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IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ANÁLISE CRÍTICA DA PROVA
ACIONAMENTO DE GARANTIA BANCÁRIA AUTÓNOMA
Sumário
I – Não cumpre o especial ónus de alegação previsto no art. 640º, nº 1, al. b), do C.P.C., a recorrente que se limita a invocar depoimentos de testemunhas, declarações de parte e documentos juntos, sem efectuar uma análise crítica da prova que justifique a decisão diversa da seguida pelo tribunal recorrido que propugna, não logrando o tribunal de recurso perceber qual a concreta motivação e justificação das alterações pretendidas. II – Em procedimento cautelar destinado a obstar ao accionamento de uma garantia bancária autónoma, quando esteja em causa uma manifesta actuação abusiva da beneficiária da garantia, é exigível uma prova líquida e irrefutável do abuso.
Texto Integral
Processo nº 14390/23.3T8PRT.P2
(Comarca do Porto – Juízo Central Cível do Porto)
Relatora: Isabel Rebelo Ferreira
1ª Adjunta: Ana Vieira
2º Adjunto: António Carneiro da Silva
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I – “A..., Lda.” intentou, no Juízo Central Cível do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, procedimento cautelar comum contra “B..., Unipessoal, Lda.” e “C..., S.A.”, pedindo que se ordene à 2ª requerida que não pague à 1ª requerida qualquer quantia por conta da garantia bancária nº ..., no valor de € 65.861,82, e se ordene à 1ª requerida que se abstenha de praticar qualquer acto junto da 2ª requerida com vista ao accionamento da referida garantia bancária.
Alegou para tal que celebrou um contrato de empreitada com a 1ª requerida, no âmbito do qual foi prestada uma garantia bancária em benefício desta, emitida pela 2ª requerida, no valor de € 65.861,82, para garantia do bom cumprimento das obrigações resultantes daquele contrato, ocorrendo que, em 8 de Agosto de 2023, a 1ª requerida accionou a garantia bancária, depois de ter resolvido o contrato no dia 1 do mesmo mês, sem que para tal tivesse fundamento, posto que não houve qualquer incumprimento da parte da requerente, antes sendo a 1ª requerida quem tem vindo a incumprir as suas obrigações para com aquela. A referida garantia é uma garantia “on first demand”, cuja execução pode ser recusada em situações em que exista uma conduta fraudulenta e de má fé ou abuso de direito, que é o que se verifica no caso.
Alegou ainda que se verifica no caso uma situação de perigo de ocorrência de prejuízo de difícil reparação, na medida em que “a execução da garantia pressupõe uma situação de facto consumado, irreversível pela própria natureza das coisas, visto que, a partir do momento em que se concretize o seu pagamento pela 2.ª Requerida à 1.ª Requerida, não será mais possível reverter tal situação”, e que o conhecimento do accionamento da garantia, com a suspeita de incumprimento da requerente, irá afectar negativamente a imagem da requerente, causando danos no seu prestígio e na sua credibilidade e reputação, irreversíveis e irreparáveis, e dificuldades no acesso a crédito bancário, essencial para a prossecução da sua actividade.
A 1ª requerida deduziu oposição, informando que a requerente instaurou outros quatro procedimentos cautelares respeitantes a outras quatro garantias bancárias semelhantes e requerendo a apensação dos cinco processos, sendo este o instaurado em primeiro lugar, alegando que o cumprimento ou incumprimento do contrato de empreitada apenas pode ser apreciado na jurisdição arbitral, por existir convenção arbitral, e que no caso não se verificam as situações excepcionais que permitem a paralisação da execução da garantia bancária, impugnando os factos alegados pela requerente e defendendo não se verificarem os requisitos para o decretamento da providência requerida.
A 2ª requerida não interveio no processo.
Notificada para o efeito, a requerente defendeu o indeferimento da apensação requerida, por a mesma ser manifestamente inconveniente.
Após, foi proferida decisão, em 17/10/2023, na qual se entendeu encontrar-se o tribunal “em condições de proferir decisão final, sem necessidade de produção de prova testemunhal”, ficando, assim, prejudicado o conhecimento da pretensão da 1ª requerida de apensação de processos, e se decidiu julgar improcedente o procedimento cautelar”.
É o seguinte o teor da decisão proferida:
«Veio “A...,Ldª ” intentar a presente providência cautelar não especificada contra “B...,Unipessoal ” e “C..., SA” pedindo que a 2º requerida seja intimada a não acionar a garantia bancária nº ... no montante de € 65.861,82 até decisão que lhe seja favorável nos autos principais e que legitime esse acionamento.
Alega para o efeito que no dia 08 de Agosto de 2023 a 1ª requerida acionou a garantia bancária, sendo que tal comportamento é completamente abusivo por parte da mesma ao abrigo de um contrato de empreitada, mesmo após ter resolvido o contrato, uma vez que é a 1º requerida quem tem vindo a incumprir as suas obrigações para com a requerente.
A Requerente pugna pela má fé e pelo abuso de direito para afastar a obrigação de pagamento da garantia bancária e sustentar a pretendida paralisação do direito de accionar a garantia bancária.
Vejamos então.
"A autonomia de garantia não se sobrepõe à eventualidade de má fé ou abuso de direito (...) por parte do beneficiário da garantia. Como em geral resulta dos artigos 762º e 334º do Código Civil também aqui a actuação das partes se deve pautar pelas regras da boa fé, sendo ilegítimo exercer um direito em manifesto desrespeito pelos limites impostos pela boa fé, bons costumes ou pelo fim económico ou social desse direito." (in Acórdão do S.T.J. de 21 / 04 / 2010, Relator Maria dos Prazeres Beleza, disponível nas bases de dados do M.J.).
Por outro lado tanto a doutrina como a jurisprudência admitem "a instauração pelo Mandante de providências cautelares, urgentes e provisórias, em sede judicial, destinadas a impedir o garante de entregar a quantia pecuniária ao beneficiário ou este de a receber, desde que o Mandante apresente prova líquida e inequívoca de fraude manifesta ou de abuso evidente do beneficiário". (Francisco Cortez, "A Garantia Bancária Autónoma", in ROA, ano 52, II, Julho, 1992). Isto porque "no âmbito da garantia autónoma, sempre que a providência cautelar seja requerida como forma de obstar a um aproveitamento abusivo da posição do beneficiário, deve ser exigida prova pronta e líquida. Pois, defender o contrário, seria negar a especificidade que a prática, a doutrina e a jurisprudência têm tentado identificar na garantia autónoma (...) autonomia que não se coaduna com o deferimento de providências se não em condições excepcionais, e que seria excessivamente relativizada, caso nos bastássemos com uma prova meramente sumária ou indiciária, com base na qual o juiz pudesse fazer um simples juízo de probabilidade." (Mónica Jardim, "A Garantia Autónoma", páginas 336 e 337).
Na verdade, na ponderação da verificação in casu dos requisitos de que o artigo 362º, nº 1 do CPC faz depender o decretamento de providência cautelar não especificada o tribunal terá de ter em consideração essa exigência no que respeita a probabilidade de existência do direito invocado pela requerente da providência. Sustenta a Requerente a existência de abuso de direito por parte da 1ª Requerida, traduzida no facto de ser a mesma quem está em incumprimento com a requerente, uma vez que os atrasos verificados na execução do contrato não podem ser imputáveis á requerente. Ora, não está de forma alguma demonstrado pela documentação junta á petição inicial que é ilícito e abusivo a conduta da 1º requerida, verificando-se ao invés, até pela leitura da oposição, que existe um litigio entre as partes acerca da execução do contrato garantido, do seu incumprimento, e a quem se deve imputar o incumprimento do mesmo, tudo isto aliado á pedido de prorrogação do prazo de vigência da garantia.
A independência do contrato de garantia autónoma em relação ao contrato base é um dos traços distintivos da garantia bancária e uma das características que lhe conferem autonomia, que na fiança não existe por esta ser caracterizada pela acessoriedade. A característica da autonomia é mais patente quando a garantia deva ser prestada à primeira solicitação, “on first demand..
No caso dos autos visa a providencia evitar o accionamento da garantia bancária, à primeira solicitação, prestada pela requerente.
Entende, contudo, o Tribunal, seguindo que a jurisprudência maioritária nacional o entendimento de que quando a providência cautelar é requerida como forma de obstar a uma solicitação abusiva ou fraudulenta por parte do beneficiário, deve ser exigida a prova líquida, inequívoca, pronta e irrefutável, sob pena de se subverter a finalidade para a qual a garantia foi configurada, o que se torna evidente quando tratamos de uma garantia à primeira solicitação especialmente desenhada para as situações em que o credor pretende uma garantia forte, semelhante ao depósito de dinheiro, em que se abdica de qualquer possível discussão por parte do garante das relações subjacentes à emissão da garantia e de qualquer comprovação do incumprimento.
Compreende-se que o decretamento de uma providência inibitória deve ser reservado para as situações de alegação e prova de circunstâncias concretas que traduzam a fraude manifesta ou o abuso evidente do beneficiário, e essa prova não existe nos autos.
Com o litígio emergente dos articulados, é evidente que tal prova não existe (nomeadamente prova escrita e inequívoca de tal fraude e abuso), não se afigurando que tal prova líquida e irrefutável seja feita através da prova testemunhal.
É pois manifesta a improcedência da pretensão formulada pela requerente pelo que ao abrigo do disposto nos artigos 362º e s do CPC julga-se improcedente o presente procedimento cautelar.»
De tal decisão veio a requerente interpor recurso, tendo, na sequência da respectiva motivação, apresentado as seguintes conclusões, que se transcrevem:
«1. Não se conforma a Recorrente com a sentença proferida pelo Tribunal a quo que indeferiu a providência cautelar rogada, a concretizar: uma providência cautelar inibitória que impedisse a execução da garantia bancária prestada pela 2.ª Requerida a favor da 1.ª Requerida. 2. O Tribunal a quoindeferiu a providência cautelar requerido sem ter produzido a prova rogada pelas partes, a concretizar: as declarações de parte e a inquirição das testemunhas. 3. Fê-lo por considerar que o decretamento da providência cautelar requerida está dependente da apresentação de prova pronta, líquida, irrefutável de uma violação flagrante e inequívoca das regras da boa-fé, que integre uma atuação manifestamente fraudulenta ou importe a violação de interesses de ordem pública (fumus boni juris) e que só a prova documental pré-constituída pode, eventualmente, constituir tal prova. 4. Concluindo o Tribunal a quo que, in casu, inexiste a aludida prova. 5. Todavia, consideramos, com o devido respeito, que o entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo não é correto, pois a prova pronta, líquida, irrefutável de uma violação flagrante e inequívoca das regras da boa-fé, que integre uma atuação manifestamente fraudulenta ou importe a violação de interesses de ordem pública (fumus boni juris) pode ser obtida com recurso a qualquer um dos meios de prova admitidos para as providências cautelares não especificadas, mormente, a prova testemunhal. 6. Assim, a sentença proferida deve ser revogada, prosseguindo os autos para produção da prova requerida pelas partes, a concretizar: declarações de parte das Requerente e 1.ª Requerida e inquirição testemunhal. Nestes termos e com o douto suprimento de V. Exas., deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente, revogando-se a sentença proferida e prosseguindo os autos a sua normal tramitação para produção da prova requerida pelas partes. Fazendo-se assim, A INTEIRA E DEVIDA JUSTIÇA!».
A 1ª requerente apresentou contra-alegações, defendendo que deve ser “indeferido” o recurso, por não ter sido cumprido o ónus previsto no art. 639º, nº 2, do C.P.C., pois a recorrente “não alegou quais as normas jurídicas violadas, nem o sentido em que (…) Tribunal a quo devia ter interpretado ou aplicado o direito”, e pugnando pelo não provimento do recurso e pela manutenção da decisão recorrida.
Por acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 25/01/2024 foi decidido conceder provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida e determinando-se o prosseguimento dos autos para produção de prova, por se entender que “não existe qualquer restrição no caso à produção dos meios de prova indicados pelas partes no presente procedimento cautelar, devendo a apreciação da existência da prova líquida e irrefutável ser efectuada aquando da valoração da prova produzida, em sede de decisão da matéria de facto”.
Prosseguindo, então, os autos, procedeu-se à inquirição da prova oferecida pelas partes, tendo sido indeferida a apensação supra referida por despacho de 29/02/2024.
Após, foi proferida decisão final, em 20/03/2024, na qual se decidiu julgar o procedimento cautelar improcedente, absolvendo-se as requeridas do pedido.
De tal decisão veio a requerente interpor recurso, tendo, na sequência da respectiva motivação, apresentado as seguintes conclusões, que se transcrevem:
«1. Não se conforma a Recorrente com a sentença proferida pelo Tribunal a quo que indeferiu a providência cautelar rogada, a concretizar: uma providência cautelar inibitória que impedisse a execução da garantia bancária prestada pela 2.ª Requerida a favor da 1.ª Requerida. 2. O Tribunal a quoindeferiu a providência cautelar requerida, grosso modo, por considerar que não se fez prova que o acionamento da garantia constituiu uma atuação abusiva e de má fé. 3. Dos documentos carreados ao processo e da prova produzida em audiência de julgamento, impõe-se uma alteração à matéria de facto considerada provada na douta sentença. 4. Devem ser considerados factos provados:
I) Não é a primeira vez que a 1.ª Recorrida, que não merece a credibilidade do setor bancário em Portugal, se tenta financiar mediante o acionamento de garantias bancárias.
II) Já o fez, num passado muito recente, para esta empreitada, acionado a garantia bancária objeto da presente providência cautelar, tendo, entretanto, desistido do acionamento da garantia porque percebeu que o mesmo estaria condenado ao insucesso.
III) A garantia bancária emitida pela 2.º Recorrida em benefício da 1.º Recorrida trata-se de uma garantia bancária on first demand ou à primeira solicitação, embora, no que respeita ao seu acionamento, com pressupostos específicos, de verificação cumulativa, a mencionar:
i) prova de que quem aciona a garantia tem legitimidade para o fazer;
ii) certificação de que o valor reclamado é inequivocamente devido por incumprimento contratual;
iii) lista de trabalhos não executados ou deficitariamente executados e o respetivo valor; e
iv) cópia dos certificados de aceitação da obra, ou de faturas que expliquem e fundamentem os valores reclamados ou, na ausência destes documentos, relatório pericial.
IV) A quantidade de trabalho executado pela Recorrente e a sua expressão em relação ao contratado é abordada no relatório técnico feito em 4 de agosto de 2023. 5. A alteração da matéria de facto impõe uma decisão de direito diversa da recorrida e, consequentemente, o decretamento da ação cautelar instaurada pela Recorrente. 6. A garantia on first demand ou à primeira solicitação uma vez acionada pelo credor permite obter do garante uma resposta imediata, a qual não poderá ser paralisada por alegações que digam respeito ao contrato subjacente ou ao relacionamento entre o beneficiário e o dador ou entre o beneficiário e a entidade que assumiu o compromisso traduzido na garantia autónoma. 7. Assim, apenas é legítima a recusa de pagamento pelo garante em casos de manifesta má fé, em casos de fraude manifesta ou abuso evidente por parte do beneficiário, de ofensa da ordem pública ou dos bons costumes pelo contrato garantido e, por fim, na existência de prova irrefutável de que o contrato base foi cumprido. 8. A prova desses casos deve ser pronta, líquida e inequívoca, ou seja, permitir uma perceção imediata e segura do abuso, quando é óbvio. 9. Resulta das declarações de parte da Recorrente e da 1.ª Recorrida, e da inquirição da testemunha AA em audiência de discussão e julgamento, assim como da prova documental carreada para os autos, mais concretamente, da Garantia Bancária n.º ... (DOC. 2 da Petição Inicial), da Prorrogação da Garantia (DOC. 3 da Petição Inicial) e do Relatório Pericial (DOC. 11 da Oposição), de forma obvia, com o devido respeito por opinião diversa, que, in casu, houve um aproveitamento abusivo da 1.ª Recorrida da posição de beneficiária da garantia bancária on first demand ou à primeira solicitação. Nestes termos e com o douto suprimento de V. Exas., deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente, revogando-se a decisão recorrida e, em consequência, determinar-se a procedência da ação cautelar intentada pela Recorrente. Fazendo-se assim, A INTEIRA E DEVIDA JUSTIÇA!».
A 1ª requerente apresentou contra-alegações, defendendo o não provimento do recurso e a manutenção da decisão recorrida.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - Considerando que o objecto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), são as seguintes as questões a tratar: a) impugnação da matéria de facto; b) procedência da pretensão formulada pela requerente.
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Vejamos a primeira questão.
O recurso pode ter como objecto a impugnação da decisão sobre a matéria de facto e a reapreciação da prova gravada (cfr. art. 638º, nº 7, e 640º do C.P.C.).
Neste caso, o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição (nº 1 do art. 640º): a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
No que respeita à alínea b) do nº 1, e de acordo com o previsto na alínea a) do nº 2 da mesma norma, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Uma vez que a impugnação da decisão de facto não se destina a que o tribunal de recurso reaprecie global e genericamente a prova valorada em primeira instância, a lei impõe ao recorrente um especial ónus de alegação, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação.
No caso concreto, verifica-se que a recorrente, embora invoque o que considera ser matéria de facto incorrectamente julgada e a decisão que deve ser proferida, não enuncia os concretos meios probatórios que impõem decisão diversa sobre aquela matéria.
Com efeito, a recorrente limita-se a transcrever um excerto do depoimento da testemunha AA, dois excertos das declarações de parte do seu legal representante e um excerto das declarações de parte do legal representante da 1ª recorrida, e a referir a garantia bancária junta como documento 2 do requerimento inicial, “mais concretamente seu ponto 5”, transcrevendo, em inglês, este ponto do documento, e o relatório técnico junto como documento 11 da oposição, “a sua Capa e Pág. 7, onde menciona a data da sua elaboração”, aduzindo apenas genericamente que “ante tudo o exposto, porque alegada e demonstrada nos termos antecedentes, estamos em crer que o Tribunal a quo deveria ter dado por provado a seguinte factualidade”, sem enunciar de que forma a aludida prova permite, de forma conjugada ou não, considerar como indiciados cada um dos pontos que indica pretender sejam considerados na matéria indiciariamente provada, não logrando o tribunal de recurso perceber qual a concreta motivação e justificação das alterações pretendidas pela recorrente.
Como se diz no Ac. da R.P. de 08/03/2021, com o nº de proc. 16/19.3T8PRD.P1, publicado em www.dgsi.pt, “sobre os recorrentes recaía o ónus de efetuar uma análise crítica sobre a prova produzida, só assim justificando o seu desacordo quanto à valoração da prova formulada pelo tribunal a quo e evidenciando o erro de julgamento que ao mesmo imputam.
(…)
Tal como ao tribunal é imposta uma análise crítica da prova produzida como forma de tornar as suas decisões claras e sindicáveis nomeadamente em segunda instância, também aos recorrentes que imputam erro de julgamento na decisão de facto é exigido um juízo critico sobre essa mesma prova, especificando os meios probatórios que impunham decisão diversa.
Os recorrentes (…) tão pouco formularam um juízo crítico circunstanciado e concreto sobre a prova produzida e valoração da mesma por parte do tribunal a quo que permita concluir violar a mesma as regras da lógica ou da experiência. Limitaram-se a invocar de forma genérica e global depoimentos testemunhais ou documentos, sem efetuar qualquer análise crítica justificativa de uma decisão diversa da seguida pelo tribunal recorrido.
Esta análise crítica da prova produzida é uma exigência que tem vindo a ser reconhecida quer pela doutrina quer pela jurisprudência”.
Perante a situação exposta, nem fazendo apelo ao princípio da proporcionalidade [não exacerbar os requisitos formais a tal ponto que tal se traduza numa denegação/recusa da reapreciação da matéria de facto, ao arrepio do que foi a intenção do legislador e do que consta claramente da letra da lei (neste sentido, cfr. Ac. do S.T.J. de uniformização de jurisprudência nº 12/2023, de 14/11, D.R. n.º 220/2023, Série I, págs. 44 a 65, e António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 2022, 7ª edição actualizada, págs. 202 a 207)], se pode considerar que esteja minimamente cumprido o especial ónus de alegação que incumbia à recorrente quanto às matérias previstas no art. 640º, nº 1, al. b), do C.P.C..
Ou seja, a recorrente não cumpriu com esse especial ónus de alegação – “não observa tal ónus o recorrente que identifica os pontos de facto que considera mal julgados, mas se limita a indicar os depoimentos prestados e a listar documentos, sem fazer a indispensável referência àqueles pontos de facto, especificando os concretos meios de prova que impunham que cada um desses pontos fosse julgado provado ou não provado” (ponto III do sumário do Ac. do S.T.J. de 19/02/2015, publicado em www.dgsi.pt, com o nº de proc. 405/09.1TMCBR.C1.S1).
A consequência do incumprimento das especificações previstas no art. 640º, nºs 1 e 2, do C.P.C. é a rejeição do recurso na parte respeitante à impugnação da matéria de facto.
Assim, em conformidade com o disposto nesta disposição legal, rejeita-se o recurso no que respeita à impugnação da matéria de facto, por incumprimento da recorrente do exigido no art. 640º, nº 1, al. b), do C.P.C..
Anote-se que, ainda que assim não fosse, sempre a impugnação estaria votada ao insucesso, na medida em que:
- quanto aos factos das alíneas G) e H) dos factos não indiciados, a prova indicada pela recorrente foi considerada pelo tribunal recorrido, que a não considerou suficiente para comprovar que “a 1.ª requerida não tem credibilidade bancária, que tem esta forma de proceder para se financiar”, não resultando da alegação daquela qualquer argumento para infirmar esta conclusão do tribunal, sendo certo que, efectivamente, a circunstância de ter havido um accionamento (ou tentativa de accionamento) anterior da garantia em causa nos autos (aquilo que resulta das declarações transcritas pela recorrente) não permite concluir que a 1ª requerida “não merece a credibilidade do sector bancário” e se tenta financiar mediante o accionamento de garantias bancárias (a matéria essencial pretendida demonstrar pela recorrente);
- a matéria alegada nos arts. 40º, 41º, 43º e 44º do requerimento inicial, que a recorrente pretende que conste da matéria de facto indiciada, não constitui matéria de facto, mas matéria de direito.
Ora, no elenco dos factos provados e não provados apenas devem constar “factos” e não matéria conclusiva e/ou de direito. No sentido da exclusão desta matéria do elenco dos factos provados da sentença, por via do disposto no art. 607º, nº 4, do C.P.C., cfr. o Ac. do STJ de 29/04/2015, publicado em www.dgsi.pt, com o nº de proc. 306/12.6TTCVL.C1.S1, e o Ac. da R.E. de 28/06/2018, publicado no mesmo sítio da Internet, com o nº de proc. 170/16.6T8MMN.E1. Como se refere neste último acórdão, “na decisão sobre a matéria de facto apenas devem constar os factos provados e os factos não provados, com exclusão de afirmações genéricas, conclusivas e que comportem matéria de direito”, pelo que, “mesmo no âmbito da vigência do actual CPC, a decisão sobre a matéria de facto deve estar expurgada” dessas afirmações, devendo ser eliminado qualquer ponto da matéria de facto que “integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas que definem o objecto da acção, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões”;
- a matéria retirada do art. 103º da oposição, que a recorrente pretende incluir na matéria de facto indiciada, respeita ao facto de ser abordada no relatório técnico feito em 04/08/2023 a quantidade de trabalho executado pela recorrente e a sua expressão em relação ao contratado. Ora, saber se essa quantidade e expressão foram abordadas no relatório técnico (concreto facto objecto da impugnação) é absolutamente irrelevante para a questão que está em apreciação no presente processo.
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Passemos à segunda questão.
Tendo em conta o resultado do tratamento da questão anterior, a factualidade a ter em conta para apreciação da pretensão da recorrente é a que consta dos factos dados como indiciados na decisão recorrida, que se transcrevem:
«1. A Requerente é uma sociedade comercial que tem por objeto: atividades de engenharia civil e eletromecânica; a manutenção e recuperação de fundações de betão em parques eólicos; a manutenção de aerogeradores eólicos, solares e hídricos; a montagem civil e eletromecânica de projetos solares e eólica; a impermeabilizações em estruturas de betão; a construção civil e obras públicas; a importação e comercialização de produtos alimentares; a venda a retalho de produtos não alimentares, conforme Certidão Permanente Comercial com o código de acesso ..., cujo conteúdo se reproduz para os devidos efeitos legais.
2.A 1.ª Requerida é uma sociedade comercial que se dedica aos estudos, desenvolvimento, consultoria e promoção de projetos de energias renováveis; e à produção e comercialização de energia elétrica, encontrando-se, neste momento, a executar uma empreitada para a construção de um parque fotovoltaico sito em ..., Aveiro, designada «...».
3. No exercício das atividades acima descritas, a Requerente e a 1.ª Requerida celebraram, em 27/04/2022, um Contrato (de ora em diante designado por «Contrato de Empreitada» ou simplesmente «Contrato»), tendo por objeto todos os trabalhos necessários ao desenvolvimento, construção, instalação e funcionamento de um Parque Fotovoltaico no local mencionado (de ora em diante designada por «Empreitada» ou “obra”), conforme Contrato, que se junta sob o DOC. 1 e cujo conteúdo se reproduz para os devidos efeitos legais.
4. No âmbito deste Contrato e para garantia do bom cumprimento das obrigações dele resultantes, a pedido da Requerente foi prestada em benefício da 1.ª Requerida uma garantia bancária, emitida pela 2.ª Requerida, no valor de € 65.861,82, conforme Garantia Bancária n.º ... e Respetiva Prorrogação que se juntam sob os DOCS. 2 e 3 e cujos conteúdos se reproduzem para os devidos efeitos legais.
5. A 1.ª Requerida acionou, em 08/08/2023, a garantia bancária mencionada.
6. A 1.ª Requerida endereçou à Requerente, em 01/08/2023, uma comunicação pela qual veio resolver o contrato de empreitada com efeitos a 09/08/2023, conforme Carta que se junta, sob o DOC. 4, e cujo conteúdo se reproduz para os devidos efeitos legais.».
Como já se disse no acórdão de 25/01/2024, «a garantia autónoma é “um contrato celebrado entre o interessado – o mandante – e o garante – a favor de um terceiro – o garantido ou beneficiário”.
O garante “obriga-se a pagar ao beneficiário uma determinada importância”, pagamento este que deverá ocorrer “à primeira solicitação”, “isto é: o garante pagará ao beneficiário determinada importância, assim que este lha peça”.
Exigida a garantia, “o garante só poderá opor ao beneficiário as excepções literais que constem do próprio texto da garantia: nunca as derivadas da relação principal. Tão pouco se pode reagir a ela com pretensões de enriquecimento”.
“A função da garantia autónoma não é, pois, a de assegurar o cumprimento dum determinado contrato. Ela visa, antes, assegurar que o beneficiário receberá, nas condições previstas no texto da própria garantia, uma determinada quantia em dinheiro. Por isso, perante uma garantia autónoma à primeira solicitação, de nada servirá vir esgrimir com argumentos retirados do contrato principal: a garantia tem fins próprios, auto-suficientes” (cfr. António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 2ª ed., Almedina, págs. 656 a 658).
Apesar da natureza automática desta garantia, tem-se entendido que “existem limites, podendo a entidade garante recusar o cumprimento com base no contrato garantido, se o pedido de pagamento da garantia constituir uma fraude manifesta, ou uma violação flagrante dos princípios da boa fé, mas, nestes casos, será sempre exigível uma prova pronta e inequívoca do abuso por parte do beneficiário, sob pena de desvirtuar a finalidade da obrigação autónoma automática”.
“Não é suficiente a existência de um conflito pendente no tribunal entre os titulares da relação garantida, pois tal conflito, do qual se ignora o desfecho, por si só, não demonstra a existência da invocada actuação abusiva do beneficiário”.
“E, podendo os respectivos interessados recorrer a uma providência cautelar para obstar ao cumprimento da garantia, com fundamento no comportamento abusivo do beneficiário, não deixa de ser exigível a prova segura e irrefutável deste abuso” (Ac. da R.L. de 10/03/2016, com o nº de processo 13644/12.9YYLSB-A.L1-6, publicado em www.dgsi.pt).
Assim, estando em causa a situação específica de paralisação do accionamento de uma garantia autónoma, admitindo-se a utilização da tutela cautelar para o efeito, não basta a prova por verosimilhança que normalmente é requisito do decretamento de uma providência cautelar, antes se exigindo que neste caso particular se faça uma prova líquida e inequívoca do fundamento que justifica o não pagamento da garantia.».
Após a produção da prova indicada pelas partes nos articulados, atenta a factualidade indiciariamente provada transcrita, não é possível concluir pela existência de prova líquida e inequívoca da situação de accionamento abusivo da garantia (e dos restantes pressupostos da providência cautelar comum).
Com efeito, como se diz na decisão recorrida, “tendo ficado assente que a 1.ª requerida resolveu o contrato de empreitada que celebrou com a requerente e acionou a garantia bancária, não se fez prova que o acionamento da garantia bancária constituiu uma atuação abusiva e de má fé. (…)
É evidente pelos articulados, e também pela produção de prova que existe[m] entre as partes - Requerente e 1.ª Requerida –uma situação de conflito, já que imputam o incumprimento do contrato á outra parte, certo que este estava a ser incumprido, existiam atrasos na edificação da obra contratada, sendo que o relatório pericial ao estado desta aponta para atrasos, mas não se provou que esses atrasos se tenham ficado a dever à 1.ª requerida conforme alegava a requerente.”
Conclui-se, portanto, que não estão preenchidos no caso os requisitos para o decretamento da providência cautelar requerida, não merecendo acolhimento o recurso da requerente.
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Em face do resultado do tratamento das questões analisadas, é de concluir pela não obtenção de provimento do recurso interposto pela requerente.
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III - Por tudo o exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
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Custas da apelação pela recorrente (art. 527º, nºs 1 e 2, do C.P.C.).
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Notifique.
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Sumário (da exclusiva responsabilidade da relatora - art. 663º, nº 7, do C.P.C.):
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datado e assinado electronicamente
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Porto, 12/9/2024
Isabel Ferreira
Ana Vieira
António Carneiro da Silva