REGISTO PREDIAL
VÍCIOS DO REGISTO
LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Sumário


I – O registo predial dispõe de formas intra-sistemáticas de superar alguns dos vícios de registo, por via dos processos de rectificação do registo, que englobam os casos de inexactidão do registo e os registos indevidamente lavrados e os registos nulos por violação do princípio do trato sucessivo.
II – O Ministério Público apenas pode eventualmente intervir, propondo uma acção de declaração de nulidade do registo, quando em causa está a existência de um interesse público, personalizado no Estado, que justifique ou imponha a tutela jurisdicional na eliminação das nulidades do registo.
III - Interesse público esse, com relevante autonomia, que não seja simplesmente a tradução externa, no plano registral, dos interesses privados que também estão presentes e que o registo predial se destina a proteger.
IV - Os termos da intervenção do Ministério Público nos processos privativos do registo predial estão expressamente previstos, não lhe competindo qualquer poder de iniciativa, estando a sua intervenção limitada aos casos de rectificação judicial.
V - O Ministério Público actua, assim, fora das suas atribuições, carecendo efectivamente de legitimidade processual para demandar quando o objecto da acção não se insere no âmbito directo da prossecução de interesses colectivos ou genericamente tutelados pelo direito, antes implicando em termos primordiais o exercício de direito dependente de legitimação singular pelo correspondente titular.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I- Relatório

O autor Ministério Público instaurou acção de processo comum contra AA, BB, Estado Português – Autoridade Tributária e Aduaneira e Instituto dos Registos e Notariado, IP peticionando, em suma, que (i) seja declarada a nulidade do registo de penhora – Ap. ...73, de 13/10/2014 – e do registo de cancelamento oficioso da penhora – Ap. ...73, de 13/10/2014 a favor dos réus ATA e AA, ordenando o cancelamento de tais inscrições; e (ii) sejam os réus condenados a reconhecer a nulidade dos referidos registos.
Invoca, em suma, que, no dia 16/09/2013, no âmbito do processo de execução fiscal n.º ...93, que correu termos do SF ... – 2, e em que o segundo réu era executado, a exequente, ATA, procedeu à penhora da fracção ..., correspondente a uma arrecadação ampla, com a área de 13 m2, a 1º do lado direito, entre as garagens n.º 26 e 27, 2ª cave, com entrada pelo n.º ...22 da Rua ..., Real, descrita na CRP sob o n.º ...8 a favor de EMP01..., Lda. e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...67, com o VPT de € 2.090,00, tendo, em 20/09/2013, o SF requerido  à CRP ...-2ª o registo da referida penhora, que foi lavrado a título definitivo sem que tenha intervindo o titular inscrito no registo de propriedade da sobredita fracção.
Refere, assim, que, em 25/09/2014, o SF ... 2 procedeu à venda da aludida fracção, que veio a ser adquirida pelo primeiro réu, vindo a aquisição a ser registada em 13/10/2014, data em que foi oficiosamente cancelado o registo de tal penhora.
Alega, que, na  verdade, a aludida fracção não pertencia ao executado aquando da penhora, pelo que o registo da penhora nunca poderia ter sido feita a título definitivo, tal como não o poderiam ter sido o registo da aquisição e cancelamento da penhora, sem a intervenção do titular inscrito, o que determina a nulidade do registo da penhora a título definitivo, por violação do trato sucessivo e que não tendo o titular inscrito intervindo, a penhora era nula, dando origem a uma aquisição igualmente nula, argumentando que, por já não ser passível de rectificação, só com a presente acção pode ser remediado o vício de registo.

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Citada, a ATA veio arguir a excepção de ilegitimidade activa do MP, por a acção extravasar as atribuições legalmente acometidas ao MP, indo muito além da mera violação do trato sucessivo, já que conexionada com questões atinentes ao direito de propriedade e com a eventual anulação judicial de penhora e venda feita em processo de execução fiscal, que encerra normas e procedimentos próprios.
De acordo com a ATA está em causa na acção um pedido de declaração de invalidade de penhora e da subsequente venda executiva, seja para além da prossecução de interesses coletivos ou genericamente tutelados pelo direito.
Posiciona-se, ademais, no sentido de ser a acção intempestiva, por ter tido conhecimento do vício em 2018 – data em que pediu informações ao SF ..., impugnando no mais a factualidade alegada pelo MP.
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Já o réu AA veio esclarecer ter requerido a anulação da venda judicial e cancelamento dos respectivos registos, peticionando que lhe fosse arbitrada indemnização do valor de € 3.000,00, por não ter conseguido proceder à sua venda, dado que no dia da escritura foi informado de que não podia vender, já que a fracção não pertencia ao executado aquando da venda, mas a um terceiro.
Alega que tal pretensão foi indeferida por despacho de 25/06/2018 da Senhora Diretora de Finanças ..., por entender não estarem verificados os fundamentos de facto e de direito, desde logo porque o requerente estava, efectivamente, na posse do imóvel.
A verdade é que, não obstante o aludido despacho ter sido notificado a todos os interessados, nenhum apresentou reclamação nos termos previstos no artigo 276.º do CPPT.
Acrescenta que o Tribunal competente para decidir todos os incidentes, embargos, oposição e reclamação contra actos praticados pelos órgãos de execução fiscal cabe à jurisdição dos Tribunais Administrativos e Fiscais, pelo que qualquer apreciação que recaia sobre a (i)legalidade da penhora e/ou da venda judicial só nesta jurisdição poderia ser apreciada.
Adicionalmente refere que está, verdadeiramente, em causa a propriedade de terceiro, que a poderia defender através de embargos de terceiro, o que não sucedeu, nunca tendo sido contestada a posse do imóvel até à venda em execução fiscal, pelo que se torna dúbia a utilidade de eventual declaração de nulidade do registo da penhora, conforme vem requerido, quando havia sede própria para decidir todas as questões incidentais (sem que tenham sido suscitadas nessa sede).       
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Em sede de contraditório, começou o Digno Magistrado do MP por sublinhar que não pretende atacar a penhora e a subsequente venda em execução fiscal, estando apenas em causa a única forma para corrigir uma penhora definitiva registada com violação do princípio do trato sucessivo.
Mais argumenta que é essencial a reposição da verdade registal, independentemente das questões atinentes à validade da penhora e da venda subsequente, sendo a acção o meio adequado para impugnar o acto de registo em causa, salvaguardando a segurança jurídica inerente à fé pública.
No que tange à caducidade do direito de acção, afirma que a lei não fixa prazo para a interposição da acção, não o podendo fazer o seu intérprete, pelo que deve improceder a invocada excepção.
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Na sequência de convite formulado pelo Tribunal, com vista a assegurar o contraditório quanto à eventual ineptidão da PI, por força da incompatibilidade entre o fim visado e o resultado passível de obter com a acção, mais assegurando o contraditório quanto à eventual existência de erro na forma de processo e incompetência absoluta deste Juízo Local Cível de Braga para apreciar a questão suscitada, o Digno Magistrado do Ministério Público insurge-se, reiterando que se lhe afigura que nada obsta à apreciação da nulidade do registo sem combater o negócio subjacente.
Afirma que em causa se visa tão só suprir um vício de registo que é insanável e de repor a verdade registal e respeitar o princípio pelo trato sucessivo, sendo que a declaração da nulidade do registo reveste interesse público, desde logo pela fé pública dos actos de registo, interesse cuja defesa está cometida ao MP.
Inexiste, em seu entender, fundamento para que conclua pela ineptidão da PI, mais argumentando que a relação material subjacente ao registo cuja nulidade se peticiona é constituída pela relação registal estabelecida entre o apresentante e o conservador e não pela penhora ou venda fiscal, pelo que o conhecimento de tais questões consubstanciaria violação do princípio do dispositivo, o que o leva a concluir pela competência do Tribunal.
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Considerando que o estado dos autos permitia o conhecimento das excepções, proferiu-se, consequentemente, decisão que as julgou procedentes, absolvendo os RR. da instância.
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II- Objecto do recurso

Não se conformando com essa decisão, veio o MP interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

I. O Ministério Público, nos termos dos artigos 16º, alínea e) e 17º, nº 3 do Código de Registo Predial, e artigos 4.º n.º 1 al. r) e 9.º n.º 1 al. g) da Lei 68/2019 de 27.08 (Estatuto do Ministério Público), intentou a presente ACÇÃO DECLARATIVA DE NULIDADE DE REGISTO, SOB A FORMA DE PROCESSO COMUM contra: 1. AA; 2. BB; 3. Estado Português - Autoridade Tributária e Aduaneira, e; 4. Instituto dos Registos e Notariado, I.P., pedindo, em síntese: I- a declaração de nulidade do registo de penhora- AP....70 de 2013/09/20, do registo de aquisição- Ap. ...73 de 2014/10/13 e do registo de cancelamento oficioso da penhora- Ap. ...73 de 2014/10/13 lavrados, o primeiro a favor da Autoridade Tributária e Aduaneira e os outros dois a favor do Réu AA, e que se ordenasse o cancelamento de tais inscrições; II- Serem os Réus condenados a reconhecer a nulidade de tais registos”.
II.   O douto despacho saneador-sentença recorrido considerou, em síntese, que: “face à configuração dada à ação e, particularmente, aos pedidos formulados, os interesses iminentemente em causa são privados (tutela do direito de propriedade) e de pessoas concretamente determinadas, como seja a titular do bem, inscrita à data da penhora, e o adquirente”, pelo “que o MP atua fora das suas atribuições e competências, carecendo, pois, de legitimidade processual para demandar os réus nestes autos e até de interesse processual para tal, o que determina a absolvição dos réus da instância – cfr. artigos 576º, n.º2, 577º, al. e), 578º, todos os CPC”. Considerou, ainda, que “a declaração da nulidade do registo inicial da penhora, implicaria, necessariamente, a destruição ex nunc de todos os efeitos do registo, deixando sem substrato válido o auto de penhora e atos subsequentes, razão pela qual não se afigura possível atacar os atos de registo, sem atacar, simultaneamente, os atos registados”, pelo que       “há manifesta incompatibilidade entre as finalidades e pressupostos em que se estriba a presente ação e as finalidades que com ela se pode alcançar, o que gera a incompatibilidade substancial entre a causa de pedir e o pedido a que alude a al. c) do n.º2 do artigo 186º do CPC, com a consequente ineptidão da PI”. E, por último concluiu que “se afigura impossível a apreciação da (in)validade das inscrições sem apreciar a (in)validade, desde logo, da venda executiva, dir-se-á que o meio processual teria que ser outro – pelo que sempre haveria erro na forma de processo – e que, ademais, seria este Juízo Local Cível materialmente incompetente”.
III. O Autor Ministério Público, aqui apelante, não se conforma com o douto despacho saneador-sentença recorrido, antes do mais, porque existe norma legal específica a conferir-lhe legitimidade ativa para propor a ação de declaração de nulidade do registo emcausa: o artigo 17º nº 3 do CRP aprovado pelo DL 224/84, de 6/7.
IV- Com efeito, o objecto do processo, tal como o autor/aqui apelante o configurou na petição inicial encontra-se definido pela formulação do pedido de declaração de nulidade a nulidade do registo da penhora AP....70, de 20/09/2013, do registo de aquisição Ap. ...73, de 13/10/2014 e do registo de cancelamento oficioso da penhora Ap. ...73, de 13/10/2014, efetuados a requerimento e no interesse da Autoridade Tributária Aduaneira e do Réu AA, com o consequente cancelamento de tais inscrições, sobre a fração autónoma identificada pelas letras ..., correspondente a arrecadação ampla, com área de 13m2, entre as garagens 26 e 27 na 2.ª cave, com entrada pelo n.º ...22 da Rua ..., em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... ... e inscrito na matriz sob o artigo ...67.
V. Previamente, na causa de pedir (artigos 2º a9º da petição inicial), expôs a situação de facto com base na qual se afirma a titularidade do direito que pretende ver tutelado (da verdade registral/fé publica do registo) que assume uma função individualizadora e que justifica o pedido formulado, com especial destaque para o facto de funcionário do Réu Instituto dos Registos e Notariado, IP, ter lavrado o registo da penhora a título definitivo sem prévia intervenção do titular inscrito da aludida fração autónoma, numa altura em que o executado (o Réu BB) já não era o titular inscrito e, por isso, só podia tal registo ser lavrado como provisório por natureza, facto esse que inquinou os subsequentes registos de aquisição ede cancelamento da penhora(a favor do Réu AA).
VI- Sobre as razões de direito que servem de fundamento à acção, o Autor/aqui apelante apontou a nulidade do registo de penhora apenas por ter sido lavrado como definitivo, quando deveria ter sido provisório por natureza nos termos do artigo 92º, nº 2 al. a do Cód. do Registo Predial, porquanto sobre o imóvel penhorado existia registo de aquisição de propriedade a favor de pessoa diversa do executado ( cfr. artigo 16º, al. e) do citado Código do Registo Predial), bem como apontou a declaração da nulidade dos registos de aquisição e de cancelamento do registo da penhora subsequentes a este porque dele dependentes e todos foram materializados como se o imóvel a que diziam respeito estivesse inscrito em nome do executado (quando, estava registado em nome de terceiro que jamais foi chamado a intervir nesta sucessão se registos), assim violando, para além do mais, os princípios da presunção da verdade registral(artigo 7º do CRP) e do trato sucessivo ( artigo 34º do CRP).
VII. O registo predial destina-se, essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário. Esta publicidade consiste numa publicidade jurídica, no sentido de que garantea verdade e a legalidade da situação jurídica que dá a conhecer. Mas o registo tem por fim, em termos primordiais, a tutela dos interesses de terceiros indeterminados, do público, e só reflexamente protege o interesse privado daquele que aproveita do facto registado.
VIII. Ora, no caso dos autos, é flagrante a violação do princípio do trato sucessivo, em especial causado pela falha anómala e grave do Conservador do Registo Predial que perante um pedido de registo de penhora de imóvel efetuada no âmbito de uma execução fiscal não atentou no facto do titular inscrito não ser o executado mas antes um terceiro e que, em vez de lavrar esse registo como provisório por natureza como lho impunha o artigo 92º, nº 2, al. a) do CRP, lavrou o mesmo  como definitivo, dando azo aos subsequentes registo de aquisição e de simultâneo cancelamento da penhora, todos sem a intervenção do titular inscrito.
IX. Assim, foi precisamente na defesa do interesse primordial público (da verdade registral/da fé pública do registo) que o Ministério Público propôs a presente ação de declaração de nulidade de registo que estruturou nos termos acima transcritos.
X.  É certo que, reflexamente, a presente ação prossegue, também, o interesse particular do titular inscrito do direito de propriedade de imóvel afetado pela imediata lavra do registo da penhora desse imóvel como definitivo e nos subsequentes registos de aquisição e cancelamento da penhora, tudo sem a sua intervenção.
XI. De todo o modo, este efeito reflexo da satisfação do interesse particular não justifica a negação do reconhecimento da legitimidade ativa do Ministério Púbicoparaa presente ação porque a considera necessária na defesa do interesse público que é primordial.
XII. Ademais, a declaração de nulidade de registo objeto desta ação reveste interesse público que ao Ministério Público incumbe defender em representação do Estado/Coletividade em detrimento dos interesses do Estado/Administração e de particulares que no caso possam verificar-se, devendo aquele prevalecer.
XIII. O Autor Ministério Público, aqui apelante, não atacou os atos registados, porquanto a relação material subjacente ao registo cuja nulidade se peticiona é constituída pela relação registral estabelecida entre o apresentante e o conservador e não pela apontada venda fiscal que está na sua base.
XIV. Na verdade, na causa de pedir o Autor apontou sucintamente os factos que conduziram à apresentação do registo da penhora cuja nulidade peticiona apenas por violação do princípio de trato sucessivo ( que é reflexo dos princípios da legalidade e da verdade registral, que o conservador facilmente podia e devia ter acautelado, bastando-lhe, para tanto, que tivesse atentado na inscrição do facto do titular inscrito não ser o executado, mas um terceiro, e que, por isso, só poderia ter lavrado o registo da penhora como provisório por natureza) e não atacou os factos registados (porquanto, nem sequer tinha necessidadede o fazer).
XV. Os factos descritos pelo Autor na causa de pedir relativos ao processo de execução fiscal no âmbito do qual foi realizada a penhora cuja nulidade de registo se peticiona (apenas por ter sido lavrado como definitivo em flagrante violação da lei, quando só podia ser sido lavrado como provisório por natureza) justificam-se para configurar a legitimidade passiva dos Réus e para evitar que aquela fosse ininteligível, por forma a permitir que dela pudessem emanar os pedidos formulados (de declaração de nulidade de registo).
XVI. Não se verifica, assim, no entender do Autor Ministério Público qualquer incompatibilidade entre a causa de pedir e o pedido e muito menos substancial, para concluir, como o fez o tribunal “a quo”, pela ineptidão da PI.
XVII. Assim, não se aceita a conclusão extraída no douto despacho recorrido que “é impossível a apreciação da (in)validade das inscrições” do registo “sem apreciar a (in)validade, desde logo, da venda executiva”.
XVIII.É que a nulidade do registo que se peticiona na presente ação não está dependente do conhecimento de outras invalidades para além das do próprio registo, designadamente de negócios subjacentes ou da venda executiva.
XIX. Na verdade, a nulidade do registo da penhora resulta apenas e tão só do facto do conservador do registo predial o ter lavrado como definitivo em flagrante violação da lei (da verdade registral e do princípio do trato sucessivo), quando só o podia ter lavrado como provisório por natureza, perante a simples análise do pedido e do próprio registo.
XX. Igualmente, a nulidade dos registos de aquisição e de cancelamento da penhora subsequentes que por aquele foram inquinados, resultam da violação dos mesmos princípios, o que é manifesto da análise do respetivo pedido e das inscrições do próprio registo.
XXI. Com este enquadramento, cremos que a forma de processo comum apontada pelo Autor/aqui apelante na petição inicial é a própria e que o Juízo Local Cível é o materialmente competente para conhecer da ação de nulidade de registo em causa.
XXII. Deve, assim, no entender o Autor/aqui apelante, o douto despacho saneador-sentença ser revogado ordenando-se o normal prosseguimentos dos termos da presenta ação.
XXIII. Normas jurídicas violadas: os artigos 5º, 6º, 7º, 9º, nº 1, 16º, alínea e) e 17º, nº 3, 34º, 68º e 92º, nº 2 do Código de Registo Predial, 4.º n.º 1 al. r) e 9.º n.º 1 al. g) da Lei 68/2019 de 27.08 (Estatuto do Ministério Público) e 24º, nº 1, 30º , 186º, nº 1. all. c), 193º, 546º, nº 1, 576º, n.º2, 577º, al. e) e 578º, todos os CPC.
Termos em que V.ªas Ex.as Venerandos Desembargadores revogando o douto despacho saneador-sentença recorrido e ordenando o normal prosseguimento dos autos, farão inteira JUSTIÇA!
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A Autoridade Tributária e Aduaneira e Instituto dos Registos e Notariado, IP veio apresentar as suas contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso, apresentando ampliação do âmbito do recurso, ao abrigo do disposto no art. 636.º do CPC, por forma a conhecer-se da intempestividade da acção, nos termos do n.º 3 do art. 17º do CRP, mantendo-se, assim, de qualquer das formas, o decidido.
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Admitido o recurso, foram colhidos os vistos legais.
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III- O Direito

Como resulta do disposto nos art..ºs 608.º, nº. 2, ex vi do artº. 663.º, n.º 2, 635.º, nº. 4, 639.º, n.os 1 a 3, 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem das conclusões que definem, assim, o âmbito e objecto do recurso. 
Assim, face às conclusões das alegações de recurso, a questão a apreciar passa por apurar se é de manter o decidido quanto às excepções julgadas procedentes e, eventualmente, se a acção é intempestiva.
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Fundamentos de facto

- a factualidade jurídico-processual enunciada no ponto I, do relatório elaborado, que aqui se dá por reproduzida.
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Fundamentação jurídica

Como resulta da decisão proferida, embora o tribunal a quo tivesse julgado carecer o MP de legitimidade processual, acabou por apreciar as demais excepções, considerando verificar-se erro na forma de processo, bem como ser o tribunal materialmente incompetente, por competir aos tribunais administrativos e fiscais dirimir os litígios emergente das relações jurídicas administrativas e fiscais.
Ora, a lei procede à classificação das excepções entre dilatórias e peremptórias (artigo 576.º, n.º 1 do CPC), estabelecendo que as primeiras obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância ou à remessa do processo para outro tribunal (n.º 2 do citado preceito), enquanto as exceções peremptórias importam a absolvição total ou parcial do pedido e consistem na invocação de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor (artigo 576.º, n.º 3 do CPC).
Como tal, importava começar por apreciar sobre a competência do tribunal, a nulidade de todo o processo e legitimidade do MP para propor a acção, para o caso de cada uma delas seja de julgar improcedente.
Em defesa da sua posição o MP vem invocar estar em causa a defesa do interesse primordial público da verdade registal e fé pública do registo ao abrigo do disposto no art. 17.º, n.º 3, do CRP.
Assim sendo, a solução sobre as excepções arguidas passa necessariamente pela questão de se saber qual o interesse que subjaz à actuação do MP.
Começando pela primeira das excepções, importa ter em conta que a competência «ratione materiae» para o conhecimento dos processos alcança-se pelo «petitum», esclarecido ou iluminado pela respectiva «causa petendi».
Afere-se pelo pedido formulado e pela natureza da relação jurídica que serve de fundamento a esse pedido, tal como a configura o autor – vd. neste sentido, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 3.2.1987, BMJ 364, p. 591, e de 9.5.1995, Colectânea de Jurisprudência/acórdãos STJ, 1995, II, p. 68,  do Supremo Tribunal Administrativo de 28.5.1998, recurso 41.012, e do Tribunal dos Conflitos, de 23.9.2004, processo n.º 05/04, para além de, na doutrina, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1ª ed., vol. I, p. 88.
Nos termos do art. 64.º do CPC, os tribunais comuns serão competentes para conhecer da presente causa se essa competência não estiver deferida à jurisdição administrativa.
Sendo esta a configuração da causa a ter em conta na decisão a proferir, há que atentar no facto dos tribunais judiciais terem uma competência residual na estrita medida em que a eles cabem as acções que não estejam atribuídas especificamente aos outros tribunais.
Esta competência residual decorre desde logo do artigo 211.º, n.º 1, da Constituição da República, e também do artigo 64.° do Código de Processo Civil, tal como do artigo 40.º, n.º 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, que postulam serem da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
No que toca especificamente à competência dos tribunais administrativos e fiscais, estabelece-se no artigo 212.°, nº 3, da Constituição da República Portuguesa que “c[C]ompete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.”
In casu, foi pedida a declaração da nulidade do registo de penhora – Ap. ...73, de 13/10/2014 – e do registo de cancelamento oficioso da penhora – Ap. ...73, de 13/10/2014 a favor dos réus ATA e AA, ordenando o cancelamento de tais inscrições, bem como a condenação dos réus a reconhecer a nulidade dos referidos registos.
Alega-se, em suma, que a aludida fracção não pertencia ao executado aquando da penhora, pelo que ocorreu violação do trato sucessivo, não sendo já passível de rectificação tal erro, a não ser por via da presente acção podendo ser remediado o vício de registo.
Quanto a uma situação similar, o acórdão da Relação de Coimbra de 27.02.2007, em www.dgsi.pt, considerou estar-se perante um acto administrativo, julgando como competentes para dirimir o pleito os tribunais administrativos e não os comuns, quando em causa está a apreciação da declaração de nulidade de um acto realizado no exercício de um poder público, administrativo, ao abrigo do disposto no artigo 4º, n.º1, alínea c), do novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Assim não o entendeu o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.07.1988, no processo 56/1988, cujas premissas essenciais se entende serem aplicáveis ao quadro jurídico actual, bem como o mais recente Acórdão do TAF do Porto, de 5.2.2016, proferido no âmbito do proc. 00236/14.3BEPRT, apontando nesse sentido o facto da lei atribuir competência aos tribunais comuns para a impugnação judicial da recusa da prática do acto de registo (cfr. n.º 1 artigo 140º, 145.º, n.º 1, e 147.º, do Código de Registo Predial), concluindo-se que ‘c[C]abendo da recusa de registo impugnação judicial para os tribunais comuns não faria sentido a competência para apreciar a validade do acto de registo caber aos tribunais administrativos, pois claramente essa solução seria contrária à coerência e unidade do sistema jurídico, estando por isso afastada do leque de soluções possíveis da lei – artigo 9.º, n.º1, do Código Civil.
Pelo que os tribunais administrativos, ainda que o acto sub judice fosse um acto administrativo, o que não é, sempre seriam incompetentes para apreciar o pleito’.

Vejamos.

O registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário – cfr. artigo 1º. do Código do Registo Predial (CRP).
O registo público, categoria em que se integra o registo predial, pode definir-se como "o assento efectuado por um oficial público e constante de livros públicos, do livre conhecimento, directo ou indirecto, por todos os interessados, no qual se atestam factos jurídicos conformes com a lei e respeitantes a uma pessoa ou a uma coisa, factos entre si conectados pela referência a um assento considerado principal, de modo a assegurar o conhecimento por terceiros da respectiva situação jurídica, e do qual a lei faz derivar, como efeitos mínimos, a presunção do seu conhecimento e a capacidade probatória" - Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Publicidade e Teoria dos Registos, Coimbra, 1966, pág. 97.
O registo predial constitui uma instituição pública que visa a segurança do tráfico jurídico sobre imóveis, através da publicidade registral imobiliária relativamente a uma série de factos enumerados especificamente na lei - os factos sujeitos a registo previstos no artigo 2º e as acções indicadas no artigo 3º do CRP.
A instituição do registo predial prossegue fins de natureza privada e de interesse público. Prossegue fins de natureza privada, garantindo a segurança no campo dos direitos privados, especificamente no campo dos direitos com eficácia real (segurança do comércio jurídico imobiliário no seu conjunto), facilitação do tráfico e intercâmbio dos bens e do crédito e garantia do cumprimento da função social da propriedade - Cfr. JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil, Reais, 5ª edição, 1993, pág. 335; ISABEL PEREIRA MENDES, Enunciação Esquemática dos Fins e Princípios Registrais, in "Regesta, Revista de Direito Registral", Ano XII, nº. 4, Outubro-Dezembro de 1991, pág. 19 e segs.
A instituição de registo predial revela e prossegue também o interesse público que é inerente aos princípios da certeza do direito, da defesa de terceiros, da segurança do comércio jurídico e a própria necessidade (de natureza pública) de o registo não se encontrar desactualizado face ao cadastro - Cfr. J. A. MOUTEIRA GUERREIRO, Noções de Direito Registral (Predial e Comercial), 2ª edição, 1994, pág. 73.
Quanto ao princípio do trato sucessivo pretende assegurar a continuidade do registo, e garantir a quem possui uma inscrição de aquisição ou reconhecimento de direito susceptível de ser transmitido a certeza de que não pode haver nova inscrição definitiva lavrada sem a sua intervenção. "Trato sucessivo" é sinal de encadeamento de inscrições de titulares do direito. Semelhante princípio "tem por objecto manter a ordem regular dos titulares registrais sucessivos, de maneira que todos os actos dispositivos tomem um encadeamento perfeito, aparecendo registados como se derivassem uns dos outros sem solução de continuidade" - Cfr. EDUARDO DOS SANTOS, Do Princípio do Trato Sucessivo, in "Regesta, Revista de Direito Registral", Ano XII, Abril-Junho 1991, nº 2, págs. 35 e segs; e v. g. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 7 de Outubro de 1992, in, "Boletim do Ministério da Justiça", nº 420, pág. 572.
Através da continuidade, o princípio garante a certeza da história da situação jurídica da coisa desde o início (descrição), até ao momento de cada novo acto de registo, exigindo e traduzindo um nexo ininterrupto de continuidade entre os vários sujeitos que aparecem investidos de poderes sobre a coisa. O princípio tem consagração expressa no artigo 34.º, nºs. 1 e 2 do CRP.
A presunção derivada do registo respeita tanto aos factos inscritos, como às situações jurídicas decorrentes. A presunção é ilidível, juris tantum, mas, como presunção legal, apenas nos termos e segundo os pressupostos regulados na lei. Nos termos do artigo 8º do CRP, "os factos comprovados pelo registo não podem ser impugnados em juízo sem que simultaneamente seja pedido o cancelamento do registo" - nº 1 - e "não terão seguimento, após os articulados, as acções em que não seja formulado o pedido de cancelamento previsto no número anterior" - nº 2. E para se provar que deve ser cancelado terá que se demonstrar que é nulo - o que só pode acontecer nos casos directamente previstos na lei.
O registo, como os actos jurídicos, pode sofrer de alguma irregularidade que afecte a sua própria existência, validade ou consistência.
Os vícios do registo são, por ordem decrescente de gravidade, a inexistência, a nulidade e a inexactidão.
No tocante à nulidade, o art. 16.º, do CRP, dispõe que: " 0[O] registo é nulo: a) Quando for falso ou tiver sido lavrado com base em títulos falsos; b) Quando tiver sido lavrado com base em títulos insuficientes para a prova legal do facto registado; c) Quando enfermar de omissões ou inexactidões de que resulte incerteza acerca dos sujeitos ou do objecto da relação jurídica a que o facto registado se refere; d) Quando tiver sido assinado por pessoa sem competência funcional, salvo o disposto no nº 2 do artigo 369º do Código Civil; e) Quando tiver sido lavrado sem apresentação prévia ou com violação do princípio do trato sucessivo."
As consequências da nulidade pressupõem, pois, que só falhas muito graves a possam determinar. Porém, diversamente do regime geral, o registo mantém-se com o vício que o inquina, só podendo a nulidade ser invocada depois de ter sido declarada por decisão judicial transitada em julgado. É o que dispõe o artigo 17º, nº 1, do CRP: "A nulidade do registo só pode ser invocada depois de declarada por decisão judicial com trânsito em julgado". Este regime da nulidade sofre duas excepções no que se refere à possibilidade de rectificação do registo antes da declaração da nulidade em juízo: quando tenha havido violação do princípio do trato sucessivo (artigo 121.º, n.º 4), ou quando o registo tiver sido indevidamente lavrado (artigo 16.º, alínea b), e artigos 120º, nº 1 e 123º, nº1).
O regime das nulidades do registo prevê, também, ao contrário do regime geral, que em certas circunstâncias o registo nulo possa produzir efeitos. Nos termos do artigo 17.º, n.º 2, do CRP, "a declaração de nulidade do registo não prejudica os direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa fé, se o registo dos correspondentes factos for anterior ao registo da acção de nulidade”.
O registo predial dispõe, assim, de formas intra-sistemáticas de superar alguns dos vícios de registo, por via dos processos de rectificação do registo previstos nos artigos 120.º e seguintes do CRP.
Na verdade, dispõe-se no artigo 121º, n.º 1, do CRP, que ‘o[O]s registos inexactos e os registos indevidamente lavrados devem ser rectificados por iniciativa do conservador, logo que tome conhecimento da irregularidade, ou a pedido de qualquer interessado, ainda que não inscrito’.
O conservador é, assim, quem, em primeiro lugar, pode (deve) promover a rectificação. Sendo sua função cuidar da veracidade do registo e da exacta coincidência do registo com o direito que está titulado, a lei impõe-lhe que promova oficiosamente a rectificação "logo que tome conhecimento da irregularidade". A rectificação - dispõe o artigo 122.º, do mesmo diploma - não prejudica os direitos adquiridos a título oneroso por terceiros de boa fé, se o registo dos factos correspondentes for anterior ao registo da rectificação ou da pendência do respectivo processo.
Entre uma dessas situações, em que é possível a rectificação, está aquela em que ocorre violação do princípio do trato sucessivo, sem se exigir que seja proposta, segundo os termos gerais, uma acção para declaração de nulidade do registo.
O sistema que se descreveu nos seus elementos essenciais admite, pois, dois modos de remediar os vícios do registo, conforme a natureza destes. Um modo intra-sistemático de rectificação, através de meios processuais ou procedimentais privativos, previstos no próprio Código, oficiosos ou sujeitos ao princípio da instância, extrajudiciais (pelo conservador) ou judiciais, e os meios processuais gerais, através da acção de declaração de nulidade.
Naqueles, como foi referido, estão os casos de inexactidão do registo e os registos indevidamente lavrados e os registos nulos por violação do princípio do trato sucessivo. Nestes, todos os casos de nulidade do registo que não sejam susceptíveis de rectificação.
Tudo indica, assim, que as situações anómalas em que, por erro, se tenha iniciado uma segunda linha registral, incompatível com outra anterior correctamente estabelecida, ou em que a contraditoriedade interna (a incoerência do registo) seja patente, devam estar admitidas à possibilidade de rectificação nos mesmos termos que as inexactidões do registo.
Por outro lado, o processo de rectificação parece particularmente adequado á solução das anomalias que se patenteiam. Não apenas porque pode ser oficiosamente promovido pelo conservador, como por prever a intervenção de todos os interessados cujos direitos possam ser afectados, e a rectificação judicial, caso se mostre necessária por falta de consentimento ou acordo.
Posto isto, importa, agora, ter em conta, as atribuições e competências do MP, considerando o respectivo estatuto, concretamente o que se dispõe no artigo 3.º, n.º 1, da Lei 47/86, de 15 de Outubro, em que se prevê, entre o mais, nos casos previstos na lei, assumir a defesa de interesses colectivos e difusos (al. e), intervir nos processos que envolvam interesse público (al.i), recorrer sempre que a decisão seja efeito de conluio das partes no sentido de fraudar a lei ou tenha sido proferida com violação de lei expressa (al.o), bem como exercer as demais funções conferidas por lei (al. p).
Ora, no direito substantivo o conceito de legitimidade reporta-se à relação entre o sujeito e o objecto do acto jurídico, postulando em regra a coincidência entre o sujeito do acto jurídico e o titular do interesse por ele posto em jogo, ao passo que como pressuposto processual (geral), ou condição necessária à prolação de decisão de mérito, no direito adjectivo o mesmo conceito exprime a relação entre a parte no processo e o objceto deste (a pretensão ou pedido) e, portanto, a posição que a parte deve ter para que possa ocupar-se do pedido, deduzindo-o ou contradizendo-o (Cf. o Ac. TRC de 12-06-2011, relator Carlos Querido, p. 1223/10.0TBTMR.C1, acessível em www.dgsi.pt).
Assim, a questão da legitimidade tem que ser apreciada e decidida à luz do que dispõe o artigo 30.º do CPC, que reporta a legitimidade do autor ao interesse directo em demandar (n.º 1 do referido preceito), o qual, por sua vez, se exprime pela utilidade derivada da procedência da acção (n.º 2 do referido preceito).
Tal como resulta da redacção do n.º 3 do artigo 30.º do CPC, o legislador consagrou o critério da determinação da legitimidade em função da titularidade da relação material controvertida com a configuração que lhe foi dada unilateralmente na petição inicial, ao dispor que «n[N]a falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor».
Deste modo, «[a] partir da introdução de um preceito com a redacção do actual n.º 3, ficou claro que tal pressuposto processual é identificado em função da relação jurídica configurada pelo autor. Assim, avaliado tal pressuposto por um critério formal, o autor é parte legítima se, atenta a relação jurídica que invoca, surgir nela como sujeito susceptível de beneficiar directamente do efeito jurídico pretendido; já o réu terá legitimidade passiva se for directamente prejudicado com a procedência da acção. A exigência de um “interesse” emergente da pronúncia judicial, reconduz-nos a um interesse directo e indica que é irrelevante para o efeito um mero interesse indirecto, reflexo ou mediato, ou ainda um interesse diletante ou de ordem moral ou académica» (Cf. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, pg. 59).
Porém, a par do critério residual em que assenta a legitimidade direta, pautado pela titularidade da relação controvertida tal como esta é configurada pelo autor, hipóteses há em que o próprio legislador indica quais os titulares do direito de acção ou de defesa, tal como decorre do segmento inicial do n.º 3, do artigo 30.º do CPC.
Como salienta o Prof. Anselmo de Castro, in Direito Processual Civil Declaratório, Vol. II, Coimbra, 1982, Livraria Almedina, p. 169, «[e]ste fenómeno da ampliação do direito de acção verifica-se sempre que o objecto da acção se apresente como algo de prejudicial em relação às pretensões de outros sujeitos (relações conexas) ou afecte interesses públicos».
Assim, casos há em que o interesse público subjacente às acções explica que se alargue o círculo dos legitimados, e que o próprio Ministério Público tenha legitimidade para a sua propositura (Cf. Anselmo de Castro, Ob. cit. , p. 170).
No caso em apreço, o Ministério Público alude aos artigos 16.º, al. e) e 17.º, n.º 3, do Código do Registo Predial, concluindo estar em causa a defesa de um interesse público traduzido na fidedignidade do registo que importa que sejam expurgados os vícios do registo.
Acontece que, numa primeira linha, e em conformidade com o anteriormente exposto, a situação sempre podia ser resolvida por via dos processos privativos do registo predial expressamente previstos, não competindo, assim, nessa perspectiva qualquer poder de iniciativa por parte do MP.
De qualquer das formas e como o refere o tribunal a quo, igualmente encontra-se previsto nos arts. 237.º e 257.º, do CPPT, os meios adequados a defender o direito alegadamente violado, por via, respectivamente, de embargos de terceiro e anulação da venda, por não fazer qualquer sentido vir requerer-se a nulidade do registo e seu cancelamento, deixando incólume os actos registais atinentes à venda judicial deixando sem suporte legal o auto de penhora e actos subsequentes anteriores àquele acto.
Por outro lado, o facto é que, por via desta acção, se estaria a defender o direito de propriedade a favor de quem não é sequer parte no processo, dado que implicitamente se teria de reconhecer o direito do anterior titular do direito registado previamente ao do comprador, enquanto adquirente do bem imóvel por via da acção executiva.
Como se decidiu no acórdão deste tribunal de 29.4.21, no proc. 7074/18.6T8BRG.G1, tendo como relator Paulo Reis, ‘…revela-se manifesto que o objeto da ação não se insere no âmbito direto da prossecução de interesses coletivos ou genericamente tutelados pelo direito, antes implicando em termos primordiais o exercício de direito dependente de legitimação singular pelo correspondente titular.
Por conseguinte, face aos termos e aos pedidos concretamente enunciados pelo autor na petição inicial resta concluir que o Ministério Público atua fora das suas atribuições, carecendo efetivamente de legitimidade processual para demandar os réus nos presentes autos, tal como considerou a decisão recorrida’.
Certo é que, como igualmente resulta do parecer de 31.8.2018, respeitante ao proc. n.º P0..., que se pronunciou sobre a questão da legitimidade do MP para este tipo de acções, também se concluiu que ‘o Ministério Público apenas poderia eventualmente intervir, propondo uma acção de declaração de nulidade do registo, se se pudesse considerar a existência de um interesse público, personalizado no Estado, que justificasse ou impusesse a tutela jurisdicional na eliminação das nulidades do registo. E interesse público, com relevante autonomia, que não seja simplesmente a tradução externa, no plano registral, dos interesses privados que também estão presentes e que o registo predial se destina a proteger’.
De igual forma, considerou-se que ‘os termos da intervenção do Ministério Público nos processos privativos do registo predial estão expressamente previstos, não lhe competindo qualquer poder de iniciativa (…) A intervenção está limitada aos casos de rectificação judicial, sendo o Ministério Público quem, além das partes e do conservador, pode recorrer da sentença - artigo 131º, nº 2, do CRP’.
Também no SIMP, sob o n.º 454, encontra-se sinalizado o despacho datado de 4.5.2000, perante um pedido similar da DGRN, em que se entendeu que o MP não tinha legitimidade para intentar acção, o que foi alvo de concordância hierárquica.
Como tal, não estando em causa a defesa de um interesse público, como se disse personalizado no Estado, que justifique ou imponha a tutela jurisdicional na eliminação das nulidades do registo, com relevante autonomia, tem de se considerar que o MP actua fora das suas atribuições e competências, carecendo, pois, de legitimidade processual para demandar os réus nestes autos e até de interesse processual para tal, o que determina a absolvição dos réus da instância – cfr. artigos 576º, n.º2, 577º, al. e), 578º, todos os CPC -, tal como decidido pelo tribunal a quo e que se mantem.
Assim sendo, o tribunal seria competente e, embora por outra via e forma processual fosse de defender os interesses privados, sempre o MP estaria carecido de legitimidade nos termos e pelos fundamentos aduzidos.
Nestes termos, tem, pois, o recurso de improceder, mantendo-se a decisão proferida, prejudicada ficando a apreciação e decisão objecto da ampliação do recurso.
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III- Decisão

Nestes termos, acordam os Juízes na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar o recurso improcedente, mantendo a decisão proferida, prejudicada ficando a apreciação e decisão objecto da ampliação do recurso.
Sem custas por delas estar isento o A.
Registe e notifique.
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Guimarães, 12.9.2024
(O presente acórdão foi elaborado em processador de texto pela primeira signatária sem observância do acordo ortográfico, a não ser nas transcrições efectuadas da autoria de terceiros, e é por todos assinado electronicamente)
                                                                                  
Maris dos Anjos Melo
Alcides Rodrigues 
Ana Cristina Duarte