CONTA DE DEPÓSITO
CONTA BANCÁRIA
CONTA BANCÁRIA SOLIDÁRIA
MOVIMENTAÇÃO DE CONTA BANCÁRIA
ÓNUS DE PROVA
Sumário

I - Nas contas bancárias solidárias há que distinguir o regime de movimentação da propriedade dos fundos nela depositados.
II - Decorrendo do art.º 516º do CC uma presunção legal de que os diversos titulares são proprietários em partes iguais dos valores nela depositados, incumbe àquele que invoca ser o proprietário exclusivo a prova do contrário, ou seja, que os valores depositados só a ele pertencem.

Texto Integral

Apelação nº 520/23.9T8VCD.P1




ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO



I – Resenha do processado



1. AA propôs a presente ação contra BB, pedindo:
a) Declarar-se que a quantia de € 42.500,00, constante da conta nº ...77, pertencia, por inteiro a CC.
b) Declarar-se que, na sequência da morte de CC, tal quantia de € 42.500,00, constante da conta bancária nº ...77, pertence ao Autor, na qualidade de único herdeiro legítimo do seu falecido irmão.
c) Declarar-se que pertencia a CC, e na sequência da sua morte, pertence agora ao Autor, na qualidade de único herdeiro legítimo do falecido, os seguintes bens: um veículo automóvel; uma motorizada; um jazigo; o recheio de uma habitação; 1 telemóvel; 1 cartão de multibanco.
d) Condenar-se a Ré a entregar ao Autor todos os bens que pertenciam a CC, e na sequência da sua morte, pertencem agora ao Autor, na qualidade de único herdeiro legítimo do falecido;
e) Ser a Ré condenada numa sanção pecuniária compulsória de 50€ por cada dia de atraso na entrega do montante depositada na conta bancária nº ...77 e todos os restantes bens móveis ao Autor, por ser este o legitimo proprietário, enquanto único herdeiro do seu irmão CC.
O Autor fundamentou tais pedidos alegando ser irmão de CC, já falecido, e seu único herdeiro. A Ré encontra-se na posse dos bens móveis e recusa entrega-los ao Autor. A quantia de € 42.500,00, depositada numa conta bancária em nome do Autor, da Ré e de DD, corresponde a valores provenientes da venda da casa dos falecidos pais do Autor e de CC, pertencendo-lhe em exclusivo e que a Ré também recusa proceder à devolução do dinheiro.
Em contestação, a Ré alegou ter vivido com o falecido CC em condições análogas às dos cônjuges e que as contas existentes em nome dele eram por ela contituladas, pelo que os valores constantes da conta bancária foram aprovisionados por ambos pelo que apenas metade do valor em causa pertencia a CC aquando do seu falecimento; quanto aos demais bens, declarou estarem à disposição do Autor, com exceção do recheio da habitação, que alega pertencer-lhe.
No âmbito do apenso do arrolamento e em sede de audiência de julgamento, as partes chegaram a acordo quanto à titularidade de todos os bens móveis, mantendo-se apenas em discussão o valor de € 42.500,00 existente na conta bancária.
Realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que determinou:
a) Declarar que a quantia de € 42.500,00, constante da conta nº ...77, pertencia, por inteiro a CC;
b) Declarar que, na sequência da morte de CC, tal quantia de €42.500,00, constante da conta bancária nº ...77, pertence ao Autor, na qualidade de único herdeiro legítimo do seu falecido irmão;
c) Condenar a Ré a entregar ao Autor a aludida quantia de €42.500,00, constante da conta bancária nº ...77; e
d) Absolver a Ré do pedido de condenação numa sanção pecuniária compulsória no valor de € 50,00 por cada dia de atraso na entrega do valor constante da conta bancária.



2. Para assim decidir, considerou-se a seguinte matéria de facto:

Factos provados
1. O Autor é o único irmão de CC.
2. CC faleceu no dia 2 de outubro de 2022, no estado de solteiro, maior, sem descendentes nem ascendentes vivos, nem tendo deixado testamento ou qualquer outra disposição de última vontade.
3. À data do falecimento, CC vivia com a Ré, partilhando leito, mesa e habitação, como se de marido e mulher se tratassem.
4. À data do óbito, CC era titular de duas contas no banco Banco 1...:
. a conta à ordem n.º ...04 em que é primeiro titular CC, e titular a Ré, com o saldo bancário de € 47,56; e
. a conta à ordem n.º ...77, em que é primeiro titular CC, e titulares a Ré e DD, com o saldo bancário de € 42.500,00.
5. O montante de € 42.500,00, existente na aludida conta bancária, adveio do produto da venda, recebido por CC, do prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial de Vila do Conde sob o n.º ...29 e com artigo matricial ...99 sito na Rua ..., Freguesia ..., Concelho ..., que este herdou dos seus pais EE e FF.
6. Na verdade, o Autor e o seu irmão CC herdaram dos seus pais o prédio urbano referenciado, tendo estes outorgado escritura pública de compra e venda, no dia 13 de setembro de 2019, pelo valor de € 135.000,00.
7. O Autor recebeu, pela venda, o montante de € 67.500,00, e o seu irmão CC recebeu igualmente € 67.500,00.
8. Daquele valor, veio a ser depositado o montante de € 42.500,00 na conta à ordem n.º ...77.
9. Até ao ano de 2022, era CC quem movimentava as aludidas contas bancárias, fazendo depósitos, transferências, levantamentos de numerário e pagamentos, à vista de todos quantos era permitido ter conhecimento desses movimentos e na plena convicção de que tais valores, em depósitos ou em aplicações financeiras, lhe pertenciam, em propriedade, e sem oposição de ninguém.
10. Em data não concretamente determinada, mas já no ano do seu falecimento, CC colocou DD como cotitular da aludida conta, para que este a pudesse movimentar exclusivamente em nome e benefício de CC, com autorização deste.
11. Tal ficou a dever-se ao facto de a doença que CC padecia se encontrar a avançar rapidamente, o que limitava a sua capacidade de se deslocar ao banco.
Factos não provados
1. Que CC tenha colocado a Ré e DD como cotitulares da conta nº ...77 somente em setembro de 2022.


3. Inconformada com tal decisão, dela apelou a Ré, formulando as seguintes conclusões:
A) A conta referenciada nos auto pertencia em comum e partes iguais à aqui Recorrente e ao falecido CC;
B) Os Cotitulares CC e BB comparticiparam nos Créditos integrantes da conta em partes iguais;
C) Eram cotitulares dos fundos nela contidos;
D) Tal sempre se presumiria, uma vez que sendo omisso o acordo ou a relação jurídica de que resultou a abertura das respetivas contas, o artigo 516.º do Código Civil, por força do recurso ao regime geral das obrigações solidárias, previsto nos artigos 512.º e seguintes do código Civil, faz já presumir (presunção iuris tantum) que os credores solidários participam no crédito em partes iguais;
E) O valor de € 42.500,00 existente na conta à ordem n.º ...77, à data da morte do falecido CC é copropriedade do aqui Recorrido e seu herdeiro e da Aqui Recorrente, em partes iguais;
F) O Recorrido não ilidiu a presunção constante dos artigos 516.º e 512.º do Código Civil;
G) Um depósito de uma quantia referente à venda de um prédio, não ilide a presunção constante nos artigos 516.º e 512.º do Código Civil;
H) A aliás douta decisão omitiu e não levou em conta todos os demais depósitos e movimentos existentes na conta ao longo dos tempos, sendo que a própria decisão recorrida refere que além das entradas por transferência da segurança social existem movimentos entradas no montante global de € 16.363,72;
I) Valores que foram depositados na conta comum da Recorrente e do infelizmente falecido CC;
J) Não pode a Douta sentença concluir, como concluiu ilidindo a presunção civil estabelecida que o valor existente na conta à data do óbito do referido CC é propriedade do seu herdeiro aqui Recorrido, tendo simplesmente como base um depósito efetuado no ano de 2019 e fazer tábua rasa de todos os depósitos e movimentos comuns existentes na conta;
K) Tal é ilegal;
L) Sendo o dinheiro algo fungível, não pode o Tribunal a quo concluir que a quantia existente à data da Morte do CC na conta referida era de sua exclusiva propriedade, pois tal é manifestamente impossível de demonstrar;
M) Se assim fosse, sempre o tribunal a quo teria que subtrair ao valor existente à data do óbito o valor de € 16.363,72 e entregar o mesmo na íntegra à Recorrente, ou pelo menos a sua metade;
N) A conta supra referenciada pertencia em comum e partes iguais à aqui Recorrente e ao falecido CC;
O) Os Cotitulares CC e BB comparticiparam nos Créditos integrantes da contas em partes iguais;
P) Eram cotitulares dos fundos nela contidos;
Q) O valor existente na conta à data do óbito é agora propriedade da Recorrente e do Recorrido em partes iguais;
R) Pelas razões e pelos fundamentos que se deixam alegados, a douta sentença recorrida deve ser revogada, decidindo-se pela propriedade em comum e partes iguais entre Recorrente e Recorrido do valor existente na conta;
S) A douta decisão recorrida viola, além de outra indicadas, de disposições e princípios supra indicados, o disposto no artigo 516.º do Código Civil, por força do recurso ao regime geral das obrigações solidárias, previsto nos artigos 512.º e seguintes do código Civil;
T) Face a tudo quanto se deixa alegado e vertido nestas conclusões, concedendo-se provimento ao presente recurso será feita a habitual JUSTIÇA!


4. O Autor contra-alegou, pugnando pela improcedência da apelação.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.



II - FUNDAMENTAÇÃO

5. Apreciando o mérito do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
No caso, uma única questão vem suscitada: se o valor de € 42.500,00 existente na conta à ordem n.º ...77, à data da morte do falecido CC era copropriedade dele e da apelante.


5.1. Da propriedade do dinheiro
§ 1º - Estamos aqui perante uma conta bancária titulada por 3 pessoas.
No que toca à titularidade por várias pessoas, as ditas contas coletivas, no contrato de abertura de conta há que estabelecer qual o regime de movimentação dos fundos lá depositados.
O nosso sistema bancário conhece 3 tipos de movimentação das contas coletivas:
· Conta solidária, em que qualquer um dos titulares pode movimentar a conta sem necessitar da autorização dos restantes;
· Conta conjunta, em que são necessárias as assinaturas de todos os titulares para que a conta seja movimentada;
· Conta mista em que a forma de movimentação conjuga as caraterísticas das anteriores; por exemplo, a movimentação pode ser efetuada com a assinatura de um determinado titular ou, em alternativa, mediante as assinaturas de dois outros titulares da conta.
Os factos provados não identificam qual o tipo da conta aqui em causa, mas depreende-se dos documentos enviados aos autos pela Banco 1... que se trata de uma conta solidária.
Assim, qualquer um dos titulares podia movimentar a conta, designadamente procedendo ao levantamento dos fundos, independentemente de quem que fosse, de facto e de direito, o proprietário dos valores depositados.
Ou seja, há que distinguir o regime de movimentação da conta bancária e a propriedade dos fundos nela depositados.
Ora, no domínio das relações internas, decorre do art.º 516º do Código Civil (CC) que “nas relações entre si, presume-se que os devedores ou credores solidários comparticipam em partes iguais na dívida ou no crédito, sempre que da relação jurídica entre eles existente não resulte que são diferentes as suas partes, ou que um só deles deve suportar o encargo da dívida ou obter o benefício do crédito”.

§ 2º - Como é sabido, a regra basilar no domínio do direito probatório é que ao Autor compete fazer a prova dos factos que alega como constitutivos do seu direito, enquanto que ao Réu compete a demonstração daqueles que invocar como impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado: art.º 342º nº 1 e 2 do CC.
Porém, segundo o art.º 350º nº 1 do CC, “quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz”.
As presunções legais podem ser (art.º 350º nº 2 CC):
· presunções juris tantum, as que podem ser ilididas por prova em contrário
· presunções juris et de jure, as que são absolutas, irrefutáveis, não admitem prova em contrário.
Ou seja, no caso de existirem presunções legais, o beneficiário da presunção não necessita de alegar/provar o facto, competindo à contraparte a prova do contrário (não bastando a mera contraprova): art.º 344º nº 1 CC).
Na verdade, há que atentar na diferença entre prova em contrário e contraprova. A contraprova destina-se a tornar incerto o facto visado (art.º 346º CC), bastando que se crie na mente do julgador dúvidas sérias acerca da realidade do facto. A prova do contrário destina-se a tornar certo não ser verdadeiro um facto que é presumido como tal pela lei.

§ 3º - O art.º 516º do CC estabelece uma presunção legal de que os titulares de uma conta bancária solidária são proprietários em partes iguais dos valores nela depositados.
Mas trata-se duma presunção juris tantum, que admite prova em contrário.
Discute-se um valor depositado de € 42.500,00 e temos de considerar que o Autor logrou ilidir a presunção da comparticipação igualitária, pois provou que esse montante era da exclusiva propriedade de CC.
Assim o dizem os factos provados 5 a 8: o Autor e o irmão CC herdaram dos seus pais um prédio urbano, que venderam no dia 13 de setembro de 2019, pelo valor de € 135.000,00, que dividiram entre ambos, recebendo cada um € 67.500,00. CC depositou na aludida conta bancária parte desse valor (o montante de €42.500,00).
Tais factos não foram impugnados, pelo que não pode considerar-se que a Apelante seja comproprietária dos €42.500,00.




6. Sumariando (art.º 663º nº 7 do CPC)
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III. DECISÃO

7. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação, mantendo-se o decidido em 1ª instância.

Custas a cargo da Apelante, atento o decaimento.








Porto, 12 de setembro de 2024.
Relatora: Isabel Silva
1º Adjunto: Paulo Duarte Teixeira
2º Adjunto: Aristides Rodrigues de Almeida