MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE
PROVA POR RECONHECIMENTO
CRIME DE ROUBO
Sumário

(da responsabilidade da relatora):
I. Não é possível requerer, em sede recursória, que o Tribunal da Relação se pronuncie em primeira mão sobre qualquer questão;
II. O Princípio da Especialidade previsto no art. 7º da Lei 65/2003 de 23.08 (que transpõe o art. 27º da Decisão-quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13.06.2002, relativa ao Mandado de Detenção Europeu e aos processos de entrega entre os Estados-Membros) traduz-se em “limitar os factos pelos quais o extraditando será julgado, após entrega ao Estado-requerente, àqueles que motivaram a sua entrega”.
III. O Mandado de Detenção Europeu tem de conter a descrição das circunstâncias em que as infracções foram cometidas, incluindo o momento, o lugar e o grau de participação na infracção do requerido e indicar a natureza e qualificação jurídica das infracções, mas os elementos subjectivos, ou outros desenvolvimentos, necessários para a perfeição de uma acusação, e que são elementos constitutivos da infracção, não têm que constar do Mandado de Detenção Europeu. Ao requerido tem que ser dado conhecimento dos factos por que é procurado, não de todos os elementos constitutivos da infracção.
IV. Quando, analisado o Mandado de Detenção Europeu verificamos que, não obstante a descrição factual ser coincidente com o despacho recorrido nos termos em que considerou os mesmos factos indiciados, a imputação de infracções praticadas não é coincidente, desde que seja imputado um crime que permita a execução do Mandado de Detenção Europeu sem controlo da dupla incriminação do facto, por força do art. 2º, nº 2, alínea o) da Lei 65/2003 de 23.08, a detenção é legal, ou seja, a validade da decisão de entrega não se mostra afectada, nem tão pouco a decisão de aplicar a medida de prisão preventiva com base em tais factos. Para as restantes infracções, em que teria que haver o controlo da dupla incriminação podem ser solicitados esclarecimentos e relativamente às outras pode ser feito um pedido de consentimento.
V. A suspensão da instância e a submissão ao Tribunal de Justiça da União Europeia, nos termos do art. 267º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, de questões prejudiciais, só pode ocorrer quando um órgão jurisdicional de um Estado-Membro é confrontado, no âmbito de um processo, com uma questão de interpretação de uma norma de direito comunitário, e desde que a resolução da questão se torne necessária para o julgamento do caso que tem em mãos.
VI. O reconhecimento de pessoas que tenha sido efectuado no rigor e com observância do disposto no art. 147º do Cód. Proc. Penal tem que ser valorado no âmbito do processo, sendo essa valoração sopesada como qualquer outro meio de prova, segundo o disposto no art. 127º do Cód. Proc. Penal. Não existe qualquer exigência legal de que o arguido tenha que ter conhecimento prévio da descrição do suspeito efetuada pela pessoa que ia efetuar a identificação e a exigência da presença de duas pessoas que apresentem as maiores semelhanças possíveis, inclusive de vestuário, com a pessoa a identificar não significa uma completa homogeneidade física.
VII. A aquisição processual de imagens de vídeo que não resulte de uma qualquer apreensão efetuada por órgão de polícia criminal, mas antes da sua entrega voluntária pelo ofendido não tinha de ser validada pela autoridade judiciária competente por não estar abrangida pelo âmbito de aplicação do disposto no art. 178º, nº 6, do Cód. Proc. Penal.
VIII. Na esfera de protecção do crime de roubo pode estar contemplada uma pluralidade de ilícitos puramente instrumentais (crime-meio), como o crime de ofensas à integridade física simples, os quais estão numa relação de concurso aparente com o crime-fim.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa,

Relatório
No âmbito do Inquérito com o nº 1175/23.6S3LSB, que corre termos no Juiz 1 do Juízo Central de Instrução Criminal, foi ao arguido,
AA, casado, empresário, nascido a ........1987 na freguesia de ..., filho de BB e CC, residente na ...,
aplicada a medida de prisão preventiva, bem como foi proferido despacho que indeferiu invalidades alegadas
*
Sem se conformar com o decidido o arguido interpôs o presente recurso, onde formula as conclusões que se transcrevem:
1. O presente recurso vem interposto do despacho judicial proferido pelo Tribunal Central de Instrução Criminal, no Auto de Interrogatório de Arguido de 21.03.2024, com a ref.ª 8798286, nos termos do qual foi aplicada ao Arguido, ora Recorrente, uma medida de coação de prisão preventiva.
i) Da invalidade dos autos de reconhecimento
2. O Arguido foi sujeito, pelo órgão de polícia criminal, a duas diligências de reconhecimento, de fls. 447 a 453, em vista das quais foram produzidas, pelas pessoas que haveriam de proceder à identificação, descrições intelectuais, nos termos do artigo 147.º, n.º 1, do CPP, segundo as quais as características mais distintivas da pessoa a identificar consistiam na dimensão e volume da barda, “farfalhuda”, “do queixo ao pescoço”, bem como na circunstância de a mesma ser “careca” (cf. fls. 447 e 450).
3. Ao arguido não foi dada a conhecer a descrição intelectual do suspeito efetuada pelas pessoas que haveriam de efetuar a identificação, previamente ao processo de reconhecimento presencial, não lhe tendo, desse modo, sido assegurada a faculdade de opor objeções à escolha dos indivíduos chamados a integrar a linha de reconhecimento, com base na descrição do suspeito, previamente à realização da diligência.
4. As pessoas concretamente chamadas a integrar a linha de reconhecimento apresentavam dissemelhanças notórias e evidentes face às características mais distintivas do Arguido, sobretudo, da barba e do cabelo (ou da careca), sendo que, conforme o Arguido registou e arguiu no próprio ato:
i) “Os dois figurantes são mais altos cerca de um palmo, o arguido é o mais baixo”;
ii) “Os dois figurantes têm uma barba muito curta de 2/3 dias, enquanto o arguido tem uma barba muito grande e comprida”;
iii) “Um dos figurantes tem cabelo, enquanto o arguido é careca”.
5. As dissemelhanças entre o ARGUIDO e os demais figurantes chamados a integrar a linha de reconhecimento são objetivas e respeitam a características do rosto e do cabelo, que constituem, consabidamente, elementos decisivos no reconhecimento de uma pessoa.
6. As dissemelhanças concretamente existentes entre o ARGUIDO e os demais figurantes chamados a integrar a linha de reconhecimento foram suscetíveis de levar a que a atenção dos sujeitos ativos do reconhecimento singularizasse a pessoa do ARGUIDO.
7. Os figurantes chamados a participar na linha de reconhecimento não apresentavam as características essenciais indicadas na descrição intelectual do suspeito efetuada pelas pessoas que iriam fazer a identificação.
8. Qualquer pessoa que tivesse conhecimento da descrição intelectual do suspeito teria invariavelmente identificado o ARGUIDO como o suspeito nos autos, ainda que nunca antes o houvesse visto e do mesmo nenhuma memória pessoal tivesse.
9. Nas circunstâncias em que decorreu, o reconhecimento efetuado nos autos não oferece garantias mínimas de fiabilidade, por não assegurar que a seleção do ARGUIDO, de entre as diversas pessoas integradas na linha de reconhecimento, se fundou no reconhecimento mnemónico da pessoa do ARGUIDO, ao invés de decorrer de um juízo meramente intelectual, de exclusão de partes, relativo às pessoas perfiladas na linha de reconhecimento que não apresentavam as características previamente descritas pelos próprios sujeitos que procederam à identificação.
10. As dissemelhanças entre o ARGUIDO e os demais figurantes chamados a integrar a linha de reconhecimento devem ser consideradas notórias e evidentes – o que vale, igualmente, por dizer, graves e manifestas – sempre que o ARGUIDO seja a única pessoa cujas características essenciais correspondem à descrição intelectual do suspeito efetuada pela pessoa que haja de fazer a identificação.
11. O ARGUIDO empreendeu todas as diligências que estavam ao seu alcance para demonstrar nos autos e para sujeitar a controlo judicial a existência de diferenças notórias e evidentes entre si e os demais figurantes chamados a integrar a linha de reconhecimento.
12. A insusceptibilidade de demonstração judicial da existência de dissemelhanças notórias e evidentes entre o Arguido e os demais figurantes chamados e integrar a linha de reconhecimento, resultante da circunstância de estes não terem consentido em ser fotografados e em terem as respetivas fotografias juntas aos autos, não pode prejudicar o exercício dos direitos fundamentais de defesa e de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, no âmbito de um processo justo e equitativo, nos termos dos artigos 20.º, n.º 1 e 4, e 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP.
13. A prova por reconhecimento é um dos meios de prova que mais influencia os tribunais no sentido de afirmar a culpabilidade da pessoa assim identificada, sendo, no entanto, apesar disso, um meio de prova especialmente falível, dependente de um esforço mnemónico de comparação entre uma perceção visual passada e a perceção visual provocada no decurso da experiência processual, encontrando-se, por isso, a prova por reconhecimento sujeita a um conjunto de precauções e de formalidades que são estabelecidas na lei sob pena de nulidade, nos termos do artigo 147.º, n.º 7, do CPP.
14. Conforme referido no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora (proc.389/17.2GCBNV.E1), “a dificuldade em reunir pessoas semelhantes, não deve ser ultrapassada pela validação de um meio de prova sem respeito por esse formalismo”, pelo que “caso não se encontrem reunidas as condições para que a prova seja realizada com respeito pelos requisitos do n.º 2 do art. 147.º não deverá, então, haver lugar a esta”.
15. Pelo exposto, a existência de dissemelhanças notórias e evidentes entre o ARGUIDO e os demais figurantes integrados na linha de reconhecimento, suscetíveis de singularizar a pessoa do ARGUIDO, consubstancia, uma violação das normas de produção de prova por reconhecimento, sendo, por conseguinte, nulas, não podendo ser valoradas, as diligências de reconhecimento de fls.447 a 453, nos termos e para os efeitos conjugados do disposto no artigo 147.º, n.ºs 2 e 7, do CPP.
16. Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 280.º, n.º 1, al. b), e n.º 4, da CRP, em conjugação com o artigo 70.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua redação atual, mais se suscita a inconstitucionalidade material, requerendo-se, em conformidade, que se proceda à desaplicação da norma constante do artigo 147.º, n.º 2, do CPP, isoladamente ou em conjugação com qualquer outra disposição legal, se interpretado no sentido:
iii) de admitir a escolha de pessoas que apresentem diferenças notórias e evidentes com a pessoa a identificar; ou
iv) de admitir a escolha de pessoas cujas características essenciais não correspondam à descrição do suspeito efetuada pela pessoa que deva fazer a identificação;
em ambas as dimensões normativas, por violação do direito fundamental a um processo justo e equitativo e do direito fundamental de defesa do Arguido, consagrados nos artigos 20.º, n.ºs 1 e 4, e 32.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa.
17. Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 280.º, n.º 1, al. b), e n.º 4, da CRP, em conjugação com o artigo 70.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua redação atual, mais se suscita a inconstitucionalidade material, requerendo-se, em conformidade, que se proceda à desaplicação da norma constante do artigo 147.º, n.º 4, do CPP, nos exatos termos em que se encontra redigido, por violação do direito fundamental a um processo justo e equitativo e do direito fundamental de defesa do Arguido, consagrados nos artigos 20.º, n.ºs 1 e 4, e 32.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa.
18. Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 280.º, n.º 1, al. b), e n.º 4, da CRP, em conjugação com o artigo 70.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua redação atual, mais se suscita a inconstitucionalidade material, requerendo-se, em conformidade, que se proceda à desaplicação da norma constante do artigo 147.º, n.ºs 2 e 4, do CPP, isoladamente ou em conjugação com o disposto no artigo 127.º do CPP, ou em qualquer outra disposição legal, se interpretado no sentido de admitir a valoração de prova produzida por reconhecimento presencial em caso de dúvida insanável quanto à existência de diferenças notórias e evidentes entre o arguido e as demais pessoas chamadas a intervir no processo de reconhecimento, por violação do direito fundamental a um processo justo e equitativo e do direito fundamental de defesa do Arguido, consagrados nos artigos 20.º, n.ºs 1 e 4, e 32.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa.
19. O direito fundamental de defesa do arguido, conformado no quadro de um processo justo e equitativo, nos termos dos artigos 32.º, n.º 1, e 20.º, n.ºs 1 e 4, da CRP, assegura o direito do Arguido, no âmbito de uma diligência de reconhecimento presencial, nos termos do artigo 147.º, n.º 2, do CPP, a ter conhecimento prévio da descrição do suspeito efetuada pela pessoa que haja de efetuar a identificação e, bem assim, de opor objeções à escolha das pessoas chamadas a integrar a linha de reconhecimento.
20. Nos termos e com os fundamentos expostos, deve ser declarada a nulidade, ou subsidiariamente a irregularidade, das diligências de reconhecimento de fls. 447 a 453 por não ter sido dado ao ARGUIDO conhecimento prévio da descrição do suspeito efetuada pelas pessoas que haveriam de efetuar a identificação, nos termos do disposto no artigo 120.º, n.º 2, al. d), ou no artigo 123.º, do CPP, em conjugação com o artigo 147.º, n.º 2, do CPP, interpretado em conformidade com os direitos fundamentais de defesa do arguido, no âmbito de um processo justo e equitativo, nos termos dos artigos 32.º, n.º 1, e 20.º, n.ºs 1 e 4, da CRP.
21. Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 280.º, n.º 1, al. b), e n.º 4, da CRP, em conjugação com o artigo 70.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua redação atual, mais se suscita a inconstitucionalidade material, requerendo-se, em conformidade, que se proceda à desaplicação da norma constante do artigo 147.º, n.º 2, do CPP, isoladamente ou em conjugação com qualquer outra disposição legal, se interpretada no sentido de que o Arguido não tem o direito a conhecer a descrição do suspeito efetuada pela pessoa que deva fazer a identificação previamente ao processo de reconhecimento presencial, por violação do direito fundamental a um processo justo e equitativo e do direito fundamental de defesa do Arguido, consagrados nos artigos 20.º, n.ºs 1 e 4, e 32.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa.
ii) Do erro na indicação da natureza e qualificação jurídica das infrações em causa no Mandado de Detenção Europeu
22. Foi emitido nos autos Mandado de Detenção Europeu, pelo Ministério Público, de 24.01.2024, com a ref.ª 429010386, contendo informações sobre a natureza e qualificação jurídica de três infrações sob investigação nos presentes autos (correspondentes ao processo 1175/23.6S3LSB e aos apensos 1188/23.8S3LS e 788/23.0PTLSB), bem como a descrição das circunstâncias em que as referidas infrações terão sido cometidas, incluindo o momento, o lugar e o grau de participação do ARGUIDO nas infrações em causa, mais se indicando, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, que estabelece o Regime Jurídico do Mandado de Detenção Europeu, na sua redação atual, e no artigo 2.º, n.º 2, da Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados-Membros, estarem em causa infrações correspondentes a «Homicídio voluntário, ofensas corporais graves» e «Roubo organizado ou à mão armada».
23. A matéria em causa nos autos, conforme descrita no Mandado de Detenção Europeu, não é suscetível de ser qualificada juridicamente como «Homicídio voluntário, ofensas corporais graves» ou «Roubo organizado ou à mão armada».
24. Não se verifica nos autos a produção de qualquer resultado morte imputável ao ARGUIDO, a título voluntário ou involuntário, doloso ou negligente, não se verificando, tão-pouco, a produção de ofensas corporais graves, a qualquer dos ofendidos nos autos, porquanto:
(i) Quanto ao ofendido DD, cujas lesões se encontram detalhadamente descritas no Mandado de Detenção Europeu, resulta do correspondente Auto de Inquirição, de fls. 49-52, que, na sequência das alegadas agressões, “foi ao ..., mas que teve alta no próprio dia e não ficou com sequelas. Apenas ficou com uma mancha no olho”, mais tendo o mesmo ofendido declarado “não desejar procedimento criminal contra AA”;
(ii) No que respeita à ofendida EE, grávida de 37 semanas à data dos factos, apesar de a mesma ter declarado, no correspondente Auto de Inquirição, de fls. 65 e ss., que “na sequência dos factos teve de se dirigir ao Hospital, no dia seguinte, porque se sentiu muito nervosa e temeu que pudesse acontecer alguma coisa ao bebé”, certo é que a mesma teve alta administrativa com parecer médico favorável, no próprio dia, conforme resulta do respetivo relatório de urgência hospitalar, de fls. 171-173:
(iii) No que respeita ao ofendido FF, resulta do relatório de perícia de avaliação do dano corporal, de fls. 77 a 79, que do evento não terão resultado consequências graves suscetíveis de afetar de forma grave ou permanente a capacidade de trabalho do ofendido, além da limitação decorrente do período normal de convalescença do ofendido, de 8 dias;
(iv) Quanto à ofendida GG, apenas foi afirmado, no respetivo Auto de Inquirição, de fls.21-22 do Apenso referente ao NUIPC n.º 788/23.0PTLSB, que “das agressões de que foi vítima, resultou-lhe um hematoma no lábio superior e no olho esquerdo e não foi receber tratamento hospitalar”.
25. O ARGUIDO não se encontra indiciado nos autos de um crime de ofensas à integridade física grave, nos termos do artigo 144.º do Código Penal.
26. A matéria dos autos não corresponde igualmente à prática de infrações suscetíveis de serem qualificadas como «Roubo organizado ou à mão armada», porquanto:
(i) o episódio a que se refere a imputação de um crime de roubo, em causa no Apenso 788/23.0PTLSB, não avulta de qualquer ação organizada, planeada ou coordenada, avultando antes, nos termos descritos nos autos, de um comportamento espontâneo e impulsivo, que sempre configuraria uma atuação apenas suscetível de ser descrita como oposto de «roubo organizado».
(ii) o crime de roubo em causa nos autos é imputado ao ARGUIDO a título de autoria singular, não cabendo qualificar como «roubo organizado» fenómenos criminais que não apresentem as características de comparticipação e de atuação conjugada conforme a um plano criminoso, inerentes à criminalidade dita «organizada».
(iii) não existem quaisquer indícios de que, nas circunstâncias de tempo e de lugar em que os factos terão sido praticados, o ARGUIDO se encontrasse na posse de qualquer arma, não havendo indícios de que tenha sido exibida pelo ARGUIDO, ou percecionada pelos ofendidos qualquer arma, de fogo ou outra, que permitisse qualificar os factos em causa a título de «roubo à mão armada».
(iv) embora tais factos sejam exógenos à matéria descrita no MDE, o veículo em que o Arguido supostamente se dirigia, apenas descrito como um “veículo de marca Renault, modelo Megane, cinzenta e de matrícula francesa” (cf. Auto de Inquirição de Testemunha de fls. 18-20), não coincide com o veículo Mercedes Benz, de cor branca, com a matrícula AL-..-RB, no qual terá sido apreendida uma bolsa azul contendo 15 (quinze) munições de calibre 9 mm (cf. Auto de Apreensão de fls. 79 e Auto de Busca e Apreensão de fls. 264-268).
27. O Mandado de Detenção Europeu emitido nos autos encontra-se incorretamente preenchido no que respeita à indicação da natureza e qualificação jurídica de infrações previstas no artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, na sua redação atual, e no artigo 2.º, n.º 2, da Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002.
28. O erro na emissão do MDE, quanto à indicação de infrações previstas no artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, e no artigo 2.º, n.º 2, da Decisão-Quadro 2002/584/JAI, vicia, insuperivelmente, o procedimento de execução e entrega do Arguido, por assentar o mesmo em pressupostos legais incorretos quanto à natureza e qualificação jurídica das infrações em causa, com relevância na apreciação de motivos obrigatórios ou facultativos de não execução do Mandado de Detenção, nos termos dos artigos 2.º, n.º 2 e 4, e 4.º, n.º 1, da Decisão-Quadro 2002/584/JAI.
29. As autoridades judiciárias de execução encontram-se vinculadas aos termos constantes do Mandado de Detenção Europeu, conforme emitido pelo Estado-Membro de emissão, não podendo, por força do princípio do reconhecimento mútuo, conhecer ou declarar qualquer irregularidade ou nulidade relativa ao preenchimento do respetivo formulário pelo Estado-Membro de emissão.
30. O Mandado de Detenção Europeu emitido nos autos é nulo, por violação do disposto nos termos conjugados dos artigos 2.º, n.ºs 2 e 4, 4.º, n.º 1, e 8.º, n.º 1, al. d), da Decisão-Quadro 2002/584/JAI, sendo, em consequência, ilegal a detenção do Arguido ao abrigo do referido Mandado de Detenção Europeu, devendo, em conformidade, ser o mesmo imediatamente restituído à liberdade.
31. Caso assim não se entenda, considerando que a questão suscitada concerne à interpretação de disposições da Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados-Membros, requerer-se que seja determinada a suspensão da instância e a submissão ao Tribunal de Justiça da União Europeia, nos termos do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, da seguinte questão prejudicial:
> O disposto nos termos conjugados dos artigos 2.º, n.ºs 2 e 4, 4.º, n.º 1, e 8.º, n.º 1, al. d), da Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados-Membro, devem ser interpretados no sentido de que se opõe à privação da liberdade de uma pessoa, quando se verifique, posteriormente à sua entrega pelo Estado-Membro de execução, que o Mandado de Detenção Europeu foi incorretamente preenchido e emitido pelo Estado-Membro de emissão, por ter sido erradamente indicada a natureza e qualificação jurídica de infrações previstas no artigo 2.º, n.º 2, da referida Decisão-Quadro?
iii) Da violação do princípio da especialidade do Mandado de Detenção Europeu
32. Nos termos do despacho recorrido, foram indiciados factos novos face à matéria fatual constante do Mandado de Detenção Europeu, assim como foram imputados novos crimes, de natureza e qualificação jurídica distinta das infrações indicadas no Mandado de Detenção Europeu.
33. Em aditamento à matéria fatual constante do Mandado de Detenção Europeu, foram indiciados, pelo Tribunal a quo, nos termos do despacho recorrido, os factos constantes dos pontos 17.º, 22.º, 23.º, 24.º, 25.º, 39.º, 40.º, 41.º e 42.º do despacho de apresentação do Ministério Público.
34. Em aditamento às infrações indicadas no Mandado de Detenção Europeu, foi indiciada, pelo Tribunal a quo, nos termos do despacho recorrido, a prática, pelo ARGUIDO, de:
(i) três crimes de ameaça agravada, p.p. pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), em que foram sujeitos passivos os ofendidos DD, HH e EE; e
ii) dois crimes de ofensa à integridade física, p. p. pelo artigo 143.º, n.º 1, em que foram sujeitos passivos os ofendidos FF e GG.
35. Os factos novos introduzidos pelo Ministério Público e relevados pelo Tribunal a quo no despacho recorrido, constantes do ponto 17.º e, sobretudo, dos pontos 22.º, 23.º, 24.º e 25.º, por um lado, e dos pontos 39.º, 40.º, 41.º e 42.º, por outro, constituem factos essenciais constitutivos do tipo subjetivo dos ilícitos criminais imputados ao ARGUIDO no proc. n.º 1175/23.6S3LSB e no proc. 788/23.0PTLSB, respetivamente.
36. Os factos constantes dos pontos 17.º, 22.º, 23.º, 24.º, 25.º, 39.º, 40.º, 41.º e 42.º consubstanciam elementos constitutivos das infrações imputadas ao Arguido, na aceção do artigo 1.º, al. a), do CPP, distintos daqueles que se encontram descritos no Mandado de Detenção Europeu e em virtude dos quais a pessoa foi entregue.
37. Enquanto elementos constitutivos do tipo subjetivo de ilícito, tais factos não constituem meras “modificações nas circunstâncias de tempo e lugar”, nem correspondem, nos termos definidos na jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, a “elementos coligidos no decurso [ulterior] do processo que corre no Estado-Membro de emissão relativamente aos comportamentos descritos no mandado de detenção”, que “não alterem a natureza da infração”.
38. A indiciação, nos termos do despacho recorrido, dos factos constantes dos pontos 17.º, 22.º, 23.º, 24.º, 25.º, 39.º, 40.º, 41.º e 42.º, consubstancia uma violação do princípio da especialidade, consagrado no artigo 7.º, n.º 1, da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, que estabelece o Regime Jurídico do Mandado de Detenção Europeu, na sua redação atual; e no artigo 27.º, n.º 2, da Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados-Membros.
39. A indiciação, nos termos do despacho recorrido, por crimes de natureza e qualificação jurídica diversa daqueles que foram indicados no Mandado de Detenção Europeu consubstancia uma violação do princípio da especialidade, consagrado no artigo 7.º, n.º 1, da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, que estabelece o Regime Jurídico do Mandado de Detenção Europeu, na sua redação atual; e no artigo 27.º, n.º 2, da Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados-Membros.
40. Caso assim não se entenda, considerando que a questão suscitada concerne à interpretação de disposições da Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados-Membros, requerer-se que seja determinada a suspensão da instância e a submissão ao Tribunal de Justiça da União Europeia, nos termos do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, das seguintes questões prejudiciais:
- A privação da liberdade de uma pessoa entregue ao abrigo de um Mandado de Detenção Europeu com base em factos não constantes do Mandado de Detenção Europeu emitido pelo Estado-Membro de emissão, referentes a elementos constitutivos do tipo subjetivo de ilícito, suscetíveis de significar a transformação de uma conduta não punível numa conduta punível, respeita a uma «infração diferente» daquela por que a pessoa foi entregue, na aceção do artigo 27.º , n.º 2, da Decisão-quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de Junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados-Membros, que exija a aplicação do procedimento de consentimento referido no artigo 27.º, n.ºs 3, alínea g), e 4, da mesma decisão-quadro?
- A privação da liberdade de uma pessoa entregue ao abrigo de um Mandado de Detenção Europeu com fundamento em infrações de diversa natureza e qualificação jurídica daquelas que foram indicados no Mandado de Detenção Europeu, respeita a uma «infração diferente» daquela por que a pessoa foi entregue, na aceção do artigo 27.º, n.º 2, da Decisão-quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de Junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados-Membros, que exija a aplicação do procedimento de consentimento referido no artigo 27.º, n.ºs 3, alínea g), e 4, da mesma decisão-quadro?
iv) Da invalidade da busca ao veículo automóvel com a matrícula AL-..-RB derivada da irregularidade da respetiva apreensão
41. A apreensão veículo automóvel com a matrícula AL-..-RB efetuada pelo órgão de polícia criminal a fls. 79 dos autos é irregular, nos termos do despacho recorrido, por não ter sido sujeita a validação pela autoridade judiciária competente, em violação do disposto no artigo 178.º, n.º 6, do CPP.
42. A busca ao veículo automóvel com a matrícula AL-..-RB, ordenada e efetuada de fls. 265 a 268, dos autos, constitui uma diligência materialmente dependente da disponibilidade do veículo, o qual, conforme declarado no despacho recorrido, foi ilegalmente apreendido nos autos, conformando a referida diligência, desse modo, termos subsequentes do processo afetados pelo ato irregular, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 123.º do CPP.
43. Pelo exposto, deve ser declarada a invalidade da busca ao veículo ordenada e realizada de fls. 265 a 268, por efeito da invalidade da apreensão do veículo efetuada a fls. 79, judicialmente declarada no despacho recorrido, nos termos do disposto no artigo 123.º do CPP.
v) Da invalidade da busca ao veículo por violação de competência reservada a autoridade judiciária
44. A competência para ordenar ou autorizar a realização de buscas, nomeadamente em espaços reservados ou não livremente acessíveis ao público, se encontra legalmente reservada ao Ministério Público, enquanto autoridade judiciária responsável pela direção do inquérito, nos termos conjugados dos artigos 174.º, n.º 3, 263.º, n.ºs 1 e 2, e 270.º, n.ºs 1 e 2, al. d), do CPP.
45. A lei atribui ao Ministério Público, nos termos conjugados dos artigos 174.º, n.º 3 e 5, e 270.º, n.ºs 1 e 2, al. d), do CPP, uma competência reservada para “ordenar ou autorizar revistas e buscas”, ressalvando, todavia, os “termos e limites dos n.ºs 3 e 5 do artigo 174.º”.
46. De acordo com os “termos e limites dos n.ºs 3 e 5 do artigo 174.º”, a competência para efetuar diligências de busca pode ser delegada no órgão de polícia criminal, nos casos:
a) de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa;
b) em que os visados consintam, desde que o consentimento prestado fique, por qualquer forma, documentado; ou
c) aquando de detenção em flagrante por crime a que corresponda pena de prisão.
47. As hipóteses legais previstas no n.º 5 do artigo 174.º do CPP excecionam, assim, a reserva legal de competência do Ministério Público, estabelecida no artigo 270.º, n.º 1, al. d), do CPP, para “ordenar ou autorizar revistas e buscas”.
48. Nessa conformidade, a atribuição de competência às “autoridades de polícia criminal”, nos termos conjugados dos artigos 8.º e 9.º do Decreto-Lei n.º 137/2019, de 13 de setembro, que aprova a Estrutura Organizacional da Polícia Judiciária, na sua redação atual, “para, no âmbito de despacho de delegação genérica de competência de investigação criminal, ordenar (…) a realização de revistas e buscas”, insere-se no âmbito normativo conformado pelas hipóteses legais expressamente previstas no n.º 5 do artigo 174.º do CPP.
49. É por referência às hipóteses legais previstas no n.º 5 do artigo 174.º do CPP, que excecionam a reserva legal de competência do Ministério Público, estabelecida no artigo 270.º, n.º1, al. d),do CPP, que importa definir, no quadro organizacional interno da Polícia Judiciária, quem, em concreto, detém a autoridade de polícia criminal necessária para “no âmbito de despacho de delegação genérica de competência de investigação criminal, ordenar (…) a realização de revistas e buscas (…)” (cf. artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 137/2019, de 13 de setembro).
50. Um Decreto-Lei do Governo, aprovado ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 198.º da CRP – como é o caso do Decreto-Lei n.º 137/2019, de13 de setembro –, não pode legislar sobre processo criminal, por se tratar de matéria da competência legislativa reservada da Assembleia da República, nos termos do artigo 165.º, n.º 1, al. c), da CRP.
51. A busca ao veículo automóvel com a matrícula AL-..-RB, ordenada e efetuada nos autos pela Polícia Judiciária, a fls264 a 268, foi ordenada por autoridade de polícia criminal sem competência legal para o efeito, sendo, por conseguinte, nula, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 119.º, al. b), do CPP.
52. Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 280.º, n.º 1, al. b), e n.º 4, da CRP, em conjugação com o artigo 70.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua redação atual, suscita-se a inconstitucionalidade material, requerendo-se, em conformidade, que se proceda à desaplicação da norma constante das disposições conjugadas dos artigos 8.º, n.º 1, e 9.º, n.º 1, al. b), do Decreto-Lei n.º 137/2019,de 13 de setembro, se interpretada no sentido de que as autoridades de polícia criminal têm competência para, no âmbito de despacho de delegação genérica de competência de investigação criminal, ordenar a realização de buscas previstas no artigo 174.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, por violação do artigo 219.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, na parte em que defere ao Ministério Público competência para exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade.
53. Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 280.º, n.º 1, al. b), e n.º 4, da CRP, em conjugação com o artigo 70.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua redação atual, suscita-se a inconstitucionalidade orgânica, requerendo-se, em conformidade, que se proceda à desaplicação da norma resultante das disposições conjugadas dos artigos 8.º e 9.º do Decreto-Lei n.º 137/2019, de 13 de setembro, se interpretada no sentido de derrogar a reserva legal de competência do Ministério Público para ordenar ou autorizar revistas e buscas, estabelecida nos termos conjugados dos artigos 174.º, n.º 3, e 270.º, n.ºs 1 e 2, al. d), do CPP, por violação da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, consagrada no artigo 165.º, n.º 1, al. c), da Constituição.
vi) Da invalidade da aquisição processual das imagens captadas pelo ofendido FF
54. A captação da imagem de uma pessoa por meio de vídeo ou fotografia consubstancia uma ingerência nos direitos fundamentais à imagem e à reserva da vida privada, consagrados no artigo 26.º, n.º 1, da CRP.
55. A aquisição processual de imagens de uma pessoa captadas e voluntariamente entregues a órgão de polícia criminal por um terceiro sem o seu consentimento consubstancia, em termos formais, um ato de apreensão, abrangido pelo âmbito de aplicação do disposto no artigo 178.º, n.º 6, do CPP.
56. Deve ser declarada a nulidade, ou subsidiariamente a irregularidade, da aquisição das imagens de vídeo captadas pelo ofendido FF, de fls. 37 a 40 do proc. 788/23.0PTLSB, por não terem sido as mesmas sujeitas a validação pela autoridade judiciária competente, em preterição de um ato legalmente obrigatório, nos termos conjugados dos artigos 120.º, n.º 2, al. d), ou 123.º, e 178.º, n.º 6, do CPP.
57. Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 280.º, n.º 1, al. b), e n.º 4, da CRP, em conjugação com o artigo 70.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua redação atual, suscita-se a inconstitucionalidade material da norma constante do artigo 178.º, n.º6, do CPP, na sua redação atual, isoladamente ou em conjugação com quaisquer outras disposições legais, se interpretada no sentido de que o recebimento de imagens de uma pessoa captadas e voluntariamente entregues a órgão de polícia criminal por um terceiro sem o seu consentimento não carece de validação por autoridade judiciária, por violação do estatuto constitucional do Ministério Público, do princípio da reserva de função jurisdicional em matéria de administração da justiça, das garantias de defesa do arguido em processo penal, do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, bem como dos direitos fundamentais à imagem e à reservada intimidade da vida privada, assim como dos princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade, respetivamente consignados no artigo 219.º, n.º 1, no artigo 32.º, n.ºs 1 e 4, em conjugação com o artigo 202.º; no artigo 20.º, no artigo 26.º, n.º 1 e nos artigos 13.º, n.º 1, e 18.º, n.º 1, da CRP.
vii) Da inadmissibilidade de indiciação simultânea e cumulativa pelos mesmos factos de um crime ofensa à integridade física e de um crime de roubo
58. Nos termos do despacho recorrido, foi o Arguido indiciado pela prática de dois crimes de ofensas à integridade física, de que terão sido sujeitos passivos “os ofendidos FF e GG”, bem como pela prática de um crime de roubo, “em que foi sujeito passivo a ofendida GG”.
59. O Arguido foi indiciado, nos termos do despacho recorrido, simultânea e cumulativamente pela prática de um crime de ofensa à integridade física e de um crime de roubo, com fundamento nos mesmos factos e relativamente à mesma ofendida GG, em violação da garantia a constitucional de ne bis in idem, consagrada no artigo 29.º, n.º 5, da CRP.
60. Pelo exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser o despacho recorrido revogado e substituído por outra decisão que não indicie o Arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física e de um crime de roubo, com fundamento nos mesmos factos e relativamente à mesma ofendida.
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A Digna Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância propugnou porque o recurso fosse julgado improcedente e os despachos recorridos mantidos, apresentando as seguintes conclusões:
I. Deve ser feito convite ao aperfeiçoamento atentas as conclusões prolixas do recurso interposto;
II. A 21 de março de 2024, em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido foi aplicada ao arguido AA a medida de coação de prisão preventiva;
III. Face aos factos que lhes eram imputados, e, bem assim, a gravidade dos ilícitos em causa, foi determinado que o arguido aguardasse os ulteriores termos do processo sujeitos à medida de coação de prisão preventiva, por só esta poder ao um forte perigo de continuação da atividade criminosa, e de perturbação do decurso do inquérito e perigo para a conservação da prova;
IV. O arguido encontra-se indiciado da prática, de um crime de homicídio, na forma tentada; três crimes de ameaça agravada; dois crimes de ofensa à integridade física; e um crime de roubo;
V. O despacho recorrido não padece de qualquer vicio de nulidade ou irregularidade nos termos invocados pelo arguido, com exceção de uma situação que desde logo o MP admitiu razão ao arguido, decisão igualmente secundada pelo Mmo. Juiz;
VI. Não resulta dos autos de reconhecimento de pessoas realizados, que tenha havido a preterição dos requisitos essenciais nos reconhecimentos dos arguidos;
VII. Toda a factualidade descrita nos MDE e que integram estes crimes está descrita no campo d) onde é solicitado ao estado emissor uma breve descrição da factualidade. Dessa factualidade constam as ameaças efetuadas e os crimes de ofensas também que lhe são imputados, descritos com os factos e respetivas vítimas, pelo que inexiste qualquer invalidade do MDE emitido, o qual se encontra escudado inclusivamente com o cumprimento da protecional jurisdicional efetiva com validação pela Mma. Juiz;
VIII. Sobre a violação do principio da especialidade, o Ministério Público logo reconheceu que os factos referentes à detenção das munições proibidas efetivamente violavam o princípio da especialidade e que, perante tal circunstância iria solicitar o alargamento dos crimes que devam constar dos Mandados de Detenção Europeus, pronunciando-se o juiz no mesmo sentido pelo que será destituído de fundamento o recurso nesta matéria na medida em que a decisão foi favorável ao arguido, carecendo assim de legitimidade para apresentação do recurso;
IX. O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial, sobre a interpretação dos Tratados e sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União;
X. Do citado Artº 267º do TJUE, resulta que o reenvio prejudicial apenas tem em vista levar ao TJUE qualquer questão relativa à interpretação ou à apreciação da realidade de um ato de direito comunitário;
XI. O reenvio prejudicial é um instrumento jurídico criado pelos Tratados em face da especificidade da EU (União de Estados dotada de personalidade jurídica) e com vista á aplicação uniforme do direito comunitário, pelos tribunais nacionais, pois são questões colocadas pelos juízes nacionais, uma vez que aquela depende de uma interpretação uniforme das mesmas regras, e constitui, ao mesmo tempo, fundamento e consequência da aplicabilidade direta (efeito direto) e da primazia das normas comunitárias;
XII. Ora, se quer o MP quer o Mmo. Juiz deram razão ao arguido naquela parcela da factualidade e se o reenvio prejudicial é o processo pelo qual os juízes nacionais dos Estados-Membros podem recorrer ao TJUE para o interrogar sobre a interpretação ou a validade do direito europeu num processo em curso, então parece claro que o juiz nacional deve rejeitar o pedido de reenvio prejudicial se já foi proferida decisão concordante com a posição do arguido;
XIII. A busca efetuada ao veículo automóvel de matrícula AL-..-RB, não inferna de qualquer vício, por ter sido determinada por autoridade policial competente, atento o disposto nas alíneas b) e c) do n.º1, do artigo 9.º, com referencia à alínea i) do n.º1, do artigo 8.º, ambos da LOPJ (Decreto-Lei 137/2019, de 13 de setembro) e artigo 174.º e seguintes do Código de Processo Penal;
XIV. A apreensão não foi validade pela autoridade judiciária competente, no prazo a que alude o artigo 178.º, n.º 6 do Código de Processo Penal, o que configura uma mera irregularidade, passível de ser sanada;
XV. Já no que respeita ao DVD a sua junção aos autos não resultou de uma qualquer apreensão efetuado pelo OPC, como resulta da análise do aditamento folhas 37 e do termo de juntada de folhas 38 do processo apenso, mas antes da entrega pelo ofendido FF na Esquadra de Telheiras, pelo que esta entrega não tinha de ser validada pela autoridade judiciária competente;
XVI. Mostrarem-se inalterados os pressupostos de facto e de direito que estiveram subjacentes à aplicação ao arguido supra referido, da medida de coação de prisão preventiva;
XVII. Qualquer outra medida de coação não salvaguarda de forma eficaz os perigos que se fazem sentir no caso em concreto;
XVIII. Pelo exposto, o arguido, ora recorrente deverá aguardar os ulteriores termos do processo sujeito a prisão preventiva, em virtude de se manterem inalterados os pressupostos que a determinaram.
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Nesta Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta apresentou Parecer em que afirmou concordar com a resposta ao recurso emitida pelo Ministério Público junto da 1ª instância.
O recorrente apresentou resposta às contra-alegações proferidas pelo Ministério Público junto da primeira instância, o que, como é sabido, lhe está vedado e, assim, tem que ter-se tal resposta como não escrita.
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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Fundamentação
No início do primeiro interrogatório judicial do recorrente, foi proferido Despacho Judicial a decidir questões colocadas pelo recorrente nos seguintes termos:
Relativamente às questões suscitadas neste presente 1.º interrogatório judicial de arguido detido e apreciando as mesmas pela ordem por que foram arguidas, profere-se a seguinte decisão:
1- Resulta da análise dos autos de reconhecimento de pessoas que integram folhas 447 a 449 e de folhas 450 a 452, que tanto o ofendido FF, como a ofendida GG reconheceram de forma segura o ora arguido como tendo sido a pessoa que na data dos factos conduzia o carro que os perseguiu, espancou o ofendido FF, tendo ainda a ofendida referido ter sido este indivíduo que lhe tirou os telemóveis.
Em ambos os autos de reconhecimento tanto o ofendido FF como a ofendida GG começaram por descrever a pessoa a identificar “tem aparência africana, com cerca de 30 anos, aparentando cerca de 1,80 cm de altura, com barba grande, do queixo ao pescoço, careca e alargadores em pelo menos uma orelha” (auto de reconhecimento efetuado pelo ofendido FF) e “tem aparência africana, com cerca de 35 anos, de barba farfalhuda, com brincos nas orelhas” (auto de reconhecimento efetuado pela ofendida GG).
Tendo-se passado à fase do reconhecimento físico, ambos os ofendidos referiram reconhecer, para além de toda a dúvida, o ora arguido AA, como tratando-se do condutor do carro, em a que momento anterior já haviam feito referência, resultando de qualquer um dos autos de reconhecimento de pessoas que tais diligências foram efetuadas em escrupulosa observância do disposto no artigo 147.º, n.º2 do Código de Processo Penal, tendo sido chamadas duas pessoas que apresentavam as maiores semelhanças possíveis com a pessoa a identificar, e que se prestaram a participar no ato.
Importa salientar que a semelhança dos indivíduos sujeitos ao ato de identificação não é um requisito essencial da validade do ato (o que, aliás, conduziria pura e simplesmente à inviabilização prática de todo e qualquer reconhecimento), pois o que se exige é que as pessoas (duas, pelo menos) que se chamam ao ato apresentem as maiores semelhanças possíveis, inclusive no vestuário, com a pessoa a identificar, resultando evidente que nem os Tribunais, nem as Polícias, dispõem de um catálogo de indivíduos disponíveis, com a mesma altura, corpulência e exata cor de pele de cada um dos arguidos que, no âmbito de inúmeros processos, de norte a sul do país, são sujeitos à diligência de reconhecimento de pessoas.
Concluindo, consigna-se que os atos processuais de reconhecimento de pessoas, a que se referem os autos de reconhecimento de folhas 447 a 449, e de folhas 450 a 452, não padecem da apontada irregularidade processual, nem de qualquer outro vício, tendo sido efetuados com escrupulosa observância das normas atinentes à sua especifica função probatória.
Notifique.
2- No que respeita à apontada violação do princípio da especialidade, consideramos que pelo confronto dos factos que se encontram inseridos no Mandado de Detenção Europeu com aqueles que se encontram enunciados no requerimento do Ministério Público de apresentação de arguido, excetuando a matéria a que é feita referência nos artigos 19.º, 20.º e 21.º do requerimento do Ministério Público de apresentação de arguido, existe uma identidade de factos entre o conteúdo dos factos que se encontram inseridos no mandado, e aqueles que constam do requerimento do Ministério Público de apresentação de arguido, porquanto estes factos se referem ao mesmo episódio e aos mesmos crimes, cuja a prática pelo arguido o MP entende encontrar-se fortemente indiciada, pelo que a ofensa ao princípio da especialidade, previsto no artigo 7º da Lei n.º 65/23, de 23 de agosto se limita à factualidade enunciada nos referidos artigos 19º, 20º e 21º, que, por este motivo, não irão ser tomados em consideração na presente diligência de 1.º interrogatório judicial de arguido detido, na medida em que a factualidade enunciada nos mencionados artigos 19º, 20º e 21º, respeita à alegada prática de um crime cometido pelo arguido AA em momento anterior à sua saída de território português, e diverso dos constantes do Mandado de Detenção Internacional.
Notifique.
3- No que respeita à busca efetuada ao veículo automóvel de matrícula AL-..-RB, entendemos que a sua realização não enferma de qualquer vício, por ter sido determinada pela autoridade policial competente, que, para tanto, tem competência, atento o disposto nas alíneas b) e c) do nº 1, do artigo 9º, com referência à alínea i) do nº 1, do artigo 8º, ambos da LOPJ (Decreto-Lei 137/2019, de 13 de setembro) e artigo 174º e seguintes do Código de Processo Penal, sendo certo que esta apreensão não foi validada pela autoridade judiciária competente, no prazo a que alude o artigo 178º, nº 6 do Código de Processo Penal, o que configura uma irregularidade, irregularidade esta que foi tempestivamente arguida.
Já no que respeita ao DVD a sua junção aos autos não resultou de uma qualquer apreensão efetuado pelo OPC, como resulta da análise do aditamento folhas 37 e do termo de juntada de folhas 38 do processo apenso, mas antes da entrega pelo ofendido FF na Esquadra de Telheiras, pelo que esta entrega não tinha de ser validada pela autoridade judiciária competente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 178º, nº 6 do Código de Processo Penal, pelo que neste ponto não existe qualquer irregularidade, nem qualquer outro vício o que se considera.
Notifique.
Findo o interrogatório, foi proferido pelo Mmo. Juiz o seguinte despacho:
A detenção do arguido foi legal, porquanto efetuada fora de flagrante delito, ao abrigo de mandados de detenção emitidos pelo Ministério Público, nos termos dos artigos 257º, nº 1, al. a) e b) e 258º ambos do CPP.
Foi respeitado o prazo de apresentação a que se referem os artigos 141º, nº 1 e 254º, nº 1, al. a) do mesmo diploma.
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Tendo em conta de entre a globalidade dos elementos probatórios elencados na promoção do Ministério Público de apresentação de arguido, aqueles a que abaixo se irá fazer referência de forma expressa, e apenas esses, considero encontrar-se fortemente indiciada a seguinte factualidade:
- Factos constantes dos artigos 1.º a 18.º da promoção do MP de apresentação de arguido.
- Factos constantes nos artigos 22.º e 23.º Que ao dirigir as expressões que dirigiu aos três ofendidos, o arguido bem sabia que as mesmas eram idóneas a causar medo, como causaram.
- Factos constantes nos artigos 25.º a 42.º do requerimento.
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Mais ficou indiciado, relativamente à condição pessoal do arguido, o seguinte:
O arguido possui como habilitações literárias o 9.º ano de escolaridade;
Exerce a atividade profissional de empresário, explorando uma empresa da ..., na qual emprega dois empregados, auferindo no âmbito desta atividade um rendimento variável, mas que se computa no rendimento médio mensal de cerca de 2.000,00 a 2.500,00 euros.
O arguido tem dois filhos, com as idades de 14 e 13 anos, de relações diferentes, que vivem com as mães, e para cujo o sustento mensal de cada um o arguido contribui com uma quantia mensal de cerca de 150,00 a 200,00 euros.
O arguido vive com a sua esposa, de nome II, com quem contraiu casamento no mês de janeiro de 2024.
O casal vive em casa arrendada pagando a quantia mensal de 50,00 euros de renda de casa.
O arguido tem condenações averbadas no respetivo Certificado de Registo Criminal pela prática de um total de dezasseis crimes, cuja a prática remonta ao período compreendido entre o mês de fevereiro de 2005 e o mês de novembro de 2021, a saber, três crimes de furto qualificado, um dos quais se quedou na forma tentada, cinco crimes de roubo, três crimes de condução sem habilitação legal, dois crimes de invasão da área do espetáculo desportivo, dois crimes de ameaça agravada e um crime de rapto, já tendo sido condenado, em mais de uma ocasião, em pena de prisão efetiva, que cumpriu.
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Na presente diligência de 1.º interrogatório judicial de arguido detido, o arguido remeteu-se ao silêncio, relativamente aos factos do requerimento do Ministério Público, direito que processualmente lhe é conferido, de maneira que não contribuiu, em nada, para o esclarecimento dos factos.
O Tribunal sedimentou a sua convicção indiciária no que respeita à factualidade a que é feita menção nos artigos 1.º a 15.º e 18.º do requerimento do Ministério Público na análise crítica conjugada dos depoimentos testemunhais dos ofendidos DD, HH e EE, que se apresentaram no essencial coincidentes, o que abona claramente no sentido da respetiva credibilidade, importando salientar que estes depoimentos testemunhais encontram suporte prova no auto de denúncia de folhas 75 a 78, nas informações clínicas de folhas 167 a 170 e de folhas 171 a 173, no relatório pericial de avaliação de dano corporal de folhas 183 e 184, e no depoimento da testemunha II, atual esposa do arguido, cujo o auto de inquirição integra folhas 261 a 263, que referiu que o ora arguido AA circula pontualmente com o veículo automóvel de matrícula AL-..-RB.
No que respeita à factualidade a que é feita menção nos artigos 26.º a 36.º e 38.º, o Tribunal sedimentou a sua convicção indiciária nos depoimentos das testemunhas FF e GG, tendo esta última confirmada a factualidade a que é feita menção no ponto 37, apresentando-se tais depoimentos no essencial coincidentes, o que abona claramente no sentido da respetiva credibilidade, sendo certo que na diligência de auto reconhecimento pessoal ambas as testemunhas reconheceram fora de qualquer dúvida o arguido como tendo sido autor dos factos que relataram, e sendo certo que, como acima já se referiu os autos de reconhecimento em causa não enfermam da irregularidade apontada, nem de qualquer outro vício, tendo as referidas diligências de reconhecimento sido efetuadas em escrupulosa observância do disposto no artigo 147.º, n.º 1 e 2 do CPP, encontrando, ainda, os depoimentos das duas testemunhas suporte de prova no auto de denúncia de folhas 6 a 8, no aditamento de folhas 37, no aditamento de folhas 41 e no relatório pericial de avaliação de dano corporal do ofendido FF de folhas 77 a 79, estes elementos constantes do apenso com o NUIPC: 788/23.0PTLSB, ao contrário dos autos de reconhecimento pessoal que integram folhas 447 a 449 e folhas 450 a 453 dos autos principais.
Que o arguido agiu de forma livre e consciente corresponde ao normal do agir humano, sendo certo que tratando-se do arguido de uma pessoa adulta, que contava a idade de 35 anos à data da prática dos factos, o mesmo não podia deixar de ter conhecimento que os seus comportamentos eram proibidos por lei, o que, ainda assim, não o impediu de atuar nos exatos termos que resultaram indiciados, pelo que o Tribunal considerou encontrar-se fortemente indiciada toda a factualidade atinente ao elemento subjetivo de cada um dos tipos legais a que é feita menção no requerimento do Ministério Público, bem como o arguido atuo de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que os aludidos comportamentos eram proibidos por lei e configuram a prática de um crime.
No que respeita às condições pessoais do arguido consideradas como indiciadas, atendeu-se às declarações do próprio e no que respeita aos antecedentes criminais ao Certificado de Registo Criminal que integra folhas 47 a 68 do apenso, com data de emissão de 5/06/2023.
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Atenta a factualidade considerada como fortemente indiciada a que acima se fez menção, entendemos encontra-se fortemente indiciada a prática pelo arguido dos seguintes crimes:
- um crime de homicídio, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131º, 22º, nº 1 e 2, alíneas a) e b), 23º e 73º, todos do Código Penal, agravado pelo artigo 86º, nº 3 e 4 do Regime Jurídico das Armas e Munições (Lei n.º 5/2006, de ...), a que corresponde a moldura abstrata de dois anos, um mês e 18 dias a 16 anos de prisão;
- três crimes de ameaça agravada, p.p. pelos artigos 153º, nº 1 e 155º, nº 1, al. a), em que foram sujeitos passivos os ofendidos DD, HH e EE, correspondendo a cada um destes crimes a moldura abstrata de pena de prisão até dois anos a pena de multa;
- dois crimes de ofensa à integridade física, p.p. pelo artigo 143º, nº 1, em que foram sujeitos passivos os ofendidos FF e GG, correspondendo a cada um destes crimes a moldura abstrata de pena de prisão até três anos ou multa;
- um crime de roubo, p.p. pelo artigo 210º, em que foi sujeito passivo a ofendida GG, a que corresponde a moldura abstrata de um a oito anos de prisão, todos estes artigos do Código Penal, com exceção do artigo 86º a que acima se fez menção.
Na realidade, da matéria de facto considerada como fortemente indiciada resulta que, logo após ter afirmado, dirigindo-se ao ofendido DD, que se encontrava a uma distância de 7 a 8 metros, “eu vou-te matar”, o arguido efetuou dois disparos na direção deste, munido de uma arma de fogo, sendo certo que o ofendido num ato instintivo e em movimento rápido logrou desviar-se, apenas não tendo o arguido concretizado os seus intentos de alvejar o ofendido por motivos alheios à sua vontade, sendo certo que atenta a natureza do instrumento empregue (arma de fogo), e a distância a que o ofendido se encontrava do arguido, a atuação do arguido afigura ser, a título indiciário, potencialmente letal, sendo certo que quando, logo a seguir, o arguido apontou a arma à cabeça do ofendido DD, e, de seguida às ofendidas HH e EE, afirmando em tom agressivo “eu mato-vos”, o mesmo incorreu na prática de três crimes de ameaça agravada por serem três as pessoas dos ofendidos.
Encontrando-se fortemente indiciada que o arguido, enquanto o seu acompanhante manietava o ofendido FF, lhe desferiu um soco na face esquerda, provocando a fratura de um dente, e que na mesma ocasião lhe desferiu um murro que atingiu a ofendida GG no lábio e no olho esquerdo, após o que contra a vontade desta, lhe retirou dois aparelhos de telemóvel, entende o Tribunal encontra-se fortemente indiciada a prática pelo arguido dos dois crimes de ofensa à integridade física e de um crime de roubo a que é feita menção no requerimento do Ministério Público.
No caso vertente, atentas as circunstâncias em que o arguido cometeu os ilícitos criminais indiciados, concatenado com o seu passado criminal é entendimento do Tribunal fazer-se sentir, em concreto, um fundado perigo de fuga, um fundado perigo de perturbação do inquérito e da instrução do processo, nomeadamente perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova e um fundado perigo de continuação da atividade criminosa.
Perigo de fuga porque o arguido revela facilidade de fazer a sua vida no estrangeiro, não se podendo olvidar que quando foi inquirida na qualidade de testemunha, II, atual esposa do arguido, referiu que o mesmo tinha viajado para o ... à cerca de duas (presume-se duas semanas), tendo acrescentado desconhecer o motivo da viagem e a data a que o arguido regressava ao território nacional, não se podendo olvidar que o arguido foi detido na sequência da emissão de Mandado de Detenção Internacional, na ..., o que denota que o mesmo tem facilidade e disponibilidade de circular tanto no espaço europeu, como para o continente africano, pelo que sabendo o arguido encontrar-se indiciado da prática de crimes desta gravidade, e da forte probabilidade de, fazendo um juízo de prognose, vir a ser condenado, em audiência de julgamento, em pena de prisão efetiva, sentir-se ia seguramente tentado a fugir de Portugal, como forma de se eximir à ação da justiça, caso lhe viessem a ser aplicadas medidas de coação não privativas da liberdade.
Perigo de perturbação do decurso do inquérito evidenciado pela gravidade dos crimes indiciados, da personalidade violenta e agressiva evidenciada pelo arguido, o que aliás se encontra bem espelhado no depoimento testemunhal da ofendida HH que inquirida na qualidade de testemunha ( auto de inquirição de folhas 56 a 59), referiu que depois dos factos o arguido já a ameaçou, afirmando que tinha de retirar a queixa, que lhe ia “dar azar”, tendo acrescentado que os moradores do bairro temem a presença de AA e do seu grupo, por andarem constantemente armados, agredirem os moradores, vandalizarem as casas, e entrando em confrontos com a Polícia quando esta se dirige ao bairro, tendo referido que os moradores muitas vezes não relatam o que realmente sabem por temerem represálias.
Perigo de continuação da atividade criminosa com a inerente grave perturbação da tranquilidade pública, atento o facto do arguido ter reincidido na prática de novos crimes, mesmo depois de ter sido condenado e de ter cumprido penas de prisão efetiva, bem como em face da personalidade do arguido espelhada nos factos, não dando este mostras de pretender cessar o percurso criminoso encetado.
Pelo que consideramos que a única medida de coação que se mostra adequada e proporcional aos factos em causa e à personalidade do arguido, bem como à pena de prisão efetiva que previsivelmente lhe virá a ser aplicada em julgamento, fazendo um juízo de prognose, é a medida de coação de prisão preventiva, mostrando-se inadequadas todas as outras, o que se determina em conformidade com os princípios constantes dos artigos 191º, 192º, 193º, 195º, 196º, 202º, nº 1, al. a), e 204º, nº 1, al. a), b) e c), todos do Código de Processo Penal.
Atenta à conduta demonstrada pelo arguido, a medida de coação de obrigação de permanência na habitação, ainda que com recurso a meios de vigilância eletrónica, não se mostra adequada ao caso vertente, por o perigo de continuação da atividade criminosa, apenas ficar afastado com a medida de coação de prisão preventiva, uma vez que o arguido revela uma personalidade impulsiva e violenta, pelo que, ainda que sujeito a tal medida de coação, entendemos que a sua aplicação não seria impeditiva do arguido se ausentar da residência e cometer novos crimes, designadamente de exercer represálias na pessoa de cada um dos cinco ofendidos, sendo certo que pelo menos relativamente aos ofendidos DD, HH e EE, resulta da prova produzida que o arguido e cada um destes ofendidos já se conhecem há mais de 10 anos, tendo conhecimento das respetivas residências, pelo que o arguido querendo, saberia seguramente onde se dirigir para tirar desforço dos ofendidos, importando, ainda, salientar, que a aplicação da medida de coação de obrigação de permanência na habitação, ainda que cumulada com a medida de coação de obrigação de não se ausentar para o estrangeiro, com a inerente entrega do passaporte à guarda do Tribunal e a inerente comunicação às autoridades competentes, não teria a virtualidade de impedir que o arguido removesse os meios de vigilância eletrónica e encetasse fuga do país.
A factualidade aludida no despacho, e que consta do despacho de apresentação do MP, é a seguinte:
NUIPC 1175/23.6S3LSB – autos principais
1.º Na noite de 19 para 20 de abril de 2023, o ofendido DD pernoitou na residência de HH, sua namorada, na ..., sendo que de madrugada ouviu barulhos de rebentamento de petardos junto à residência.
2.º Ao ouvir os barulhos, o ofendido dirigiu-se ao exterior da residência, juntamente com HH e verificaram que alguns dos moradores se encontravam a rebentar petardos, pedindo-lhes para pararem com o barulho, pois tinha de descansar para ir trabalhar no dia seguinte
3.º No dia 20 de abril de 2023, em horário não concretamente apurado, mas entre as 22h10 e as 22h30, o ofendido DD circulava apeado de regresso a casa de HH, no cruzamento da ... com a ..., no ..., em ...
4.º Nessas circunstâncias o arguido AA dirigiu-se junto do ofendido e, sem que nada o fizesse prever, atirou-lhe um petardo que rebentou junto aos pés do ofendido.
5.º De seguida, o arguido AA dirigiu-se ao ofendido DD e desferiu-lhe um soco um soco no olho esquerdo, o qual para se defender também lhe desferiu um soco.
6.º No momento em que estava a ser agredido, alguns moradores não identificados também se envolveram nas agressões, uns para auxiliar o arguido AA e desferirem socos no ofendido, outros para tentarem por cobro às agressões.
7.º Nesse momento, as ofendidas HH e EE ouviram o barulho das agressões e dirigiram-se em auxílio do ofendido DD que se encontrava com ferimentos.
8.º Em ato continuo, o arguido AA abandonou o local e dirigiu-se à sua residência, regressando cerca de três minutos depois, ao volante da viatura veículo Mercedes Benz, matrícula AL-..-RB
9.º O arguido saiu da viatura e dirigiu-se ao ofendido empunhando uma arma de fogo na direção do ofendido DD.
10.º Quando se encontrava a cerca de sete ou oito metros, o arguido afirmou para o ofendido “EU VOU-TE MATAR” e, em ato contínuo, efetuou dois disparos em direção ao ofendido, que estava junto a HH e a EE (esta ultima grávida de 37 semanas), que num ato instintivo e num movimento rápido se desviou, o que por mero acaso não atingiu nenhum dos ofendidos.
11.º Depois dos disparos, o arguido continuou a andar na direção do ofendido e apontou-lhe a arma à cabeça, assim como à ofendida HH e à ofendida EE, voltando a afirmar em tom agressivo “EU MATO-VOS”.
12.º Um indivíduo, não concretamente identificado que estava junto ao arguido AA, tirou-lhe a arma da mão, momento em que os ofendidos com receio pela sua vida e integridade física, apressadamente entraram no veículo de HH, um Renault Clio, matrícula ... e tentaram colocar-se em fuga.
13.º No entanto, com a pressa e o nervosismo embateram contra o veículo conduzido pelo arguido AA, um Mercedes Benz, matrícula AL-..-RB.
14.º O arguido AA abandonou o local para regressar instantes depois no seu veículo, novamente com a arma na mão.
15.º Os ofendidos, com receio, não saíram do veículo Renault Clio, matrícula ... e dirigiram-se para a Esquadra da PSP do ....
16.º As agressões do arguido AA ao ofendido DD, provocaram fraturas dos ossos próprios do nariz, com deformidade e afundamento da pirâmide nasal, fractura blow-out da órbitra esquerda, com afundamento medial da lâmina papirácea, fratura milimetricamente desalinhada do pavimento orbitário esquerdo, com envolvimento do canal infraorbitário, diagnosticadas no ..., onde o ofendido ocorreu para receber tratamentos hospitalares.
17.º As lesões perpetradas pelo arguido no ofendido determinaram pelo menos 30 dias para a consolidação das lesões com afetação da capacidade de trabalho geral por 30 dias e com afetação da capacidade de trabalho profissional por 30 dias.
18.º Pela situação causada pelo arguido AA, a ofendida EE, grávida de 37 semanas, sentiu-se indisposta, com perda de sangue por via vaginal, pelo que foi encaminhada para o ... para ser observada.
19.º No interior do veículo com a matrícula AL-..-RB (apreendido na noite dos factos por ter sido utilizado pelo arguido) foi localizada e apreendida uma (1) bolsa azul contendo quinze (15) munições de calibre 9 mm, e bem assim documentos do arguido – cartão do cidadão e carta de condução.
20.º O arguido não detém qualquer licença que lhe permita deter aquelas munições, tal como não detém qualquer licença para uso ou porte de arma.
21.º O arguido sabia que não tinha autorização para deter as munições, nem tão pouco a arma que utilizou contra os ofendidos, o que fez e pretendeu, não se inibindo de atuar.
22.º Ao atuar da forma descrita, o arguido AA pretendeu molestar fisicamente o ofendido, o que logrou conseguir, provocando-lhe as lesões acima descritas.
23.º Mais atuou o arguido, ao disparar a arma de fogo na direção do ofendido, com a intenção de lhe retirar a vida, bem sabendo que o objeto utilizado era idóneo a provocar tal resultado, e não o logrando atingir apenas porque o ofendido atempadamente, e numa reação instintiva, se desviou.
24.º Ao dirigir as expressões que dirigiu às duas ofendidas, o arguido bem sabia que as mesmas eram idóneas a causar o medo, como causaram.
25.º Mais sabia o arguido que uma das ofendidas se encontrava em situação de especial vulnerabilidade face ao estado avançado de gravidez, o que ainda assim não o inibiu de atuar.
APENSO 788/23.0PTLSB
26.º No dia 21 de maio de 2023, pelas 02h40, quando o ofendido FF circulava no seu veículo na ..., em ... acompanhado por GG, apercebeu-se de outra viatura circulava atrás da sua de forma persistente
27.º Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar e ao volante do veículo SEAT LEON, com a matrícula FL-..-.., circulava o arguido AA juntamente com outro indivíduo, e imediatamente atrás da viatura do ofendido.
28.º Face à referida atuação, o ofendido decidiu parar a sua viatura.
29.º Sendo que o arguido AA fez o mesmo, e igualmente parou a sua viatura atrás do ofendido.
30.º Ao aperceber-se, o ofendido dirigiu-se aos dois ocupantes e questionou-os porque o estavam a seguir.
31.º Nesse momento desviou-se para ver e apontar a matrícula do veículo, altura em que os dois ocupantes saíram da viatura e se dirigiram ao ofendido.
32.º Em ato continuo, o suspeito não concretamente identificado, que estava no lugar do passageiro, agarrou o ofendido pelos braços, e o arguido AA, que anteriormente ocupava o lugar do condutor, desferiu-lhe um soco na face esquerda, provocando-lhe a fratura de um dente e a queda no chão.
33.º Com o ofendido no chão, quer o arguido AA quer o suspeito desferiram-lhe vários pontapés e murros, que o impediram de se levantar e fugir.
34.º De seguida, ambos os denunciados se dirigiram ao veículo do ofendido, onde se encontrava a ofendida GG que, entretanto, filmou com o seu telemóvel o sucedido.
35.º Quando o arguido AA chegou junto ao veículo, abriu a porta e disse à ofendida GG: “ESTÁS A FILMAR NÃO ESTÁS?” ao mesmo tempo que lhe retirou à força o telemóvel Iphone 12 da mão e lhe desferiu um murro no lábio e um murro no olho esquerdo.
36.º Em ato continuo, o arguido apanhou outro telemóvel Iphone 12, pertencente ao ofendido, e ambos os denunciados se colocaram em fuga do local.
37.º Os dois telemóveis retirados a GG, estão avaliados em €1.100,00 (mil e cem euros), sendo o Iphone 12 com o cartão da ..., com o valor de €400,00 e o Iphone 12 com o cartão WTF, com o valor de €700,00.
38.º O ofendido necessitou receber tratamentos médicos no ..., pelas agressões, que resultaram num dente partido, escoriações e hematomas na face, escoriações e hematomas em ambos os braços, pernas e pescoço.
39.º As lesões perpetradas pelo arguido no ofendido determinaram 15 dias de doença, sendo 8 com afetação da capacidade de trabalho geral e profissional pela necessidade de suspensão braquial (imobilização do braço).
40.º Ao atuar da forma descrita, o arguido agiu em conjugação de esforços e vontades com o outro suspeito não identificado, e com a intenção de molestar fisicamente o ofendido, o que logrou conseguir.
41.º De igual forma atuaram com a intenção de subtraírem e se apropriarem dos dois telemóveis pertencentes aos ofendidos, não se inibindo de utilizar a violência para a concretização dos seus intentos, e bem sabendo que atuavam contra a vontade do legítimo proprietário.
42.º Em todas as suas condutas, o arguido AA atuou livre, voluntária e conscientemente.
* * *
Apreciando…
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
O recorrente alega:
- nulidades do Mandado de Detenção Europeu e violação do princípio da especialidade;
- invalidades da prova;
- erro na integração jurídica de parte dos factos indiciados.
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Do Mandado de Detenção Europeu
Alega o recorrente que o Mandado de Detenção Europeu emitido no âmbito dos autos e na sequência do qual veio a ser detido, enferma de erro na indicação da natureza e qualificação jurídica das infrações em causa.
Diz que tal Mandado indica que as infracções em causa correspondem a «Homicídio voluntário, ofensas corporais graves» e «Roubo organizado ou à mão armada», o que não é verdade e vicia o procedimento de execução e entrega do visado (por assentar em pressupostos legais incorrectos) com relevância na apreciação de motivos obrigatórios ou facultativos de não execução do Mandado de Detenção. Defende, assim, que o Mandado de Detenção Europeu emitido nos autos é nulo, por violação do disposto nos termos conjugados dos arts 2º, nºs 2 e 4, 4º, nº 1, e 8º, nº 1, al. d), da Decisão-Quadro 2002/584/JAI, sendo, em consequência, ilegal a detenção do Arguido ao abrigo do referido Mandado de Detenção Europeu, devendo, em conformidade, ser o mesmo imediatamente restituído à liberdade e, caso assim não se entenda, porque a questão suscitada concerne à interpretação de disposições da Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados-Membros, requer a suspensão da instância e a submissão ao Tribunal de Justiça da União Europeia, nos termos do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, da seguinte questão prejudicial: o disposto nos termos conjugados dos artigos 2.º, n.ºs 2 e 4, 4.º, n.º 1, e 8.º, n.º 1, al. d), da Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados-Membro, devem ser interpretados no sentido de que se opõe à privação da liberdade de uma pessoa, quando se verifique, posteriormente à sua entrega pelo Estado-Membro de execução, que o Mandado de Detenção Europeu foi incorretamente preenchido e emitido pelo Estado-Membro de emissão, por ter sido erradamente indicada a natureza e qualificação jurídica de infrações previstas no artigo 2.º, n.º 2, da referida Decisão-Quadro?
Pretende o recorrente que este Tribunal da Relação se pronuncie sobre matéria que não foi submetida à apreciação na 1ª instância (quanto ao preenchimento do Mandado de Detenção Europeu). Porém, nos termos do nº 1 do art. 399º do Cód. Proc. Penal, um recurso tem que incindir sobre acórdãos, sentenças ou despachos, não sendo possível requerer, em sede recursória, que o Tribunal da Relação se pronuncie em primeira mão sobre qualquer questão (cfr. o acórdão do STJ de 05.06.2024, processo n.º 29547/22.6T8LSB.L1.S1, que lembra que “Os recursos, enquanto meios de impugnação das decisões judiciais, apenas se destinam a reapreciar decisões tomadas pelo tribunal a quo e não a decidir questões novas que perante eles não foram equacionadas.”). Tanto basta para não ser admissível pronúncia, por este Tribunal, sobre o alegado no presente segmento, impondo-se a rejeição do recurso nesta parte.
Mas o recorrente alega ainda violação do princípio da Especialidade consagrado no art. 7º, nº 1, da Lei 65/2003, de 23 de Agosto, que estabelece o Regime Jurídico do Mandado de Detenção Europeu; e no art. 27º, nº 2, da Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de Junho de 2002. Diz que o despacho recorrido considerou indiciados factos novos face à matéria fatual constante do Mandado de Detenção Europeu (os pontos 17.º, 22.º, 23.º, 24.º, 25.º, 39.º, 40.º, 41.º e 42.º, referentes a período de doença e ao elemento subjectivo), assim como foram imputados novos crimes, de natureza e qualificação jurídica distinta das infrações indicadas no Mandado de Detenção Europeu (foram aditados três crimes de ameaça agravada, p. p. pelos arts. 153º, nº 1 e 155º, nº 1, al. a) do Cód. Penal, em que foram sujeitos passivos os ofendidos DD, HH e EE; e dois crimes de ofensa à integridade física, p. p. pelo art. 143º, nº 1 do Cód. Penal, em que foram sujeitos passivos os ofendidos FF e GG).
Caso assim não se entenda, e como considera que a questão suscitada concerne à interpretação de disposições da Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados-Membros, requer que seja determinada a suspensão da instância e a submissão ao Tribunal de Justiça da União Europeia, nos termos do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, das seguintes questões prejudiciais:
> A privação da liberdade de uma pessoa entregue ao abrigo de um Mandado de Detenção Europeu com base em factos não constantes do Mandado de Detenção Europeu emitido pelo Estado-Membro de emissão, referentes a elementos constitutivos do tipo subjetivo de ilícito, suscetíveis de significar a transformação de uma conduta não punível numa conduta punível, respeita a uma «infração diferente» daquela por que a pessoa foi entregue, na aceção do artigo 27.º , n.º 2, da Decisão-quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de Junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados-Membros, que exija a aplicação do procedimento de consentimento referido no artigo 27.º, n.ºs 3, alínea g), e 4, da mesma decisão-quadro?
> A privação da liberdade de uma pessoa entregue ao abrigo de um Mandado de Detenção Europeu com fundamento em infrações de diversa natureza e qualificação jurídica daquelas que foram indicados no Mandado de Detenção Europeu, respeita a uma «infração diferente» daquela por que a pessoa foi entregue, na aceção do artigo 27.º, n.º 2, da Decisão-quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de Junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados-Membros, que exija a aplicação do procedimento de consentimento referido no artigo 27.º, n.ºs 3, alínea g), e 4, da mesma decisão-quadro?
O Princípio da Especialidade previsto no art. 7º da Lei 65/2003 de 23.08 (que transpõe o art. 27º da Decisão-quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13.06.2002, relativa ao Mandado de Detenção Europeu e aos processos de entrega entre os Estados-Membros) traduz-se em “limitar os factos pelos quais o extraditando será julgado, após entrega ao Estado-requerente, àqueles que motivaram a sua entrega” (Anna Zairi, Le Prinicipe de la Spécialité de l’Extradition au Regard des Droits de l’Homme, p. 30, apud José Manule Cruz Bucho e outros, Cooperação Judiciária Internacional, I, p. 40, nº 71).
O Mandado de Detenção Europeu emitido nos presentes autos contém a descrição das circunstâncias em que as infracções foram cometidas, incluindo o momento, o lugar e o grau de participação na infracção do ora recorrente – tal como impõe a alínea e) do art. 3º da Lei 65/2003 de 23.08 – e indica a natureza e qualificação jurídica das infracções, correctamente no que se refere à indiciada prática do crime de homicídio na forma tentada e do crime de roubo (cfr. a alínea d) do citado art. 3º).
A primeira questão suscitada prende-se com o facto de o despacho que aplicou a prisão preventiva ter considerado indiciados factos que não constavam do Mandado de Detenção Europeu (os pontos 17.º, 22.º, 23.º, 24.º, 25.º, 39.º, 40.º, 41.º e 42.º, referentes a período de doença e ao elemento subjectivo). Todavia, ao contrário do que alega o recorrente, os pontos 17.º, 22.º, 23.º, 24.º, 25.º, 39.º, 40.º, 41.º e 42.º indiciados, não são factos novos para os efeitos do art. 7º da Lei 65/2003 de 23.08 na medida em que não tinham que constar do Mandado de Detenção Europeu nos termos do art. 3º da mesma Lei.
O Mandado de Detenção Europeu, de acordo com as «Orientações para preencher o formulário de MDE», disponível no site oficial da «European Judicial Network» (em https://www.ejn-crimjust.europa.eu/ejn/libdocumentproperties/PT/2023) quanto aos factos deve “Dar uma explicação precisa dos factos que fundamentam o MDE: dar especial ênfase aos factos que dizem respeito à pessoa a ser entregue; descrever sempre os factos que são necessários para esse efeito (pessoa em causa, local, dia e hora, quantidade, meios, prejuízos ou danos, intenção ou finalidade, lucro, etc.); a descrição factual deve consistir apenas num curto resumo; utilizar frases curtas e simples que sejam fáceis de traduzir”.
Significa isto que os elementos subjectivos, ou outros desenvolvimentos, necessários para a perfeição de uma acusação, e que são elementos constitutivos da infracção, não têm que constar do Mandado de Detenção Europeu. Ao requerido tem que ser dado conhecimento dos factos por que é procurado, não de todos os elementos constitutivos da infracção.
Neste sentido veja-se o Sumário do Acórdão do Tribunal de Justiça (Terceira Secção) de 1 de dezembro de 2008, proferido no Processo C-388/08 PPU, disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A62008CJ0388:
“(...) 2. O artigo 27.º, n.º 2, da Decisão‑quadro 2002/584, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros, enuncia a regra da especialidade, segundo a qual uma pessoa entregue não pode ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infracção praticada antes da sua entrega diferente daquela por que foi entregue. O pedido de entrega baseia‑se nas informações que reflectem o estado das investigações no momento da emissão do mandado de detenção europeu. Por isso, é possível que, no decurso do processo, os factos considerados deixem de corresponder em todos os aspectos aos que tinham sido inicialmente descritos. Os elementos coligidos podem levar a precisar ou mesmo a modificar os elementos constitutivos da infracção que inicialmente justificaram a emissão do mandado de detenção europeu.
Os termos «sujeita a procedimento penal», «condenada» ou «privada de liberdade» que figuram no referido artigo 27.º, n.º 2, indicam que o conceito de «infracção diferente» daquela por que a pessoa foi entregue deve ser apreciado tendo em conta as diferentes fases do processo e à luz de cada acto processual susceptível de modificar a qualificação jurídica da infracção. A fim de apreciar, para efeitos da exigência do consentimento, prevista no artigo 27.º, n.º 3, alínea g), desta decisão‑quadro, se um acto processual conduz a uma «infracção diferente» da que consta do mandado de detenção europeu, deve comparar‑se a descrição da infracção mencionada no mandado de detenção europeu com a que figura no acto processual posterior. Exigir o consentimento do Estado‑Membro de execução para qualquer modificação da descrição dos factos ultrapassaria as implicações da regra da especialidade e colocaria em risco o objectivo prosseguido, que consiste em acelerar e em simplificar a cooperação judiciária entre os Estados‑Membros pretendida pela decisão‑quadro.
Para determinar se a infracção em causa não é uma «infracção diferente» daquela por que a pessoa foi entregue, na acepção do artigo 27.º, n.º 2, da Decisão‑quadro 2002/584, que exija a aplicação do procedimento de consentimento referido no artigo 27.º, n. os 3, alínea g), e 4, da mesma decisão‑quadro, há que verificar se os elementos constitutivos da infracção, segundo a descrição legal que é feita desta última no Estado‑Membro de emissão, são aqueles em virtude dos quais a pessoa foi entregue e se há uma correspondência suficiente entre os dados que figuram no mandado de detenção e os mencionados no acto processual posterior. São admitidas modificações nas circunstâncias de tempo e de lugar, desde que resultem de elementos coligidos no decurso do processo que corre no Estado‑Membro de emissão relativamente aos comportamentos descritos no mandado de detenção, não alterem a natureza da infracção e não dêem origem a motivos de não execução nos termos dos artigos 3.º e 4.º da referida decisão‑quadro”.
E porque ao ora recorrente foi dado conhecimento de todos os factos por que era procurado – e que foram considerados indiciados no despacho recorrido – não se vê que tenha havido violação do princípio da Especialidade.
A segunda questão suscitada tem a ver com a imputação, no despacho recorrido, de novos crimes, de natureza e qualificação jurídica distinta das infrações indicadas no Mandado de Detenção Europeu (foram aditados três crimes de ameaça agravada, p. p. pelos arts. 153º, nº 1 e 155º, nº 1, al. a), em que foram sujeitos passivos os ofendidos DD, HH e EE; e dois crimes de ofensa à integridade física, p. p. pelo art. 143º, nº 1, em que foram sujeitos passivos os ofendidos FF e GG).
Analisado o Mandado de Detenção Europeu verificamos que, não obstante a descrição factual ser coincidente com o despacho recorrido nos termos em que considerou os mesmos factos indiciados, a imputação de infracções praticadas não é coincidente.
O despacho recorrido considerou fortemente indiciada a prática pelo ora recorrente de um crime de homicídio, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 131º, 22º, nº 1 e 2, alíneas a) e b), 23º e 73º, todos do Cód. Penal, agravado pelo art. 86º, nº 3 e 4 do Regime Jurídico das Armas e Munições; três crimes de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153º, nº 1 e 155º, nº 1, al. a) do Cód. Penal; dois crimes de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 143º, nº 1 do Cód. Penal; e um crime de roubo, p. e p. pelo art. 210º do Cód. Penal. Por seu turno, o Mandado de Detenção Europeu, no local destinado a indicar a natureza e qualificação jurídica das infracções e disposições legais aplicáveis, indicou: um crime de homicídio, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 131º, 22º, nº 1 e 2, alíneas a) e b), 23º e 73º, todos do Cód. Penal, agravado pelo art. 86º, nº 3 e 4 do Regime Jurídico das Armas e Munições; um crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348º do Cód. Penal; e um crime de roubo, p. e p. pelo art. 210º do Cód. Penal.
A imputação coincide no caso do crime de homicídio, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 131º, 22º, nº 1 e 2, alíneas a) e b), 23º e 73º, todos do Cód. Penal, agravado pelo art. 86º, nº 3 e 4 do Regime Jurídico das Armas e Munições e no caso do crime de roubo, p. e p. pelo art. 210º do Cód. Penal.
Ora o crime de homicídio na forma tentada, permite a execução do Mandado de Detenção Europeu sem controlo da dupla incriminação do facto, por força do art. 2º, nº 2, alínea o) da Lei 65/2003 de 23.08 (cfr. o nº 2 do art. 2º da Decisão‑quadro 2002/584), pelo que com base na imputação deste crime sempre a detenção do ora recorrente se afigura legal, ou seja, a validade da decisão de entrega não se mostra afectada, nem tão pouco a decisão de aplicar a medida de prisão preventiva com base em tais factos.
Para o caso do crime de roubo já teria que haver o controlo da dupla incriminação pelas Autoridades ..., pelo que deverão as Autoridades Judiciais Portuguesas solicitar um esclarecimento sobre se foi feita essa dupla incriminação, se isso não resultar da decisão da .... Quanto às restantes infracções, sempre poderão as Autoridades Judiciais Portuguesas solicitar ao Estado de Execução um pedido de consentimento, nos termos do art. 7º, nº 2, alínea g) da Lei 65/2003.
Neste mesmo sentido veja-se o citado Sumário do Acórdão do Tribunal de Justiça (Terceira Secção) de 1 de dezembro de 2008, proferido no Processo C-388/08 PPU, disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A62008CJ0388:
“(…) 4. A excepção prevista no artigo 27.º, n.º 3, alínea c), da Decisão‑quadro 2002/584 relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros, segundo a qual a regra da especialidade, prevista no artigo 27.º, n.º 2, não se aplica caso o procedimento penal não dê lugar à aplicação de uma medida restritiva da liberdade individual da pessoa, deve ser interpretada no sentido de que, no caso de uma «infracção diferente» daquela por que a pessoa foi entregue, o consentimento deve ser pedido, em conformidade com o disposto no artigo 27.º, n.º 4, da decisão‑quadro, e obtido se houver que dar execução a uma pena ou a uma medida privativas da liberdade. A pessoa entregue pode ser sujeita a procedimento penal e condenada por uma infracção dessa natureza antes de ser obtido o consentimento, desde que não lhe seja aplicada uma medida restritiva da liberdade no decurso do processo ou do julgamento relativos a essa infracção. A excepção prevista no artigo 27.º, n.º 3, alínea c), não se opõe, porém, a que a pessoa entregue seja sujeita a uma medida restritiva da liberdade antes de obtido o consentimento, desde que essa medida seja legalmente justificada por outras acusações constantes do mandado de detenção europeu.”

Quanto à solicitada suspensão da instância e a submissão ao Tribunal de Justiça da União Europeia, nos termos do art. 267º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, de questões prejudiciais…
O mecanismo do reenvio prejudicial para o TJUE (previsto no art. 267º do TFUE) permite, nuns casos, e impõe noutros, que se solicite uma decisão àquele Tribunal em qualquer destas hipóteses:
a) interpretação do Direito Comunitário;
b) validade e interpretação de actos de instituições comunitárias;
c) interpretação dos estatutos de organismos criados por acto do Conselho, desde que tais estatutos o prevejam.
Sempre que um órgão jurisdicional de um Estado-Membro é confrontado, no âmbito de um processo, com uma questão de interpretação de uma norma de direito comunitário, e desde que a resolução da questão se torne necessária para o julgamento do caso que tem em mãos, o Juiz deve submeter ao Tribunal de Justiça a apreciação dessa questão prejudicial.
Pode, então, falar-se em dever de reenvio.
Tal mecanismo está estreitamento relacionado com o princípio do primado ou da primazia da ordem jurídica comunitária e visa-se alcançar uma uniformização interpretativa das normas de direito comunitário em toda a Comunidade.
Uma das dimensões daquele princípio consiste “… em afastar as normas de direito ordinário internas pré-existentes que sejam incompatíveis com o direito da EU e em tornar inválidas ou, pelo menos ineficazes e inaplicáveis, as normas subsequentes que o contrariem. Em caso de conflito, os tribunais nacionais devem considerar inaplicáveis as normas anteriores incompatíveis com normas de direito da EU e devem desaplicar as normas posteriores, por violação da regra da primazia” (J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, Coimbra Editora, 4.ª edição revista, 271).
Uma vez submetida ao Tribunal de Justiça a apreciação de questão prejudicial, a decisão tomada tem alcance geral e os tribunais nacionais são obrigados ao acatamento do sentido e alcance conferidos à(s) norma(s) comunitária(s), ou como escrevem os autores acabados de citar “…uma vez esclarecidas as questões de validade e de interpretação das normas comunitárias, só há que as fazer prevalecer sobre o direito ordinário interno, sem escrutinar a sua conformidade com a Constituição” (Loc. cit., 271).
Mas o Juiz nacional, mesmo que uma das partes ou um sujeito processual tenha suscitado a questão (da interpretação de norma comunitária), se entender que, no caso, apenas estão em causa a interpretação e a aplicação de disposições de direito interno, ou se é solicitada a interpretação de norma comunitária desprovida de interesse para o julgamento da causa, não só pode, como deve, rejeitar o pedido de reenvio prejudicial.
No caso em análise, a interpretação da norma comunitária não se afigura necessária, já que está em causa a interpretação de normas de direito interno (Lei 65/2003). E mesmo que se considere que está em causa uma questão de interpretação de uma norma de direito comunitário, a resolução da questão não se torna necessária para o julgamento do caso, pelo que se rejeita o pedido de reenvio prejudicial.
Das invalidades da prova
Alega o recorrente a invalidade dos autos de reconhecimento (de fls. 447 a 453) porque não teve conhecimento prévio da descrição do suspeito efetuada pela pessoa que ia efetuar a identificação e porque as pessoas concretamente chamadas a integrar a linha de reconhecimento apresentavam dissemelhanças notórias e evidentes face às características mais distintivas do arguido, sobretudo, da barba e do cabelo: “Os dois figurantes são mais altos cerca de um palmo, o arguido é o mais baixo”; “Os dois figurantes têm uma barba muito curta de 2/3 dias, enquanto o arguido tem uma barba muito grande e comprida”; “Um dos figurantes tem cabelo, enquanto o arguido é careca”.
Afirma que as dissemelhanças notórias e evidentes foram suscetíveis de levar a que a atenção dos sujeitos ativos do reconhecimento singularizasse a sua pessoa e que a circunstância de os figurantes não terem consentido em ser fotografados e em terem as respetivas fotografias juntas aos autos, não pode prejudicar o exercício dos direitos fundamentais de defesa e de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, no âmbito de um processo justo e equitativo, nos termos dos arts. 20º, nºs 1 e 4, e 32º, nºs 1 e 5, da CRP.
Considera que a existência de dissemelhanças notórias e evidentes entre o arguido e os demais figurantes integrados na linha de reconhecimento, consubstancia, uma violação das normas de produção de prova por reconhecimento, sendo, por conseguinte, nulas, ou ao menos irregulares, não podendo ser valoradas, e que entendimento contrário do disposto no art. 147º do Cód. Proc. Penal é materialmente inconstitucional.
A prova por reconhecimento é um meio de prova especialmente previsto nos arts. 147º e ss do Cód. Proc. Penal, estando o reconhecimento pessoal regulado pelo art. 147º deste código.
Nos termos do nº 1 do art. 147º do Cód. Proc. Penal, “quando houver necessidade de proceder ao reconhecimento de qualquer pessoa, solicita-se à pessoa que deva fazer a identificação que a descreva, com indicação de todos os pormenores de que se recorda. Em seguida é-lhe perguntado se já a tinha visto antes e em que condições. Por último, é interrogada sobre outras condições que possam influir na credibilidade da identificação”.
Estipula, depois, o nº 2 que “se a identificação não for cabal, afasta-se quem dever proceder a ela e chamam-se pelo menos duas pessoas que apresentem as maiores semelhanças possíveis, inclusive de vestuário, com a pessoa a identificar. Esta última é colocada ao lado delas… é então chamada (a pessoa que procede ao reconhecimento) e perguntada sobre se reconhece algum dos presentes e, em caso afirmativo, qual”.
Ressalva o nº 5 que “o reconhecimento por fotografia, filme ou gravação realizado no âmbito da investigação criminal só pode valer como meio de prova quando for seguido de reconhecimento efectuado nos termos do nº 2”.
Finalmente, estabelece o nº 7 que “o reconhecimento que não obedecer ao disposto neste artigo não tem valor como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorrer”.
Como se vê da análise dos nºs 1 e 2 do art. 147º do Cód. Proc. Penal, a prova por reconhecimento está escrupulosamente regulada, por forma a introduzir várias válvulas de segurança e controlo na credibilidade do reconhecimento, com o objectivo de que este seja, de facto, efectivo e assim possa ser considerado.
Por outro lado, todo este formalismo e rigor, não deixa de ser demonstrativo de que o legislador está ciente, não só da importância deste meio de prova, mas também das dificuldades que acarreta. Ou seja, não obstante a prova por reconhecimento ser um meio potencialmente falível, o legislador rodeou-se de especiais cautelas que lhe asseguram fiabilidade.
Assim, o reconhecimento de pessoas que tenha sido efectuado no rigor e com observância das normas supra enunciadas, tem que ser valorado no âmbito do processo, sendo essa valoração sopesada como qualquer outro meio de prova, segundo o disposto no art. 127º do Cód. Proc. Penal, também não podendo ser visto à partida, e preconceituosamente, como um meio de prova a desconsiderar.
Ora o reconhecimento que se mostra junto aos autos foi efectuado no rigor e com observância do disposto no art. 147º do Cód. Proc. Penal, nada obstando à sua valoração.
Ao contrário do que defende o recorrente, não existe qualquer exigência legal de que o arguido tenha que ter conhecimento prévio da descrição do suspeito efetuada pela pessoa que ia efetuar a identificação e a exigência da presença de duas pessoas que apresentem as maiores semelhanças possíveis, inclusive de vestuário, com a pessoa a identificar não significa uma completa homogeneidade física (uma tal exigência redundaria em completa impossibilidade) - neste sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 13 de março de 2013 (Proc. 1886/11.9JAPRT.P1, pesquisado em www.dgsi.pt), onde se decidiu que “no âmbito de um processo justo e equitativo, haverá que fazer duas exigências essenciais. A primeira é que entre os participantes no reconhecimento não existam assimetrias acentuadas, mormente em razão do género, da raça e mesmo da sua aparência externa, que viciem esse reconhecimento presencial. A segunda é que não sejam criadas ou induzidas circunstâncias, tanto no início como no decurso desse reconhecimento, que possam falsear essa identificação individual. Em suma e tentando objetivar e concretizar os traços dessas “maiores semelhanças possíveis”, os mesmos devem corresponder àqueles que permitem uma maior correspondência em razão do género, da raça, da compleição ou da estrutura física, como também do vestuário, e que sejam naturalmente exequíveis”. Ora, no caso, a diferença de um palmo de altura, do tamanho da barba e do corte de cabelo não são suficientes para concluir por notória dissemelhança.
Concluindo, a prova por reconhecimento efectuada nos autos não se apresenta como nula ou irregular e não configura um prejuízo do exercício dos direitos fundamentais de defesa e de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, no âmbito de um processo justo e equitativo, nos termos dos arts. 20º, nºs 1 e 4, e 32º, nºs 1 e 5, da CRP, não sendo materialmente inconstitucional a interpretação feita do disposto no art. 147º do Cód. Proc. Penal.
Alega também o recorrente a invalidade da busca (cfr. fls. 265 a 268) ao veículo automóvel com a matrícula AL-..-RB por a respectiva apreensão ser irregular (como reconhece o despacho recorrido) e a busca constituir uma diligência materialmente dependente da disponibilidade do veículo ilegalmente apreendido nos autos, sendo por isso irregular.
Acrescenta que a competência para ordenar ou autorizar a realização de buscas se encontra legalmente reservada ao Ministério Público, enquanto autoridade judiciária responsável pela direção do inquérito (nos termos conjugados dos arts. 174º, nº 3, 263º, nºs 1 e 2, e 270º, nºs 1 e 2, al. d), do Cód. Proc. Penal), ressalvados os termos e limites dos nºs 3 e 5 do artigo 174º, o que significa que a competência para efetuar diligências de busca pode ser delegada no órgão de polícia criminal, nos casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa; em que os visados consintam, desde que o consentimento prestado fique, por qualquer forma, documentado; ou aquando de detenção em flagrante por crime a que corresponda pena de prisão.
Defende que a atribuição de competência às “autoridades de polícia criminal”, nos termos conjugados dos artigos 8º e 9º do D.L. 137/2019, de 13.09, que aprova a Estrutura Organizacional da Polícia Judiciária, na sua redação atual, “para, no âmbito de despacho de delegação genérica de competência de investigação criminal, ordenar (…) a realização de revistas e buscas”, tem de entender-se por referência às hipóteses legais previstas no nº 5 do art. 174º do Cód. Proc. Penal, já que um Decreto-Lei do Governo não pode legislar sobre processo criminal, por se tratar de matéria da competência legislativa reservada da Assembleia da República, nos termos do art. 165º, nº 1, al. c), da CRP.
Conclui que a busca ao veículo automóvel com a matrícula AL-..-RB, ordenada e efetuada nos autos pela Polícia Judiciária, a fls 264 a 268, foi ordenada por autoridade de polícia criminal sem competência legal para o efeito, sendo, por conseguinte, nula, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 119º, al. b), do Cód. Proc. Penal e que o entendimento de que as autoridades de polícia criminal têm competência para, no âmbito de despacho de delegação genérica de competência de investigação criminal, ordenar a realização de buscas previstas no art. 174º, nº 3, do Cód. Proc. Penal, viola o art. 219º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, na parte em que defere ao Ministério Público competência para exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade, sendo por isso materialmente inconstitucional.
No decorrer da busca ao veículo de matrícula AL-..-RB foram apreendidas 15 munições, cuja posse era imputada ao ora recorrente e indiciaria a prática, por este, de um crime de detenção de arma proibida. Todavia, tal matéria, enunciada nos artigos 19º, 20º e 21º do despacho de apresentação, não foi tomada em consideração na diligência de 1º interrogatório judicial de arguido detido, não tendo sido considerados indiciados tais factos por respeito ao princípio da especialidade, previsto no art. 7º da Lei 65/23, de 23.08 e se tratar de alegada prática de um crime cometido pelo arguido em momento anterior à sua saída de território português, e diverso dos constantes do Mandado de Detenção Internacional.
Ou seja, o resultado da busca é irrelevante para a decisão que nos ocupa e que determinou que o recorrente deveria aguardar os ulteriores termos do processo em prisão preventiva tendo por base os factos indiciados e onde não era imputada ao recorrente a detenção das 15 munições.
Termos em que não nos pronunciaremos sobre a regularidade da busca na medida em que extravasa o objecto da decisão (repare-se que o segmento do despacho recorrido que apreciou a validade da busca foi proferido em momento anterior ao segmento que decidiu desconsiderar a factualidade constante dos artigos 19º, 20º e 21º do despacho de apresentação e tornou inútil o objecto das buscas).
Alega ainda o recorrente a nulidade, ou ao menos a irregularidade, da aquisição processual das imagens de vídeo captadas pelo ofendido FF por não terem sido as mesmas sujeitas a validação pela autoridade judiciária competente, em preterição de um ato legalmente obrigatório, nos termos conjugados dos arts. 120º, nº 2, al. d), ou 123º, e 178º, nº 6, do Cód. Proc. Penal.
Diz que a captação da imagem de uma pessoa por meio de vídeo ou fotografia consubstancia uma ingerência nos direitos fundamentais à imagem e à reserva da vida privada, consagrados no art. 26º, nº 1, da CRP e que a aquisição processual de imagens de uma pessoa, captadas e voluntariamente entregues a órgão de polícia criminal por um terceiro sem o seu consentimento, consubstancia, em termos formais, um ato de apreensão, abrangido pelo âmbito de aplicação do disposto no art. 178º, nº 6, do Cód. Proc. Penal, ou seja, que carece de validação por autoridade judiciária. E que entendimento diverso acarreta a inconstitucionalidade material da norma constante do art. 178º, nº 6, do Cód. Proc. Penal, por violação do estatuto constitucional do Ministério Público, do princípio da reserva de função jurisdicional em matéria de administração da justiça, das garantias de defesa do arguido em processo penal, do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, bem como dos direitos fundamentais à imagem e à reservada intimidade da vida privada, assim como dos princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade, respetivamente consignados no art. 219º, nº 1, no art. 32º, nºs 1 e 4, em conjugação com o art. 202º; no art. 20º, no art. 26º, nº 1 e nos arts. 13º, nº 1, e 18º, nº 1, da CRP.
A norma a que o recorrente faz apelo, o nº 6 do art. 178º, do Cód. Proc. Penal tem o seguinte teor: “as apreensões efectuadas por órgão de polícia criminal são sujeitas a validação pela autoridade judiciária, no prazo máximo de setenta e duas horas”.
No caso, a aquisição processual das imagens de vídeo não resultou de uma qualquer apreensão efetuada por órgão de polícia criminal, mas antes da sua entrega voluntária pelo ofendido FF na Esquadra de Telheiras (cfr. o aditamento de fls. 37 e o termo de juntada de fls. 38), motivo por que não tinha de ser validada pela autoridade judiciária competente.
De resto, a possibilidade de utilização de registos de sessão e imagem como prova deve ser analisada à luz do disposto no art. 167º, nº 1, do Cód. Proc. Penal, no qual se dispõe que as reproduções fotográficas, cinematográficas, fonográficas ou por meio de processo electrónico e, de um modo geral, quaisquer reproduções mecânicas só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal, o que conduz a que se considere inadmissível e proibida a valoração de qualquer registo que pela sua produção ou utilização possa constituir o seu agente em autor do crime p. e p. pelo art. 199º, do Cód. Penal, no qual se prevê e tipifica como ilícito criminal, designadamente, a conduta de quem filme outra pessoa, mesmo em eventos em que tenha legitimamente participado, contra a sua vontade – cfr. alínea a), do nº 2, do citado artigo.
Assim, da leitura conjugada destes dois normativos, chegar-se-ia à conclusão que a utilização de ficheiros de imagem e som obtidos sem o consentimento da pessoa por eles visada constituiria sempre um meio de prova proibida, ainda que quem grava e/ou fotografa de forma ilícita possa ter agido a coberto de uma causa de justificação e, portanto, não venha a ser punido.
Porém, tal como defendido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28.09.2011, (Processo n.º 22/09.6YGLSB.S2, pesquisado em www.dgsi.pt) entende-se que a possibilidade de utilização de ficheiros de imagem e som obtidos sem o consentimento da pessoa por eles visada, feitas em locais públicos ou de acesso ao público, não correspondem a qualquer método proibido de prova, quer por não violarem o núcleo duro da vida privada, quer por existir uma justa causa na sua obtenção, consubstanciada na prática do crime que documentam.
Nestes termos, a aquisição processual das imagens de vídeo captadas pelo ofendido FF, não só não constitui qualquer nulidade, ou sequer irregularidade, como com tal junção não foi violado qualquer preceito constitucional.
Da integração jurídica
Alega o recorrente que, no despacho recorrido, foi indiciado pela prática de dois crimes de ofensas à integridade física, de que terão sido sujeitos passivos “os ofendidos FF e GG”, bem como pela prática de um crime de roubo, “em que foi sujeito passivo a ofendida GG”, sendo que a prática do crime de ofensa à integridade física e do crime de roubo, relativamente à ofendida GG, tem fundamento nos mesmos factos e viola a garantia constitucional de ne bis in idem, consagrada no art. 29º, nº 5, da CRP.
Refere-se o recorrente à seguinte matéria indiciada:
35.º Quando o arguido AA chegou junto ao veículo, abriu a porta e disse à ofendida GG: “ESTÁS A FILMAR NÃO ESTÁS?” ao mesmo tempo que lhe retirou à força o telemóvel Iphone 12 da mão e lhe desferiu um murro no lábio e um murro no olho esquerdo.
36.º Em ato continuo, o arguido apanhou outro telemóvel Iphone 12, pertencente ao ofendido, e ambos os denunciados se colocaram em fuga do local.
37.º Os dois telemóveis retirados a GG, estão avaliados em €1.100,00 (mil e cem euros), sendo o Iphone 12 com o cartão da ..., com o valor de €400,00 e o Iphone 12 com o cartão WTF, com o valor de €700,00.
(…)
41.º De igual forma atuaram com a intenção de subtraírem e se apropriarem dos dois telemóveis pertencentes aos ofendidos, não se inibindo de utilizar a violência para a concretização dos seus intentos, e bem sabendo que atuavam contra a vontade do legítimo proprietário.
Vistos os factos que por ora foram dados como indiciados, e porque a conduta imputada ao arguido é a de agredir a ofendida ao mesmo tempo que lhe retira o telemóvel das mãos, temos que o indiciado crime de roubo consome o crime de ofensas à integridade física simples.
A previsão do nº 1 do art. 210º do Cód. Penal é de que comete um crime de roubo “quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair, ou constranger a que lhe seja entregue, coisa móvel ou animal alheios, por meio de violência contra uma pessoa, de ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade física, ou pondo-a na impossibilidade de resistir, (…)”, de onde se retira que na esfera de protecção do crime de roubo pode estar contemplada uma pluralidade de ilícitos puramente instrumentais (crime-meio), os quais estão numa relação de concurso aparente com o crime-fim. No caso, o concurso entre o crime de ofensas à integridade física simples (crime-meio) está numa relação de concurso aparente com o roubo (crime-fim).
Pelo que nesta parte procede o recurso, concluindo-se que, por ora, os factos indiciados nos autos não integram a prática autónoma de um crime de ofensas à integridade física, de que teria sido sujeito passivo GG, mas apenas um crime de roubo em que foi sujeito passivo a ofendida GG.
* * *
Decisão
Pelo exposto, acordam em julgar parcialmente procedente o recurso concluindo que, por ora, os factos indiciados nos autos não integram a prática autónoma de um crime de ofensas à integridade física, de que teria sido sujeito passivo GG, mas apenas um crime de roubo em que foi sujeito passivo a ofendida GG.
Rejeitam o recurso na parte em que requeria pronúncia sobre questão em que não incindiu despacho na primeira instância e na parte que requeria análise de meios de prova destinados a indiciar factos que não foram admitidos como indiciados por força do princípio da Especialidade.
No mais, e como exposto, julgam o recurso improcedente.
Sem custas.

Lisboa, 24.09.2024
Alda Tomé Casimiro
Paulo Barreto
Manuel Advínculo Sequeira