RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
BRANQUEAMENTO
Sumário

(da responsabilidade da relatora):
I. O recurso em matéria de facto não implica uma reapreciação, pelo Tribunal de recurso, da globalidade dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida – duplo grau de jurisdição em matéria de facto não significa direito a novo (a segundo) julgamento no Tribunal de recurso
II. O crime de branqueamento consiste nas ações de converter, transferir, auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, obtidas por si ou por terceiro, direta ou indiretamente, ocultar ou dissimular a verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade das vantagens, ou os direitos a ela relativos.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa,
Relatório
No âmbito do processo comum, com intervenção do Tribunal Colectivo e nº 327/21.8TELSB, que corre termos no Juiz 2 do Juízo Central Criminal de Sintra, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, foi a arguida,
AA, solteira, …, nascida a ........1985 em ..., filha de BB e de CC, residente na ...,
absolvida da imputada prática de: 1 (um) crime de acesso ilegítimo, p. e p. pelo art. 6º, nºs 1 e 5, al. b) da Lei 109/2009, de 15.09 (na redação em vigor à data dos factos) ex vi a definição legal prevista na alínea b) do art. 202º e 26º do Cód. Penal; 1 (um) crime de falsificação de documento, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 26º, 255º, al. a) e 256º, nº 1, al. e), do Cód. Penal; e de 1 (um) crime de burla qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 217º, nº 1 e 218º, nºs 1 e 2, al. a) ex vi art. 202º, al. a), 26º, todos do Cód. Penal; e
condenada pela prática, em autoria material, de um crime de branqueamento de capitais, p. e p. pelo art. 368º-A, nºs 1 e 3 do Cód. Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com a condição de, naquele prazo, comprovar o pagamento de €5.000,00 (cinco mil euros) à assistente DD, correspondentes a parte do prejuízo por esta sofrido, e à obrigação de se submeter a plano de readaptação social.
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Sem se conformar com a condenação a arguida interpôs o presente recurso onde pede que a decisão recorrida seja revogada e substituída por outra que a absolva da prática do crime de branqueamento, p. e p. pelo art. 368º-A, nºs 1 e 3 do Cód. Penal e, consequentemente, do ressarcimento da quantia de €5.000,00 (cinco mil euros) à assistente.
Para tanto formula as conclusões que se transcrevem:
A) A Recorrente foi condenada pela prática, em autoria material, de um crime de branqueamento, previsto e punível pelo artigo 368.º-A, n.ºs 1 e 3 do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com a condição de, naquele prazo, comprovar o pagamento de €5.000,00 (cinco mil euros) à assistente DD, correspondentes a parte do prejuízo por esta sofrido, e à obrigação de se submeter a plano de readaptação social. Condena a arguida no pagamento das custas criminais do processo (fixando-se a taxa de justiça individual em 3 (três) Unidades e meia de conta”
B) A Recorrente não se conforma com o douto Acórdão, porquanto, da prova produzida em audiência não resulta a prática de qualquer facto juridicamente relevante que lhe possa ser imputado.
C) Desde logo e com o devido respeito por opinião diversa, decidiu erradamente o Tribunal “a quo”; porquanto, para além de pecar por deficiente fundamentação no que concerne à motivação da decisão de facto e de direito, apreciou e valorou incorrectamente a prova produzida pelos depoimentos das várias testemunhas inquiridas no decurso da sessão de julgamento.
D) Na verdade, é de todo impossível retirarem-se as ilações de facto e respectivas consequências de direito que foram retirados pelos Ms. Juízes do Tribunal “a quo”, quer sobretudo da documentação existente nos autos, quer dos depoimentos prestados pelas testemunhas apresentadas pelo Ministério Público.
E) A recorrente até ao julgamento desconhecia a identidade da pessoa ou pessoas (lesadas) que faseadamente transferiram a quantia de €47.230,77 para a sua conta, e a forma utilizada ou a motivação que as determinou a tal, como também desconhecia qual o destino do referido valor ou sequer os seus autores.
F) Em termos probatórios, não existe qualquer elemento ou facto constante dos autos, no sentido de se poder afirmar que a arguida praticou a factualidade em causa (facultou a sua contas as lesadas ou que tivesse tido algum contacto com estas), tendo em conta que a mesma é totalmente alheia à mesma.
G) Não existe qualquer prova no inquérito ou na decisão condenatória demonstrativa que tais factos tivessem ocorrido com o conhecimento ou autorização da Recorrente, não obstante os factos dados (erradamente) como provados nos pontos 26 a 42.
H) Inexistência reconhecida pelo tribunal “a quo”, na página 8 da douta sentença, entre outras, onde se faz constar como factos não provados “que a arguida delineasse este plano descrito em 2. com o ou com os indivíduos ali referidos” (al. a) e “Que a arguida AA, atuasse do modo descrito de 2. a 15. em conjugação de esforços e intentos com outro(s) indivíduo(s) cuja(s) identidade(s) não se apuraram, e sempre sob a égide da resolução inicialmente traçada (al h).
I) O que significa que não se apurou quaisquer factos concretos que consubstanciasse a prática do crime a que Recorrente foi condenada.
J) Em sede de investigação, a PJ apenas identificou “desconhecidos” e nem sequer identificou os titulares das contas bancárias por onde ocorreram a movimentação das citadas quantias, nem carreou para os autos qualquer gravação de imagem dos ATM, onde ocorreram os levantamentos, pagamentos e transferências, nem dos locais em que foram efectuadas compras, indicados nos factos assentes de 27 a 33.
K) Os Ms. Juízes do Tribunal “a quo” sem qualquer prova que responsabilizasse directamente a Recorrente, decidiram pela sua condenação, exclusivamente com suporte no princípio geral da livre apreciação da prova (art.º 127º do C.P.P.)
L) Pese embora o nosso sistema processual penal consagre o princípio da livre apreciação, em que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, porém,
M) Salvo o devido respeito, nenhum elemento de prova foi carreado para os autos e não se percebe como, apenas com recurso às regras de experiência, se possa sedimentar e fundamentar uma condenação em processo-crime, tanto mais que, como supra se evidenciou, a decisão foi tomada sem qualquer motivação concreta ou sem qualquer critério documental/testemunhal, contrariando, até, a prova produzida em audiência de Julgamento.
N) Não é de aceitar que a livre apreciação da prova se confunda com a mera impressão gerada no espírito do julgador, através de uma interpretação subjectiva dos diversos meios de prova, contrária às regras da lógica e da experiência comum, por vezes não relacionadas com a Recorrente ou com o processo.
O) Os Ms. Juiz do tribunal “a quo” concretizaram apenas o facto da Recorrente ter aberto uma conta bancária em 2010 e o facto de determinada quantia ter passado por essa conta, em 2021, de forma ilícita, por força da intervenção de terceiro (s) desconhecido (s), porém, tal facto não comprova que esta tenha tido conhecimento directo ou indirecto deste facto. Ou seja, não é verdade que a Recorrente tenha utilizado a sua conta bancária para beneficiar da citada quantia transferida para a sua conta.
P) Na douta decisão, ora sob recurso, a maioria dos factos são indeterminados, como seja, factos realizados por “indivíduo ou indivíduos de identidade não apurada”, mas que “recorrendo aos conhecimentos informáticos de que dispunham, este indivíduo ou indivíduos”, “precipitam-se … uma série de movimentos a débito, com destaque para pagamentos MBway para diversas pessoas”, bem como a “realização de despesas na plataforma ..., que promove apostas desportivas e jogos de casino on-line”, entre outras.
Q) Ou seja, a Recorrente foi condenada sem se identificar qualquer facto em concreto, que lhe pudesse ser imputado, quer a título de dolo, quer de negligência,
R) Na verdade, o Douto Acórdão limita-se a condenar genericamente e em abstracto, sem indicar uma prova, um único facto concreto, que indicie a arguida como agente dolosa da prática do crime de Branqueamento.
S) Ora, salvo o devido respeito, todos os elementos de prova carreados para os autos, conjugados com regras de experiência, sem qualquer pré-valoração, não permitem dar como provada a matéria fáctica que, como tal, o Tribunal a quo considerou.
T) Com base nos fundamentos acima aduzidos, deve a decisão recorrida ser alterada, revogando-se a decisão proferida pelo Tribunal “a quo” e absolvendo-se a Recorrente da prática do crime de branqueamento, uma vez que a mesma não cometeu o aludido ilícito penal.
U) Quanto a matéria do direito, O crime de branqueamento pressupunha, assim o desenvolvimento de actividades que, podiam integrar várias fases [“converter “, “transferir” e/ou “facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens”], “com o fim de dissimular a sua origem ilícita”, e visavam dar uma aparência de origem legal a bens de origem ilícita.
V) Porém, quer no inquérito, quer na audiência de discussão e julgamento não foi produzida, qualquer prova de que tenha ocorrido intervenção da Recorrente com intenção de “converter”, “transferir” e/ou “facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens”], “com o fim de dissimular a sua origem ilícita”, e que visasse dar uma aparência de origem legal a bens de origem ilícita.
W) O tipo penal em causa exige o dolo em qualquer das suas modalidades, não sendo punível o agente a título de negligência, quer-se com isto dizer, que a arguida como fazia transações para ... por causa da venda de produtos de cosmética que adquiria em Portugal, que expedia para a sua mãe e por outro lado porque ajudava pessoas a enviarem dinheiro para aquele país”, nomeadamente, com a intervenção do Sr. EE (p. 13 e 14 do Douto Acórdão recorrido), nunca se apercebeu que a citada quantia tinha sido transferida para a sua conta bancária da forma que consta dos autos, nem se apercebeu que posteriormente tal quantia fora transferida para desconhecidos, localizados em diversas partes do mundo.
X) Ora, a Recorrente não praticou qualquer facto juridicamente relevante, por acção ou por omissão, doloso, tentado ou consumado, de forma a preencher o tipo legal de crime de branqueamento e, relativamente ao qual veio a ser condenada.
Y) Por outro lado, a definição legal de autoria indica-nos que é punível como autora quem tomar parte directa na execução do facto, sendo que o facto consiste em concreto na “desenvolvimento de actividades que, podiam integrar várias fases [“converter”, “transferir” e/ou “facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens”], “com o fim de dissimular a sua origem ilícita”, e visavam dar uma aparência de origem legal a bens de origem ilícita, o que não aconteceu na realidade, como ficou demonstrado em sede de audiência e julgamento.
Z) Efectivamente, não existe qualquer facto, documento ou testemunha que possa comprovar que a arguida tivesse actuado, em concreto, com o fim de dissimular a origem ilícita do dinheiro, para lhe dar uma aparência de origem legal”, tomando parte directa no “desenvolvimento de actividades que, podiam integrar várias fases [“converter”, “transferir” e/ou “facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens”], “ao contrário do que consta na douta sentença, ora sob recurso, e nem poderia constar, pelo simples facto que nunca ocorreram na realidade tais factos, pelo menos, relativamente à arguida.
AA) Pelo exposto, o tribunal a quo não interpretou, nem aplicou, correctamente o disposto no artigo 368-A nº 1 e 3 do CP.
BB) O tribunal a quo ao dar como provados os factos nas versões que constam da fundamentação do Acórdão violou, entre outros, o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.º 127º, do CPP.
CC) Na verdade, como decorre do art.º 127º do C.P.P., o julgador, para formar a sua convicção, deve ter como pressupostos valorativos a prova perante si produzida em julgamento, o que, com o devido respeito, não foi tido em boa conta.
DD) Na esteira do expresso texto do douto Acórdão do STJ, Proc. 03P3213, de 07.01.2004, “Apenas a fundamentação racional e lógica, que possa fazer compreender a intervenção e o sentido das regras da experiência, permite formar uma convicção motivada e apreensível, afastando as conclusões que sejam susceptíveis de se revelar como arbitrárias, ou em formulação semântica marcada, meramente impressionistas (cfr. Marques Ferreira, "Jornadas de Direito Processual Penal", ed, CEJ, pág. 226). [….] Para avaliar da racionalidade e da não arbitrariedade (ou impressionismo) da convicção sobre os factos, há que apreciar, de um lado, a fundamentação da decisão quanto à matéria de facto (os fundamentos da convicção), e de outro, a natureza das provas produzidas e dos meios, modos ou processos intelectuais, utilizados e inferidos das regras da experiência comum para a obtenção de determinada conclusão”
EE) Princípio que, conforme salienta FIGUEIREDO DIAS in “Direito Processual …”, p. 139, está associada ao “... dever de perseguir a chamada “verdade material”-, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo (possa embora a lei renunciar à motivação e ao controlo efectivos).”.
FF) Neste mesmo sentido, Henriques Eiras in “Processo Penal Elementar”, Quid Iuris, 2003, 4ª edição, p. 102, refere que este princípio “... não significa que o tribunal possa utilizar essa liberdade à sua vontade, de modo discricionário e arbitrário, decidindo como entender, sem fundamentação.
GG) O juiz tem de orientar a produção de prova para a busca da verdade material e, ao decidir, há-de fundamentar as suas decisões: a apreciação da prova que faz reconduz-se a critérios objectivos, controláveis através da motivação. A sua convicção, que o levará a decidir de certa maneira e não de outra, embora pessoal, é objectivável.”.
HH) Por outro lado, na decisão condenatória decidiu-se que o(s) facto(s) foram praticados pela Recorrente a título de dolo directo, sem indicar qualquer facto juridicamente relevante, apto a revelar a natureza de dolo, não se compreendendo, assim, como é possível chegar a tal juízo e desta forma se impossibilitando, também, à Recorrente a sua defesa.
II) O tipo penal em causa é essencialmente doloso, exigindo-se sempre que o agente saiba que os produtos são provenientes de certo tipo de actividade criminosa, o que faz parte do elemento intelectual do dolo.
JJ) Ou seja, quanto ao elemento subjectivo, exige-se que o agente, ao efectuar qualquer operação de conversão, transferência ou dissimulação, tenha conhecimento da origem ilícita dos bens ou produtos a converter, transferir ou dissimular, o que de todo não é o caso da Recorrente,
KK) Verifica-se ainda, que o Douto Acórdão não individualiza qualquer facto praticado pela Recorrente que consubstancie a prática de qualquer crime, nem os podia individualizar, dada a sua inexistência.
LL) Assim, Quanto à matéria de facto, a decisão do Tribunal “a quo” incorre, claramente, em erro de julgamento, porquanto, o Tribunal não valorou, nem interpretou correctamente, quer a prova documental, quer prova testemunhal produzida, razão pela qual veio a condenar a arguida, aqui recorrente, pela alegada prática em autoria material, de um crime de branqueamento, previsto e punível pelo artigo 368.º-A, n.ºs 1 e 3 do Código Penal.
MM) O tribunal a quo fez uma errada qualificação jurídica dos factos dados como provados, conforme se explicitou, razão pela qual se apela a V/Ex.º que a Recorrente seja absolvida da prática do crime de branqueamento, uma vez que não se verifica a conduta típica.
NN) Da mesma forma, todos os factos dados como provados pelo M. Juiz do tribunal “a quo”, em relação à aqui recorrente, encontram-se incorrectamente julgados, com suporte no princípio da livre apreciação da prova (art.º 127º do C.P.P.), pelo que, deverá a arguida ser absolvida da prática do crime de que vinha, infundadamente, acusada.
OO) Caso esse Venerando Tribunal assim não o entenda, pugna a recorrente pela insuficiência de prova para a sua condenação pelo crime de Branqueamento, o que nos termos do princípio basilar do processo penal de presunção da inocência, sempre a mesma deverá ser absolvida ao abrigo do princípio “in dúbio pró reo”, face à inexistência de prova, quer em sede de inquérito, quer, particularmente, em sede de julgamento sobre os factos de que vinha acusada.
PP) Aliás, o Princípio “in dubio pro reo” é, sempre, aplicável, mesmo perante uma prova dúbia ou frágil, relacionada com a prática ou não de determinado facto, sendo que nos presentes autos a situação é de inexistência de qualquer prova, o que por si só levaria a uma solução em favor da arguida, evitando-se, deste modo, uma decisão de flagrante injustiça.
QQ) Relativamente ao ressarcimento à Assistente, procedendo o presente recurso e absolvida a recorrente do ilícito que lhe era imputado, falecem os pressupostos da responsabilidade civil e, consequentemente deverá o mesmo ser declarado improcedente por não provado, absolvendo-se, igualmente, nesta matéria, a recorrente (art.º 483º e segs do C.C.).
RR) De facto, a prova documental carreada para os autos e as provas testemunhal, determinam no âmbito cível e criminal um juízo de inocência da Recorrente, se analisada com isenção e convicção, dado não ter sido recolhida qualquer prova, sobre qualquer facto juridicamente relevante praticado por esta.
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O Digno Magistrado do Ministério Público junto da primeira instância contra-alegou, colocando como questão prévia a inobservância do estatuído no art. 412º do Cód. Proc. Penal, e mais pugnando pela manutenção do acórdão recorrido, apresentando as seguintes conclusões:
1. Entende o Ministério Público que o Tribunal a quo, efetuou um correto julgamento da matéria de facto, tendo apreciado exaustivamente e criticamente a prova produzida em audiência, conjugadamente com a demais prova documental e pericial junta aos autos.
2. Para o efeito, o Tribunal recorrido recorreu, como não podia deixar de ser, às regras da experiência comum e à sua livre convicção, no exercício do princípio da livre apreciação da prova conforme decorre do artigo 127.º do Código de Processo Penal.
3. Perante a factualidade dada como provada, ao abrigo do referido princípio, o Tribunal recorrido efetuou um correto enquadramento de direito, subsumindo de forma acertada os factos ao direito, tendo condenado, corretamente, a arguida pela prática do crime de branqueamento, previsto e punido pelo artigo 368.º-A, n.ºs 1 e 3 do Código Penal, cujos elementos objetivos e subjetivos foram preenchidos pela sua conduta.
4. Conclui-se, em conformidade, pelo acerto do douto acórdão recorrido e, concomitantemente, pela não violação de qualquer dispositivo legal.
A assistente também contra-alegou, igualmente pugnando pela manutenção do acórdão recorrido, ainda que sem apresentar conclusões.
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Nesta Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido de ser reconhecida a nulidade do acórdão recorrido por contradição insanável entre os factos provados nºs 2 e 26, e entre os factos não provados “a”, “e”, “f” e “g” e o facto provado nº 26.
Efectuado o exame preliminar, foram os autos aos vistos e à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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Fundamentação
No acórdão recorrido deram-se como provados os seguintes factos:
1. Em 3 de novembro de 2010, a arguida abriu uma conta bancária de depósitos à ordem por si uni-titulada, sedeada no ..., domiciliada no balcão do ..., com o número ..., ....
2. Em data não concretamente apurada, mas anterior a abril de 2021, indivíduo ou indivíduos de identidade não apurada delinearam um plano para enganar terceiros que, convencidos erroneamente de que procediam a transferências legítimas e devidas, efetuariam transferência de valores pecuniários a crédito para, além do mais, a conta bancária titulada pela arguida AA.
3. Deste modo, esses indivíduos fariam suas essas quantias monetárias, dividindo parte das mesmas com a arguida, aumentando a sua disponibilidade monetária.
4. Para conseguirem estes intentos, recorrendo aos conhecimentos informáticos de que dispunham, este indivíduo ou indivíduos, por forma não concretamente determinada, conseguiram intrometer-se nas conversações eletrónicas estabelecidas através de correio eletrónico entre as sociedades DD, aqui assistente, e a sociedade ..., que mantinham relações comerciais entre si.
5. Acedendo àquelas conversações, este indivíduo ou indivíduos tomaram conhecimento do teor das mensagens trocadas e de que, por força de serviços prestados pela sociedade ... à sociedade DD, eram devidas, por esta, quantias em numerário.
6. Este indivíduo ou indivíduos decidiram, assim, intrometerem-se nas conversações eletrónicas entre aquelas sociedades e fazer-se passar por alguém responsável na sociedade ....
7. Em 19 de abril de 2021, FF, colaboradora da sociedade ..., a partir do seu endereço de correio eletrónico ..., enviou à assistente administrativa da sociedade DD, para o endereço de correio eletrónico desta, ..., a fatura número 2021/899, no valor de €18.450,00, com a seguinte indicação “(…) GG, Junto se envia a nossa fatura nº 899, no valor de €18.450,00”.
8. Em 23 de abril de 2021, a partir do endereço de correio eletrónico ..., FF, colaboradora da sociedade ..., expediu uma mensagem para a assistente administrativa da sociedade DD, com o endereço de correio eletrónico ..., a fatura número 2021/900 no valor de €4.180,77.
9. No dia 10 de maio de 2021, FF, colaboradora da sociedade ..., a partir do seu endereço de correio eletrónico, ..., enviou à assistente administrativa da sociedade DD, com o endereço de correio eletrónico ..., a fatura número 2021/906, no valor de €12.300,00, com a seguinte indicação “(…) Boa tarde GG, A nossa fatura nº 906, no valor de €12.300 referente à entrega do estudo prévio versão Super Premmium”.
10. Contudo, nenhuma destas mensagens de correio eletrónicas expedidas por FF, colaboradora da sociedade ..., a partir do seu endereço de correio eletrónico ..., chegaram àquela assistente administrativa da sociedade DD.
11. Acedendo às faturas emitidas pela sociedade ... intercetadas nestas comunicações, em execução de um plano previamente delineado, aquele indivíduo ou indivíduos não concretamente identificados alteraram-nas na parte em que era identificado o ... da conta bancária titulada por esta sociedade, que substituíram pelo IBAN da conta bancária titulada pela arguida no ..., identificada em 1, delas passando a constar: “PAGAMENTO TRANSFERÊNCIA BANCÁRIA IBAN ... 04 Entidade: ...”, em vez de: “PAGAMENTO TRANSFERÊNCIA BANCÁRIA IBAN ...Entidade: ...”
12. E, em substituição das mensagens intercetadas, expediram mensagens de correio eletrónico usando endereço eletrónico que se confundia com o endereço ..., anexando às mesmas as faturas assim alteradas e semelhantes às que foram emitidas pela sociedade ..., com os números 2021/900, 2021/899 e a 2021/906, nas quais esta solicitava os pagamentos de €4.180,77, €18.450,00 e €12.300,00, respetivamente.
13. A conta bancária assim indicada nas faturas alteradas jamais foi titulada pela sociedade ....
14. Estas mensagens de correio eletrónico descritas em 12. foram rececionadas pela sociedade DD.
15. Esta sociedade assistente, convicta de que estas mensagens de correio eletrónico haviam sido expedidas pela sociedade ..., não duvidando da sua veracidade e integridade, procedeu ao pagamento das identificadas faturas.
16. Assim, em 26 de abril de 2021, a sociedade assistente realizou a transferência bancária no valor de €4.180,77 (quatro mil, cento e oitenta euros e setenta e sete cêntimos) a débito da sua conta bancária titulada no ... para a conta bancária com o IBAN ... descrita em 1..
17. Em 1 de junho de 2021, procedeu à transferência bancária no valor de €18.450,00 (dezoito mil, quatrocentos e cinquenta euros) a débito da sua conta bancária titulada no ... para a conta bancária com o IBAN ... descrita em 1., inserindo, na ordem bancária a descrição “...
18. No dia 02 de junho de 2021, efetuou a transferência bancária no valor de €12.300,00 (doze mil e trezentos euros), a débito da sua conta bancária titulada no ... para a conta com o ..., referida em 1, fazendo indicar, na descrição da operação: “FA 2021/906”.
19. Por erro, a última fatura voltou a ser paga no dia 7 de junho de 2021, no valor de €12.300,00, igualmente por transferência bancária a débito da conta do ... titulada pela sociedade DD para a conta bancária com o ..., referida em 1..
20. Estas transferências a débito realizadas pela sociedade assistente totalizaram o valor global de €47.230,77 (quatrocentos e sete mil euros, duzentos e trinta euros e setenta e sete cêntimos).
21. A arguida AA não tem, nem nunca teve, qualquer relação comercial, profissional ou outra, com a sociedade DD ou com a sociedade ....
22. Pelo que estas quantias foram creditadas na sua conta sem qualquer justificação para o efeito.
23. Assim, na conta bancária em apreço, descrita em 1., titulada pela arguida AA nesse Banco, em 27 de abril de 2021, 04 de junho de 2021 e 9 de junho de 2021, foram creditados aqueles valores com os descritivos bancários de “Transf DD”.
24. Em 3 de junho de 2021, esta conta bancária apresentava um saldo no valor de €227,46.
25. No dia 9 de junho de 2021, a conta bancária da arguida AA passou a apresentar o saldo de €33.868,99 (trinta e três mil, oitocentos e sessenta e oito euros e noventa e nove cêntimos).
26. Após os referidos montantes de €4.180,77, €12.300,00, €18.450,00 e €12.300,00, ali estarem disponíveis a crédito na mencionada conta bancária titulada pela a arguida AA, esta, na execução do plano previamente delineado com os outros indivíduos e com o intuito de camuflar a proveniência ilícita daqueles montantes, procedeu a diversas operações bancárias a débito, entre as quais:
27. No dia 4 de junho de 2021, procedeu a transferências MBWAY a crédito para conta de terceiros.
28. Procedeu ainda a pagamentos online na entidade “…” referente a jogos de casino e apostas desportivas online.
29. E procedeu ainda a pagamento de conta cartão (de crédito) no valor de €3.500,00 e a operação de cancelamento antecipado no montante de €1.968,87.
30. No dia 9 de junho de 2021, procedeu a transferência a débito para conta de terceiros através da aplicação MBWAY.
31. E procedeu à constituição de conta de depósito a prazo pelo valor de €1.000,00;
32. E a uma entrega antecipada no montante de €1.005,20.
33. Como procedeu a compras online em empresas no estrangeiro.
34. Desde janeiro de 2021, a conta bancária em apreço com o ... recebeu diversas transferências a crédito ordenadas por terceiros, entre outros, o valor de €6.172.79 (seis mil, cento e setenta e dois euros e setenta e nove cêntimos) oriundos da plataforma de pagamentos denominada “...”, na ... e o montante de aproximadamente €1.500,00 (mil e quinhentos euros) da plataforma de apostas desportivas denominada “...”.
35. A débito, apresenta ainda pagamentos (via cartão) com destino a empresa “...”, em ... e a entidade “...” – plataforma online de prestação de serviços como motoristas / transporte/ entrega de comida - na ....
36. A título de rendimentos por trabalho dependente, no ano de 2020, a arguida AA declarou ter auferido o montante de €12.074,75, pagos pela “...” e pela “...”.
37. A arguida concordou e quis atuar nos moldes anteriormente descritos, de molde a dissimular a proveniência ilícita das quantias pecuniárias creditadas na conta bancária por si titulada, descrita em 1., logo que esses valores ficaram disponíveis.
38. Procedendo a diversas operações a débito nos termos anteriormente descritos, gastando estes montantes pecuniários quer em proveito próprio, quer de terceiros, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e que haviam sido transferidos a crédito de forma fraudulenta para a sua conta bancária.
39. Fê-lo, realizando operações bancárias a débito, designadamente e entre o mais, mediante compras em território nacional e no estrangeiro, constituição de conta a prazo, pagamentos, reintroduzindo aquelas quantias no circuito económico-financeiro como se tratassem de verbas obtidas de forma lícita, dificultando a ação da justiça, designadamente no que respeita ao apuramento da sua ilegítima proveniência, procurando evitar a sua recuperação.
40. E atuou com o objetivo concretizado de evitar a reação penal sobre a pessoa que atuou da forma descrita de 2. a 15..
41. Agiu a arguida AA sempre de forma livre, voluntária e conscientemente, com o objetivo de obter um benefício ao qual sabia não ter direito, em prejuízo de terceiros, o que representou, quis e conseguiu, consciente das circunstâncias que determinaram as transferências com origem na conta da sociedade DD.
42. Mais sabia ser esta sua conduta ilícita e proibida por lei.
43. Na conta indicada em 1., foi cativado o saldo remanescente de €32.492,40, que já foi devolvido à assistente.
44. Natural e nacional de ..., a arguida dispõe de título de residência …, válido até …-2024.
45. Oriunda de um agregado familiar numeroso (oito filhos), veio para Portugal em outubro de 2010, tendo permanecido, depois, em ..., durante 7 anos e até 2017, data em que regressou ao nosso país.
46. O pai já faleceu e a mãe reside em ....
47. O agregado familiar da arguida é composto, desde outubro de 2022, por ela, pela irmã de 21 anos e pela sobrinha de 20.
48. Na data suprarreferida, a arguida residia sozinha.
49. Reside num apartamento, em zona periférica, com boas condições de habitabilidade.
50. A arguida concluiu o curso de licenciatura em …, em ....
51. Em janeiro de 2021, a arguida trabalhava num …, auferindo €900,00 por mês, e dedicava-se à expedição pontual de produtos para ..., onde a mãe explora uma ....
52. A arguida trabalha, desde ..., por conta própria, tendo aberto um estabelecimento comercial de produtos de ....
53. Trata-se de uma loja situada no centro comercial de ..., sito na..., na ....
54. Até outubro de 2022, desenvolveu esta atividade em paralelo com a ..., para além da atividade de expedição de produtos para ....
55. A arguida tem, atualmente, rendimentos irregulares, que rondam aproximadamente os € 1200,00 mensais.
56. A arguida despende €375,00 de renda.
57. A sua irmã e sobrinha dependem economicamente de si.
58. A arguida não tem qualquer condenação averbada no seu registo criminal.
E considerou-se serem factos não provados:
a. Que a arguida delineasse este plano descrito em 2. com o ou com os indivíduos ali referidos;
b. Que a arguida, recorrendo aos conhecimentos informáticos de que dispunha, tenha atuado com esse ou esses indivíduos se tenha intrometido nas comunicações eletrónicas mantidas entre as sociedades identificadas em 4. e 5..
c. Que a arguida, aderindo previamente a esse plano, tenha impedido as mensagens de chegar ao seu real destinatário e tenha contribuído para forjar as faturas reenviadas para a sociedade assistente;
d. Que a arguida interviesse no procedimento de reexpedição das mensagens eletrónicas, com as faturas forjadas anexadas;
e. Que a arguida AA, juntamente com outro(s) indivíduo(s) cuja(s) identidade(s) não se logrou(aram) apurar, agissem, em comunhão de esforços e intentos na execução de um plano previamente elaborado e ao qual a arguida AA aderiu, com o propósito concretizado de aceder(em) indevidamente às contas de correio eletrónico da sociedade DD e da sociedade ... e de se intrometerem nas conversações mantidas entre estas, contra a vontade, sem o conhecimento nem com autorização destas;
f. Que a arguida AA soubesse que os aludidos documentos assim anexados como faturas não haviam sido emitidos tal e qual pela sociedade ..., e que, aliás, o ... ali indicado como conta bancária na qual deveria ser creditados os valores em dívida era a conta bancária por si uni titulada no ... e que, fazendo uso dos mesmos, a arguida AA soubesse que punha em causa a fé pública dos documentos emitidos no âmbito de uma relação jurídica e o tráfego jurídico comercial em geral;
g. Que a arguida AA agisse com o propósito concretizado de fazer crer que as mesmas haviam sido emitidas pela sociedade ... à sociedade DD e que os elementos na mesma descritos, designadamente quanto às instruções para pagamento, estavam corretos, e que o pagamento nos exatos termos indicados, implicaria o pagamento de dívidas devidas como contrapartida pecuniária por serviços prestados no âmbito de relações comerciais mantidas entre aquelas sociedades, bem sabendo que tal não correspondia à realidade;
h. Que a arguida AA, atuasse do modo descrito de 2. a 15. em conjugação de esforços e intentos com outro(s) indivíduo(s) cuja(s) identidade(s) não se apuraram, e sempre sob a égide da resolução inicialmente traçada.
O acórdão recorrido motivou como segue a decisão sobre a matéria de facto:
Em processo penal, vigora o princípio da livre interpretação da prova, consagrado no artigo 127º do nosso Código de Processo Penal, que prevê que “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. Livre apreciação da prova não se confunde, claro está, com o impressionista-emocional arbítrio ou a decisão irracional “puramente assente num incondicional subjetivismo alheio à fundamentação e a comunicação” – cfr. Prof. Castanheira Neves, citado pelo Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 1, 43. O processo de formação do juiz deve, antes sim, assentar na recolha de dados objetivos, numa apreciação da prova motivada e controlável, condicionada ao princípio da busca da verdade material.
Gozando um arguido da presunção de inocência (cfr. artigo 32, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa), toda e qualquer dúvida que permaneça após a produção da prova reverterá a favor daquele. O princípio in dubio pro reo, na fórmula enunciada por Stubel no século XIX, constitui um princípio do direito processual penal, segundo o qual a dúvida em relação à prova da matéria de facto deve ser sempre valorada a favor do arguido.
O Tribunal, ao fixar a matéria de facto supra descrita, fundou a sua convicção na apreciação conjunta e crítica das declarações prestadas, em audiência, pela arguida, confrontadas com os depoimentos das testemunhas e documentos carreados para os autos. Sendo que a apreciação da prova que ora se faz não engloba apenas os factos probandos que possam ser apreciados por prova direta, mas também os indiciários ou interlocutórios que, por deduções e induções lógicas e objetivas permitam, de acordo com as regras da experiência, conduzir à prova indireta de outros factos que constituem o thema probandum. O Tribunal ancora a sua convicção não apenas nestas declarações da arguida, crivadas por um critério de experiência comum, mas também no seu confronto com factos habilitantes ou indiciários, que permitem deduzir os factos principais, confirmando ou infirmando o afirmado por aquela.
O Tribunal alicerça, ainda, a sua convicção na análise dos documentos juntos aos autos, que revelam a abertura de conta e os seus movimentos, a crédito e a débito, com especial enfoque para as transferências recebidas da conta do ... da Assistente e para as operações a débito efetuadas para outras contas nacionais ou internacionais. Assim, nenhum dos fluxos financeiros descritos na douta acusação é posto em causa, seja pela arguida, que admite genericamente os movimentos na sua conta, seja por qualquer testemunha ou documento. Em particular, o tribunal apreciou a documentação bancária junta aos autos a fls. 112 a 114 e 191 (extrato da conta descrita em 1.), 115 (autorização dada pela arguida ao ... para devolver a quantia de € 12 300,00 creditada em 9 de junho e apenas esta), 126 a 130 (mapa das principais operações a débito entre 2 e 9 de junho de 2021 e descrição das operações SEPA ordenadas a partir desta mesma conta ...), 131 (informação prestada pelo ..., nomeadamente quanto aos cartões associados à conta), 166 a 168, 176 (comprovativos de ordens de transferência a partir da ferramenta homebanking do ...) 187 (cópia de ficha de assinaturas da conta descrita em 1.) 189 (cópia de ficha do cliente) e extrato sob a refª citius 207997291 de 4 de abril de 2022 (extrato e descritivos das operações feitas, a crédito e a débito, sobre a mesma conta bancária entre janeiro de 2020 e 13 de julho de 2021. Estes documentos permitem confirmar a conta da titularidade exclusiva da arguida, o contrato de abertura de conta, as condições de movimentação e as condições contratuais particulares, assim como os movimentos, a crédito ou a débito, no período delimitado pela douta acusação.
Os documentos bancários apresentados nos autos e analisados criticamente para a prova dos movimentos entre contas, supra assentes, resultam das normas de reconciliação automática de pagamentos, sendo que os elementos de identificação das operações estão vertidos nos mesmos. A análise da conta permite concluir que o saldo médio da conta é muito baixo, aumentando exponencialmente após dois movimentos a crédito, no valor de €2.811,60 e de €12.656,40 em 15 de janeiro e 15 de fevereiro de 2021. Estes movimentos estão descritos como Crédito C.O. (Liq) .... Essa conta não aparece cartografada nas informações prestadas pelo ..., nem se alcança das informações financeiras carreadas para o Processo de Averiguações, aberto após a comunicação de transações suspeitas ao abrigo do disposto nos artigos 43.°, n.º 1, da Lei nº 83/2017, de 18 de agosto, e 51.º, n.º 1, do Aviso do Banco de Portugal nº 5/2013. Mesmo admitindo que se trata de resgate de conta titulada pela arguida ou sob o seu domínio, após estes créditos, seguem-se operações a débito, nomeadamente para pagamento da conta cartão de crédito. Perpassa dos movimentos da arguida, algum despesismo e a realização de despesas na plataforma ..., que promove apostas desportivas e jogos de casino on-line. Após o crédito dos montantes descritos em 16. a 19. (que se alcançam, para além das declarações confessórias da arguida, dos extratos de conta da sua conta domiciliada no ... e dos comprovativos de operações homebanking do ...) precipitam-se, inclusivamente nos mesmos dias, uma série de movimentos a débito, com destaque para pagamentos MBway para diversas pessoas ( HH, P/XXXXX8939, MBWAY P/XXXXX5734, MBWAY P/XXXXX8939TRF MBWAY P/XXXXX4921, TRF MBWAY P/XXXXX1898, MBWAY P/XXXXX9560, MBWAY P/XXXXX4614, MBWAY P/XXXXX3781, MBWAY P/XXXXX8939, MBWAY P/XXXXX1319, MBWAY P/XXXXX5470, MBWAY P/XXXXX0904, TRF MBWAY P/XXXXX0919, TRF MBWAY P/XXXXX3075, TRF MBWAY P/XXXXX2692, TRF MBWAY P/XXXXX4614, /XXXXX8939, TRF MBWAY P/XXXXX4257, TRF MBWAY-..., MBWAY P/XXXXX6959, TRF MBWAY P/XXXXX4724 e TRF MBWAY P/XXXXX9081). Ainda que se contabilizem € 6 172,79 de transferências a crédito da plataforma sedeada na ... ..., o que motiva a resposta restritiva à matéria de facto alegada na acusação e que ora se deu por assente em 34., também se verificam operações a débito. No entanto, não se regista nenhuma operação a débito com destino àquela plataforma desde 27 de abril de 2021. E observa-se que a última operação bancária que envolveu transferências para a ..., ocorreu no dia 10 de maio de 2021.
E relevam os pagamentos da conta cartão (de crédito): em 27 de abril de 2021, 28 de abril de 2021 e 4 de junho de 2021, nos montantes de €200,00, €2.000,00 e €3.500,00. E sucedem-se os pagamentos à ..., bem como transferências para terceiros que não eram, normalmente, beneficiários de outras transferências: A título de exemplo, em 28 de abril de 2021, €150,00 transferidos II e em 7 de junho, €800,00 transferidos para JJ.
Em 4 e em 9 de junho de 2021, verificam-se movimentos a débito relevantes: cancelamento antecipado, no valor de €1.968,87 e constituição de depósito a prazo e, na mesma data, operação sob a referência “entrega antecipada”, nos valores de €1.000,00 e €1.005,20, respetivamente. Estes movimentos a débito não são acompanhados de operações a crédito significativas, pelo que fica a dúvida se se tratam de comissões sobre o cancelamento antecipado de qualquer garantia em contrato de financiamento, não se alcançando dos autos que tal pagamento diga respeito a contratos em que a arguida surja como contraente.
As declarações da arguida, muito hesitantes e pouco credíveis, não permitem infirmar esta convicção de que estes rápidos movimentos são típicos e transversais em situações em que o titular da conta beneficiada por créditos obtidos ilicitamente, reintroduz essas quantias no circuito económico-financeiro como se tratassem de verbas obtidas de forma lícita. São operações em que o dinheiro se dissipa, geralmente por vários beneficiários, dificultando a ação da justiça, a rastreabilidade do dinheiro e a sua recuperação. Em suma, a arguida diz que “assume a sua responsabilidade” e que entendeu, agora, a gravidade da situação. E explica que a sua mãe tem um negócio em ..., no Concelho de ..., na ..., em ..., em concreto uma loja chamada “...”. A arguida, já antes destas datas, fazia transações para ..., com produtos de cosmética que adquiria em Portugal que expedia para a sua mãe e ajudava, em simultâneo, pessoas a enviarem dinheiro para aquele país. Em data que não se consegue precisar, um indivíduo cabo verdiano, habitante naquela ilha, dos conhecimentos da sua mãe e tido por um empresário de sucesso à escala regional, propôs à sua mãe um negócio a que a arguida já tinha recorrido para evitar o pagamento de elevadas taxas praticadas pelas casas de câmbio na remessa de dinheiro entre Portugal e .... Afirma a arguida que este indivíduo, que apenas conhece por EE, propôs à sua mãe a transferência de verbas de Portugal para aquela ilha de .... Para tanto, e para não perderem dinheiro em taxas elevadas, ele fazia a transferência para a sua conta e a mãe entregaria, em troca, escudos de .... A arguida, por seu turno, enviaria os produtos à mãe que esta usava no seu comércio, no valor correspondente. O seu ganho traduzia-se, assim, em poupar as taxas cobradas pela .... Quanto ao produto das vendas da loja, este é guardado pelo seu avô de 80 anos, que não tem conta. A arguida admite que recebeu três transferências na conta, que diziam “Arquitectos”, afigurando-se-lhe que podia ser uma conta associada ao tal “EE”. A arguida comenta que expediu produtos para ..., muitas vezes, por barco, não sabendo quantas vezes o fez. E reconhece que tem um negócio de venda de cosméticos em ..., não tendo aberto, jamais, atividade fiscal de importação/exportação. Olhados os extratos, não se encontra qualquer evidência de pagamentos feitos a despachantes. Reclama a arguida que ainda foi a ... à procura do tal EE, mas não o encontrou, tendo apurado que ele desapareceu. A arguida declara que tinha, na sua posse, o cartão de crédito e o cartão de débito, explicando que pagava os produtos cosméticos que enviava para ..., comprados junto da ... e do ..., entre outros, com este cartão de crédito. E reconhece ter tido, sempre, o domínio do acesso ao homebanking, garantido através da aplicação que foi instalada no seu telemóvel na Instituição bancária. Sendo que jamais perdeu o controlo do telemóvel. E, confrontada com a falta de apresentação de queixa, a arguida afirma que não a conseguiu apresentar até porque, no Banco, lhe disseram que já tinham apresentado queixa. E instada a responder sobre o que lhe foi dito no banco – sendo notório que teria que ser confrontada com as operações a crédito feitas para a sua conta – afirma que, quando lhe disseram que era uma “burla”, se mostrou disposta a devolver o dinheiro. Questionada pela razão pela qual apenas autorizou a devolução de €12.300,00 (fls. 115), a arguida vacila e não apresenta qualquer explicação lógica, dizendo o óbvio, que apenas autorizou a devolução de €12.300,00. A arguida admite que não costumava fazer operações destes montantes, o que os extratos bem espelham. No que parece credível, a arguida afirma não ter curso de informática, nem conhecimentos especializados nesta área. E revela que esteve a viver em ... durante 7 anos, até 2017. A arguida parece responder de forma esquiva a pergunta sobre a existência de um namorado, no que levanta suspeitas, até porque uma das testemunhas de defesa afirma que ela teria um namorado em Portugal. Sendo que se atribui reduzido crédito às declarações da arguida, no que tange a este negócio realizado com este suposto empreiteiro cabo verdiano.
Dos depoimentos das testemunhas de acusação, permite-se comprovar que as transferências bancárias foram efetuadas para a conta da titularidade da arguida sem qualquer interferência, dentro do circuito bancário, que conduzisse essas importâncias para esta conta. Na verdade, a própria arguida não questionou a autenticidade dos movimentos e operações e admite que estes montantes foram parar à respetiva conta bancária. As suas declarações são contrárias às regras de experiência comum e os depoimentos das testemunhas de defesa apenas permitem ampliar essa certeza. Efetivamente, a loja da mãe na pequena povoação de ... não tem dimensão para a venda de produtos cosméticos nestes valores, pelo que se torna manifesto que a atitude da arguida, depois das transferências, é de molde a presumir que sabia que o dinheiro tinha origem ilícita. Sendo que não existe a evidência de qualquer “EE” que atuasse do modo que diz que este atuou. Pelo que se permite compreender, à luz das regras de experiência comum, que mesmo que a arguida não tivesse conhecimento de todo o plano e dos contornos da fraude, bem compreendeu que se tratava de um esquema fraudulento e que teria como vítima a empresa ordenante da transferência, à qual jamais prestou qualquer satisfação moral, o que é indiciador da intenção com que atuou. Ou seja, a arguida teria conhecimento genérico da proveniência do dinheiro depositado na sua conta, resultando dos movimentos que admite terem sido feitos por si, que esta atividade mereceu a sua aquiescência. O que leva o tribunal a concluir como fez de 37. a 42..
O facto assente em 43., para além de assentar nas declarações e depoimentos de KK e de LL, deriva da análise do documento de fls. 538. As declarações do representante da assistente e os depoimentos das testemunhas de acusação mostraram-se determinantes, em conjugação com a análise das faturas emitidas pela ... (fls. 153 a 156) e das forjadas (fls. 162 a 165) , com os e-mail´s enviados por esta sociedade (340 a 342) e dos rececionados pela DD (157 a 160), bem como dos cabeçalhos técnicos destes, visionados em audiência, para concluir como se fez de 2 .a 19..
FF, secretária da empresa ..., confirma que executa, nesta sociedade, que se dedica a estudos e a projetos de engenharia, trabalho administrativo. E estava atribuído, para a realização da sua atividade, nomeadamente para a apresentação de faturas aos clientes, o e-mail .... A DD é, desde há longos anos, cliente da empresa para a qual trabalha, dedicando-se à elaboração de projetos de arquitetura. A depoente sempre comunicou, ao longo dos anos, com a GG, funcionária da DD, por e-mail. E, para cobrar os serviços prestados pela ..., emitia um documento – fatura - em PDF, processado pelo programa Primavera. Estes documentos continham a indicação do ... correspondente a conta bancária aberta no .... Confrontada com fls. 153, afirma tratar-se de fatura original por si processada. Quanto ao documento de fls. 164, assegura que não foi da sua obra, confirmando que surge, ali, indicado outro .... O mesmo acontecendo com o documento de fls. 165, que também analisou. Visto o documento de fls 157, reconhece o seu e-mail. Assim, confirma que enviou faturas à DD em maio e em junho. Esta empresa não costumava atrasar-se. Pelo que estranhou, quando enviou um e-mail à GG a questionar sobre a previsão da data de pagamento, ela ter respondido que já tinha pago. Verificou e viu que a fatura não tinha sido paga e volta a insistir com a GG, que envia o comprovativo dos pagamentos. A depoente constatou que aquele comprovativo era para outra instituição e, em nova troca de correspondência, a sua homóloga envia-lhe faturas com indicação da conta do .... E enviou os mail´s, tendo confirmado que não eram os mails que tinham sido por si enviados. A testemunha assegura que a DD liquidou as faturas em falta e que a ... não tem, neste momento, qualquer prejuízo.
GG, administrativa na ..., declara que, em 2021, trabalhava em part time, como administrativa, para a DD. Competia-lhe, além do mais, proceder a conciliações bancárias, emitir documentação, lançar documentos, executando todo o trabalho de administrativa A depoente esteve a desempenhar estas funções na assistente DD durante 6 anos, terminando a ligação pacificamente. Explica que o seu marido era ... da DD e trabalhou, ele próprio, 15 anos para esta sociedade. E já havia, desde então, uma relação comercial com a .... A depoente confirma que a testemunha FF era a intermediária dessa relação comercial. O procedimento habitual consistia em esta enviar o documento - fatura em PDF - para a testemunha pagar. A testemunha pagava a fatura no momento em que o cliente da DD pagava a parcela relativa aos serviços contemplados naquela fatura. A testemunha tinha um plafond diário de €30.000,00 para fazer os pagamentos. Assim, deparando-se com duas faturas por pagar que, no conjunto, ultrapassava esse plafond, fez transferência bancária num dia e agendou o pagamento do €12.300,00 para o dia seguinte. A FF mandou-lhe um mail a dizer que não tinha recebido. Como tinha agendado o pagamento de €12.300,00, pensou que tinha havido um erro no processamento da ordem e pensando que a ..., caso houvesse duplicação de pagamento, lhe devolveria o dinheiro, voltou a ordenar a transferência desses €12.300,00, assim justificando o facto assente em 19.. A testemunha comunicou à FF, que lhe volta a dar conta que não tinha recebido o pagamento. A depoente, permitindo compreender o sucesso do engodo das pessoas cuja identidade não se apurou, explica que, antes desta data, tinha começado a fazer o pagamento para os ...´s que vinham nas faturas, por conselho do ..., em vez de usar os ...´s registados no sistema. Quanto aos e-mail´s que recebeu, reconhece que eram iguais àqueles que costumava receber, havendo até a menção de beijinhos ao seu marido, pelo que não suspeitou da respetiva autenticidade. A testemunha, quando se apercebe do engano, reencaminha tudo para os patrões OO e KK. Depois, para além de analisarem o que se passava, simularam um pagamento para o ... indicado na fatura e perceberam que pertencia a uma AA, desconhecida na empresa .... Pelo que apresentaram queixa no banco e o KK fez queixa na Polícia. Ainda foi solicitado, junto da instituição financeira, que bloqueasse os pagamentos, mas tal já não se afigurou possível. Desconhece quem ficou com o prejuízo. A depoente confirma que fizeram um pedido de verificação dos mails, para saber onde os intrusos tinham entrado e nada apuraram.
KK, sócio gerente da assistente, prestou declarações nesta qualidade. O depoente confirma o que resulta da certidão permanente do registo predial junta aos autos e declara que a DD dedica-se a projetos de arquitetura. E explica que esta sociedade mantém relações comerciais desde ... com a ..., que presta consultadoria na área de engenharia. O declarante não estava em cima da troca de mail´s entre as duas sociedades, que assentava numa relação de confiança e na rotina das práticas comerciais instituídas. Tudo correu sempre, sendo que a troca de correspondência era assegurada pelo secretariado. GG era, à data, secretária executiva. OO é outro sócio e LL outro irmão que passou, mais tarde, a desempenhar, além de outras, as funções da GG. O LL é que alertou para este facto e pediu para fazer queixa. Este seu irmão é que instala os softwares. Na altura, existiam 20 arquitetos a colaborar com a assistente e estavam a passar por uma reformulação dos postos de trabalho. Apercebeu-se a posteriori que, entre o envio e a receção, há uma troca da folha de rosto, bem como do anexo, mas essa troca não foi percebida em tempo real, devido à já referida relação de confiança. O declarante desconhece se o mail que foi enviado foi intercetado no servidor da .... E confirma que conseguiu receber parte do dinheiro retido pela entidade bancária.
LL, gestor, confirma ser funcionário da DD e corrobora que a GG era a administrativa e que ele ia entrar como gestor da sociedade. Estava, então, a inteirar-se dos procedimentos da sociedade. Através de conversa com esta secretária administrativa, percebeu que havia uma falta de pagamento dos serviços da .... Ou seja, tinha havido um pagamento e eles diziam que não tinham recebido. O depoente foi ver os e mail´s e percebeu que os pdf tinham fraca qualidade. Analisou, depois, o web mail da GG e percebeu que tinha sido criada uma regra relativamente aos mail´s que vinham da ..., que determinava que todas as mensagens que viessem da ... fossem para a pasta das “mensagens lidas”. Pelo que a GG não os via e não os abria. Vistos os e-mail´s forjados, estes pareciam vir da FF. A testemunha confirma o que se analisou em audiência. - a Polícia pediu os códigos - cabeçalhos técnicos - e aparecia lá outro e-mail. Como se alcança, aliás de fls. 177. O depoente afirma que lhe parece que foi feito um novo PDF através de um método relativamente rudimentar – foi processado como jpeg e, depois, o documento terá sido reconvertido, já que a resolução era mais fraca do que a do original. Mas acredita que a funcionária não tinha capacidade de distinguir. Como já trabalhavam há 30 anos com a ..., decidiram dividir o prejuízo. Depois, como parte do dinheiro foi devolvido à DD, a assistente pagou à ... e suportou o prejuízo remanescente. A empresa ... dá assistência informática à assistente, pelo que lhes pediram ajuda para saber onde tinha havido ingerência no servidor e por quem. Não chegaram a grande conclusão, não logrando obter qualquer resposta da ....
PP, sócio gerente da ..., explica que teve conhecimento da situação quando o KK lhe ligou a dizer que o dinheiro tinha sido desviado. O KK disse-lhe que ia fazer uma queixa na polícia. O depoente transmitiu à FF que tinha havido um desvio do dinheiro para pagamento das faturas que correspondiam a serviços prestados pela .... Também a testemunha desconhece qual foi o ponto de entrada que permitiu esta intrusão na correspondência. Não tinha havido, até aí, mudanças nos procedimentos, que estavam instituídos há muitos anos.
QQ, técnico de informática a prestar serviços para a ... desde 2006 ou 2007, revela que fez a análise ao computador da FF. Tentou perceber se aí, ou no servidor da Altice tinha havido qualquer tentativa de acesso a esse computador ou à conta de correio. E chegou à conclusão que não. A conta de correio que foi usada para o envio do e-mail correspondia a outro domínio (falso). Vendo os detalhes das mensagens que a DD reencaminhou, como sendo as rececionadas (cfr fls. 177), percebia-se que não tinha que ver com o domínio da .... Assim, conclui que a manipulação terá sido operada através de intrusão no sistema da assistente. Na verdade, conclui que se foi criada essa regra de mail, a manipulação terá que ser feita a partir de email´s intercetados naquela empresa.
As testemunhas de defesa depuseram com relativa espontaneidade.
RR declara-se afilhada da mãe da arguida que é conhecida como .... A testemunha é amiga da arguida, conhecendo-a desde sempre. A depoente veio em 2008 para Portugal. Confirma que a família da arguida tem uma mercearia, sita em ..., uma aldeia em que toda a gente se conhece. E esta loja também vendia produtos cosméticos. RR conta que quando vai de férias, a arguida pede para entregar dinheiro, para evitar, assim, o pagamento de taxas. Esta testemunha confirma, de forma genuína, que está em crer que a arguida não tem domínio da informática. Como se tinha antevisto, esta amiga da arguida, explica que esta tinha um namorado em 2020 e em 2021, ainda que não o conheça bem. E no que adensa a perplexidade sobre as declarações prestadas pela arguida, a testemunha assevera que a arguida não lhe contou nada sobre ter sido enganada, nem sobre um tal “EE”. Efetivamente, tem por certo o tribunal, atenta a proximidade da testemunha e arguida, que era natural que esta comentasse a existência de um tal EE se tivesse sido efetivamente por ele enganada. A testemunha confirma que a loja da mãe da arguida se trata de uma loja pequena.
SS declara ser amiga da arguida “grande amiga” há mais de 20 anos. Eram vizinhas em ..., na aldeia de ..., em .... E confirma que a família tem um negócio nessa povoação. A testemunha confirma que chegou a pedir à AA que a ajudasse a enviar dinheiro para .... Assim, entregava dinheiro à arguida e os familiares dela entregavam essa quantia, em numerário, aos seus familiares em .... Também esta testemunha de defesa tem um depoimento fortemente abonatório do caráter da arguida, que entende ser responsável, altruísta e dedicada à família. Questionada, não revê a sua amiga a fazer apostas on line.
TT é amiga da arguida há quase dois anos. A testemunha tinha uma loja em frente à da arguida, que explorava uma loja de venda de perfumes e de cremes. Esta depoente mantém, assim, um depoimento abonatório, nada sabendo que permita infirmar os factos que o tribunal tem por certos terem ocorrido da forma assente.
O facto assente em 36. resulta da análise dos extratos de remunerações registadas no sistema da Segurança Social. Os demais factos relativos às condições económicas e sociais da arguida resultam do teor do relatório social e das respetivas declarações. E apreciaram-se ainda os depoimentos das testemunhas de defesa, que permitem reforçar a convicção de que aquela tem hábitos de trabalho e goza de forte enquadramento social.
A prova de ausência de antecedentes criminais resulta da análise do respetivo certificado de registo criminal juntos aos autos.
Os factos que se consideraram não comprovados resultam do que se foi assinalando e da falta de quaisquer meios de prova que os comprovassem. Na verdade, não foi feita qualquer apreensão de material informático, nem de prova digital que comprometa a arguida com os factos não assentes. Ainda que se alcance que a arguida é dotada de clarividência e de recurso cognitivos pelo menos médios, ninguém lhe atribui conhecimentos informáticos suficientes para uma manipulação de documentos digitais ou para a intromissão em comunicações eletrónicas. E mesmo que não esteja excluída a possibilidade desta intromissão ter sido fortuita, também não existe qualquer ligação conhecida da arguida à DD ou à ... que lhe permitisse ter esse acesso facilitado. Pelo que apenas se permite concluir que a arguida interveio a posteriori, fornecendo a conta e procedendo a operações de dissimulação, aí naturalmente conluiada com pessoa que teve ligação direta ou relevante a esta ação que se deu por assente de 3. a 12.
* * *
Apreciando…
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
Assim, a recorrente alega a existência de erro de julgamento, violação do princípio in dubio pro reo e errada qualificação jurídica. Requer a absolvição do crime e do “ressarcimento à assistente”.
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Do erro de julgamento
Alega a recorrente que foram erradamente dados como provados os factos constantes nos pontos 26 a 42 do acórdão recorrido, já que não existe qualquer prova no inquérito ou na decisão condenatória demonstrativa que tais factos tivessem ocorrido com o seu conhecimento ou autorização. E diz que isso foi reconhecido pelo Tribunal a quo quando fez constar como factos não provados “que a arguida delineasse este plano descrito em 2. com o ou com os indivíduos ali referidos” (al. a) e “Que a arguida AA, atuasse do modo descrito de 2. a 15. em conjugação de esforços e intentos com outro(s) indivíduo(s) cuja(s) identidade(s) não se apuraram, e sempre sob a égide da resolução inicialmente traçada” (al h). Diz também que o Tribunal a quo considerou que os factos foram praticados com dolo directo sem indicar qualquer facto juridicamente relevante, apto a revelar a natureza de dolo.
Define o art. 124º 1 do Cód. Proc. Penal, o que vale em julgamento como prova, ali se determinando que “constituem objecto de prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis”. Neste artigo, onde se regula o tema da prova, estabelece-se que o podem ser todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou para a inexistência de qualquer crime, para a punibilidade ou não punibilidade do arguido, ou que tenham relevo para a determinação da pena. A ausência de quaisquer limitações aos factos probandos ou aos meios de prova a usar, com excepção dos expressamente previstos nos artigos seguintes ou em outras disposições legais (só não são permitidas as provas proibidas por lei ou as obtidas por métodos proibidos – arts. 125º e 126º do mesmo Cód.), é afloramento do princípio da demanda da descoberta da verdade material que continua a dominar o processo penal português (Maia Gonçalves, Cód. Proc. Penal, 12ª ed., p. 331).
A prova pode ser directa ou indirecta/indiciária (Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Proc. Penal, II vol., p. 99 ss). Enquanto a prova directa se refere directamente ao tema da prova, a prova indirecta ou indiciária refere-se a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova.
A nossa lei processual penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova, quer a directa quer a indiciária, pelo que o fundamento da sua credibilidade está dependente da convicção do Julgador que, sendo embora pessoal, é sempre motivada e objectivável, valorado cada meio por si e na conjugação dos vários elementos, analisados de acordo com as regras da experiência.
Efectivamente, nos termos do art. 127º do Cód. Proc. Penal, “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente” – é o princípio da livre apreciação da prova.
Liberdade que, todavia, não consiste numa “operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas a valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão” (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, p. 111).
Diz Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, vol. I, p. 199 e ss.), que esta liberdade está de acordo com um dever: o dever de perseguir a chamada “verdade material”. Ou seja, a liberdade do convencimento do Julgador, se não deixa de ser expressão de uma convicção pessoal, também não é uma liberdade meramente intuitiva, é antes um critério de justiça que se tem que basear na verdade histórica das situações e necessita de dados psicológicos, sociológicos e científicos para a certeza da decisão.
A recorrente impugna concretos factos dados como provados (nos pontos 26 a 42) mas limita-se a impugnar genericamente a convicção do Tribunal recorrido, alegando que não existe qualquer prova no inquérito ou na decisão condenatória demonstrativa que tais factos tivessem ocorrido com o seu conhecimento ou autorização.
Ora a impugnação da decisão sobre matéria de facto pode fazer-se por duas vias: mediante a invocação de vícios da sentença enunciados no nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal (dita impugnação de âmbito restrito), ou mediante a invocação de erro de julgamento, detectável pela análise da prova produzida e valorada pelo Tribunal recorrido. E quanto à eventual existência de erro de julgamento, temos que os n.ºs 3 e 4 do art. 412º do Cód. Proc. Penal contêm directrizes muito precisas e exigentes.
Com efeito, o recorrente que pretenda impugnar a decisão sobre matéria de facto com fundamento em erro de julgamento, tem de especificar (em conformidade com o nº 3 do citado art. 412º), além dos concretos pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados pelo Tribunal recorrido (obrigação só satisfeita com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida), também as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (ónus que só fica satisfeito com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida).
Além disso, o recorrente tem de expor a(s) razão(ões) por que, na sua perspectiva, essas provas impõem decisão diversa da recorrida.
No caso, a recorrente limita-se a indicar os pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados, “atacando” a convicção do Tribunal recorrido através da afirmação de que a apreciação da prova, efectuada de acordo com as regras da experiência comum não permitia a conclusão tirada pelo Tribunal, mas sem explicitar porquê.
Todavia, é consensual entre a doutrina e a jurisprudência que o recurso em matéria de facto não implica uma reapreciação, pelo Tribunal de recurso, da globalidade dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida – duplo grau de jurisdição em matéria de facto não significa direito a novo (a segundo) julgamento no Tribunal de recurso, como pretende a recorrente.
Assim, o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do Tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para tanto, deve o Tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa – sobre este ponto, cfr. os acórdãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007 (Processo 07P21), de 23 de Maio de 2007 (Processo 07P1498) e de 3 de Julho de 2008 (Processo 08P1312), todos disponíveis em www. dgsi.pt).
No caso em análise a recorrente pretende, tão só, discutir a convicção do Tribunal, sem que o recurso cumpra o ónus de especificação, antes resultando que a arguida pretende que a Relação faça um novo julgamento tendo por base a reapreciação de todas as provas, o que não tem cabimento nas regras processuais penais.
Não podendo este Tribunal reexaminar amplamente a matéria de facto fixada pelo Tribunal recorrido, resta atender ao texto da decisão recorrida para averiguar de eventuais vícios existentes, nos termos do art. 410º 2 do Código que se tem vindo a citar, de conhecimento oficioso.
No plano dos vícios previstos no art. 410º, nº 2, do Cód. Proc. Penal, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (alínea a) daquele nº 2) ocorre quando, da factualidade elencada na decisão recorrida, resulta que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição e decorre da circunstância de o Tribunal não se ter pronunciado (dando como provados ou não provados) todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados pela acusação ou pela defesa, ou tenham resultado da discussão.
Trata-se de um vício que consiste em ser insuficiente a matéria de facto para a decisão de direito. Como refere o Prof. Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, III vol., p. 339) “é necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada”. Ou seja, é necessário que se verifique uma lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para a decisão de direito.
Como se refere no Acórdão do STJ de 21.06.2007 (Processo 07P2268), a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é “a insuficiência que decorre da circunstância de o Tribunal não ter dado como provados ou não provados todos aqueles factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão, que constituam o objecto da decisão da causa, ou seja, os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultantes da acusação ou da pronúncia, segundo o art. 339º, nº 4 do CPP”.
Analisada a decisão recorrida, não se vê que esta não tenha dado como provados ou não provados todos aqueles factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão e constituam o objecto da decisão da causa, pelo que o vício previsto na alínea a) do nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal não existe.
Quanto à contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (vício previsto na alínea b) do nº 2 do citado art. 410º), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação da convicção conduz a uma decisão sobre a matéria de facto provada e não provada contrária àquela que foi tomada.
Ainda que de forma velada, a recorrente aponta incompatibilidades entre factos provados e não provados e, de forma assertiva, este vício é invocado pelo Digno Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal da Relação.
Em causa estão os factos provados nºs 2 e 26, e os factos não provados a., e., f. e g., quando confrontados com aqueles factos provados. São eles:
2. Em data não concretamente apurada, mas anterior a abril de 2021, indivíduo ou indivíduos de identidade não apurada delinearam um plano para enganar terceiros que, convencidos erroneamente de que procediam a transferências legítimas e devidas, efetuariam transferência de valores pecuniários a crédito para, além do mais, a conta bancária titulada pela arguida AA.
26. Após os referidos montantes de €4.180,77, €12.300,00, €18.450,00 e €12.300,00, ali estarem disponíveis a crédito na mencionada conta bancária titulada pela a arguida AA, esta, na execução do plano previamente delineado com os outros indivíduos e com o intuito de camuflar a proveniência ilícita daqueles montantes, procedeu a diversas operações bancárias a débito, entre as quais:
a. Que a arguida delineasse este plano descrito em 2. com o ou com os indivíduos ali referidos;
e. Que a arguida AA, juntamente com outro(s) indivíduo(s) cuja(s) identidade(s) não se logrou(aram) apurar, agissem, em comunhão de esforços e intentos na execução de um plano previamente elaborado e ao qual a arguida AA aderiu, com o propósito concretizado de aceder(em) indevidamente às contas de correio eletrónico da sociedade DD e da sociedade ... e de se intrometerem nas conversações mantidas entre estas, contra a vontade, sem o conhecimento nem com autorização destas;
f. Que a arguida AA soubesse que os aludidos documentos assim anexados como faturas não haviam sido emitidos tal e qual pela sociedade ..., e que, aliás, o ... ali indicado como conta bancária na qual deveria ser creditados os valores em dívida era a conta bancária por si uni titulada no ... e que, fazendo uso dos mesmos, a arguida AA soubesse que punha em causa a fé pública dos documentos emitidos no âmbito de uma relação jurídica e o tráfego jurídico comercial em geral;
g. Que a arguida AA agisse com o propósito concretizado de fazer crer que as mesmas haviam sido emitidas pela sociedade ... à sociedade DD e que os elementos na mesma descritos, designadamente quanto às instruções para pagamento, estavam corretos, e que o pagamento nos exatos termos indicados, implicaria o pagamento de dívidas devidas como contrapartida pecuniária por serviços prestados no âmbito de relações comerciais mantidas entre aquelas sociedades, bem sabendo que tal não correspondia à realidade;
Analisados os descritos factos, verificamos que o acórdão recorrido não deu como provado que a arguida, ora recorrente, tenha participado na elaboração do plano que, em data não concretamente apurada, mas anterior a abril de 2021, indivíduo ou indivíduos de identidade não apurada delinearam para enganar terceiros que, convencidos erroneamente de que procediam a transferências legítimas e devidas, efetuariam transferência de valores pecuniários a crédito para, além do mais, a conta bancária titulada pela arguida – cfr. o facto provado 2. e os factos não provados a., b., c., d., e., f. e g..
Contudo, deu o acórdão recorrido como provado que a arguida, ora recorrente, participou na elaboração de plano na sequência daquele que se deu como provado em 2., concretamente plano a que se refere o facto provado 26. e os factos provados subsequentes, ou seja, após os montantes de €4.180,77, €12.300,00, €18.450,00 e €12.300,00, estarem disponíveis a crédito na conta bancária titulada pela a arguida, esta, na execução do plano previamente delineado com os outros indivíduos e com o intuito de camuflar a proveniência ilícita daqueles montantes, procedeu a diversas operações bancárias a débito, entre as quais: (…).
Clarificando, temos que não se provou que a recorrente tenha participado no plano previamente elaborado que indivíduo ou indivíduos de identidade não apurada delinearam para enganar terceiros, para aceder a dados informáticos e para forjar documentos para melhor levar ao engano terceiros, mas provou-se que, pelo menos, aderiu posteriormente ao plano, aceitando que os montantes de €4.180,77, €12.300,00, €18.450,00 e €12.300,00, estivessem disponíveis a crédito na conta bancária por si titulada, passando a dispor deles do modo descrito no acórdão.
Lidos desta forma os factos apurados que, aliás, é a consentânea com a motivação (“Pelo que apenas se permite concluir que a arguida interveio a posteriori, fornecendo a conta e procedendo a operações de dissimulação, aí naturalmente conluiada com pessoa que teve ligação direta ou relevante a esta ação que se deu por assente de 3. a 12.”) podemos concluir pela inexistência do vício de contradição insanável.
Finalmente, o erro notório na apreciação da prova previsto na alínea c) do nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal é pacificamente considerado, na doutrina e na jurisprudência, como aquele que é evidente para qualquer indivíduo de médio discernimento e deve resultar do texto da decisão, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum.
Neste sentido veja-se o Acórdão do STJ de 9.12.1998 (BMJ 482, p. 68) onde se conclui que “erro notório na apreciação da prova é aquele que é de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio facilmente dele se dá conta” e o Acórdão do STJ de 12.11.1998 (BMJ 481, p. 325) onde se refere que o erro na apreciação da prova só pode resultar de se ter dado como provado algo que notoriamente está errado, “que não pode ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras de experiência comum, sendo o erro de interpretação detectável por qualquer pessoa”.
Compaginável com a hipótese de erro notório na apreciação da prova está a alegação da recorrente de que o Tribunal a quo considerou que os factos foram praticados com dolo directo, com o seu conhecimento e autorização, sem indicar qualquer facto juridicamente relevante, apto a revelar a natureza de dolo. Porém, os factos provados 26. a 39. explicam factualmente a actuação da arguida que leva necessariamente a concluir pela existência de dolo na referida actuação.
Repare-se que os factos respeitantes aos elementos volitivos e intelectuais são inferências que se retiram dos restantes factos provados, sabido que o dolo é uma realidade que não é apreensível directamente, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum [ensina Cavaleiro Ferreira – in “Curso de Processo Penal”, Vol. II, 1981, pág. 292 – que existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta, como são todos os elementos de estrutura psicológica, os relativos ao aspecto subjectivo da conduta criminosa; também Malatesta – in “A Lógica das Provas em Matéria Criminal”, págs. 172 e 173 – defende que, exceptuando o caso da confissão, não é possível chegar-se à verificação do elemento intencional, senão por meio de provas indirectas (“percebem-se coisas diversas da intenção propriamente dita e, dessas coisas, passa-se a concluir pela sua existência”)].
Analisando os mencionados factos provados (de 26. a 39.) verificamos que após as transferências de dinheiro efectuadas pela assistente para a sua conta bancária, a recorrente procedeu a diversas operações bancárias a débito, como transferências MBWAY a crédito para conta de terceiros, pagamentos online na entidade “...” referente a jogos de casino e apostas desportivas online, pagamento de conta cartão (de crédito) no valor de €3.500,00, realizou operação de cancelamento antecipado no montante de €1.968,87, procedeu à constituição de conta de depósito a prazo pelo valor de €1.000,00, realizou uma entrega antecipada no montante de €1.005,20, procedeu a compras online em empresas no estrangeiro e fez pagamentos (via cartão) com destino a empresa “...”, em ... e a entidade “...” – plataforma online de prestação de serviços como motoristas / transporte/ entrega de comida - na ....
E a título de rendimentos por trabalho dependente, no ano de 2020, a recorrente declarou ter auferido o montante de €12.074,75, pagos pela “...” e pela “...”.
A apreciação dos movimentos da conta bancária da recorrente foi fundamental para dar como provados estes factos, como consta da motivação do acórdão supra transcrita:
«Os documentos bancários apresentados nos autos e analisados criticamente para a prova dos movimentos entre contas, supra assentes, resultam das normas de reconciliação automática de pagamentos, sendo que os elementos de identificação das operações estão vertidos nos mesmos. A análise da conta permite concluir que o saldo médio da conta é muito baixo, aumentando exponencialmente após dois movimentos a crédito, no valor de €2.811,60 e de €12.656,40 em 15 de janeiro e 15 de fevereiro de 2021. Estes movimentos estão descritos como Crédito C.O. (Liq) .... Essa conta não aparece cartografada nas informações prestadas pelo ..., nem se alcança das informações financeiras carreadas para o Processo de Averiguações, aberto após a comunicação de transações suspeitas ao abrigo do disposto nos artigos 43.°, n.º 1, da Lei nº 83/2017, de 18 de agosto, e 51.º, n.º 1, do Aviso do Banco de Portugal nº 5/2013. Mesmo admitindo que se trata de resgate de conta titulada pela arguida ou sob o seu domínio, após estes créditos, seguem-se operações a débito, nomeadamente para pagamento da conta cartão de crédito. Perpassa dos movimentos da arguida, algum despesismo e a realização de despesas na plataforma ..., que promove apostas desportivas e jogos de casino on-line. Após o crédito dos montantes descritos em 16. a 19. (que se alcançam, para além das declarações confessórias da arguida, dos extratos de conta da sua conta domiciliada no ... e dos comprovativos de operações homebanking do ...) precipitam-se, inclusivamente nos mesmos dias, uma série de movimentos a débito, com destaque para pagamentos MBway para diversas pessoas ( HH, P/XXXXX8939, MBWAY P/XXXXX5734, MBWAY P/XXXXX8939TRF MBWAY P/XXXXX4921, TRF MBWAY P/XXXXX1898, MBWAY P/XXXXX9560, MBWAY P/XXXXX4614, MBWAY P/XXXXX3781, MBWAY P/XXXXX8939, MBWAY P/XXXXX1319, MBWAY P/XXXXX5470, MBWAY P/XXXXX0904, TRF MBWAY P/XXXXX0919, TRF MBWAY P/XXXXX3075, TRF MBWAY P/XXXXX2692, TRF MBWAY P/XXXXX4614, /XXXXX8939, TRF MBWAY P/XXXXX4257, TRF MBWAY-..., MBWAY P/XXXXX6959, TRF MBWAY P/XXXXX4724 e TRF MBWAY P/XXXXX9081). Ainda que se contabilizem € 6 172,79 de transferências a crédito da plataforma sedeada na ... ..., o que motiva a resposta restritiva à matéria de facto alegada na acusação e que ora se deu por assente em 34., também se verificam operações a débito. No entanto, não se regista nenhuma operação a débito com destino àquela plataforma desde 27 de abril de 2021. E observa-se que a última operação bancária que envolveu transferências para a ..., ocorreu no dia 10 de maio de 2021.
E relevam os pagamentos da conta cartão (de crédito): em 27 de abril de 2021, 28 de abril de 2021 e 4 de junho de 2021, nos montantes de €200,00, €2.000,00 e €3.500,00. E sucedem-se os pagamentos à ..., bem como transferências para terceiros que não eram, normalmente, beneficiários de outras transferências: A título de exemplo, em 28 de abril de 2021, €150,00 transferidos II e em 7 de junho, €800,00 transferidos para JJ.
Em 4 e em 9 de junho de 2021, verificam-se movimentos a débito relevantes: cancelamento antecipado, no valor de €1.968,87 e constituição de depósito a prazo e, na mesma data, operação sob a referência “entrega antecipada”, nos valores de €1.000,00 e €1.005,20, respetivamente. Estes movimentos a débito não são acompanhados de operações a crédito significativas, pelo que fica a dúvida se se tratam de comissões sobre o cancelamento antecipado de qualquer garantia em contrato de financiamento, não se alcançando dos autos que tal pagamento diga respeito a contratos em que a arguida surja como contraente.»
Por outro lado, consta também da motivação do acórdão que a recorrente não conseguiu explicar coerentemente estes movimentos, não tendo o Tribunal a quo aceitado o que ela adiantou por inverosímil, não só de acordo com as regras da experiência, mas também face ao que foi relatado por testemunhas de defesa, que bem conhecem a arguida e a loja da mãe (“As suas declarações são contrárias às regras de experiência comum e os depoimentos das testemunhas de defesa apenas permitem ampliar essa certeza. Efetivamente, a loja da mãe na pequena povoação de ... não tem dimensão para a venda de produtos cosméticos nestes valores, pelo que se torna manifesto que a atitude da arguida, depois das transferências, é de molde a presumir que sabia que o dinheiro tinha origem ilícita. Sendo que não existe a evidência de qualquer “EE” que atuasse do modo que diz que este atuou. Pelo que se permite compreender, à luz das regras de experiência comum, que mesmo que a arguida não tivesse conhecimento de todo o plano e dos contornos da fraude, bem compreendeu que se tratava de um esquema fraudulento e que teria como vítima a empresa ordenante da transferência, à qual jamais prestou qualquer satisfação moral, o que é indiciador da intenção com que atuou. Ou seja, a arguida teria conhecimento genérico da proveniência do dinheiro depositado na sua conta, resultando dos movimentos que admite terem sido feitos por si, que esta atividade mereceu a sua aquiescência. O que leva o tribunal a concluir como fez de 37. a 42.”).
Efectivamente, a actuação da recorrente descrita nos autos permite concluir que ela actuou com dolo directo:
«37. A arguida concordou e quis atuar nos moldes anteriormente descritos, de molde a dissimular a proveniência ilícita das quantias pecuniárias creditadas na conta bancária por si titulada, descrita em 1., logo que esses valores ficaram disponíveis.
38. Procedendo a diversas operações a débito nos termos anteriormente descritos, gastando estes montantes pecuniários quer em proveito próprio, quer de terceiros, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e que haviam sido transferidos a crédito de forma fraudulenta para a sua conta bancária.
39. Fê-lo, realizando operações bancárias a débito, designadamente e entre o mais, mediante compras em território nacional e no estrangeiro, constituição de conta a prazo, pagamentos, reintroduzindo aquelas quantias no circuito económico-financeiro como se tratassem de verbas obtidas de forma lícita, dificultando a ação da justiça, designadamente no que respeita ao apuramento da sua ilegítima proveniência, procurando evitar a sua recuperação.
40. E atuou com o objetivo concretizado de evitar a reação penal sobre a pessoa que atuou da forma descrita de 2. a 15..
41. Agiu a arguida AA sempre de forma livre, voluntária e conscientemente, com o objetivo de obter um benefício ao qual sabia não ter direito, em prejuízo de terceiros, o que representou, quis e conseguiu, consciente das circunstâncias que determinaram as transferências com origem na conta da sociedade DD.
42. Mais sabia ser esta sua conduta ilícita e proibida por lei.»
Não se verifica, assim, erro notório na apreciação da prova.
Concluindo: no caso em apreço, os factos provados são suficientes para suportar a decisão de direito a que se chegou, nas suas diversas vertentes; visionando toda a matéria factual, não se verifica qualquer inconciliabilidade na fundamentação ou entre esta e a decisão; também não se patenteia a existência de erro notório na apreciação da prova, na definição que deixamos supra exposta.
Da violação do princípio in dubio pro reo
O nº 2 do art. 32º da Constituição da República Portuguesa consagra o princípio da presunção de inocência, de que o princípio in dubio pro reo constitui uma dimensão.
Referem Gomes Canotilho e Vital Moreira (in Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª edição revista, p. 519) que “o princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjectiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa”.
Com efeito, este princípio (do in dubio pro reo) resume-se a uma regra de decisão: produzida a prova e efectuada a sua valoração, subsistindo no espírito do Julgador uma dúvida insanável sobre a verificação ou não de determinado facto, deve o Julgador decidir sempre a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.
No caso, lida a motivação da decisão de facto, verificamos que o Tribunal recorrido avaliou cuidadosa e detalhadamente a prova, sem quaisquer preconceitos, e não ficou com qualquer dúvida sobre esta – e diga-se, analisando objectivamente a decisão, não vemos que subsista dúvida – pelo que não houve violação dos mencionados princípios.
Do preenchimento dos pressupostos da prática do crime de branqueamento
Alega a recorrente que não se verifica o preenchimento dos elementos típicos do crime de branqueamento previsto no art. 368º-A do Cód. Penal porque, quer no inquérito, quer na audiência de discussão e julgamento, não foi produzida, qualquer prova de que tenha ocorrido uma sua intervenção com intenção de “converter”, “transferir” e/ou “facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens”, “com o fim de dissimular a sua origem ilícita”, e que visasse dar uma aparência de origem legal a bens de origem ilícita. Diz que o tipo penal em causa exige o dolo em qualquer das suas modalidades, não sendo punível o agente a título de negligência, e que nunca se apercebeu que as quantias em causa tinham sido transferidas para a sua conta bancária da forma que consta dos autos, nem se apercebeu que posteriormente tal quantia fora transferida para desconhecidos, localizados em diversas partes do mundo.
Todavia, ao contrário do alegado pela recorrente, os factos provados preenchem todos os elementos típicos do crime de branqueamento previsto no art. 368º-A do Cód. Penal, cometido na modalidade de dolo directo.
Assim decidiu o Tribunal a quo, de forma correcta e exaustiva, e que aqui reproduzimos e subscrevemos, sem aditar nada porque despiciendo:
Na acusação era imputada, à arguida, autora material e na forma consumada, de 1 (um) crime de branqueamento de capitais, previsto e punível nos termos do disposto no art.ºs 26.º, 368.º A, n.º 1 al. j), n.ºs 2, 3, 4 do Código Penal.
O artigo 368.º-A, aditado ao Código Penal pela Lei n.º 11/2004, de 27 de março, previa, no seu n.º 1, na redação conferida pela Lei n.º 58/2020, de 31 de Agosto, vigente à data dos fatos que:
“Para efeitos do disposto nos números seguintes, consideram-se vantagens os bens provenientes da prática, sob qualquer forma de comparticipação, de factos ilícitos típicos puníveis com pena de prisão de duração mínima superior a seis meses ou de duração máxima superior a cinco anos ou, independentemente das penas aplicáveis, de factos ilícitos típicos de:
a) Lenocínio, abuso sexual de crianças ou de menores dependentes, ou pornografia de menores;
b) Burla informática e nas comunicações, extorsão, abuso de cartão de garantia ou de crédito, contrafação de moeda ou de títulos equiparados, depreciação do valor de moeda metálica ou de títulos equiparados, passagem de moeda falsa de concerto com o falsificador ou de títulos equiparados, passagem de moeda falsa ou de títulos equiparados, ou aquisição de moeda falsa para ser posta em circulação ou de títulos equiparados;
c) Falsidade informática, dano relativo a programas ou outros dados informáticos, sabotagem informática, acesso ilegítimo, interceção ilegítima ou reprodução ilegítima de programa protegido;
d) Associação criminosa;
e) Terrorismo;
f) Tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas;
g) Tráfico de armas;
h) Tráfico de pessoas, auxílio à imigração ilegal ou tráfico de órgãos ou tecidos humanos;
i) Danos contra a natureza, poluição, atividades perigosas para o ambiente, ou perigo relativo a animais ou vegetais;
j) Fraude fiscal ou fraude contra a segurança social;
k) Tráfico de influência, recebimento indevido de vantagem, corrupção, peculato, participação económica em negócio, administração danosa em unidade económica do setor público, fraude na obtenção ou desvio de subsídio, subvenção ou crédito, ou corrupção com prejuízo do comércio internacional ou no setor privado;
l) Abuso de informação privilegiada ou manipulação de mercado;
m) Violação do exclusivo da patente, do modelo de utilidade ou da topografia de produtos semicondutores, violação dos direitos exclusivos relativos a desenhos ou modelos, contrafação, imitação e uso ilegal de marca, venda ou ocultação de produtos ou fraude sobre mercadorias.”.
O artigo 368.ºA, n.º 2, previa que: “Consideram-se igualmente vantagens os bens obtidos através dos bens referidos no número anterior” e o nº 3 que “Quem converter, transferir, auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, obtidas por si ou por terceiro, direta ou indiretamente, com o fim de dissimular a sua origem ilícita, ou de evitar que o autor ou participante dessas infrações seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reação criminal, é punido com pena de prisão até 12 anos.”.
O n.º 4 do mesmo artigo, na redação conferida pela Lei n.º 58/2020, de 31 de Agosto, corresponde ao anterior nº 3: “Na mesma pena incorre quem ocultar ou dissimular a verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade das vantagens, ou os direitos a ela relativos.”. E, nos termos do n.º 5, previa-se que “Incorre ainda na mesma pena quem, não sendo autor do facto ilícito típico de onde provêm as vantagens, as adquirir, detiver ou utilizar, com conhecimento, no momento da aquisição ou no momento inicial da detenção ou utilização, dessa qualidade”. O n.º 6, nesta redação previa que “A punição pelos crimes previstos nos n.ºs 3 a 5 tem lugar ainda que se ignore o local da prática dos factos ilícitos típicos de onde provenham as vantagens ou a identidade dos seus autores, ou ainda que tais factos tenham sido praticados fora do território nacional, salvo se se tratar de factos lícitos perante a lei do local onde foram praticados e aos quais não seja aplicável a lei portuguesa nos termos do artigo 5º”.
O n.º 12 do artigo 368.º-A, na sua redação vigente à data dos factos previa que “A pena aplicada nos termos dos números anteriores não pode ser superior ao limite máximo da pena mais elevada de entre as previstas para os factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens.”.
Por seu turno, a Lei n.º 79/2021, de 24 de novembro, alterou algumas das alíneas do n.º 1, passando a ali integrar, no elenco dos crimes precedentes, para além dos analisados:
“b) Burla informática e nas comunicações, extorsão, abuso de cartão de garantia ou de cartão, dispositivo ou dados de pagamento, contrafação de moeda ou de títulos equiparados, depreciação do valor de moeda metálica ou de títulos equiparados, passagem de moeda falsa de concerto com o falsificador ou de títulos equiparados, passagem de moeda falsa ou de títulos equiparados, ou aquisição de moeda falsa para ser posta em circulação ou de títulos equiparados;
c) Falsidade informática, contrafação de cartões ou outros dispositivos de pagamento, uso de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos, aquisição de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos, atos preparatórios da contrafação, aquisição de cartões ou outros dispositivos de pagamento obtidos mediante crime informático, dano relativo a programas ou outros dados informáticos, sabotagem informática, acesso ilegítimo, interceção ilegítima ou reprodução ilegítima de programa protegido;”.
E, mais recentemente, a Lei n.º 2/2023, de 16 de janeiro alterou a alínea e) do mesmo nº 1, que passou a prever, no catálogo de crimes precedentes “Infrações terroristas, infrações relacionadas com um grupo terrorista, infrações relacionadas com atividades terroristas e financiamento do terrorismo”
Vista a evolução do preceito incriminador e a sua evolução desde o início da prática dos factos atribuídos à arguida e o período temporal em que esta atua, importa analisar o preceito incriminador.
Como ensina o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário do Código Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos dos Homem, Universidade Católica Portuguesa, pág. 866, “o bem jurídico protegido pela incriminação é a realização da justiça, na sua particular vertente de perseguição e do confisco pelos tribunais dos proventos da actividade criminosa.” Efetivamente, tal conclusão resulta, além do mais, da sua inserção sistemática, sob o Capítulo III do Título V da Parte Especial do Código Penal.
Relativamente ao tipo objetivo, o crime de branqueamento consiste nas ações de converter, transferir, auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, obtidas por si ou por terceiro, direta ou indiretamente, ocultar ou dissimular a verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade das vantagens, ou os direitos a ela relativos. Como defendem Miguez Garcia e Castela Rio, Código Penal – Parte Geral e especial, 2014, Almedina pág. 1215 “(…) o branqueamento pode ser sumariamente definido como o «procedimento através do qual o produto de operações criminosas ilícitas é investido em actividades aparentemente lícitas, mediante a dissimulação da origem dessas operações» (…) Consiste, pois, fundamentalmente, em ocultar a origem dos fundos provenientes de actividade criminosas, como o terrorismo, o tráfico de drogas ou o suborno, através da introdução de «dinheiro sujo» no circuito financeiro e económico legal, para lhe dar a aparência de legalidade, e encobrir, já branqueado, a verdadeira origem ou a identidade do proprietário (..)”.
Este artigo do Código Penal resulta do compromisso internacional de admissão no ordenamento jurídico interno, do reconhecimento do próprio Estado Português da necessidade de evitar a invasão, contaminação e corrupção das estruturas do Estado e demais estruturas financeiras e empresariais da sociedade civil e assegurar a punição das atividades de branqueamento de capitais, mesmo quando a origem dos bens a branquear se localizem no território de outro Estado-membro da Comunidade Europeia ou de um país terceiro. O artigo 9.º n.º 5 da Convenção do Conselho da Europa relativa ao branqueamento de capitais, concluída em Varsóvia, em 16 de maio de 2005, consagra o princípio da autonomia do crime de branqueamento de capitais afirmando que deve ser assegurada a possibilidade de condenação por branqueamento, “independentemente de condenação anterior ou simultânea pela prática de infracção subjacente.”
Assim, em consagração deste princípio da autonomia do crime de branqueamento em relação ao crime precedente, que adiante se desenvolverá, não se verifica a exceção da incompetência internacional dos tribunais portugueses para perseguir o crime de branqueamento de capitais, perpetrado em Portugal, com fundamento em que os crimes precedentes ocorreram fora do território nacional. No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11 de junho de 2014, proferido no processo n.º 14/07.0TRLSB.S1, a propósito da conexão entre branqueamento e ilícito típico precedente (autoria), entendeu-se que “A punição do branqueamento de vantagens, prescindindo do território nacional como lugar único da prática dos factos que integram a infracção subjacente, prescinde igualmente da punição do autor do facto precedente ou mesmo do conhecimento da sua identidade. O Acórdão do STJ de 11 de junho de 2014, proferido no Proc. n.º 14/07.0TRLSB – 3.º Secção disponível em www.dgsi.pt, distingue 3 etapas tradicionais no branqueamento de capitais, designadas, na terminologia inglesa, por placement, layering e integration (colocação, circulação e integração) “(…) a primeira fase – placement – consiste na colocação dos capitais no sistema financeiro, seja em instituições financeiras tradicionais ou noutras. A segunda fase — layering — consiste na realização de várias transações, com vista a criar várias «camadas» (layers) entre a origem real e a que se pretende visível, para assim dissimular a origem dos fundos. O objectivo é o de interromper o chamado paper trail, ou seja, o conjunto de elementos documentais que permitem a reconstrução dos movimentos financeiros efectuados. A terceira fase — integration — é o investimento (ou, na terminologia dos autores italianos, o «emprego» dos fundos), já «lavados», nas mais variadas operações económicas (p. ex., a compra de imóveis ou metais preciosos), numa perspectiva designadamente de longo prazo (…)”.
E, no que toca ao tipo subjetivo, este crime tem uma estrutura dolosa (artigo 14.º do CP), com exclusão da punibilidade de qualquer tipo de negligência. Exige-se, pois, o dolo, ou seja, o conhecimento e a vontade de realização dos elementos objetivos do tipo, de acordo com o disposto no art.º. 14.º do CP, em qualquer uma das suas modalidades.
O n.º 3 do artigo 368.º-A do CP, prevê, para além do “dolus generalis”, um tipo subjetivo específico, que se traduz na intenção de dissimular a origem ilícita da vantagem ou a intenção de evitar que o autor ou participante de qualquer uma das infrações constantes do n.º 1 seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reação criminal. Já o n.º 4 omite a referência a uma exigência de dolo específico, ainda que o dolo deva abranger a representação e vontade de dissimular a verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade das vantagens desses crimes, ou dos direitos a ela relativos.
Atenta a previsão da punição mesmo quando os factos que integram a infração subjacente ocorrerem no estrangeiro – cfr. n.º 4 na redação conferida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, “não é necessário que o agente saiba o lugar ou o tempo do cometimento do facto prévio, nem a forma de o praticar ou o exacto tipo de crime. Basta que o saiba nos seus traços essenciais, se se trata de um ou vários crimes do catálogo e que pelo menos se está perante um crime de catálogo” (Miguez Garcia, O Direito Penal Passo a Passo, volume II, 2015 2ª edição, Almedina, pág.290.
Este é um crime de mero perigo abstrato, quanto ao grau de lesão do bem jurídico, punindo as condutas típicas que coloquem em perigo a realização da justiça e a apreensão e perda das vantagens do crime.
Dá-se por reproduzida a factualidade assente e a sequência de movimentos a crédito e a débito na conta envolvida pela arguida. Por forma aos autores dos crimes de burla e dos crimes informáticos (em concreto de acesso ilegítimo) e seus colaboradores conseguissem colocar-se em sossego na posse dos valores obtidos através dos artifícios enganosos constantes do seu plano, organizou-se uma atividade orientada para a transferência, ocultação e dissipação dos valores obtidos através do sistema bancário. Pelo que, prima facie, há que cuidar da relação da atividade que se consegue atribuir a agentes concretos ao chamado crime precedente, praticado por pessoas não concretamente apuradas. A punição do branqueamento não pressupõe que tenha de existir agente determinado ou condenação pelo crime subjacente ou precedente. A lei exige apenas o conhecimento da prática da infração principal, e não a sua punição.
O crime de branqueamento e a respetiva reação penal são autónomos em relação ao facto ilícito típico subjacente. Assim, não importa que este último não tenha sido efetivamente punido, por exemplo, por inimputabilidade penal do agente, morte deste, prescrição, ou simplesmente, como acontece no caso concreto, pela impossibilidade de determinar quem o praticou e em que circunstâncias. “O tipo do branqueamento exige apenas que as vantagens provenham de um facto ilícito-típico, não de um crime, donde a punição do branqueamento não depende de efectiva punição pelo facto precedente” (cfr. acórdão do STJ supra citado). O crime de branqueamento de capitais é um tipo de crime que, pela sua estrutura, se alinha junto aos crimes de pós delito ao facto ilícito e típico precedente, à semelhança do que acontece, no nosso Código Penal, com o crime de receptação ou com o auxílio material.
Eram factos ilícitos e típicos subjacentes ao crime de branqueamento, à data dos factos subjudice os taxativamente enumerados nas várias alíneas do nº 1 do artigo 368º A do Código Penal, mostrando-se desajustada à realidade alegada e apurada a referência à alínea j). Em vez, mostra-se ajustada a referência à alínea c) que abrange: “c) Falsidade informática, contrafação de cartões ou outros dispositivos de pagamento, uso de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos, aquisição de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos, atos preparatórios da contrafação, aquisição de cartões ou outros dispositivos de pagamento obtidos mediante crime informático, dano relativo a programas ou outros dados informáticos, sabotagem informática, acesso ilegítimo, interceção ilegítima ou reprodução ilegítima de programa protegido”.
O nº 1 prevê, ainda, como crime precedente para punição do crime de branqueamento, os factos ilícitos típicos puníveis com pena de prisão de duração mínima superior a seis meses ou de duração máxima superior a cinco anos, assim como os bens que com eles se obtenham. Ao preenchimento deste tipo criminal de branqueamento de capitais não obsta, repete-se, o desconhecimento sobre o local ou autores do crime subjacente ou precedente, ou a que os factos integrantes desta infração tenham sido praticados fora do território nacional, salvaguardando-se a situação em que se tratem de factos lícitos face à lei loci delicti (lei do local onde são praticados) e aos quais não seja aplicável a lei portuguesa nos termos do artigo 5.º do Código Penal.
Ora, o artigo 5.º do Código Penal não prevê qualquer regra especial para a aplicação da Lei Portuguesa Penal aos factos da natureza dos já apreciados anteriormente e que poderiam consubstanciar a prática de um crime de burla. Mas, atendendo aos factos provados, não resulta claro onde é que os agentes dos factos precedentes atuaram – não se comprovou a partir de que país é que foi concretizado o engodo consistente na elaboração e envio de e-mail´s que enganaram a assistente, mas tudo indica que possam estar sediados em território português. Mesmo que se presumisse que os autores atuaram a partir do estrangeiro, não se afigura que os factos ilícitos e típicos correspondentes ao tipo criminal previsto nos artigos 217º. e 218.º do Código Penal não constituam facto lícito em qualquer dos ordenamentos jurídicos que poderão estar em confronto. E o mesmo se diga, fase às hodiernas ameaças ao modo de vida contemporâneo, quanto ao crime de acesso ilegítimo. A disposição patrimonial, decisiva para o empobrecimento da assistente, é feita a partir de conta sediada em Portugal, pelo que não pode deixar de ser o ordenamento jurídico penal português o aplicável (lex loci delicti). E mesmo que restasse dúvidas quanto ao local da prática do crime de burla, o que apenas por mera hipótese se admite, inexistiam dúvidas de que os atos a que alude o n.º 1 do art.º 368.º-A do Código Penal são praticados dentro do território português.
Constituindo a atividade de branqueamento uma criminalidade derivada e exigindo-se que o facto precedente ou subjacente constitua um simples ilícito típico, há lugar a falar na afirmação da autonomia do branqueamento. Pelo que a absolvição da arguida do crime de burla qualificado e do crime de acesso ilegítimo não impede concluir que os factos assentes de 1. a 21. integram a prática do crime-base de burla que determinou à transferência de dinheiro para a conta da arguida. Sendo que, para além do mais, está ainda preenchido o crime de acesso ilegítimo, ainda que sem identificação dos respetivos autores, como supra se analisou.
Desconhecendo-se os autores dos factos e a comparticipação da arguida, não se afigura possível concluir pelo preenchimento da circunstância especial agravante prevista no artigo 218.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b) do Código Penal. No entanto, este esquema fraudulento produziu um prejuízo patrimonial de €47.230,77 (quatrocentos e sete mil euros, duzentos e trinta euros e setenta e sete cêntimos), sendo que os autores visaram, com a sua conduta, o enriquecimento de não menos de €34.930,77.
O conceito legal de valor consideravelmente elevado encontra-se no artigo 202º b) “aquele que exceder 200 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto”. Nos termos do artº 22º do Decreto Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, a Unidade de Conta é fixada em um quarto do valor do Indexante dos Apoios Sociais (IAS - LEI 53- B/2006, 29.12) vigente em dezembro do ano anterior, arredondada à unidade Euro. Para determinação da Unidade de Conta, e tendo em consideração que o RCP (aprovado pelo Decreto Lei n.º 34/2008, de 26.02), entrou em vigor no dia 20.04.2009, o valor a considerar é o do IAS vigente em dezembro de 2008 (artº. 2º da Portaria 9/2008, 03.01), ou seja 407,41€. Assim sendo o valor da UC para vigorar no ano 2009 é de 102.00€ (¼ do IAS, arrendondado à unidade de Euro). Em virtude das razões apontadas no Decreto Lei nº 323/2009, 24.12, o regime de atualização anual do indexante dos apoios sociais (IAS) foi suspenso - cfr. artº. 1º.. Por essa razão, não houve até 2022, atualização no que diz respeito à Taxa de Atualização do IAS, pelo que a UC se mantinha, naquele ano, em €102,00.
Destarte e à data dos factos ora em apreciação, o valor consideravelmente elevado é aquele ultrapassa, quando avaliado à data dos factos, €20.400,00.
A factualidade assente permite considerar-se verificada a circunstância qualificativa do crime de burla concretamente imputada, constante do art. 218.º, n.º 2, al. a), do CP. Assim, a factualidade assente permite integrar, a título de crime precedente, o crime de burla qualificada, punível com pena de prisão até 8 anos, e o crime de acesso ilegítimo. O que permite a subsunção da situação sub judice aos crimes de catálogo previstos em todas as versões do n.º 1 do artigo 368.º- A do Código Penal analisadas.
Pelo que se conclui, em relação à ação assente, pela verificação do crime precedente previsto no artigo 368.º-A n.º 1 do Código Penal, na redação conferida pela Lei n.º 58/2020, de 31 de agosto, mantida essencialmente inalterada pela Lei n.º 79/2021, de 24 de novembro.
Como se viu, a assistente realizou quatro transferências superiores a €20.400,00 por força do artifício doloso já referido e assente em falsidade informática e em acesso ilegítimo, o que se traduz em factos ilícitos e típicos contra o património, que consubstanciam a prática de crimes de burla qualificada previstos e puníveis pelos art.ºs. 217.º e 218.º, n.ºs 2, al. a), do Código Penal, em abstrato, com prisão de 2 (limite mínimo) a 8 anos (limite máximo).
A arguida tinha a conta indicada em 1. sedeada no .... A partir das datas em que as transferências eram efetuadas e o dinheiro ficava disponível nas contas, esta realizou uma série de operações de transferência entre a sua conta e a contas de terceiros, bem como operações financeiras de resgate, com vista a ocultar e a dissimular a origem e a localização do dinheiro, procedeu a levantamentos, compra com cartões multibanco, compras on line, e outras operações a débito, utilizando, assim, tais importâncias como se fossem suas. Ou seja, procedeu à dissimulação e recirculação destes fundos monetários, deslocando-os por forma a fugir, além do mais, ao controlo das autoridades. A arguida atuou de forma a procurar esconder ou dissimular a origem das transferências feitas da conta da assistente, procurando ocultar que esses fundos tinham sido obtidos mediante o engano provocado a essa sociedade. Para além de proceder à transferência de parte do dinheiro transferido para contas de terceiros, bem como para proceder a pagamentos através de plataformas de apostas on-line, usou uma parte do dinheiro em proveito próprio, efetuando levantamentos em caixas ATM, compras de artigos para uso pessoal, estabelecimentos de venda de vestuário, entre outros, usando o cartão de débito e o cartão associados às contas. A arguida, ao proceder à utilização de conta bancária para ali serem creditadas estas quantias, agiu com o objetivo de ocultar e dissimular a verdadeira origem de tais quantias, voltando a introduzi-las no circuito económico legítimo, o que queria e conseguiu.
Sendo que, como se deu por assente, a arguida atuou, ao disponibilizar a conta da sua titularidade, com conhecimento de que as quantias monetárias creditadas na mencionada conta eram provenientes de atividade enganosa por via da qual o titular da conta de origem dava ordens de transferência acreditando que estava a satisfazer os créditos de empresa com que se relacionava.
Além de típica, a conduta da arguida é ilícita porque violadora do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora: a realização da justiça. Tal conduta é imputável a título de dolo direto (art.º. 14.º, n.º 1, do CP). Torna-se manifesto que, mesmo que não conhecesse os contornos concretos do facto ilícito precedente, a arguida não desconhecia os traços essenciais, sabendo que as quantias provinham de pessoa enganada on-line. E, não obstante, pretendeu transferir e auxiliar, quer direta, quer indiretamente, nas operações de conversão e de transferência das vantagens obtidas por terceiro não identificado na prática dos crimes precedentes já caraterizados, atuando ainda com a finalidade clara de dissimular a origem ilícita desse dinheiro, através da sua movimentação entre diferentes contas bancárias e mediante a realização de compras e levantamentos. Sendo que atuou movida, também ela, pela promessa de vantagem económica – mesmo que não se apurasse quais as contrapartidas especificamente auferidas.
Assim, inexistindo quaisquer causas que justifique a exclusão da ilicitude ou a da culpa, concluímos que a arguida AA se constituiu como autora material de 1 (um) crime de branqueamento de capitais p. e p. pelo art. 368.º-A, n.ºs 1 e 3 do Código Penal e que, por ele, deve ser condenada.
A conduta da arguida inicia-se e termina na vigência da Lei n.º 58/2020, de 31/08. O tipo manteve-se, repete-se, na sua previsão e quanto aos aspetos essenciais, inalterado após as redações conferidas pela Lei n.º 79/2021, de 24 de novembro e pela Lei n.º 2/2023, de 16 de janeiro.
Pelo que se mostram preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos do crime pelo qual a recorrente foi condenada.
Do ressarcimento à assistente
Alega a recorrente que “Relativamente ao ressarcimento à Assistente, procedendo o presente recurso e absolvida a recorrente do ilícito que lhe era imputado, falecem os pressupostos da responsabilidade civil e, consequentemente deverá o mesmo ser declarado improcedente por não provado, absolvendo-se, igualmente, nesta matéria, a recorrente (art.º 483º e segs do C.C.)”.
Resulta óbvio que a recorrente confunde a condição de suspensão da execução da pena aplicada com indemnização civil.
De facto, não foi deduzido pedido de indemnização civil nos autos e o Tribunal não se pronunciou sobre qualquer indemnização.
O que sucede é que a recorrente foi condenada na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com a condição de, naquele prazo, comprovar o pagamento de € 5 000,00 (cinco mil euros) à assistente DD, correspondentes a parte do prejuízo por esta sofrido, e à obrigação de se submeter a plano de readaptação social.
Eis como o Tribunal recorrido justificou a decisão de fixar a condição:
Destarte, entende-se ser de suspender a pena de prisão aplicada a esta arguida por período idêntico à duração da respetiva pena, nos termos do artigo 50.º, n.ºs 1 e 5 do Código Penal.
Atento as elevadas exigências de prevenção geral e a falta de qualquer juízo de autocensura, entende-se que este juízo de prognose favorável não dispensa a imposição de regime de prova nos termos previstos pelos artigos 53.º e 54.º do Código Penal, indispensável à recuperação social da arguida.
Mais, vista a gravidade da conduta apreciada na sua globalidade, entende-se que a ameaça da pena de prisão apenas poderá atingir os fins repressivos e preventivos da pena, contanto que, para além de condicionada a um regime de prova, seja condicionada ao cumprimento de obrigação de conteúdo patrimonial. Efetivamente, o artigo 51.º do CP, no seu n.º 1 dispõe que “A suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente:
a) Pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea;
b) Dar ao lesado satisfação moral adequada;
c) Entregar a instituições, públicas ou privadas, de solidariedade social ou ao Estado, uma contribuição monetária ou prestação de valor equivalente”.
Atento o desprezo que a arguida manifestou, além do mais, pelo valor património, entende-se que a imposição da obrigação de, no prazo da suspensão, comprovar ter procedido ao pagamento de €5.000,00 (cinco mil euros) à assistente DD, valor parcialmente coincidente com o prejuízo por esta suportado a final e que se considera, face à situação patrimonial apurada, tratar-se de sacrifício patrimonial possível de assegurar, dentro dos limites do nº 2 do artigo 51º.»
Nos termos do nº 1 do art. 50º do Cód. Penal, “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Acrescenta o nº 2 que “o tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova”.
E nos termos do nº 1 do art. 51º seguinte, “a suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente: (…)”.
Sabendo-se que as finalidades da punição são a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (cfr. o nº 1 do art. 40º do Cód. Penal), a suspensão da execução da pena de prisão não poderia deixar de os salvaguardar.
Assim, os deveres que possam ser impostos nos termos do nº 1 do art. 51º do Cód. Penal, tendo a função de reparar o mal do crime, também têm uma função adjuvante da realização das finalidades da punição (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, ..., pág. 353), ou seja, também lhes cumpre fortalecer a função retributiva da pena, fazendo sentir ao arguido, por via dessa imposição, os efeitos da condenação (cfr. o Acórdão do STJ de 26.01.2005, in Proc. 3671/04-3), de modo a não se confundir suspensão com impunidade.
No caso em análise, o ressarcimento parcial à ofendida prende-se com uma condição de suspensão da execução da pena nos moldes descritos, condição que se afigura justa e adequada.
* * *
Decisão
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso e confirmam o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UCs.

Lisboa, 24.09.2024
Alda Tomé Casimiro
Sandra Oliveira Pinto
Alexandra Veiga