negligente. Por outro lado, o condenado infringe repetidamente os deveres ou as regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social quando, através de condutas sucessivas, por descuido, incúria ou imprevidência, não os observa, deste modo revelando uma atitude de indiferença e distanciamento pelas limitações decorrentes da sentença e/ou do plano de reinserção social. Em qualquer dos fundamentos, estamos perante situações limite, onde o condenado, através da intensidade do grau de culpa posto na sua conduta, inutilizou o capital de confiança na reinserção em liberdade que a aplicação da pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão significou”. Ac. Relação de Coimbra, de 30.01.2019, processo n.º 127/17.0GAMGR-A.C1, relator Vasques Osório.
Apreciemos.
A suspensão da execução da pena do arguido AA ficou sujeita a regime de prova e ao pagamento ao assistente, no período da suspensão, da indemnização em que foi condenado, no montante de 20.000,00€, acrescida de juros de mora, à taxa legal.
Do relatório final elaborado pela DGRS consta o seguinte:
- colaborou no regime de prova;
- não pagou a indemnização fixada pelo Tribunal, alegando incapacidade económica;
- o arguido, alegadamente ... de profissão, continuava desempregado, assinalando que exercia a sua profissão de forma acentuadamente irregular, normalmente quando era solicitado para o efeito, e que para garantir a sua subsistência mantinha atividade laboral pontual em áreas diferenciadas de atividade;
- face ao quadro de instabilidade/precariedade laboral do arguido, que não excluía a hipótese de tentar a melhoria da sua condição de vida no estrangeiro, este foi encaminhado para o ... para eventual colocação laboral;
- cumpriu esta ação em ... de ... de 2018, conforme a declaração de inscrição que apresentou em sede da execução da suspensão da pena com regime de prova, e nesse contexto foi posteriormente convocado pela instituição para sessões de esclarecimento sobre cursos de formação/qualificação profissional;
- terá comparecido a todos as sessões para as quais foi convocado, verbalizando que, posteriormente, não foi contactado pela instituição para qualquer oferta de trabalho;
- entretanto, por iniciativa própria, finalizou um curso de manobrador de máquinas industriais, contexto em que trabalhou como tratorista, desenvolveu trabalho sazonal na apanha de fruta, nomeadamente no ..., como empregado de Bar em ..., no âmbito da concentração de Motard´s, e numa empresa de ...;
- o arguido deixou de manifestar interesse em trabalhar a tempo inteiro dado que se encontrava a cuidar da mãe, idosa de 88 anos de idade, tendo inclusivamente alterado a residência para a Rua ...em ...;
- após o falecimento da progenitora, em finais de maio de 2021, AA regressou à morada habitual, na morada indicada onde permanecia à data da última entrevista de acompanhamento, realizada em ... de ... de 2021;
- o arguido continuava desempregado e apresentava uma condição económica alegadamente marcada pela precariedade, condição que sempre alegou para justificar o incumprimento no que se refere ao pagamento da indemnização, alegando também a existência de dívidas significativas à Segurança Social (8.600€) e às Finanças (27.000€) para descrever a sua condição económica.
Em 15 de março de 2023, a DGRSP juntou informação complementar relativamente à situação económico-financeira do arguido/condenado, consignando: “O arguido sempre alegou que subsistia através de biscates e de atividades sazonais, tendo sinalizado, por outro lado, a existência de dívidas às Finanças e à Segurança Social. Contudo, nunca apresentou qualquer documento comprovativo que sustentasse a informação prestada em termos financeiros, nomeadamente da existência das alegadas dívidas, apesar de várias vezes instado nesse sentido. De referir que sempre verbalizou a inexistência de contratos de trabalho, de recibos de vencimento, ou de qualquer outro meio de prova, nomeadamente declarações de IRS, situação que inviabilizou/inviabiliza qualquer avaliação cuidada relativamente à sua condição económica”.
Na audição de condenado disse que:
- nunca dispôs de capacidade financeira que lhe permitisse pagar, no todo ou em parte, o quantum indemnizatório;
- realiza atualmente tem trabalhos esporádicos, numa discoteca, ao fim-de-semana, durante 2 horas, recebendo 150,00€ por mês, e num bar de praia gerido por um amigo, durante a semana, sendo cinco horas por dia, não recendo qualquer remuneração, mas apenas refeições gratuitas;
- recebe gorjetas, no valor de 20,00€ a 40,00€ por mês;
- não suporta encargos com a habitação, apenas as despesas habituais no valor de cerca de 70,00€ mensais;
- confrontado com o facto de auferir, à data da prolação do acórdão, rendimento mensal no valor de 600,00€, esclareceu que tal quantia não era suficiente para assegurar o pagamento de todas as despesas.
O acórdão condenatório transitou em 15 de Março de 2017.
O recorrente, apesar de trabalhar, não pagou nem um cêntimo ao assistente.
Não apresentou um único documento comprovativo dos seus proventos, nem das suas invocadas dívidas ao Estado. E era seu dever fazê-lo.
Não o tendo feito, resta ao Tribunal fundar-se nos relatórios da DGRSP e nas declarações do próprio.
Por isso, concorda-se com o seguinte extracto da decisão recorrida:
Da avaliação da situação económica do arguido/condenado, resulta que a mesma permitiria o pagamento, ainda que parcial, de prestações de baixo valor, uma vez que, durante estes anos exerceu funções de ..., auferindo 600,00€ mensais; atividade laboral esporádica em áreas diferenciadas; funções de …, trabalho sazonal na …; como … no ... durante uma concentração de Motard´s, e numa empresa de …; numa … ao fim-de-semana durante 2 horas, recebendo 150,00€ por mês; e num …, durante a semana, 5 horas por dia, não lhe sendo paga qualquer quantia, sendo a contrapartida tão-só o almoço e jantar gratuitos, recebendo gorjetas no valor de 20,00€ a 40,00€ diários, o que pode perfazer 400,00€ a 800,00€ mensais. Acresce que não suporta encargos com a habitação, o que constitui uma inegável vantagem financeira, não lhe sendo conhecidas outras despesas além das relacionadas com a gestão correste, no valor médio de 70,00€ por mês, a que acrescerá a alimentação, sempre sem perder de vista que o almoço e jantar lhe são oferecidos no local de trabalho. Assim, o arguido/condenado, quer na época em que auferia 600,00€ mensais, quer atualmente, auferindo entre 550,00€ a 950,00€ mensais, poderia, ao contrário do que alega, ter realizado o pagamento, ainda que parcial, da indemnização devida, não tendo invocado razões atendíveis justificativas de tal omissão, suscetíveis de afastar a sua culpa.”
O que resulta manifestamente dos autos é que o recorrente não interiorizou a obrigação de pagar a indemnização. E teve muito anos para o demonstrar.
Como se refere no acórdão do TR Évora, de 18.02.2014, dgsi.pt, relator João Latas: “I. Só o incumprimento grosseiramente culposo do dever de pagar as quantias arbitradas a título de indemnização implica a revogação da suspensão da execução da pena de prisão; (…) III. Apesar disso, dado que o incumprimento dos deveres que condicionam a suspensão da pena é particularmente nefasto do ponto de vista da prevenção geral positiva, tanto mais inaceitável quanto os ilícitos em causa assumam especial gravidade, só no caso de se demonstrar a efectiva impossibilidade de o arguido satisfazer total ou parcialmente as obrigações impostas deixará de ter lugar a revogação da suspensão da prisão”
A prevenção geral assume, in casu, particulares exigências. O crime cometido é muito grave – homicídio sob a forma tentada. Visou o bem jurídico mais importante - a vida humana.
E o condenado sabia perfeitamente que o cumprimento da pena de prisão dependia do pagamento de uma indemnização de 20.000€. Mas nunca manifestou interesse em pagar. E teve rendimentos suficientes para, pelo menos, pagar parcialmente a indemnização.
O recorrente foi condenado pela prática de um crime muito grave, mas o Tribunal confiou na sua ressocialização, apesar de a comunidade ter a expectativa que não sejam utilizadas armas de fogo para tirar a vida de outrem. Só que a suspensão da execução da pena ficou condicionada ao dever de algum modo reparar/compensar o mal feito. Ora, passados todos estes anos, o que se verifica é que o recorrente não teve a mínima preocupação em cumprir tal dever ou pelo menos demonstrar vontade em fazê-lo.
Termos em que só podemos concordar com o Tribunal recorrido.
O recorrente infringiu grosseiramente, culposamente (com grau qualificado) a condição da suspensão da execução da pena. Da conduta demonstrada resulta que agiu de modo reprovável, com uma imprevidência particularmente elevada. Não pagou qualquer cêntimo da indemnização porque manifestamente não quis, revelando indiferença e distanciamento perante o seu dever. E, assim, inutilizou o capital de confiança na reinserção em liberdade que a aplicação da pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão significou.
Improcede o recurso.
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IV – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, declarando-o totalmente improcedente.
Custas pelo recorrente, fixando-se em 3 UC’s a taxa de justiça.
Lisboa, 24 de Setembro de 2024
Paulo Barreto
Manuel José Ramos da Fonseca
Pedro José Esteves de Brito